pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: abril 2019
Powered By Blogger

terça-feira, 23 de abril de 2019

Ralph Ellison: a causa e o efeito

                                         

    Luiz Maurício Azevedo 
                                                                                                                                                                 

Ralph Ellison: a causa e o efeito

FacebookTwitterEmailPinterestAddThisO crítico literário Ralph Ellison, em 1960 (Foto: Agência de Informações dos Estados Unidos)

Em 2019 completam-se 25 anos da morte do escritor afroamericano Ralph Ellison. Nascido em 1919, em Oklahoma, Ellison tornou-se notório por escrever aquela que é, sem dúvida, a obra obrigatória de toda a tradição literária negra nos Estados Unidos: Homem invisível. Publicado em 1952, o livro é basicamente uma carta-explicação sobre os motivos pelos quais um homem decide optar por viver dentro do subsolo da cidade de Nova York. O protagonista salta de decepção em decepção, fracassando em toda socialização que empreende. A experiência de ser negro nos Estados Unidos é como uma trajetória trágica, cheia de mal entendidos, frustrações, injustiças e imoralidades.
No Brasil, há duas traduções do livro disponíveis: uma datada de 1990, produção da editora Marco Zero, editada na esteira do centenário da abolição da escravatura, ocorrido no ano anterior. A outra edição é de 2013 e foi produzida pela José Olympio. Àquela altura, Homem invisível só podia ser encontrada em sebos. Em 2012, exemplares da obra eram comercializados por até duzentos reais cada, em sites como Estante Virtual e Mercado Livre. O hiato entre a primeira e a segunda tradução tem muitas explicações editoriais: a aquisição dos direitos de publicação de uma obra é um processo complexo, que envolve longa negociação, poder aquisitivo e elementos culturais. E isso sem dúvida pesou na sentença de afastar o leitor brasileiro desse livro seminal. Contudo, é possível que a conjuntura social brasileira tenha tido mais peso nessas decisões do que as demandas editoriais.
Explico: Homem invisível é um ataque frontal a dois tipos de ilusão. A primeira é de que pessoas negras podem se comportar como pessoas brancas e obter do mundo as mesmas reações que colheriam se não fossem negras. A segunda é a de que um projeto de coletividade – seja ele político, seja ele religioso – pode oferecer resposta para as angústias profundas de um indivíduo. Ellison se esforçou para demonstrar em sua obra que fatores socioeconômicos turvavam a visão sobre um ser humano, mas que não podiam determiná-lo. Para grande parte dos leitores estadunidenses, o livro é uma potente bandeira liberal sobre os riscos do pensamento de manada, das associações e das entidades que vendem a ideia de que os trabalhadores desejam algo diferente de seus chefes.
Essa concepção tornou Homem invisível de certa forma inútil para o Brasil, país onde o capitalismo hiberna, há décadas, em um limbo que coaduna atraso e identidade racial esquizofrênica. Por aqui, o livro encontra dificuldades em sua recepção porque seus principais temas são conduzidos por nós de forma bastante negativa, e a questão racial é um pesadelo que negamos como país. Por outro lado, sempre foi interessante para grande parte de nossa crítica a descrição do outro como sendo uma vítima passiva, e nossa literatura – eurodescendente – jamais pode dar conta do problema racial.
Homem invisível parece ser o último suspiro essencialista de um autor profundamente existencialista. A complexidade de sua obra não deixa espaço para o proselitismo tão palatável ao ambiente das elites nacionais, sempre dispostas a ouvir a canção dos outros quando os outros se dispõem a louvá-los, no espetáculo perdido da vida humana.
Nos Estados Unidos, membros do Partido Comunista rejeitaram a obra. Acreditavam estar frente a um romance que desenhava com traços agressivos e pejorativos uma comunidade que já estava suficientemente massacrada pela má-fama. No campo conservador, a reação foi bastante diferente. Houve uma série de manifestações que misturaram racismo e admiração. Orville Prescott, célebre crítico do The New York Times, chamou o livro de “impressionante realização; o melhor talento literário que já vi em um negro”. Fredrik Spotchen, da extinta revista Millestone, disse ser Ralph Ellison “uma espécie de James Joyce do Harlem”.
Entre os negros a obra atingiu grande notoriedade ao longo das décadas. Barack Obama atribui um grande peso em seu processo de formação. A cultura pop também presta constantes tributos à obra: na série Luke Cage, produzida pela Netflix, o protagonista tem Homem invisível como livro de cabeceira, em meio à sua improvável rotina de super-herói.  Em Todo mundo odeia o Chris, série cômica, escrita por Chris Rock, há uma exploração bem humorada da centralidade da obra no sistema escolar americano e o modo como certos indivíduos negros lidam com a herança cultural do seu próprio grupo.
O autor, contudo, não goza de igual destaque. Seu temperamento difícil e a inclinação pelo criticismo mais ácido fizeram dele uma figura complexa, com poucos acessos sócio-midiáticos. Não há camisetas com seu rosto; não há canecas com suas frases; não há celebração pública de sua figura histórica. Ellison tornou-se uma espécie de raiz da qual a própria invisibilidade é uma mera consequência lógica.
Homem invisível foi publicado em um momento em que o Modernismo estava em franca crise nos Estados Unidos. A forma-romance parecia encontrar uma limitação. Os elementos centrais da vida cultural negra por aquelas bandas (a saber: o jazz, a oralidade, a religiosidade e o mito da ascensão social) foram usados pelo autor para refazer a indagação-base de toda investigação filosófica séria: “quem sou?” É por isso que a obra começa com um significativo: “sou um homem invisível”. Ser capaz de determinar aquilo que se é, longe de ser uma limitação, é uma libertação. E, especificamente para indivíduos negros, significa desfazer as minas tóxicas que foram ardilosamente colocadas pela ideologia racial.
Luiz Maurício Azevedo é doutor em Teoria e História Literária pela UNICAMP; autor de A toupeira invisível: marxismo negro e cultura antimarxista em Ralph Ellison (Editora Figura de Linguagem)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Economia do "bico"


Resultado de imagem para gig economy

 

Na manhã da última Quarta-Feira, véspera do feriado da Semana Santa, havia um bom motivo para voltarmos à Universidade Federal de Pernambuco. Mais precisamente ao 13º andar do CFCH - onde realizamos parte de nossos estudos naquela Instituição - na Pós-Graduação de Antropologia, ocorreria a palestra do professor Mabuse, que abordaria um tema dos mais relevantes na atual conjuntura política que atravessamos, seja no Brasil, seja no mundo: a absoluta ausência de normas ou procedimentos éticos na construção de algoritmos. De acordo com Mabuse, a lógica que orienta a criação desses algoritmos segue um viés unicamente utilitarista, embora envolva mecanismos de controle e vigilância sobre indivíduos e coletividades, cujas implicações deixariam um filósofo como Michel Foucault - aquele do bio poder - de queixo caído.
Hoje, com o advento dos aparelhos de celulares android, é possível acompanhar todos os passos dos indivíduos, mesmo quando o aparelho está desligado. Sites de busca como o Google - nada sigiloso - por exemplo, ajudaram bastante o trabalho da polícia para se chegar aos assassinos da militante Marielle Franco. Espanta ao professor o fato de a juventude não demonstrar qualquer tipo de incômodo ou desconforto com este fato. Um bom sinal de wi-fi, já comentamos isso por aqui, figura entre os primeiríssimos critérios para se definir por algum tipo de hospedagem. Talvez até mais determinante do que uma boa cama e uma boa companhia. 
Algoritmo, na realidade, é um termo do campo da informática, que pode ser definido como uma sequência finita de ações executáveis que visam obter uma solução para um determinado tipo de problema. Em tese, por exemplo, podem ser utilizado para facilitar a vida dos velhinhos em filas intermináveis nos supermercados; ajudar as grávidas na escolha do enxoval das crianças; fazer intervenções em circuitos expositivos, consoantes as reações do público visitante de museus ou galerias de arte; coisas do tipo. A questão é quando as grandes plataformas se utilizam dos dados dos indivíduos para objetivos não necessariamente assim tão republicanos, invadindo sua privacidade, fornecendo esses dados para usos escusos, conforme já ocorreu, por exemplo, nas últimas eleições americanas, quando milhões de dados foram sutilmente utilizados por uma determinada empresa de marketing político, que trabalhou magistralmente as emoções e reações dos eleitores em favor de um determinado candidato.
A última eleição brasileira foi a eleição das fake news, ou seja, mentiras sistematicamente disseminadas através de robôs, utilizando-se das redes sociais, que acabaram tornando-se verdades, através da “construção” da opinião pública. Sou de uma época em que os bons debates ainda ajudavam a “formar” a opinião pública, num ambiente aonde ainda se respirava democracia. Hoje, no entanto, as pessoas são submetidas a linchamentos morais, sem direito de defesa, sem ser ouvidas, sem provas, sem que seja observado o princípio da presunção de inocência ou do contraditório, baseadas no "achismo". Desde que um certo magistrado da Suprema Corte resolveu orientar suas decisões pelo domínio do fato para condenar agentes públicos,  o trem constitucional saiu dos trilhos, desencadeando o caminho pantanoso da permissividade ou uma espécie de "relativismo" jurídico, já pedindo perdão aos juristas por alguma impropriedade na definição do conceito.   

No bojo desse debate, invoca-se a postura de instituições como o Estado, hoje absolutamente empenhado em ampliar os mecanismos de controle e as tecnologias de vigilância sobre os indivíduos, como o uso cada vez mais frequente de drones, GPS e as famosas câmaras de reconhecimento facial, numa tradução bastante aproximado do Grande Irmão de George Orwell. O Ministério da Verdade, então, esse já está completamente escancarado, com a divulgação de mentiras e a ocultação de dados e informações que, de fato, poderiam ser úteis aos cidadãos. As crescentes restrições à transparência de informações - um retrocesso - se encaixam aqui. Que interesse teria o cidadão comum em conhecer a caixa-preta da Previdência Social? 
Um fator ainda relacionado à conformação do aparelho de Estado na atual conjuntura política, diz respeito a uma previsão do filósofo esloveno Slavoj Zizek que, ainda no calor das passeatas das Jornadas de Junho de 2013, alertava sobre o recrudescimento do uso da força no exercício do poder político, uma profecia que está se materializando. Há, aqui, uma “nova” conformação que não se restringe apenas ao aparelho de Estado, mas ao próprio capitalismo, que se reinventa sempre, pouco se lixando para os segmentos sociais que não reúnem condições de participar dos seus banquetes consumistas. Mas este é um tema que, por envolver o "capital" das milícias, deixaremos para abordar num momento mais apropriado.
Vale aqui uma observação - que chegamos a discutir anpassant com o professor Mabuse - que diz respeito à institucionalização da Economia do Bico, ou, como preferem os americanos, o GIG Economy. Há, de fato, um crescente processo de “institucionalização do bico”, sobretudo quando se observa, simultaneamente, o “arrojo” de empresas como a Uber - que participou ativamente do último carnaval de Olinda, conforme lembrou o professor Mabuse - e amplia seus negócios, atingindo milhões de usuários e parceiros, em sua maioria jovens que estão iniciando suas atividades produtivas, ou desempregados que não conseguem uma recolocação num mercado de trabalho precarizado e desregularizado pelo Estado, como o nosso, cuja Constituição Trabalhista - era assim a CLT para os trabalhadores e trabalhadoras - está praticamente extinta.
Isso nos fez lembrar de uma visita que o sociólogo Ulrick Beck fez ao Brasil, anos atrás, quando saiu daqui entusiasmado com o fenômeno de nossa economia informal, chegando a cunhar a expressão “Brasilização do Ocidente”, numa alusão a uma espécie de “democratização do setor informal no Brasil “ - Não é nada improvável que o alemão tenha lido as teorias de um outro sociólogo brasileiro bastante conhecido - apresentando o caso brasileiro como um exemplo a ser seguido pelo Ocidente, uma vez que, por aqui, se irmanavam no mesmo barco, brancos, pretos, pardos, héteros, homossexuais, trans, mulheres, homens e crianças, numa situação pouco provável de ocorrer na Europa, onde os conflitos étnicos praticamente impediriam essa possibilidade. A visão idílica de Beck sobre a "democracia da economia informal no Brasil", possivelmente, turvou sua percepção mais efetiva sobre esse fenômeno, que já atinge 10 milhões de brasileiros, sem garantias de assistência à saúde, vivendo no limite, sem um plano de seguridade que garanta uma vida digna na velhice. Estes já estão, a priori, condenados a morrerem trabalhando.

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/04/22/15559793405cbe5c4c99ac8_1555979340_16x9_th.jpg

terça-feira, 9 de abril de 2019

Filosofia em tempos bizarros

                                 
Charles Feitosa
                                                                                                                                                                 

Filosofia em tempos bizarros              


 
Platão, Sócrates e Aristóteles (Reprodução)


A filosofia de fato é “filha do seu tempo”, como afirmava Hegel. Cada época clama por mais e melhores pensamentos, mas a filosofia nunca dita o que deve ser feito, cabe a cada um de nós decidir como vamos corresponder a esse clamor. Onde quer que esteja, a tarefa do filósofo consiste sempre em questionar os discursos vigentes, as explicações hegemônicas, as unanimidades de cada era. Assim foi quando Platão questionou a falta de senso crítico dos seus concidadãos atenienses em relação à poesia de Homero ou quando Hegel denunciava as consequências éticas e políticas da ascensão do “indivíduo” na modernidade.
Hoje, no mundo globalizado, a filosofia continua sendo solicitada a questionar os lugares consolidados do pensamento, seja na esfera ética/política (quando nossos concidadãos absorvem de maneira acrítica os discursos da mídias ou os boatos das redes sociais); seja na esfera epistemológica (quando,  por exemplo, as ciências humanas se rendem à tendência reducionista de considerar o cérebro como o índice mais fundamental da humanidade); ou ainda na esfera estética (quando certas instituições arquivísticas acreditam deter o poder de determinar o que é ou não é arte).
Muitas vezes a estratégia dos filósofos consiste justamente em colocar à prova a validade de certas interpretações que o ser humano faz do mundo, dos outros e de si mesmo, esticando-as ao máximo, desvelando assim suas possíveis decorrências ainda não evidentes. É famoso o comentário de Heidegger na palestra A Coisa (1951) sobre a bomba atômica, evento histórico decisivo que surpreendeu o mundo inteiro em 1945. Para Heidegger a bomba atômica de alguma maneira já tinha explodido muito tempo antes, enquanto um efeito não apenas acidental, mas sim necessário, da aposta exclusiva pela racionalidade científica, ou seja, pela exploração tecnicista da natureza, que a civilização ocidental havia feito. Logo, nenhum protesto pelo desarmamento nuclear teria êxito completo se não fosse sempre acompanhado por uma constante reflexão crítica sobre a essência da técnica, na qual depositamos todas nossas esperanças.
Outra história que ilustra essa desconfiança da filosofia em relação aos “coros dos contentes” é a famosa entrevista que Adorno deu para a revista alemã Der Spiegel em maio de 1969, no auge das manifestações, das barricadas, dos protestos estudantis que contagiavam as Américas e a Europa. Apesar de eu discordar das posições ali defendidas sobre a relação entre teoria e da prática, considero emblemático o modo como a conversa se desenrola para se compreender a singularidade do gesto filosófico. O repórter inicia sua entrevista com a seguinte frase: – “Professor Adorno, duas semanas atrás, o mundo ainda parecia em ordem…” e é interrompido firmemente pelo filósofo, que diz simplesmente: -“Não para mim”. Essas e muitas outras anedotas contribuem para a imagem do filósofo como um portador de más notícias, sempre nos alertando de que o pior estar por vir. Isso fica especialmente nítido em relação a questão da morte, que é o nosso futuro mais certo, ainda que em hora incerta. A filosofia pode ser definida desde os seus primórdios como um memento mori [em latim: lembre-se da morte] uma espécie de sino que dobra constantemente para nos lembrar da nossa condição efêmera.
Aqui vale a ressalva que o objetivo da filosofia não é nos aterrorizar com a lembrança da morte, mas sim nos provocar e sacudir, para que possamos de vez em quando reavaliar nosso modo de ver o mundo e as nossas prioridades na existência.  Da mesma forma não se deve deduzir do exposto que o papel da filosofia se reduz apenas a profetizar apocalipses, individuais ou coletivos. Isso depende muito de cada contexto. A filosofia tem sido historicamente um alerta quando o otimismo se torna hegemônico, mas acredito que ela pode também se tornar uma brisa de ar revigorante, quando é o pessimismo e a sensação de impotência que predominam, tal como ocorre no Brasil de hoje.
Quais são portanto, as tarefas do pensamento nesses tempos bizarros? O termo “bizarro” está em moda no Brasil e corre o risco de perder a força devido à sua superexposição. Tudo o que não se entende, que é incomum, extravagante, ganha a alcunha de bizarro. A origem do termo é nebulosa, como de hábito, mas alguns historiadores afirmam que ainda no século 16, “bizarro” em espanhol tinha um sentido diverso, a de garboso, valente, admirável. Somente no século seguinte, transportado para a língua francesa, que o termo ganhou o sentido que prevalece até hoje, de algo “muito anormal”. Então quando falo em tempos bizarros para descrever o momento atual de exceção no Brasil, quero apostar na ambiguidade originária desse termo, pois certamente vivemos tempos muito estranhos, marcados por ataques políticos-midiáticos-jurídicos-econômicos à democracia. Mas acredito que também poderão vir a se mostrar como “tempos de coragem”, quem sabe até como “tempos admiráveis”, onde não mais será possível deixar de se posicionar e de participar dos combates.
É por isso que prefiro descrever nossos tempos como “bizarros” e não recorrer ao já consagrado jargão “tempos sombrios”. A expressão “tempos sombrios” foi eternizada pela filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt no seu livro Men in Dark Times (1968). Nele são descritas as vidas de homens e mulheres, tais como Rosa de Luxemburgo, Walter Benjamin ou Bertold Brecht, que por meio de suas ações foram exemplos de resistência contra os regimes totalitários que surgiram durante a primeira metade do século 20. A expressão que dá nome ao livro de Arendt foi inspirada no famoso poema Aos que virão depois de nós [An die Nachgeborenen] (1934-1938) de Bertold Brecht que diz: “Eu vivo em tempos sombrios [finsteren Zeiten]. / Uma linguagem sem malícia, é sinal de estupidez. / Uma testa sem rugas, é sinal de indiferença. Que tempos são esses?”.
Apesar desse heroico pano de fundo, considero que o termo “sombrio” ainda está irremediavelmente preso ao binarismo típico da modernidade, onde a luz evoca auto-consciência e conhecimento, ao passo que a escuridão e as trevas representam a ignorância e a violência. O uso da luz como remédio pode ter sido adequado para os tempos modernos, uma época em que ainda vigorava a luta da verdade contra a mentira, mas talvez não sirva mais para o momento atual, marcado ao contrário por uma inflação de verdades a todo custo, seja na forma das fake news da internet ou ainda dos assim chamados “fatos alternativos” de Donald Trump.
Desconfio que o diagnóstico da situação atual indique ao contrário um excesso de luminosidade na vida cotidiana (representada pela a omnipresença da tecnologia, da farmacêutica, das mídias de massa, da burocracia, etc.), o que acaba deixando cada vez menos espaço para a noite (representada pelas artes, pelos corpos, por seus gestos, seus afetos, suas ações). Luz demais também cega, já indicava Platão desde a alegoria da caverna.
Dentro desse contexto “pós-moderno” talvez a tarefa do filósofo não seja mais apenas disseminar a luz, mas ao contrário defender os espaços de escuridão. Tal como bem defende o historiador da arte francês Didi-Huberman no seu belo livro A Sobrevivência dos Vagalumes (2014), para que os “vaga-lumes” – simbolizando outras formas de saberes, fora do eixo, periféricas, tais como as oriundas da matriz africana, oriental ou ameríndia – possam ser preservados da ameaça da extinção.
Para mim, mais do que defender a noite, talvez a filosofia atual precise nesses tempos bizarros partir para uma dimensão ainda mais ativista e promover ela mesma alguns “apagões” ao seu redor. Um “apagão”, como bem sabemos, é uma situação incômoda que costuma interromper nossas atividades recorrentes, seja de trabalho ou de entretenimento. Mas dependendo da nossa atitude de resposta, um apagão pode vir também a se tornar um buraco criativo no tempo cotidiano, uma oportunidade de iniciar aquela conversa consigo próprio, muitas vezes adiada, que os antigos chamavam de pensar. Durante esses apagões quem sabe possamos nos “lembrar da vida” e contrapor o pessimismo e a sensação de impotência com a invenção de mais e melhores estratégias para reconquistar os territórios que estão sendo roubados de nós, brasileiros.
Vila Isabel, Rio de Janeiro, inverno de 2017
Charles Feitosa é doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO; coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop) e autor entre outros de Explicando a filosofia com arte (Prêmio Jabuti 2005).