pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: maio 2019
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quarta-feira, 29 de maio de 2019

Ernst Jandl com visto de permanência


Ernst Jandl com visto de permanência
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Ernst Jandl em uma leitura em 1992 (Foto: Deutsches Theater / Divulgação)

Ernst Jandl (1925-2000) vem finalmente ao Brasil. Não pela primeira vez, já que algumas seleções menores ou maiores de poemas seus foram publicadas no país nas últimas décadas, mas vem finalmente numa antologia de fôlego, Eu nunca fui ao Brasil (Relicário Edições, 2019, edição bilíngue, tradução de Myriam Ávila), que perpassa em mais de 160 páginas alguns dos poemas mais significativos do autor, uma entrevista longa com o mesmo e, ainda, uma breve (porém deliciosa) nota introdutória da tradutora. Os poemas escolhidos pela tradutora fazem parte de quatro volumes: Lauto e laxo (Laut und Luise), idílios (idyllen), o totó do otto (ottos mops hopst) e de de pra pra (vom vom zum zum). O título – adaptado de um verso do próprio Jandl – dá o tom da antologia e do humor peculiar do autor, que vem, digamos assim, finalmente com visto de permanência.
É sabido que a poesia de Jandl causa furor – seja por admiração, seja por aversão, tão comum uma quanto a outra. De um modo ou de outro, seus poemas mobilizam há décadas quem os lê e quem os escuta, é raro que qualquer um consiga se manter morno frente às suas eletrizantes experimentações visual-linguístico-sonoras. Ecos desse “furor Ernst Jandl” são, por exemplo, as demissões em série sofridas por editores, redatores e curadores que ousaram publicar seus primeiros trabalhos de maturidade, as acusações públicas sofridas pelo autor (aquele que “corrompe a juventude”, autor de “provocações insuportáveis”) e até uma proibição de publicação instaurada em 1958. Num tempo e num país em que a poesia é cada vez mais tomada como desnecessária, acessória e incômoda, interessa-nos muito abraçar as potencialidades do incômodo e, a partir dele, retomar uma voz tão potente e desestruturante (política e linguisticamente) como a de Ernst Jandl.
Jandl nasceu em Viena, onde passou a maior parte de sua vida como professor de alemão do ensino secundário. De sua experiência profissional vem talvez sua atenção especial ao público infantojuvenil (atenção que o autor expressou em diversas cartas, entrevistas e até na publicação de um livro com imitações de seu poema “ottos mops” feitas por crianças) e certamente a acusação de “corrompe[r] a juventude”. Afinal, onde já se viu um professor de escola escrever sempre com letra minúscula em seus poemas, cometer propositalmente erros de alemão, perder a compostura a cada leitura pública? Não dar o exemplo, ensinar errado?
Todos esses crimes do professor Jandl são coerentes com seu trabalho literário, qual seja, o de levar sistematicamente a linguagem a extremos, e fazê-lo das mais diversas formas e a partir dos mais diversos meios. Por vezes experimenta com a sonoridade de um poema (nos chamados “sprechgedichte”, ou seja, “poemas falados”/”poemas sonoros”/”poemas fonéticos”), de modo que ele só se completa quando e se oralizado (ou parece completar-se, já que poema algum se acaba de fato numa primeira leitura); por vezes experimenta com o aspecto visual da mancha gráfica, com a iconicidade da palavra; por vezes rompe as regras da gramática normativa; por vezes introduz no poema dialetos do alemão; mas, no mais das vezes, faz isso tudo ao mesmo tempo. Jandl é um poeta consistente, mas jamais repetitivo. Cada poema seu é uma tentativa diversa de ataque, de ida ao extremo da linguagem. O projeto é o mesmo, mas os caminhos são muitos. Assim, insisto: a consistência em Jandl não é de forma alguma repetição.
Aliás, permito-me aqui um aparte: mesmo que não saiba alemão, o leitor brasileiro ganhará muito assistindo às dezenas de gravações do poeta disponíveis na internet – lá ele gesticula, balbucia, grita, sussurra, cala; leva, enfim, sua poesia aos olhos e ouvidos dos que falam e dos que não falam alemão.
É interessante pensar na raiz política do quase pânico que a poesia de Jandl causou na Áustria de alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, país que tentava ainda se reestruturar e estabilizar como centro cultural após a catástrofe; e em como, contra tudo e contra todos, a experimentação visual e sonora de sua linguagem se popularizou enormemente com o tempo e se tornou, assim, fator efetivo na desestabilização de um meio social que naquele momento era muito pouco afim ao novo, ao uso do incômodo como princípio estruturante, ou a uma experimentação tão extrema e limítrofe na poesia. Se é verdade que poucas décadas antes as experimentações das vanguardas europeias viviam ainda seu auge, é também verdade que elas foram logo afogadas, durante a guerra, numa torrente malcheirosa de poesia solene, eloquente, nacionalista – nazista. Diversos artistas seguiram experimentando dentro e fora da Alemanha e da Áustria, mas ao menos oficialmente o momento literário era mesmo o do péssimo poema programático, oficialesco e grandiloquente. Finalmente, após a guerra houve um esforço conjunto das vanguardas artísticas para distanciarem-se da poesia que marcara o período do nazismo, e esse esforço se deu por diversas vias: a da dessacralização do verso, da experimentação visual, da experimentação sonora, do humor, da sátira, e assim por diante. Nesse contexto, talvez o Wiener Gruppe (Grupo de Viena) seja aquele ao qual se possa ligar com mais segurança a poesia de Ernst Jandl, mas mesmo desse grupo o autor manteve uma certa independência, uma ligeira distância. Se tentarmos, no entanto, ligar sua escrita à de algum autor individualmente, será sem dúvida à de Friederike Mayröcker (1924- ) – uma das mais interessantes vozes poéticas de expressão alemã em atividade hoje, companheira de Jandl de 1954 até a morte deste em 2000 e, por ora, uma lacuna no mercado editorial brasileiro –, com a qual dividiu a autoria de algumas obras. Nas palavras do germanista Helmut Gollner em artigo publicado na Pandaemonium Germanicum (junho de 2015, tradução de Ruth Bohunovsky): “Tudo o que Ernst Jandl fez com a língua pode ser chamado de contestação cultural por excelência. Jandl nega/destrói dentro da cultura caída (a do humanismo burguês) a sua língua aprumada, ao tornar feio o que ela tinha de bonito, ao idiotizar o que ela tinha de inteligente, ao banalizar o que estava cheio de sentido e ao materializar seu lado espiritual. Jandl deforma a estrutura eufemística da nossa língua de cultura”.
Desse modo (e aí já está um belo motivo para lê-lo no Brasil de 2019), a poesia de Jandl é também, nesse contexto, poesia antifascista.
A implosão das antigas estruturas formais e mesmo sintáticas do poema dá lugar em Jandl não ao caos, é claro, e sim a um outro modo de estruturar o poema, um modo que, via de regra, leva ao extremo o trabalho com a sonoridade da língua e a visualidade da escrita – tornadas no autor o centro da experiência formal, não mais dois elementos entre muitos outros. Essa descrição da poesia jandliana é válida pelo menos na caracterização dos livros publicados até o início da década de 70, que são ainda hoje os mais populares do autor – com o tempo Jandl seguiu outros caminhos, mas, importante registrar, nunca perdeu seu impulso genuinamente experimental ou seu humor. Do trabalho privilegiado do autor com as dimensões sonoras e visuais da poesia se depreende a importância de Jandl no fortalecimento ou na validação dos movimentos de performance oral na poesia e também dos movimentos de poesia concreta dentro e fora da Áustria. Se a também austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973) sentencia que não pode haver um novo mundo sem uma nova linguagem (“Keine neue Welt ohne neue Sprache”, excerto do conto “Alles”), talvez seja Ernst Jandl quem leva a afirmação ao seu ponto mais ardente e radical. Como se apreende de todo grande autor, faça ele sonetos ou faça sprechgedichte, escreva sobre um copo d’água, sobre o fascismo ou sobre a própria escrita do poema: em Jandl a linguagem é, ela mesma, a busca e o encontro da poesia – e não simplesmente seu meio de transmissão.
Na busca pelos extremos da linguagem Jandl chega aos extremos da língua alemã, especificamente. Daí a enorme dificuldade de se traduzir seus poemas, visto que, é claro, uma outra língua se faz de e em outras estruturas: o “jogo” num poema traduzido é (espera-se) o mesmo jogo do poema de partida (ou quase o mesmo, como diria Umberto Eco), mas as regras a serem seguidas e quebradas são já outras. Como afirma o próprio Jandl em entrevista a Zimmermann, reproduzida ao final da antologia: “Essas serão então as regras do jogo, é com essas regras que terei de jogar. […] Porque o jogo segue regras. Podem ser, como no xadrez, regras que existem há séculos ou regras que eu mesmo crio na hora de escrever.”
No entanto, se a aderência muito rente do poema à língua alemã se mostra uma grande dificuldade na tradução de Jandl, vista por outro ângulo essa característica se torna uma bela oportunidade ao tradutor criativo. Como expõe Haroldo de Campos em seu “Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora”: “[…] quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação, […] do ponto de vista da transcriação, traduzir Guimarães Rosa seria sempre mais possível, enquanto “abertura”, do que traduzir José Mauro de Vasconcelos; traduzir Joyce mais viável, enquanto “plenitude”, do que fazê-lo com Agatha Christie […]”.
E justamente aí cabe louvar a tradução de Myriam Ávila, principalmente em poemas mais célebres, como “o totó do otto”, “dileção” ou “calipso”: da criação de uma estrutura paralela em outra língua, Myriam Ávila cria também novas rupturas, suspensões e confirmações de expectativa que, por sua vez, só funcionam na materialidade (sonora, mas não só) do português, assim como as de Jandl só funcionam na materialidade do alemão. Se Jandl leva a linguagem a seus extremos, o faz dentro dos limites daquilo que tem à mão, ou seja, a língua alemã. Ávila tem à mão os limites da língua portuguesa – e o mesmo projeto de levá-la às últimas consequências.
Mesmo jogo, outras regras. Assim, para falar aqui de “fidelidade”, termo muito caro ao discurso comum sobre a tradução e pouco caro ao meio acadêmico: justamente optando por partir de ou chegar a imagens diferentes daquelas de Jandl (mas criando estrutura visual-linguístico-sonora análoga àquela do autor) é que Myriam Ávila se mantém “fiel” à postura e ao projeto criativo de Ernst Jandl. Essa ideia da tradução como “criação de uma estrutura estética análoga” já estava, é claro, no pensamento tradutório de Haroldo de Campos pelo menos desde a formulação do “isomorfismo”, reformado e aprofundado depois no conceito da “transcriação”.
Toda tradução é a cristalização de uma possibilidade, não mais do que isso. Descontados eventuais erros incontornáveis, nascidos de lacunas de conhecimento linguístico por parte de um tradutor, toda tradução é uma proposta – uma proposta menos ou mais coerente consigo mesma. O leitor lusófono já podia encontrar belíssimas propostas tradutórias para Jandl pelas mãos de Fabiana Macchi, Ricardo Domeneck, Bruno Mendes, José Paulo Paes e até uma seleção pequena de 1999 pela própria Myriam Ávila. São seleções breves ou até poemas esparsos que de certa forma prepararam o terreno para a vinda de Jandl – foram escalas ou visitas diplomáticas, e graças a elas o autor vem agora de vez. Myriam Ávila nos apresenta em Eu nunca fui ao Brasil uma fortíssima e muito coerente tradução de Ernst Jandl, capaz, como os poemas em alemão, de tensionar, fazer gargalhar, mobilizar e incomodar seu leitor, seu ouvinte, seu leitor-ouvinte. Poemas tão engraçados quanto “o totó do otto”, “fodinha” e “pequeno manifesto geriátrico”, ou então tão desafiadores quanto “cenário de neve”, “dado: uma peça”, “[palavra pedra]” e “sete casos curtos” ganham corpo firme em português e – mais difícil ainda – funcionam em português.
Como afirma Jandl no documentário entschuldigen sie wenn ich jandle de Harry Friedl e Hermann Peseckas: “os poemas – ou qualquer outra forma artística – não são feitos para simplesmente existirem, e sim para existirem para outras pessoas. Eles são definitivamente um meio de alcançar o outro, de tocar o outro de algum modo. Ou então não se escreveria poema nenhum – só para si mesmo ninguém faria essa trabalheira toda. É parte do poema, da pintura, de qualquer forma artística, que ele seja exposto, que ele seja apresentado”.
Assim, a boa nova é que a tradução de Ávila agora existe para o leitor brasileiro. Ernst Jandl finalmente veio ao Brasil – e veio com seu visto de permanência.

Matheus Guménin Barreto é poeta e tradutor mato-grossense. Doutorando em Língua e Literatura Alemã (subárea tradução) na USP, publicou os livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Edita a revista literária Ruído Manifesto.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

O simbolismo do Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil


O simbolismo de Exu na produção de uma filosofia do trágico no Brasil
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(Célia Sodré/Reprodução)

Baraperspectivismo: conceito que crio a partir do simbolismo dos mitos de Exu, configura uma visão trágica da existência, caracterizada pela afirmação irrepreensível do corpo na vida da realidade empírica. A noção de perspectivismo, que vem da filosofia de Nietzsche, relaciona-se à ideia do conhecimento que não tem por pretensão enunciar a verdade última das coisas, pois não crê na verdade absoluta; que não se arvora no princípio da universalidade; que enxerga precisamente um fundamento moral nos discursos tradicionais da metafísica no Ocidente; e que se constrói eminentemente como apenas uma interpretação da realidade. Daí, uma interpretação que parte de um lugar, de um ponto de vista, uma perspectiva. Acrescentar a um conceito a noção de perspectivismo enuncia que a ideia de conhecimento ali proposta não se instaura como um centro ao redor do qual gira o mundo, mas sim como um olhar que está ao redor da coisa, admitindo a complementaridade do maior número possível de ângulos de visão. Pois não se trata de desvelar o sentido oculto da realidade, mas de adorná-la com o maior número possível de véus. Já o prefixo bara remete diretamente ao simbolismo de Exu, pois é um dos nomes pelo qual é conhecido. Daí, a cosmovisão da cultura yorubá, principalmente a que apreendemos através de seus mitos, se encontra no cerne da elaboração desse conceito.
Seria sua criação, portanto, um modo de submeter a experiência cultural da sociedade tradicional yorubá às categorias do pensamento ocidental? Será que se apropriar das representações simbólicas produzidas no seio dessa cultura, para criar uma filosofia do trágico, constitui um trabalho de dominação e usurpação, reproduzindo e reinventando os tentáculos do imperialismo ocidental sobre os saberes africanos? Minha resposta é: talvez. Porém, no caso do baraperspectivismo, a interpretação serve muito mais ao propósito da criação de um conceito e de uma filosofia que denunciem os prejuízos do logocentrismo, ou seja, os prejuízos de um racionalismo exacerbado e eminente em relação à vida que foi suprimida; um conceito e uma filosofia que sirvam de alternativa aos valores científicos e morais que caracterizam a hegemonia da cultura ocidental, a partir do estabelecimento da “situação colonial” no século 19. O baraperspectivismo, assim, quer se impor como arma de guerra contra o “complexo de inferioridade” assinalado por Frantz Fanon como a doença que tem suprimido as forças de africanos, africanas e seus descendentes – assim como as das populações nativas dos territórios colonizados nas Américas há quinhentos anos.
A palavra bara, de acordo com Juana Elbein dos Santos, significa “rei do corpo”: “bara = Oba (rei) + ara (corpo)”, potente modo de se pensar uma oposição à hegemonia do lógos, ou da razão, que, na história da filosofia ocidental, implica o alijamento dos sentidos e do corpo dos processos de legitimação do conhecimento e da verdade; o que Nietzsche caracterizou muito bem em um de seus textos sobre a razão na filosofia com a expressão, “fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real”.
Na filosofia, Exu, rei do corpo, é capaz de fundamentar uma ética, uma estética, uma teoria do conhecimento e uma filosofia da cultura alternativas às que já foram criadas no Ocidente; e, ainda, contar, ou melhor, cantar uma história da filosofia, do seu próprio ponto de vista. E precipuamente brasileira, talvez, posto que o berço do conceito é a própria experiência da diáspora africana. Daí, o diálogo, o jogo, a relação, a troca com pensadores ocidentais, como Nietzsche, que por si já fizeram a crítica do lógos. Não se trata de submeter Exu a Dioniso, portanto, mas de elaborar o discurso que eles poderiam enunciar juntos.
Mas não nos atemos apenas a Nietzsche: acompanham-nos aqui pensadores e filósofos negros como Wole Soyinka, Paulin Hountondji, Molefi Asante, Kabengele Munanga, Frantz Fanon e Aimé Césaire. Nesse percurso que busca enfatizar, enaltecer e defender a potência criativa dos povos pretos, que se mede inclusive pelo interesse de cientistas e missionários europeus que se lançaram sobre suas experiências culturais estimulados, basicamente, pela “força misteriosa”, senão pela “grandeza”, como diria Jacob Burckhardt, que emana das fontes de nossas culturas negras, ora gerando atração, ora repulsa. A atribuição de animalidade e da falta de história aos povos pretos, desde pelo menos Kant e Hegel, gerou consequências irreversíveis para os pretos de agora e do porvir. Entretanto, diante da falência das instituições modernas, estou convicto de que o apelo à animalidade do ser humano, a releitura do que Nietzsche denominou como “texto básico homo natura”, encontra um modesto aliado no baraperspectivismo. Exu e sua ligação com o corpo, com os instintos e com a palavra, é capaz de restituir ao ser humano uma experiência análoga àquilo que o autor de O nascimento da tragédia definiria como a Erlebnis par excellence, a vida a partir de uma perspectiva trágica.
As chagas do século 19 continuam abertas. O projeto colonial da Europa e dos Estados Unidos segue imperialista, racista e sexista. Além da violência perpetrada pelas guerras, pela fome, pela sede e pelas epidemias, a violência da tecnologia atinge coletividades inteiras preparadas para servir como animais de corte. Se os animais de rebanho de Nietzsche sustentaram uma civilização socrática no século 19, agora são os animais de corte que sustentam a civilização contemporânea. Para impor um “basta!” aos desmandos do matadouro, a modesta contribuição do baraperspectivismo procura reavivar o desejo, a alegria, o ímpeto, a festa e o instinto. Diante de uma coletividade constituída por indivíduos tão ludibriados em sua capacidade de querer, tão vilipendiados no âmago de seus desejos, a tal ponto que se tornaram incapazes de criar, incapazes de pensar, o baraperspectivismo quer que não se deixe esquecer o simbolismo de Exu, posto que o rei do corpo é o dono do desejo da palavra, que desperte e que anime as forças sempre renovadas de uma vida.

Rodrigo dos Santos é ator, mestre e doutorando em Filosofia pela UFRJ e membro do Laboratório KHORA de Filosofia da Alteridade.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Quem é a mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial



Quem é mulher negra no Brasil? Colorismo e o mito da democracia racial

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A antropóloga Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial (Arte Andreia Freire/Revista CULT)

Minha pele não é retinta. Tenho a cor da miscigenação brasileira, que tantas vezes foi utilizada para reafirmar o mito da democracia social. “Você precisa escrever sobre isso. Precisa falar sobre colorismo”, declarou Sueli Carneiro da última vez que nos encontramos. E se Sueli declara, a gente obedece.
Colorismo significa, de maneira simplificada, que as discriminações dependem também do tom da pele, da pigmentação de uma pessoa. Mesmo entre pessoas negras ou afrodescendentes, há diferenças no tratamento, vivências e oportunidades, a depender do quão escura é sua pele. Cabelo crespo, formato do nariz, da boca e outras características fenotípicas também podem determinar como as pessoas negras são lidas socialmente. Pessoas mais claras, de cabelo mais liso, traços mais finos podem passar mais facilmente por pessoas brancas e isso as tornaria mais toleradas em determinados ambientes ou situações.
É isso. Mas não é só isso. Poder ser vista como branca, ou melhor, como não negra, me permitiu oportunidades que provavelmente eu não teria se tivesse a pele mais escura, como ocupar um cargo de coordenação em um colégio europeu, de elite, onde um dia precisei argumentar fervorosamente que era uma mulher negra e que essa era uma afirmação importante. Mas não se pode perder de vista que na cidade onde vivo, São Paulo, empregos subalternos, o trabalho doméstico, os presídios têm a minha cor de pele.
Tarefa difícil essa de escrever sobre colorismo, que certamente não se esgota neste texto. “Como determinar a cor se, aqui, não se fica para sempre negro e/ou se ‘embranquece’ por dinheiro ou se ‘empretece’ por queda social?”, perguntou certa vez a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Para falar sobre colorismo precisamos considerar classe, escolarização e outros marcadores sociais da diferença. E uma breve genealogia do termo pardo pode ser útil. Nos memes de redes sociais, pardo é papel, não gente. Mas o termo se refere a pessoas desde o Brasil colonial, com múltiplos usos e significados.
No século 17, era utilizado em São Paulo para designar indígenas escravizados ilegalmente. Já no Nordeste açucareiro do mesmo período, onde africanos eram a maior parte da população, tendia a ser sinônimo de mestiçagem, ou do fruto da união entre europeus, africanos e indígenas. Mais tarde, no Sudeste, o termo aparece não só como referência à mestiçagem, mas também como sinônimo de pessoa livre, independentemente da cor de pele. O termo pardo no Brasil Colônia, portanto, indicava, além da cor de pele, o status social de pessoas não brancas livres, em um universo escravista. Segundo Hebe Mattos, o termo era uma possibilidade de diferenciação social, variável conforme o caso. “Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana – fosse mestiço ou não”, escreveu a historiadora.
Da mesma forma, os termos preto e negro também apresentavam diferenças semânticas no período escravocrata: negro era o escravo insubmisso, e preto, o cativo fiel. Mas é possível perceber variações de significados em diferentes períodos: até a primeira metade do século 19, crioulo era exclusivo de escravos e forros nascidos no Brasil, preto designava africanos.
Os censos evidenciam, no quesito cor, como essa semântica é negociada no Brasil de forma complexa, muitas vezes intencionalmente confusa. O primeiro e o segundo censos do país, em 1872 e 1890, registraram a população preta, branca e mestiça; no de 1872 acrescida à informação da condição de escravo ou livre. Nos censos de 1900, 1920 e 1970, o item cor foi retirado. Diante da constatação de que o Brasil era um país mestiço e negro, o terceiro e quarto censo simplesmente deixaram de registrar a informação sobre a população, assim como o primeiro censo do regime militar, quando se reforçava a ideia de homogeneizar o país. No censo de 1950, a população foi distribuída entre brancos, pretos, amarelos e pardos. Indígenas não possuíam uma categoria classificatória. Em 1960, indígenas deveriam ser declarados como pardos. Em 1980, havia uma explicação para pardos: “mulatos, mestiços, índios, caboclos, mamelucos, cafuzos etc.”.
Em 1976, o IBGE fez a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio em que deixou a categoria cor como uma pergunta aberta. Cento e trinta e seis cores diferentes foram registradas, que iam da acastanhada à vermelha.
Esse uso flexível e maleável na cor que se observa no Brasil desde o período da escravidão, tão explicitado na pesquisa de 1976, está relacionado à imagem negativa da mestiçagem propagada explicitamente até a década de 1930, seguida pela extensa propaganda oficial do mito da democracia racial. Desde o século 19, teóricos das raças enalteciam “tipos puros” e colocavam a miscigenação como sinônimo de degeneração racial e social. O termo eugenia, criado em 1883, propagava a visão de que as capacidades humanas estavam exclusivamente ligadas à hereditariedade. A criminalidade, por exemplo, era vista como fenômeno físico e hereditário. Raça se tornou, nesse período, um conceito para discriminar e hierarquizar povos. Na metade do século 20, geneticistas e biólogos moleculares afirmaram que as raças puras não existem cientificamente. Mas pouco antes disso, na década de 1930, ganhou relevância no Brasil uma interpretação social, e não biológica, das relações raciais brasileiras. Gilberto Freyre afirma que a miscigenação teria acomodado conflitos raciais no Brasil, corrigindo a distância social entre a casa-grande e a senzala.
Lélia Gonzalez é das vozes que desconstrói o mito da democracia racial denunciando que o sistema escravista-patriarcal brasileiro não se constitui sobre bases harmônicas, mas na violência racial e sexual que se reproduz desde a colonização na sociedade brasileira. Uma década depois, Sueli Carneiro cunha o “estupro colonial” da mulher negra pelo homem branco como as bases para a fundação do mito da cordialidade e da democracia racial brasileira.
O movimento negro vem buscando conscientizar quem sofre discriminações por sua aparência física e origem racial – seja quem se declara preto ou pardo ao IBGE – em torno de uma mesma identidade racial de negro. “Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que (…) remonta à fundação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira”, explicou o antropólogo Kabengele Munanga. Da mesma forma, o movimento de mulheres negras, que nasce dentro do movimento negro, busca conscientizar mulheres, desde a década de 1980, de sua identidade de mulher negra.
Como já escreveu tantas vezes Sueli Carneiro, o projeto em curso no Brasil ainda é o de uma hegemonia branca. Ele opera pela exclusão e a violência contra pessoas não brancas, especialmente as negras e indígenas. No imaginário social, este projeto também aparece em uma leitura de passado que omite a violência e a resistência à escravidão; encoberta as estratégias de branqueamento e do silenciamento de vozes e memórias da população negra. O mito da democracia racial branqueava negras e negros miscigenados. É importante, ao falarmos sobre colorismo, não cometermos o mesmo erro. Afinal, a quem isso poderia interessar? Como escreveu Lélia “(…) a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha etc. Mas tornar-se mulher negra é uma conquista”.
(Publicado originalmente no site da revista Cult)

domingo, 26 de maio de 2019

Le Monde Diplomatique: Como a direita seduziu o eleitorado popular

Em um estado muito pobre como a Louisiana, manchado por vazamentos de petróleo, a maioria da população vota em candidatos que combatem os benefícios sociais e a proteção ambiental. Socióloga, Arlie Hochschild investigou esse paradoxo. Meses depois da publicação de seu estudo, Donald Trump ganhou com ampla vantagem as eleições na Louisiana
Uma história profunda, epidérmica, é a que inspira nossos ressentimentos, na linguagem dos símbolos. Ela elimina o julgamento, elude os fatos. Determina o que nos inspira. Ela permite que aqueles que se encontram em ambos os extremos do espectro político deem um passo atrás e explorem o prisma subjetivo através do qual o lado adversário apreende o mundo.
Eu quis reconstruir esta história para apresentar – de forma metafórica – as esperanças, os medos, o orgulho, a vergonha, o ressentimento e a ansiedade da vida das pessoas com quem deparei no caminho. Então a testei com elas para ter certeza de que achavam que ela era consistente com a experiência delas. Elas me garantiram que sim.
Como uma peça, ela se passa em vários atos.
Você espera pacientemente em uma longa fila que leva ao topo de uma colina, como em uma peregrinação. Você está no meio, entre pessoas todas tão brancas como você, todas de igual modo cristãs, algumas mais velhas, outras menos, a maioria delas do sexo masculino, às vezes graduadas, às vezes pouco ou nada qualificadas.
Do outro lado da colina se situa o sonho americano, o objetivo da viagem de cada um. Bem no final da fila estão as pessoas de cor – pobres, jovens ou velhas, a maioria sem diploma universitário. Olhar para trás lhe causa medo; elas são muitas a seguir você. Em princípio, você não as quer mal. Mas você esperou por muito tempo, trabalhou duro e, à sua frente, a fila mal se move. Você mereceria avançar um pouco mais rápido. Você aguenta pacientemente, mas está muito preocupado. Seus pensamentos estão voltados para aqueles que o precedem, em especial para aqueles que já alcançaram o topo.
O sonho americano é um sonho de progresso – a esperança de que você vai se dar melhor do que seus pais, que, por sua vez, já se esforçavam para se dar melhor que os deles. É um sonho maior que dinheiro e bens materiais. Por um salário miserável, você suportou trabalho escravo, demissões, exposição a produtos tóxicos. Você aguentou firme na prova de fogo. O sonho americano de prosperidade e segurança é apenas a justa recompensa por seus esforços, uma maneira de reconhecer o que você tem sido e o que você é – uma espécie de medalha de honra.
Faz cada vez mais calor e a fila continua não avançando. Parece até que ela está recuando. Você não recebeu um aumento por anos e não vai ser amanhã que terá a chance de alguém lhe conceder um. Na verdade, seus ganhos diminuíram constantemente nos últimos vinte anos, sobretudo se você não tem um diploma universitário e ainda mais se não completou o ensino médio. Todos os seus amigos seguiram o mesmo destino. A maior parte deles nem se incomoda em procurar um emprego decente, porque acha que é um tesouro fora do alcance de pessoas como eles.

Pactuar com os fura-filas?
Você se acomodou a essa situação porque não é do seu feitio reclamar. No fim das contas, você tem sorte. Você gostaria de ajudar mais sua família e sua igreja, porque é neles que coloca sua fé. Você gostaria que eles lhe agradecessem sua generosidade. Mas a fila continua não avançando. Depois de tanto trabalho duro, de tantos sacrifícios, você começa a se sentir preso numa armadilha.
Você pensa no que o enche de orgulho – a começar por sua moral cristã. Você sempre apreciou a probidade, a monogamia, o casamento heterossexual. Nem sempre foi fácil. Você mesmo sofreu uma separação, talvez até um divórcio. Os esquerdistas dizem que suas ideias são antiquadas, sexistas, homofóbicas, mas ninguém entende nada dos valores que eles afirmam defender. Falam de tolerância, mas você guarda na memória tempos melhores, nos quais, quando criança, começava seu dia na escola pública com a oração matinal e a saudação à bandeira – foi antes do “Em nome do Senhor” ser relegado à categoria de opção facultativa.
Olhe! Na sua frente, malandros estão se esgueirando. Você segue as regras; eles, não. À medida que eles progridem, você tem a impressão de que está perdendo terreno. Como eles ousam fazer isso? Quem são? Alguns são pretos. Por meio de programas de ação afirmativa colocados em prática pelo governo federal, eles têm acesso privilegiado a universidades, estágios, emprego, assistência social, refeições gratuitas. Mulheres, imigrantes, refugiados, funcionários públicos: onde isso vai parar? Seu dinheiro escorre num coador igualitarista que escapa a seu controle e aprovação. Você gostaria de ter as mesmas oportunidades quando precisou delas – ninguém pensou em oferecê-las a você em sua juventude, então não há razão para fazer com que os jovens de hoje possam desfrutar delas. Isso não é justo.
E Obama! O que diabos esse cara fez para chegar à Casa Branca? O filho mestiço de uma mãe solteira de baixa renda que se tornou presidente do país mais poderoso do planeta, isso era algo que você ainda não tinha visto. Em que posição o coloca o triunfo de um homem como ele, quando, ao mesmo tempo, lhe explicam que você é muito mais privilegiado? Que favores Barack Obama obteve para estudar em uma universidade tão cara quanto Columbia? Onde Michelle Obama encontrou dinheiro suficiente para estudar em Princeton e depois na Faculdade de Direito de Harvard, quando o pai dela era apenas um humilde funcionário do serviço de água? Nunca se viu nada assim. Certamente, foi o governo federal que pagou a conta. Michelle deveria ser grata por tudo que tem, em vez de ficar o tempo todo furiosa. Ela não tem direito algum de ficar com raiva.
As mulheres: outro grupo que passa impunemente na sua frente. Elas reivindicam o direito de ocupar os mesmos cargos que os homens. Ainda bem que seu pai não precisou se preocupar com a concorrência delas para conseguir emprego. E o que dizer dos funcionários públicos, recrutados em sua maioria entre mulheres e grupos de minorias? Pelo que você sabe, eles são muito bem pagos para fazer muito pouco. Veja o caso dessa assistente executiva do Departamento de Regulamentação: sem dúvida, ela desfruta de horários confortáveis e de um cargo garantido para a vida inteira, tendo, diante de si, a perspectiva de uma bela aposentadoria. No momento, ela provavelmente está postada de forma indolente à frente do computador fazendo compras on-line. O que a torna merecedora de favores a que você nunca terá direito?
O mesmo vale para os imigrantes. Com um visto ou um green card na mão, filipinos, mexicanos, árabes, indianos ou chineses passam na sua frente, quando não acabam furando a fila. Bem recentemente, você viu homens parecidos com mexicanos construindo o acampamento que vai abrigar encanadores filipinos do grupo Sasol. Você vê que eles trabalham duro e respeita isso, mas não os perdoa por expulsarem a força de trabalho americana aceitando baixos salários.
Os refugiados? Quatro milhões de sírios fugiram da guerra e do caos, parte deles em direção à costa grega. O presidente Obama decidiu acolher 10 mil em território americano [dos quais dois terços são mulheres e crianças]. Todo mundo sabe que nove entre dez refugiados são homens jovens, possivelmente terroristas, determinados a abusar da sua educação na fila e levar uma boa vida com o dinheiro dos seus impostos. Você não sofreu inundações, derramamentos de óleo e poluição química? Há dias em que parece que você mesmo é um refugiado.
Não cabe ao pelicano-pardo zombar de você batendo suas largas asas cobertas de óleo. Essa típica ave da Louisiana, o símbolo oficial do estado, aninha-se em mangues ao longo da costa. Há muito tempo ameaçada de extinção pela poluição química, ela havia se recuperado a ponto de ser retirada da lista de espécies ameaçadas em 2009 – apenas um ano antes do terrível derramamento de óleo causado pela British Petroleum (BP). Para sobreviver, ela precisa de peixes não contaminados, água livre de óleo, manguezais limpos, costas protegidas da erosão. É por isso que o pelicano-pardo também passa na sua frente na fila. Ainda assim, é apenas um pássaro!
Negros, mulheres, imigrantes, refugiados, pelicanos, todo mundo vai passando na frente embaixo do seu nariz. Mas são pessoas como você que fizeram a grandeza da América. É preciso reconhecer: os fura-filas irritam você. Eles desrespeitam as regras do jogo. Você não os carrega no coração e não vê por que deveria se desculpar por isso.
Você não é desprovido de compaixão. Mas sua compaixão não poderia incluir todos os fraudadores que se acotovelam à sua frente. Você é vacinado contra a ideia de ter de ser simpático. As pessoas nunca param de reclamar. O racismo. As discriminações. O sexismo. Impuseram a você histórias de negros oprimidos, mulheres dominadas, imigrantes explorados, homossexuais perseguidos, refugiados desesperados. Em algum momento, você acha que é hora de fechar as fronteiras da simpatia humana – especialmente quando isso beneficia pessoas que podem prejudicá-lo. Você suportou mais do que sua parcela de sofrimento, sem nunca choramingar.
A partir daí, você fica desconfiado. Se todas essas pessoas se permitem disputar espaço com você na fila, é porque alguém importante as está apoiando. Quem? Normalmente, há um homem que controla a fila, que a percorre de cima a baixo, garantindo que todos permaneçam em seu lugar e que o acesso ao sonho americano seja feito em condições equitativas. Esse homem é Barack Hussein Obama. Sim, mas olha só: em vez de repreender os espertinhos, ele os saúda amigavelmente, demonstrando-lhes uma simpatia que ele evidentemente não sente de forma alguma por você. Ele está do lado deles. Aquele que tem a responsabilidade de regular o avanço da fila quer que você pactue com os fura-filas.
Você se sente traído. Suas defesas agora estão bem ativadas. Esse presidente não sabe nada do imenso orgulho de ser americano. Ser americano é uma honra que você mais do que nunca tem de defender, dada a lentidão da fila do sonho americano e a insolência dos comentários feitos sobre brancos, homens e cristãos. Hoje, basta ser ameríndio, mulher ou gay para atrair a simpatia da opinião pública. Esses movimentos sociais deixaram apenas um grupo para trás deles: o seu.
Você pode não ter uma casa grande, mas isso não o impede de se orgulhar de seu país. Qualquer um que ataque os Estados Unidos também estará atacando você. E, se você não pode mais se orgulhar dos Estados Unidos por meio de seu presidente, resta-lhe se juntar àqueles que, como você, se sentem estrangeiros em seu próprio país.

A máquina de sonhos está sem sistema
Entre as imagens dos negros enraizadas no espírito das pessoas que conheci, uma estava faltando: a de uma mulher ou de um homem que, como eles, apenas esperava a justa recompensa por seus esforços. A história profunda contada por brancos, cristãos, idosos ou reacionários da Louisiana respondia, no entanto, a um trauma real. De um lado, o ideal nacional do sonho americano, isto é, do progresso. De outro, uma dificuldade crescente para progredir.
Para a população “inferior”, ou seja, nove em cada dez americanos, a máquina dos sonhos instalada no lado invisível da colina não funciona mais, desativada pela automação, pelo deslocamento de empresas para outros países e pelo poder exorbitante das multinacionais sobre sua força de trabalho. Dentro desse grupo muito grande, a competição entre brancos e não brancos tornou-se cada vez mais acirrada – seja pelo emprego, seja por um lugar na sociedade ou pelos auxílios.
O fracasso da máquina dos sonhos remonta a 1950. As pessoas nascidas antes dessa data viram suas rendas crescer à medida que envelheciam Para aquelas nascidas depois, é o contrário.

*Arlie Hochschild é socióloga da Universidade da Califórnia em Berkeley. Autora de Strangers in Their Own Land: Anger and Mourning of the American Right [Estranhos em sua própria terra: raiva e luto da direita norte-americana], The New Press, Nova York, 2016, de onde este texto foi adaptado.

(Publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)


Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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Publisher: Lipset and a litter chocolate for Brazilian democracy



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For some time now, out of duty, identification and conviction, I have read a lot about democratic regimes. I note that there are many more convergences than differences among scholars, especially when the stability or ruin of this system of government is under discussion. Among the variables pointed out, which could guarantee its stability, of course, the so-called substantive or economic democracy, related to the distribution of income in a given society; the framework and health of the institutions that support the democratic regime, which provide the balance and distribution of power, thus avoiding tyranny; the pattern of harassment or impairment of individual and collective rights and guarantees, governed by the Constitution; regular and clean elections (without the use of fake news, preferably with the participation of competitive actors, without the use of legal devices to remove them from the lawsuit); a less corrupt political system and, indeed, identified with the yearnings of the average population. What we have today, in reality, when we reason in terms of the Brazilian political system, are lobbyists, financed and identified with corporate interests of the dark, of no republican nature; and last but not least, the so-called educational opportunities, which is highlighted by the political scientist Martin Lipset, a thesis with which I have a great deal of affinity. Naturally, our Lipset is that of childhood in the slums of New York, of working life, of deprivations of youth, of flirting with Marxism.

Notice that all the variables pointed above diverge deeply from the current capitalist logic, translated in some way into the nefarious ultraliberal policies, whose adoption would only be feasible in a regime of force, therefore authoritarian, hence this conservative wave that sweeps the world, with reflexes here in Brazil. Never could the proposals of this indecent agenda be discussed in public square. But, let's get back to Lipset and its educational opportunities. By the year 2013, when sectors of the economic and political elite - with the support of the crazy middle class and international banking - joined forces for the skirmishes that would undermine the still fragile experience of country democracy - we had made significant strides in this area, promoting the largest enrollment program for impoverished black youth in the Brazilian university system.

In addition to the fact that it represented in itself a broad program of educational opportunities, it faced the brunt of the structural racism of Brazilian society, the only indicator in which we have progressed in relation to the black race in these more than five centuries of the existence of a country simulacrum called Brazil. Hence we can also understand the anger of conservative sectors of our slave elite ever since they played on the cushion to prevent the advances and achievements obtained by the bottom floor of the social pyramid. During this period of openness and educational opportunities, there was a real revolution in the country, since 83% of the parents of these young people did not have access to higher education, as surveyed by a research institution linked to the Ministry of Education itself. There are, in fact, many strokes of mercy in the fragile Brazilian democracy, but certainly the recent cuts in masters and doctoral scholarships, as well as in the funding of public universities, is one of those bitter chocolates that gradually lead to the collapse of our democratic institutions.

Nor do I come here to the merit of university autonomy, as well as to the issue of academic freedom - constitutional principles that accredit the IFES as natural districts as a counterpoint to authoritarian advances - but also because, by virtue of public policies of an inclusive nature, these academic spaces become spaces of diversity, of plurality of opinions, non-segregationist. Apparently, some symptoms of schizophrenia may be observed in the conduct of a government that wishes to place the country in the select OECD club, while reducing funding costs, cutting scholarship and master's research grants, reducing our participation in the rankings academic excellence, as well as in the university education of its population. A strategic sector that, as Professor Wilson Gomes has observed, nor the military in 1964 dared to move, despite idiosyncrasies with teachers.

Editorial: Ainda(e sempre) a democracia

 
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Na semana passada publicamos por aqui um texto onde discutíamos as variáveis que poderiam assegurar a consolidação ou o desmoronamento de um regime democrático. O editorial alcançou grande repercussão, dado aferido a partir de uma série de e-mails recebidos pelo blog, com leitores concordando ou discordando do texto, aproveitando o momento para sugerir outras variáveis não mencionadas ali, como, por exemplo, o direito de associação e a proteção às minorias. Duas variáveis que, reconheço, não poderiam deixar de estar ali. Quanto ao questionamento sobre as entidades internacionais que aferem a saúde de um regime democrático, informo que os dados foram obtidos na Democracy Index e na Freedow House. Além de nossas preocupações sobre os rumos do nosso incipiente e frágil processo democrático, um outro fato nos intriga bastante: Até bem pouco tempo, de acordo com essas organizações, a saúde de nossa democracia ia muito bem obrigado, atingindo a nota 07, numa escala que ia até 09, referente aos países com democracias perfeitamente consolidadas, portanto infensos às aventuras golpistas. Estávamos muito bem, portanto. O que houve para que, em tão pouco tempo, ocorresse tal retrocesso? Ou haveria algum problema com os critérios de mensuração desses índices?
 
A rigor, a rigor, como informo por ali, nossa experiência democrática nunca foi lá grandes coisas. Na realidade, um grande mal-entendido, conforme observava o historiador Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar os reflexos, para o país, dos vícios impostos pelo colonialismo português. Difícil "institucionalizar" um país - requisito para a democracia -  sem a delimitação de fronteiras entre o público e o privado, com uma enorme massa de deserdados que vivem dos favores dessa elite, de suas migalhas, sem jamais terem seus direitos reconhecidos, sem exercerem sua cidadania. Os episódios mais recentes - como esse rearranjo das forças conservadoras em escala mundial - evidenciam que a efetivação da aplicação desse receituário de reformas neoliberais apenas seria possível com a adoção de um regime de força, que, hoje, tende a recrudescer em razão dos embaraços encontrados nos canais de negociação ainda possíveis, como o parlamento. Diante desse quadro, nossa incipiente democracia encontra-se na UTI, com poucas chances de sobrevivência. Vocês arriscariam atribuir uma nota hoje?
 
As duas variáveis acima, observadas pelos diletos leitores e leitoras - infelizmente negligenciadas pelo editor, pelo que já antecipo um pedido de desculpas - diz muito sobre a atual conjuntura política que vive o país. Notadamente em relação ao reconhecimento dos direitos de minorias, como as comunidades quilombolas, indígenas e LGBTs, que passam por um momento bastante difícil, quando se toma como referência a agenda de políticas públicas. Aproveito para agradecer a audiência do blog - sobretudo depois da volta dos editoriais - mesmo que comedidos, prudência imposta nesses tempos bicudos - assim como sugerir aos leitores e leitoras que continuem participando desses debates através da blogosfera, que, em muitos casos, deixou de exercer um papel republicano e transformou-se em trincheira de ataques vis a atores ou princípios que se orientam pela defesa do regime democrático.

Uma outra variável - esta muito estudada pelo cientista político Jorge Zaverucha - diz respeito as intrincadas relações entre civis e militares no Brasil. Numa democracia consolidada, presume-se, o poder militar deve estar subordinado ao poder civil, condição jamais obtida plenamente no país. As rusgas são frequentes, em todos os momentos de nossa História, e hoje não seriam diferentes, colocando em lados opostos militares e um denominado grupo ideológico, bastante influente neste Governo. Entregar o Ministério da Defesa a um civil - conforme ficou acordado a partir da Constituição de 1988 - embora simbólico, indicava, ao menos, o respeito ao que preconizava a Carta de 1988. Os militares voltaram a ocupar o Ministério da Defesa, depois de um longo período nas mãos do poder civil.