pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: janeiro 2021
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sábado, 30 de janeiro de 2021

Nem hétero, nem homo: cansamos

 Helena Vieira e Yuri Fraccaroli

Nem hétero, nem homo: cansamos
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Love, Joy Hester, 1949 (Foto: Reprodução)

 

Entre os últimos lampejos de 2020 e o começo deste ano, parte das redes sociais acompanhou com atenção o debate iniciado por Vladimir Safatle com o artigo “Não há heterossexuais”, prosseguido da réplica “Há homossexuais”, de Eduardo Leal Cunha e, finalmente, pela tréplica de Safatle, “Sobre a vivência concreta do sexual”, todos publicados pela Cult.

Antes de qualquer afirmação, é preciso enunciar que não pretendemos responder ou ingressar neste debate. Afinal, em briga de lacaniano, é melhor faltar. Tampouco sabemos se uma resposta seria possível em razão das gramáticas utilizadas, as posicionalidades envolvidas e os espaços historicamente construídos para aqueles que ousaram desafiar o lugar que lhes foi concedido na chamada “diferença sexual”. Escrevemos aqui desde a dissidência, posição essa que recusa o esquema réplica-tréplica, movendo-se, em contrário, para fora, para onde essa oposição nem sentido tem.

A curiosa ausência de autoras, autores, performances e movimentos sociais tão importantes para o desenvolvimento político e teórico das questões evocadas pelos textos, que, dentre eles, alguns até mesmo ascenderam ao status daquela que Foucault certa vez entendeu como a forma cultural mais legitimada no Ocidente, a filosofia, nos fez pensar sobre qual desejo e quais práticas mobilizam a escolha da primazia de autores como Freud e Lacan e, consequentemente, o espaço da clínica.

Contudo, dada a relevância do tema, sensivelmente implicado com questões como sexualidade, raça e (forçosamente) gênero; dada a peremptoriedade de certas afirmações, a definição de caminhos, as demandas por supostas novas gramáticas revolucionárias e um desacordo entre tantas (problemáticas) concordâncias, decidimos tratar desses assuntos a partir de outros lugares; dizer desde outras perspectivas, que até o momento não foram mobilizadas neste espaço. Acreditamos assim aportar argumentos mais próximos do que alguns dos sujeitos forçosamente interpelados por uma ideia de diferença sexual têm refletido sobre si mesmos.

Falemos, portanto, dos desejos e das autoras que mobilizam esta escrita de uma travesti e uma bicha, com nossas línguas de serpente e de fogo, como nos ensina Gloria Anzaldúa. Tal demarcação, não supérflua e nem demasiado identitária, é necessária para que não pensem que estamos loucas, afinal, falamos com gramáticas que podem lhes soar animalescas. Talvez possamos também soar estranhas, equivocadas ou incompreensíveis, já que por vezes podemos utilizar até mesmo as palavras e ideias de vossos pais-fundadores em sentidos cabalmente distintos aos que originalmente foram formulados.

Paul B. Preciado, em texto da comunicação que foi interrompida durante a 49º Jornada da Escola da Causa Freudiana, na França, em 2019, faz alusão a um conto de Kafka no qual o macaco Pedro Vermelho, uma vez capturado e transportado para a Europa, relata a necessidade de esquecimento de sua vida enquanto macaco, e a tentativa de dominar a língua humana para que pudesse se tornar um homem. Entretanto, como ressalta Preciado, esse processo não supõe qualquer ideia de emancipação ou libertação. Seria, pelo contrário, uma alegoria crítica ao humanismo colonial europeu. E aqui opera a identificação de Preciado com o macaco Pedro Vermelho: “Eu, como um corpo trans, como um corpo não binário, ao qual nem a medicina, nem a lei, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar com conhecimento especializado sobre minha própria condição, nem a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento sobre mim mesmo, aprendi, como Pedro Vermelho, a língua de Freud e Lacan, a língua do patriarcado colonial, a sua língua, e estou aqui para falar com vocês”.

Ao escutarmos Pedro Vermelho e/ou Preciado, entendemos que parte daquilo que pode ser compreendido como uma opressão heterossexual, longe de dizer respeito a questões de convivência ou tolerância, diz respeito à impossibilidade de comunicar-se senão nos termos da heterossexualidade, aspecto destacado por Monique Wittig. Nesse sentido, não há possibilidade de falar sobre sexualidade senão heterossexualmente. No que tange a presente discussão, isso significa dizer, ainda na esteira de Wittig, que esses discursos totalizantes, tais como “não existem heterossexuais” ou “existem homossexuais”, só podem ser enunciados desde o interior do regime heterossexual. A existência da heterossexualidade é a condição da possibilidade de quaisquer tentativas de negá-la – logo, são sempre frustradas, inócuas e contraditórias.

Portanto, não se trata de atestar a existência da heterossexualidade, nem da homossexualidade, ou seja, não se trata de uma questão de ordem ontológica, mas tecnológica. Em outros termos, algo que diz respeito ao funcionamento daquilo que em dado momento do tempo e da história convencionou-se chamar de heterossexualidade e, para além disso, dos efeitos dessas tecnologias na constituição do real, do mundo e dos sujeitos.

Partimos aqui da apropriação de esquema proposto por Gregory Bateson acerca dos problemas filosóficos. De acordo com o antropólogo, existiriam duas grandes ordens de problemas e questões para a filosofia: a primeira seria pautada pela busca da definição do que são as coisas, ou seja, tratar de suas realidades e existências (ontologia); a segunda versaria sobre como podemos conhecer o que as coisas são (epistemologia). Inspiradas por Gilles Deleuze e também por Donna Haraway, gostaríamos de acrescentar uma categoria à esquematização de Bateson, propondo que existe ainda outra categoria de problemas que se refere a como as coisas funcionam.

Nesse sentido, então, deslocamos a problemática do debate para como funciona a heterossexualidade, o que significa pensar a partir de quais práticas, discursos e técnicas esta se constitui, e também quais seus efeitos sobre os modos de vida e de viver e das relações de poder. Para isso, é preciso, em um grande esforço ficcional, retornarmos ao momento de criação dessa mitologia encarnada – ou, nas palavras de Jonathan Ned Katz, a estreia do heterossexual. A partir de registros e notas do doutor Richard von Krafft-Ebing, e também apostando nesse mesmo desafio ficcional, Katz trata de demonstrar a genealogia dos termos heterossexual e homossexual, e os efeitos que produzem tanto do ponto de vista do erotismo quanto da normalização de determinadas práticas e condutas.

É no interior da clínica médica que a heterossexualidade transforma-se em “sexualidade normal” e desenvolve um conjunto de práticas e prescrições que, em sua repetição, conformarão o sujeito heterossexual. Nesse sentido, vale destacar que antes do uso proposto por Krafft-Ebing, o termo heterossexual, como aquele utilizado pelo médico americano James Kiernan, tinha outra conotação, configurando um desvio do homossexual:

Aqueles heterossexuais eram associados a uma condição mental, hermafroditismo psíquico. Essa síndrome presumia que os sentimentos tinham um sexo biológico. Os heterossexuais sentiam a chamada atração física masculina por mulheres e a chamada atração física feminina por homens. Ou seja, aqueles heterossexuais periodicamente tinham inclinações para ambos os sexos. O hetero neles se referia não ao seu interesse por um sexo diferente, mas ao seu desejo por dois sexos”, escreveu Jonathan Ned Katz em 1996.

James Kiernam tratava tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade como desvios, e a ideia de uma sexualidade normal não era nomeada: tratava-se de instinto sexual, que tinha a finalidade deliberada da reprodução. A operação fundamental de Krafft-Ebing, na conformação do heterossexual como o normal, consiste em afirmar que o instinto sexual não precisa mais ser deliberadamente reprodutivo, a reprodução seria sua consequência. O instinto sexual buscaria algo como o prazer, sendo apenas virtualmente reprodutivo. Percebe-se explicitamente essa operação no relato de caso do sr. R., paciente do doutor Krafft-Ebing cuja “cura” passou pelo incentivo ao prazer sexual com mulheres. Nos processos clínicos de Krafft-Ebing não havia um apelo direto à reprodução, apesar disso, como ironicamente afirma Katz, seus tratamentos culminavam quase sempre em casamentos ou na descrição de sonhos com mulheres. Parece haver aqui a inauguração de um mundo subjetivo do desejo a ser corrigido e moldado até mesmo pelo próprio médico: “Eu considero o instinto heterossexual do paciente a criação artificial do seu excelente médico”.

Sobre esse aspecto é que Katz compreende o texto de Kraftt-Ebing como uma transição entre o espaço vitoriano e o moderno, tornando tal “diferença entre o sexos e os eros as características distintivas básicas de uma nova ordem social, linguística e conceitual do mundo”, oferecendo dois erotismos de sexo diferenciado, o ideal e o anormal.

Se a leitura de Katz traz a historicidade desses termos, acreditamos ser relevante destacar um aspecto não ressaltado pelo teórico americano, mas que aparece em basicamente todos os relatos de pacientes do Dr. Krafft-Ebing utilizados: a heterossexualidade não se restringiria ao desejo, mas também a um conjunto de atos sociais que produziriam um corpo adequado para esta forma sexual. Assim, a heterossexualidade comporia o universo das práticas de gênero.

É muito interessante considerarmos isso porque o discurso heterossexual emerge no século 19 junto com uma miríade de outros discursos de poder, na constituição daquilo que Foucault nomeou de dispositivo da sexualidade. Entre esses discursos, está a ascensão do modelo dimorfista. Ora, não é então a heterossexualidade que pressupõe uma natureza corporal binária preexistente, em que o acoplamento pênis x vagina seria como a máxima do desejo humano? Não existe nenhuma possibilidade de se pensar a heterossexualidade sem que a diferença sexual e a própria noção de sexo e gênero sejam evocadas, porque a heterossexualidade é tomada como natural, e não como escolha mainstream que estabiliza a naturalidade das posições homem x mulher.

Portanto, o desejo ou a ideia de uma sexualidade só é possível na matriz heteronormativa, como há trinta anos discutiu Judith Butler, pois a ideia mesma de sexualidade é forjada na invocação performativa de uma anterioridade natural do desejo, da reprodução e do próprio sexo: a ficção pré-discursiva. Nesse sentido, mobilizando a noção de performatividade de Butler, não se trata de identificar um sujeito heterossexual anterior que tomará parte em práticas que são exclusivamente heterossexuais, mas de um campo de disputa das práticas em que aquelas que são socialmente significadas como práticas heterossexuais produzem a existência mesma do sujeito heterossexual. É praticando a heterossexualidade que se torna heterossexual. O sujeito heterossexual é, portanto, uma ficção, mas uma daquelas que existem, como o Estado, o Poder ou o Povo. Sempre que discutimos tal tema, um amigo, o antropólogo Vitor Grunvald, lembra-nos do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Assim como o poeta, que já não sabe mais o que é a dor que sente, a que finge e aquela que finge ao sentir – porque de tanto performar dores múltiplas, os limites entre aquilo que é original e o que é falso deixam de existir -, o sujeito heterossexual, em meio às tensões entre a interpelação do sistema sexo-gênero, sua limitada agência e as formas de sujeição que lhe possibilitam sua condição de sujeito, já não tem mais como enumerar o que lhe pertence ou não porque agora tudo existe, tudo produz efeitos no mundo e nos modos de subjetivação.

Como propõe Monique Wittig, a heterossexualidade é um regime político cujo alcance não diz respeito somente ao desejo ou mesmo à reprodução, ela ordena o funcionamento das instituições ao conceber, por exemplo, o Estado como Pai e a família nuclear como instituição mínima de nossas sociedades. Não apenas a heterossexualidade existe, como são os heterossexuais aqueles investidos de seu poder, como oficiais de justiça. Para além disso é importante considerar que a heterossexualidade como regime político é parte das forças que operam a colonização dos povos do Sul global, cujos corpos, desejos e formas de se relacionar são enquadrados. Indicamos para esta discussão, visto que não poderemos aprofundar o tema, a leitura de Gênero e colonialidade, da socióloga María Lugones.

Ainda em relação a tal concepção política da heterossexualidade, Preciado propõe que esta não seria apenas um regime de governo, mas também uma própria política do desejo. Ao indagar sobre as práticas que constituem este regime de governo, Preciado indica que seus modos de regulação não se dariam na forma da lei, mas por meio de regulação interna, sendo aqui o locus da mencionada política do desejo: “Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres”.

Gostaríamos ainda de insistir criticamente sobre a ideia de uma “vivência concreta do sexual” a despeito do quão vaga tal expressão possa nos ter parecido, assim propondo algo mais próximo a um exercício de tradução. Pensamos que o caráter concreto da experiência heterossexual se realiza, ou melhor, se explicita, na inumerável parafernália sexual de incitação à heterossexualidade, da representação pornográfica à telenovela, passando pela literatura, pela clínica psicanalítica, pelo romantismo, pelas representações da masculinidade (carros, barba, música, futebol) e da feminilidade (estética, esmalte, unhas pintadas e batom), ideais da heterossexualidade. Pensamos, portanto, que se não é possível apontar heterossexuais na rua é porque, como o azul do céu, eles constituem a paisagem e, desse modo, não é que lhes falte existência, é que eles simplesmente existem demais.

Não nos parece haver nada de subversivo em enunciar a inexistência do heterossexual; isso já foi feito pela medicina anterior a Krafft-Ebing, quando a sexualidade normal não carregava nome algum. É certo que nomear a norma é uma operação identitária, e que a noção mesma de identidade é violenta e obstaculiza a constituição de alianças. Entretanto, conforme a discussão de Butler em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, é este o paradoxo da sujeição: se a identidade nos limita, é preciso construir práticas que partam dela, algo que pode ser um excelente começo, mas um péssimo fim. Quando Preciado em  “Carta de um homem trans ao antigo regime sexual” nos convida à desidentificação, isso não significa trocar de nomes ou desnomear, mas trocar de práticas. Desidentificar-se da heterossexualidade não significa rejeitar a alcunha heterossexual, mas engajar-se em práticas sexuais não-heterossexuais, não-reprodutivas, porque são as práticas que constituem os sujeitos, e não os nomes.

Tampouco entendemos que isso signifique teleologicamente demandar um processo político por “outras gramáticas” com base em um horizonte de indiferenciação no qual possamos encontrar “uma forma melhor e mais bela de falar de sexo”. Temos certos incômodos com essa posição, seja pela promessa do belo ou pelo apagamento de experiências e até mesmo pelas produções identitárias e linguísticas que constituíram e constituem outras gramáticas para além do vocabulário médico-jurídico, como há tempos já tratou o antropólogo Peter Fry ou como recentemente demonstrou o pesquisador Luiz Morando em Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte.

Mais uma vez evocando Preciado – não por predileção, mas talvez pela similaridade entre suas discussões no contexto francês e o que parece ser uma importação destas para o campo brasileiro -, é preciso afirmar: “Minha vida fora do regime da diferença sexual é mais bela do que qualquer coisa que vocês poderiam ter me prometido como recompensa por consentimento à norma.”

HELENA VIEIRA é escritora e pesquisadora do Núcleo de Políticas de Gênero da Unilab

YURI FRACCAROLI é mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia (USP)

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Duke via O Tempo

 


terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Tijolaço: Tarcísio, o senhor Livro 7, morre de Covid 19



Hoje é um dia triste para os recifenses e pernambucanos. Amanhecemos com o anúncio da morte do senhor Tarcísio Pereira, da antiga Livro 7, a maior livraria do Brasil, que tanta alegrias e orgulho proporcionou aos brasileiros. Na Sete de Setembro, a Livro 7 era uma parada obrigatória para esse escriba, mesmo que fosse apenas para apreciar suas estantes, repletar de livros de todas as especialidades. A Livro 7 era de um tempo em que  o chique era lanchar na Karblen, comprar o disco de vinil de Chico Buarque na Modinha, tomar uma cerveja com os amigos no Calabouço e, claro, comprar um livro na Livro 7, embalado, no início, num papel em branco, com a marca da livraria em cor preta. O grande Tarcísio morreu de complicações provocadas por esta maldita Covid-19. Nossos sentimento à família, em particular a sua irmã Suely, que manteve a chama acesa até o ultimo instante, consolando seus admiradores e admiradoras pelas redes sociais, sempre com uma mensagem de otimismo.

Num determinado momento, creio que ali pelas décadas de 70\80 parece que todas as outras instituições culturais do Recife convergiam para a livro 7. Faço essa conjectura para não cometer alguma injustiça com algumas delas. Eu, particularmente, fui conduzido àquele espaço através dos estudos no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde convivi com professores, escritotes e poetas que para ali se dirigiam, principalmente aos sábados, atraídos por boas conversas, os últimos lançamentos de sua área de interesse, e, principalmente, pela famosa batida de maracujá, servida gratuitamente, segundo dizem, preparada pelo próprio Tarcísio. 

Ali, mantive longas conversas com Gilvan Lemos, o pardal de São Bento do Una, assídio frequentador daquele espaço, sempre atendendo os pedidos dos estudantes que o procuravam para falar de sua obra. Arredio, morava sozinho, não gostava de dar entrevistas, mas não resistia a um pedido recomendado por mim, então um jovem estudante de letras, aluno aplicado do poeta Marcus Accioly, que ministrava Teoria da Literatura na UFPE. Confesso a vocês que não sei por quanto tempo ainda teremos que suportar os sofrimentos infringidos por essa doença, que retira do nosso convívio os parentes, os amigos, limita o convívio social e impõe-nos um momento de treva, atribulado, de muito medo. Um medo de tornar-se a próxima vítima. Que momento difícil, leitores.  

Charge! Duke via O Tempo

 


domingo, 24 de janeiro de 2021

A costura das coisas esquecidas: "Carta a Felini", de Valência Xavier



Quando O mez da grippe (Arte & Letra) foi publicado em meados de julho último, houve quem dissesse que a reedição do romance, original de 1998, era impulsionado pela pandemia de covid-19, que despontou com força no país em março. Apesar do editor Thiago Tizzot afirmar em entrevistas se tratar de uma “coincidência mesmo”, o fato é que a primeira edição depois de sua reimpressão em 2002 possivelmente será lembrada como aquela publicada num dos piores anos do resto de nossas vidas. Mesmo em cenário tão ruim, não me parece exagerado pensar a reedição como uma espécie de celebração de um dos mais instigantes autores contemporâneos brasileiros, Valêncio Xavier (1933–2008). É também um chamado para recolocar seu nome em jogo, dobrando o interesse pelos seus livros. A verdade é que ele não foi lido até hoje nem perto do que a sua obra merece. E aqui a palavra “obra”, aliás, merece ser entendida como expansiva, não apenas porque as teorias pós-estruturalistas assim sugerem, mas porque o autor em questão foi tudo, menos um escritor tradicional: utilizou um arsenal composto por literatura, fotografia, publicidade e cinema entre outros materiais. E é aqui que começa a minha proposição. Há pouco mais de 40 anos era lançado um dos trabalhos mais estranhos e originais de Valêncio Xavier, o filme Carta a Fellini: Caro signore Fellini (1979) feito por encomenda do então prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Trata-se de uma espécie de vídeo promocional da capital do Paraná, endereçado a ninguém menos que o próprio cineasta italiano Federico Fellini, por razões que mais à frente serão abordadas. E aqui fico na dúvida se sugiro ao leitor que suspenda essa leitura e já veja com os próprios olhos do que eu quero falar (o filme está disponível no Youtube) ou aceite ser atravessado pela leitura que faço do curta-metragem.

Com sua literatura sempre caracterizada pela montagem, fragmentação e bricolagem e associada a temas como violência, morte e suspense, Valêncio Xavier, esse “artista-etc” nos termos do artista e crítico Ricardo Basbaum, também trafegou por outros gêneros sem contudo demonstrar preocupação em diferenciar procedimentos, como se de alguma maneira as manobras utilizadas fossem as mesmas e suas plasticidades só fossem notadas devido às mudanças dos aportes de produção escolhidos (cinema, fotografia, jornalismo, publicidade) — o que já acontece à revelia de qualquer produtor.

Além da efeméride refrescada mais de um ano depois, penso que não é forçado pegar carona também nos burburinhos iniciais em torno das comemorações dos cem anos do nosso Modernismo. Explico: parte da crítica não descarta que tenhamos ficado “presos” a certa ideia de Modernismo como se tudo o que veio depois, inclusive da geração de 1945, tivesse de ser devedor do movimento. Atados ou não a essa pecha não superada, e que deve sim ser analisada nos próximos anos com afinco, não é rara a afirmação de que autores contemporâneos (não poucos) herdaram um temperamento modernista. A propósito disso, o cineasta e crítico de cinema Eduardo Escorel, durante o seminário Releituras do Modernismo: O legado de 22 na cultura brasileira (em outubro de 2020), classificou Valêncio Xavier, “sem qualquer dúvida, como um modernista”. Escorel e Xavier foram amigos por longa data.

A partir das questões até aqui relatadas, a retomada do nome de Valêncio Xavier a partir da reedição de O mez da grippe, e das reflexões sobre o deslizamento do Modernismo para autores contemporâneos e, talvez mais que isso, sobre nossa própria modernidade, analiso Carta a Fellini como um empreendimento de profanação do país em plena virada dos anos 1970 para 1980. Digo isso considerando o olhar do presente também, porque, ao que parece, em 2021 não teríamos a menor chance de que um filme como aquele fosse usado como cartão de visitas ou filme-carta para conhecer Curitiba. Afinal, o que a película mostra é uma cidade muito distante da “República de Curitiba” que ocupa mídia e imaginário nos últimos anos, notadamente a partir da Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo, os problemas que aparecem há 40 anos, e que tinham destaque na órbita gravitacional do Modernismo de partida — a questão do nacional, do que é o Brasil, o subdesenvolvimento — e depois na geração dos anos 1980, aparecem agora de modo estranho (um nacional desfigurado, um retorno ao subdesenvolvimento em outra escala, estampado na cara das pessoas que circulam pelo filme).

Na contramão do que seria um filme institucional, Carta a Fellini problematiza o país a partir de Curitiba, focalizando o diálogo entre o popular e o erudito, fazendo o trânsito entre o coletivo e o anônimo e dialogando, é claro, com o cinema de Federico Fellini, inspiração que arrebata paranaenses até hoje. Sem fazer uso de teorias de cinema, mas relendo a crítica à obra do autor e atenta às questões de representação, minha leitura caminha para propor o filme de Xavier não apenas como uma provocação estética, um filme de arte para outros usos, mas um exemplar de uma espécie de paródia da nossa não superação. O filme é um alerta do que temos ao alcance das mãos, mas que, enquanto projeto de nação, nos interessa esquecer: certos tipos sociais, algumas expressões da nossa cultura. É na matéria de descarte que o curta-metragem cresce e incomoda o espectador. É “a costura de coisas esquecidas”, expressão surrupiada de um texto do jornalista e editor Cassiano Elek Machado, a matéria de Valêncio Xavier neste filme, nos seus livros, e podemos dizer na sua obra como um todo.


ESTRANHO MODO DE SE VENDER UM PRODUTO

Parece roteiro de cinema, mas não é. O ano: 1979. No país, o presidente é João Batista Figueiredo, que havia tomado posse em 15 de março daquele ano. Em Curitiba, começava o segundo dos três mandatos de Jaime Lerner na prefeitura. Arquiteto e urbanista de formação, Lerner é um dos mais controversos políticos da história do Paraná. A encomenda: um filme para homenagear Nino Rota (1911–1979), criador das trilhas sonoras de Federico Fellini e que teria seu nome estampado em uma praça da capital do Paraná. A expectativa: o filme seria produzido e o próprio Fellini viria conhecer a cidade que homenageia o compositor de sua equipe.

Este seria apenas um dos curtas-metragens de Valêncio Xavier, sujeito com experiência profissional em diferentes mídias. Depois viriam O corvo (1983) e Os 11 de Curitiba: Todos nós (1995). Quem conhece o preâmbulo da história antes de ver o filme, talvez pense como resultado algo que já estamos acostumados a assistir em vídeos transmitidos em voos nacionais ou até mesmo em propagandas de Governo de Estado. Isso se você não conhecer a obra de Valêncio, é claro. O curta “totalmente filmado na mais bela cidade do mundo” tem em uma de suas primeiras cenas uma turista italiana com cartões portais nas mãos dando uma entrevista sobre a cidade, enquanto um homem a assedia diante da câmera. Enquanto Valêncio focaliza os gestos manuais da mulher, o homem ao pé do ouvido diz: “Vamos fazer um programinha. Não se faz de difícil”. A cena constrange e é até capaz de deixar o espectador nervoso diante de cada interrupção do assediador.

Na sequência, um cartaz em italiano dá a próxima indicação: “Elenco milionário”, seguido de tipos populares, velhos, crianças, mulheres e homens no centro da cidade. São pouco mais de três dos 11 minutos de Carta a Fellini e já sabemos que não é a beleza de Curitiba que será publicizada. Mesmo assistido hoje, com a distância temporal azeitada pelas tecnologias que surgiram nas últimas décadas, o que se escancara, o que ganha o primeiro plano, é a rasura da verdade, a confusão entre fato e ficção, tal e qual aparece nos livros do escritor. A mesma fantasmagoria construída nos interstícios, que percorre livros como Maciste no Inferno (1983), O minotauro (1985), O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nachi-Ochi (1986) e Meu 7º dia (1998), marca presença.

Se as ideias de Walter Benjamin, em algumas de suas teses dos 1930, tratavam da reprodução enquanto superação da tradição, mirando o paralelismo entre as experiências transmissíveis e o nascimento de um novo tipo de miséria advindo da técnica, o filme-carta de Valêncio Xavier, é um possível exemplo concreto da justaposição de elementos da cultura de diferentes fontes (o forró, o teatro de bonecos, a umbanda, o próprio cinema), todos com diferentes modos de tratar a experiência enquanto matéria-prima.

 

Em se tratando da forma, Carta a Fellini também poderia ser um dos livros-álbuns do escritor, seja pelo procedimento adotado, seja pelo modo como o autor-cineasta trabalha a linguagem. No ensaio Ficção 80, a crítica Flora Süssekind situa Valêncio Xavier entre os exemplos pós-literatura parajornalística praticada durante a ditadura militar. Lembramos que 1978 é o ano em que os censores deixam as redações dos jornais e, a partir daí, a imitação da reportagem sai de cena, cedendo lugar ao romance policial. Mas o que importa na reflexão de Süssekind e que ainda funciona para ler e assistir Valêncio Xavier nos dias de hoje são algumas características que marcaram uma tomada de posição pela autoria dos anos 1980. Parte dela está pactuada com a teatralização da linguagem do espetáculo e tem a “superexposição da vitrine” como mola propulsora. Isso significa dizer que em vez de ficções que focalizam a prosa do eu e o memorialismo, o que teremos em vista é o anonimato na vitrine. Um anonimato em primeiro plano — mas, como adverte a crítica, com forte interferência da mídia. Valêncio Xavier exemplifica como ninguém esse comportamento ao fazer do curta-metragem “promocional” um anúncio envidraçado de tipos populares, personagens anônimas, elementos da cultura do Paraná: a araucária, a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe e o teatro de bonecos, por exemplo.

Força e tom do filme são dados pelos tipos populares, os anônimos que põem em prática ou transformam a película em um modelo do que Walter Benjamin fala em Experiência e pobreza (1933). Neste ensaio, o filósofo berlinense reflete sobre uma nova modalidade de pobreza, advinda da técnica, que põe abaixo toda experiência. O valor é obscurecido pela troca comercial, pela transformação em mercadoria. Ver Carta a Fellini por essa ótica nos faz pensar se ao expor elementos da cultura de Curitiba à venda, de modo quase publicitário ainda que para um personagem ilustre, não se acabaria por mostrar exatamente as vísceras do atraso e da pobreza que imperam no país. Mas aqui paira outra “noção de”, outro entendimento da experiência. Quanto menos experiência, mais pobreza. Valêncio faz a manobra ao contrário, coloca um compositor desconhecido para cantar uma canção autoral que homenageia a cidade, uma mulher anônima para conversar com a santa pagã da cidade, sujeitos sem nome mas que detêm e transferem em alguma medida um legado da história da região. Ao longo do filme, semelhante à ideia de almanaque valenciano já proposta pela crítica literária, também é possível percebermos a lógica de coleção, de temas organizadamente expostos — sempre, reitero, tendo figuras anônimas dando projeção às cenas. Elas recebem muito mais visibilidade que os pontos turísticos, mesmo aqueles que ainda se levantariam, como a Pedreira Paulo Leminski, local de espetáculos ao ar livre e que quase ganhou o nome do compositor das trilhas sonoras de Fellini em vez do poeta nascido na cidade (sim, o nome de Nino Rota também foi cotado para o lugar). Leminski faleceu em 1989, um ano antes da inauguração do equipamento cultural. Nesse último exemplo, ainda ressoa um dos questionamentos de Benjamin: “Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?”


CARTA ABERTA DE PROFANAÇÕES

De um lado, um filme; de outro, um desejo. Manuseando rostos e sombras, marcas e anonimatos, como destaca Flora Süssekind, Valêncio Xavier mina a prosa do eu. Cabe ao registro cinematográfico dar conta do que é sociável, enquanto algo de perverso e não verbalizado é sugerido para o espectador/leitor na construção da obra. A duplicidade apontada pela pesquisadora fala ainda da dicotomia entre ver/ler de modo privado e a difusão em larga escala. A prosa de Valêncio (e não apenas dele, porque podemos pensar em Sebastião Nunes ou Glauco Mattoso) tem por interlocução a mídia, a linguagem do espetáculo. Em Rremenbranças da menina de rua morta nua e outros livros (2006), Valêncio recorre a recortes de jornal, à transcrição de programas sensacionalistas, além de fotos de origens diversas e nem sempre localizadas pelo autor e sua editora. Minha mãe morrendo e o menino mentido (2001) traz ainda mais apropriações do autor: anúncio publicitário, história em quadrinhos, almanaque do Tico-Tico, desenhos de Carlos Zéfiro, fotos de filmes. E por fim, O mez da grippe, um álbum composto de recortes de jornais, manchetes e obituários, documentos, mais uma vez publicidade e desenhos de época. A respeito deste livro, o cineasta Carlos Adriano, em resenha para a Folha de S.Paulo, diz se tratar de um livro “não propriamente escrito”, mas de um “livro composto”, como se Valêncio fosse um “reprocessador de dados do mundo contemporâneo”. Do mesmo modo que a montagem cinematográfica transita pelos livros, a colagem plástica pode ser experenciada no filme-convite a Fellini.

No Satyricon (1969) de Fellini, uma explosão do sonho se materializa na narrativa fragmentada, não só porque o texto original de Petrônio, poeta da corte de Nero, foi encontrado aos pedaços, mas porque o cineasta assim o quis realizar, como uma espécie de mundo antigo nos sonhos de Fellini. Satyricon é, dos filmes de Fellini, um dos que melhor ajuda a entender a empreitada de Valêncio Xavier no seu filme-carta ao cineasta. Não se trata de compará-lo, mas de perceber que algumas referências utilizadas e associadas a Curitiba parecem ressoar temas de predileção de Fellini, pelo menos neste filme. Assim, o teatro, o jogo cênico e até o teatro de bonecos utilizados por Xavier ganham mais sentido quando sabemos a quem o filme é dirigido. É como se ele dissesse a seu interlocutor que, entre tantas coisas a serem vistas neste pedaço do Brasil, algumas são do gosto de Fellini ou podem com ele dialogar.

Em tese dedicada ao cinema do autor (O cinema de Valêncio Xavier, de 2019), Regina Celia da Cruz reforça os gestos de Valêncio que evidenciam seu interesse pelo cinema, como a criação da Cinemateca e do Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR). Estas ações o ajudaram a produzir seus próprios filmes, muitos com críticas positivas e premiações. Não bastasse Carta a Fellini ganhar o prêmio, em 1980, de Melhor Filme de Ficção na IX Jornada Brasileira de Curta-Metragem, O pão negro: Um episódio da Colônia Cecília recebeu o Prêmio Paraná de Roteiro para Vídeo em 1993 e prêmio do Festival de Cinema e Vídeo do Maranhão em 1994, e Os 11 de Curitiba: Todos nós levou o Troféu Jangada da Organização Católica Internacional de Cinema do Brasil em 1995. Valêncio dirigiu e ajudou outros cineastas como Silvio Tendler, em Jango (1984), e Sylvio Back, em Revolução de 30 (1980), além da novela O mistério da prostituta japonesa, que foi filmada em 2005 por Beto Carminatti e Pedro Merege.

 


Valencio Xavier Carta a Fellini.2 Cinemateca de Curitiba jan.21

 

Carta a Fellini causa estranhamento desde a primeira cena. Se à primeira vista as sequências do filme parecem peças soltas, uma análise mais adensada mostra que tudo faz sentido na estratégia do filme. A história é contada a partir de uma menina caucasiana (imagem acima) que escreve uma carta a Fellini à luz de uma pequena vela. Essa mesma menina atravessa várias imagens do filme, fazendo as vezes de fio condutor da narrativa. As imagens mais absurdas — a começar pela escolha por colocar entre cenas, no lugar de letreiros, cartazes escritos à mão — reforçam a sequência narrativa conforme o filme avança. São 12 cartazes ao todo, escritos em italiano e traduzidos pelo narrador, dando a ver uma estrutura de roteiro do filme-carta. Na verdade, os cartazes contam às avessas o que o espectador verá. Na sequência do cartaz “Ottocentomila figuranti” (locução em off diz: “elenco milionário”), aparecem olhares curiosos e até mesmo a direção de cena, realizada pelo próprio cineasta. Quando o cartaz diz “Scenari Grandiosi” (locução: “cenários grandiosos”), o que se vê é um rapaz fazendo uma performance na rua, imitando pássaros e outros bichos. “Um film sociale” (locução: “um filme social”) mostra a periferia da cidade com crianças brincando com uma bola — sendo essa bola um crânio. Para além dessa chave de interpretação, há o aspecto concreto da manufatura de Xavier: a montagem como uma de suas técnicas de predileção. No filme, cartazes e cenas são ajustadas na hora exata.

No documentário As muitas vidas de Valêncio Xavier (2011), de Beto Carminatti, o cineasta Fernando Severo lembra o impacto que foi a produção de Carta a Fellini numa época em que a capital do Paraná era muito “careta”, “fechada”. Na visão de Severo, Xavier subverteu a encomenda oficial que era vender Curitiba como uma cidade maravilhosa, modelo, um pedaço da Europa no Brasil. A dúvida que resta é como o filme, mesmo com este resultado estrategicamente montado por Valêncio, conseguiu aprovação, porque, como vimos, não só recebeu críticas positivas como foi premiado no ano seguinte a seu lançamento. Um filme nascido para ser filme de arte, um merchandising de arte, se isso for possível.

O filósofo italiano Giorgio Agamben, no ensaio Elogio da profanação, explica que profanação diz respeito às coisas pertencentes aos homens, restituídas de livre uso por estes, ao contrário da consagração, relacionada às coisas reservadas ao sagrado. Agamben lembra que os juristas romanos conheciam o sentido de “profanar”, que as posses dos deuses deveriam ser sagradas e de uso exclusivo, portanto não poderiam ser usadas sem consentimento ou serem vendidas. Carta a Fellini pode ser entendido também como um relicário de profanações. A cidade “sagrada” é corrompida pelas múltiplas manifestações culturais, pelos tipos sociais que não figuram nos cartões postais. Aliás, os cartões-postais da cidade, quando enquadrados, dividem espaço com fotos de mulheres nuas. Não à toa Valêncio intercala essas imagens com planos abertos e fechados em pontos de visitação da cidade bastante conhecidos, como a Rua XV de Novembro. A menina que aparece em uma das primeiras cenas retorna pulando corda e atravessando a rua em direção à Cinemateca do Museu Guido Viaro (hoje Cinemateca de Curitiba). A seguir, os planos abertos mostram a Feira de Artesanato (conhecida como Feirinha Hippie) e um grupo de chorinho que se apresentava aos domingos no Largo da Ordem. É interessante notar que a rasura nos locais da cidade se dá por uma apropriação livre desses espaços, à maneira do que fala Agamben em seu Elogio.


CURITIBA OU BRASIL?

Valêncio Xavier era aficionado por cinema e esteve envolvido com ele o quanto pode. E mais, era um gosto que tinha como premissa popularizar o assunto, ampliar o acesso e preservar a memória. Uma pequena mostra disso pode ser vista no documentário lançado por ele em 1991 sobre o cinema produzido no Paraná de 1907 a 1930. Nele, é possível ver cenas raras e únicas dos filmes de época. Uma pequena aula desde a criação do cinema, sua chegada no Brasil e as primeiras realizações audiovisuais no Paraná. A produção é da Cinemateca do Museu Guido Viaro e da Fundação Cultural de Curitiba. Ou seja, além de realizador, o autor demonstra interesse pela troca de saberes com outros cineastas, bem como pela pesquisa e o debate sobre cinema na região.

Com poucos recursos e aproveitando o trabalho de participantes das aulas práticas de realização cinematográfica no formato 16 milímetros da Cinemateca, Valêncio, ao produzir Carta a Fellini, não se furtou a imprimir sua assinatura, tal como faz em cada um dos livros que publicou. Recorta e cola, fazendo da montagem sua estratégica principal de composição narrativa. Não custa reiterar que nessa época, ainda sob a ditadura militar, o padrão era a construção de uma imagem da população brasileira sem problematizações, pasteurizada. O artista faz o exato oposto, no entanto, sem ridicularizar as personagens expostas, mas com empatia e certo afeto por elas, porque é dessa exclusão, do precário, que se tem a parte pulsante da cidade, o que lhe é mais valioso.

Na abertura do livro Ficção brasileira contemporânea (2009), Karl Erik Schøllhammer se pergunta se ainda haveria traços que configurariam uma identidade nacional na literatura contemporânea. Tal pergunta faz uma espécie de fio condutor dos modernistas até a literatura que passa a ser produzida a partir dos anos de 1960, desdobrando-se até hoje. Tomo o questionamento de Schøllhammer por empréstimo, para pensar a obra ficcional de Valêncio Xavier, a literária e fílmica, por entender que não há cisão entre elas. Nela, o nacional é focalizado a partir de Curitiba. Curitiba serve de lente de aumento, mas nada mais é que um espelho do que somos feitos. Assim, a literatura explica o cinema de Valêncio e vice-versa. Carta, esse gênero que se escreve e já se escreveu de próprio punho, a Fellini alcança um resultado inusitado para o espectador porque se vale de uma narrativa fílmica ficcional, coisa que um documentário objetivo provavelmente não alcançaria com tanta eficiência. Como diz o penúltimo cartaz do curta-metragem, “Venite a Curitiba”, ou nas palavras do locutor: “Conheça Curitiba. Tchau”.



* Agradecemos à equipe da Cinemateca de Curitiba pelas imagens de Carta a Fellini que ilustram este ensaio.

(Ensaio publicado originalmente no site do Suplemento Pernambuco)

Estante: Fred Coelho, Laura Erber, Edith Södergran

 


Estante: Fred Coelho, Laura Erber, Edith Södergran
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O escritor, pesquisador e professor Frederico Coelho, que lança biografia de Jards Macalé pela Numa Editora (Foto: Divulgação)

 

Toda semana, uma
seleção de lançamentos
curados pela Cult

 

[Jards Macalé: eu só faço o que quero, Fred Coelho]

“O nome Jards Macalé deve nos remeter à melhor tradição do compositor popular: aquele que, ao invés das sombras, sempre esteve no palco cantando”. Neste ensaio biográfico, o escritor, pesquisador e professor Fred Coelho busca “ampliar uma historiografia que faz dessa obra riquíssima uma pálida presença”. O autor mostra a vida, a obra e o tempo de Macalé para além dos rótulos que sempre o acompanharam – maldito, marginal, anárquico, rebelde – com o desejo de que os leitores o vejam como um dos artistas fundamentais da canção brasileira.

Numa, 500 páginas, R$83 


[O artista improdutivo, Laura Erber] 

Nesta coletânea de treze ensaios escritos entre 2015 e 2020, a escritora e artista visual Laura Erber observa a relação entre arte e política a partir  de biografias de artistas como Tunga, Rosana Paulino e Anna Bella Geiger, e de discussões como monumentos e pixações no espaço urbano. O último ensaio, que dá nome à obra, discute o lugar do trabalho na sociedade, na arte e no mercado artístico contemporâneo ao passear por temas como o ócio, o produtivismo e a mercantilização do imaterial. Erber é autora também dos livros Os corpos e os dias (De Cultura), Ghérasim Luca ( EdUERJ) e Esquilos de Pavlov (Alfaguara).

Ãyiné, 180 páginas, R$89


[Racismo, Douglas Rodrigues Barros] 

Por que ainda há pessoas que creem não haver racismo no Brasil? O escritor e doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp Douglas Rodrigues Barros desmistifica lugares comuns sobre a questão racial no Brasil, como a ideia de que, por aqui, se tenha alcançado a miscigenação pacífica entre as raças.  “A repetição acrítica dessa noção oculta o processo radical de violência da miscigenação e do Estado policialesco no Brasil que dizima anualmente milhares de negros e indígenas”, escreve. Barros é também autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial  (Hedra).

Fibra, 130 páginas, R$55.


[Atenções esparsas, Edith Södergran]

Lançado originalmente em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, o livro reúne aforismos de Edith Södergran, uma das maiores poetas nórdicas e precursora do modernismo nessa literatura. Nos textos, a autora se depara tanto com o horror quanto com a possibilidade de um mundo novo. A edição brasileira traz ainda o que é considerado o primeiro manifesto modernista da literatura nórdica, escrito por Södergan e enviado para um jornal em formato de carta.

Usina, 86 páginas, R$40,00.  Tradução de Cecília Schuback.


[Menino de ouro, Claire Adam]

Na zona rural de Trinidad e Tobago, os gêmeos de 13 anos Paul e Peter vão todo dia à capital, Port of Spain, para estudar. Peter é o “gênio” da família, e Paul é visto como esquisito. Sob ameaças de que se não se comportasse seria enviado a um hospício, Paul um dia desaparece depois da escola – e a busca do pai para encontrá-lo o leva por um caminho de escolhas impossíveis. O romance de Adam, nascida em Trinidad e Tobago, entrou na lista da BBC como um dos cem romances mais influentes de 2019.

Todavia, 272 páginas, R$67. Tradução de André Czarnobai.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)