Por Michel Zaidan Filho
A expressão "mandarim" foi empregada para designar a geração dos grandes intelectuais alemães que emigraram para os EE.UUs., fugindo da perseguição nazi-fascista na Alemanha. Nesse sentido, "mandarim" tem algo da autoridade que a sabedoria, a cultura e a tradição da velha Europa tinha produzido através das figuras exponenciais da Escola de Franckfurt: Adorno, Benjamin, Marcuse, Horkheimer etc. No caso brasileiro, o uso da palavra que designar os intelectuais que criaram a ideia da Cultura Brasileira e, mais especificamente, da Cultura Popular...do Nordeste. Entre eles, destaca-se sem sombra de dúvida o nome do escritor paraibano Ariano Suassuna.
Muito se escreveu e se disse sobre a rica e múltipla obra de Ariano. Ela conta hoje com uma fortuna crítica invejável. Sobretudo, a obra teatral do escritor: a farsa da boa preguiça, o julgamento da porca, o auto da compadecida, uma mulher vestida de sol. A obra romanesca propriamente dita é pequena. O livro mais importante é o romance da Pedra do Reino. Há os poemas, que Ariano tinha muito pudor em publicar. Há a tese universitária sobre a Cultura Brasileira, que ele nunca publicou. E tem as xilogravuras e pinturas produzidas por ele.
Tudo tem a sua importância relativa no contexto da obra do autor. Mas sua importância vai além dessa obra. Ela cresce exatamente pela influência que exerceu em muitos lugares (da mídia) como uma certa ideia de cultura brasileira (a tese), ou cultura popular (nos textos pro gramáticos sobre o teatro e as montagens teatrais), desde a época do Teatro do Estudante e o Teatro Popular do Nordeste, juntamente com a figura de Hermilo Borba Filho. O criador dessa "Cultura Popular", que junta a literatura de cordel, os espetáculos circenses, a literatura picaresca ibérica e a literatura brasileira (Sílvio Romero, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha). A síntese é improvável, mas foi avocada para si, o escritor paraibano, com a fonte de sua literatura e visão de mundo.
Já tive inúmeras oportunidades de tratar dessa obra. Inclusive no livro "O fim do Nordeste e outros mitos". Mas Ariano nunca manifestou nenhum desagrado ou ira em relação a essas críticas. Coisa que não fez com Celso Marconi e Jomard de Britto. Talvez por ser seu colega de Universidade, no departamento de História. A última vez que o avistei foi na posse do secretariado de Eduardo Campos. Ele me abraçou por trás e pensei que se tratasse de Nilton Carneiro, pela leve semelhança física entre os dois.
Como dizia Nietzsche, uma grande obra não quer se adulada. Quer ser discutida, avaliada, desconstruída criticamente. Essa é a homenagem que o leitor presta ao escritor. Assim vai aqui a minha homenagem ao escritor falecido ontem.
0 núcleo racional do "anticapitalismo rural" da obra de Ariano opõe uma cultura cosmopolita, litorânea dos ricos e poderosos contra uma cultura dos pobres, humildes, os sertanejos do interior, nunca integrados ao mercado capitalista e aos ritos do Estado republicano. A cultura deste estrato social é o messianismo, a espera do encantado, de D. Sebastião. Sua política é a monarquia. Esses sertanejos pobres e abandonados pela plutocracia republicana do litoral tem o seu herói civilizador em João Grilo, o amarelinho da zona da mata, primo brasileiro de Pedro malasartes. As armas desse herói são a astúcia, a malícia, o jogo de cintura, a ironia, a esperteza. O nosso herói picaresco vence todas através da "lábia", da conversa fiada, dos estratagemas de malandro. Mas não é um herói negativo, um anti-herói, como Macunaima ou Jeca Tatu. Segundo Ariano, é um herói positivo, modelar, um ícone da cultura popular do nordeste.
Esse herói picaresco já foi objeto de muitas críticas, tanto quanto a própria idéia de cultura popular defendida por Ariano Suassuna: rural, pré-moderna, apolítica e individualista. Mas as últimas posições públicas de Ariano Suassuna em matéria de partidos e ideologias políticas mostram que o escritor estava mudando: abandonando o trama do assassinato do pai pela Revolução de 30 e se aproximando das idéias modernas de política e cultura. Prova disso foi sua aproximação com o mangue beat. E suas inclinações para o campo da esquerda.
Lamentavelmente, essa evolução foi truncada pela instrumentalização política do PSB e de seu chefe-candidato. O uso político-propagandístico da obra de Ariano pelo PSB não acrescentou nada ao valor e a importância dessa obra. Mas agregou valor a um partido, a um candidato e a uma ideologia que de socialista não tem absolutamente nada. Quanto mais de popular ou sertaneja. Sobra o elemento picaresco. Talvez de picaresca tenha muito semelhança com o herói de Ariano Suassuna.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador e professor da Universidade Federal de Pernambuco.
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