Engenho e fábrica de Camaragibe, em Pernambuco, estão à mercê das construtoras, como ocorreu com o Cais José Estelita, no Recife
por Lucas Alves* — publicado 27/09/2014 07:46, última modificação 28/09/2014 16:53
Divulgação
Fachada da antiga fábrica de tecidos no município pernambucano de Camaragibe
Pode não parecer, mas a imagem acima é de uma fábrica: a antiga fábrica de tecidos no município pernambucano de Camaragibe, onde um grupo de empresas, sob o nome Consórcio “Reserva Camará”, está implantando um grande empreendimento imobiliário. Sobre o terreno de 26 hectares em que está a fábrica do século XIX planejam fazer um megaprojeto de shopping center, estacionamento e vinte e tantos arranha-céus (22 residenciais, dois empresariais e um hotel) com muitas caixas de garagem. Um centro educacional em forma oval ocuparia o lugar da fábrica. Como de costume, o projeto é vendido como um grande presente para a cidade, uma promessa de modernidade que esconde sérios problemas.
A fábrica de tecidos foi construída nas terras do Engenho Camaragibe, que data de 1549. A casa grande do engenho, mais conhecida como Casa de Maria Amazonas, é o maior símbolo de Camaragibe, reconhecido como patrimônio histórico pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe e em processo de tombamento federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Se o projeto for levado adiante, sua paisagem será completamente descaracterizada.
O cotonifício é parte fundamental da história da cidade e um edifício marcante da arquitetura industrial. Com a implantação da fábrica, Camaragibe viria a se transformar em cidade, separando-se de São Lourenço da Mata e deixando de ser apenas parte da economia da cana-de-açúcar. Seus tijolos foram feitos em olaria própria, construída em 1890, da qual resta apenas a chaminé, destruída em uma das ampliações e hoje destinada a enfeitar um estacionamento.
A Companhia Industrial de Pernambuco criou, junto com a fábrica, uma das primeiras vilas operárias da América Latina. A Vila da Fábrica, planejada pela empresa, era um bairro residencial com os serviços urbanos essenciais: saneamento básico, abastecimento, saúde, serviço religioso e educacional. Tinha até um prédio para quem não era casado: a “República dos Solteiros”, que se mantém de pé até hoje. Foi a partir da fábrica que a cidade cresceu, trazendo a fundação de outros bairros, como o Alto da Boa Vista e a Vila Nova.
Sobre o terreno de 26 hectares em que está a fábrica do século XIX, planejam fazer um megaprojeto de shopping center, estacionamento e 22 prédios
A fábrica foi marcante também em sua organização e no legado social que deixou. Carlos Alberto de Menezes, primeiro diretor da fábrica, inscreveu no estatuto da companhia princípios de cunho cristão que conferiam benefícios aos operários e, segundo registros, teria estimulado a vinda de ordens religiosas da Europa (como os salesianos e os maristas) para capacitar operários e educar seus filhos. Promoveu a criação da Corporação Operária de Camaragibe, cujo pioneirismo no Brasil trouxe a visita do presidente Afonso Pena em 1905. Da organização operária iniciada na fábrica de Camaragibe surgiria a primeira legislação sindical urbana do Brasil, o decreto 1.637 de 1907.
Segundo Plano Diretor, a área do empreendimento está em Zona de Requalificação Urbana, que “compreende o Centro histórico-cultural do Município, e seu entorno, (...) apresentando características de degradação e risco de perda deste patrimônio”. Por isso, quase todas as diretrizes desta zona referem-se à preservação do patrimônio histórico-cultural, a saber: “a conservação integrada do patrimônio histórico-cultural incluindo ações específicas de proteção e preservação que compatibilizem uso e manutenção do acervo do patrimônio cultural municipal”; “o aproveitamento econômico sustentável do patrimônio cultural”; “a integração das ações públicas e privadas destinadas à proteção do patrimônio cultural existente”; “a sensibilização da comunidade local, dos proprietários e possuidores de bens de valor cultural, sobre a importância da conservação da identidade local para o desenvolvimento sustentável do município”; “a integração entre a educação pública municipal e as iniciativas de proteção ao patrimônio cultural".
Em vez de valorizar o patrimônio da cidade, como ordena o Plano Diretor, o Consórcio “Reserva Camará” quer cercar de altos prédios a fábrica, destruir sua planta original e deixar apenas duas fachadas, uma brincadeira de mau gosto com as boas práticas de preservação. Achando pouco, ainda inserem arranha-céus na paisagem mais emblemática de Camaragibe, a casa grande do Engenho Camaragibe, uma perspectiva que nunca é mostrada na propaganda do projeto.
Maquete do projeto “Reserva Camará” quer esconder casa grande do Engenho Camaragibe com altos prédios
Parte da esperança reside na Fundarpe, órgão no qual foi protocolado recentemente um pedido de tombamento da planta original da fábrica, com um polígono de preservação em seu entorno. A iniciativa é semelhante ao pedido do grupo Direitos Urbanos e de moradores do bairro da Torre, no Recife, que solicitaram ao órgão o tombamento do Cotonifício da Torre quando construtoras pretendiam ali construir mais de uma dúzia de torres e um shopping center. Nada impede, entretanto, que parta dos empreendedores e projetistas a iniciativa de fazer algo integrado à memória e às particularidades locais.
As cidades brasileiras, e em Pernambuco não é diferente, têm sido reféns de megaprojetos que prometem desenvolvimento atropelando a legislação urbanística e ambiental, esquivando-se da participação popular e da transparência, muitas vezes revelando arranjos público-privados nada impessoais. São projetos que geralmente ampliam a exclusão social, criando redutos de riqueza segregados do tecido urbano preexistente, e que se apoiam em paradigmas arcaicos de urbanismo, como o da mobilidade rodoviarista e carrocêntrica ou dos condomínios apartados do convívio social, cercados de desertos urbanos (ainda que “verdes”). Como no caso do projeto Novo Recife, no Cais José Estelita, grandes empresas se apropriam de espaços de interesse público e vendem privilégios que deveriam ser de usufruto comum, como as vistas para as belas paisagens de corpos d’água, áreas vegetadas e monumentos históricos.
Exemplos de aproveitamento comercial de instalações industriais preservadas não faltam: da LX Factory, em Lisboa, ao SESC Pompéia, em São Paulo, e à Fábrica Bhering, no Rio de Janeiro. Mesmo do ponto de vista imobiliário, é possível conciliar e até aumentar o lucro preservando o patrimônio histórico e ambiental. Para isso, é preciso que o poder público, a começar pela Prefeitura de Camaragibe, a Fundarpe e o IPHAN, assuma a responsabilidade pela resguardo da memória e pela gestão democrática das cidades.
*Lucas Alves é formado em Relações Internacionais e membro do grupo Direitos Urbanos Recife-PE
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