segunda-feira, 30 de março de 2015

A alta modernidade de Machado de Assis

  

por Luis Dolhnikoff, editor.

Em 1895, Sigmund Freud publicou em Viena Estudos sobre a histeria, e em 1899, aquele que seria considerado o livro inaugural de sua topografia psíquica (baseada na ponta do “iceberg” do ego emerso do profundo oceano do inconsciente), A interpretação dos sonhos. Entre as duas datas, saía no Brasil, em 1896, Várias estórias, de Machado de Assis, contendo alguns dos melhores contos já escritos em língua portuguesa. E entre eles, aquele que provavelmente é a obra-prima insuperável do conto brasileiro, “O cônego ou a metafísica do estilo”.
Mas o que tem a ver Freud com Machado, além da coincidência das datas? Nada. Porém, invertendo-se a frase – o que tem a ver Machado com Freud –, a resposta seria... nada, se não fosse quase tudo. Ao menos, no caso de “O cônego".
Não haveria tempo hábil para Machado ler uma obra publicada em Viena em 1895 e escrever e publicar um livro por ela influenciada em 1896. Quanto à data de 1899, apesar de Machado ser conhecido como o “bruxo do Cosme Velho”, isto se deve ao poder quase miraculoso de seu estilo, não a reais capacidades mágicas, como viajar no tempo. Portanto, a topografia psicocerebral descrita no conto de Machado só pode ser atribuída ao zeitgeist, ao “espírito da época”, em que as primeiras pesquisas e teorias a respeito – incluindo as do próprio Freud – estamos sendo feitas. Ainda assim, o pequeno e imenso conto de Machado é quase inexplicável em sua radical modernidade.
Uma modernidade múltipla, baseada no uso da metalinguagem, na topografia da mente e no humor linguístico, entre outros.
“Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles [o substantivo e o adjetivo] prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das ideias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também. Vasto mundo incógnito. [Eles] rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de ideias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras ideias, grávidas de ideias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras ideias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.”
Faltou dizer, sobre esse texto imenso em sua exiguidade (quatro páginas ou menos, a depender da edição), que os personagens principais são um substantivo e um adjetivo, que se procuram ora na consciência, ora no inconsciente de um padre que tenta fechar a frase de um sermão (quando ele se distrai do trabalho).
“Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego.
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...
— Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.
— Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.
— Confesso que não.
Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: ‘Vem do Líbano, vem...’ E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: ‘Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol.’ Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro. Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo.”

“Vem do Líbano, vem...”: trata-se do conhecido estribilho de O Cântico dos cânticos de Salomão, seguido de uma referência a Shakespeare, que Machado então aproxima, numa síncope quase pop, do mercado financeiro. É quase irresistível, a este respeito, dizer que pouco antes que ele citara James Joyce, não fosse, mais uma vez, a absoluta impossibilidade temporal. Joyce: “Onde as mãos do homem nunca pôs os pés”. Machado: “Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede”.
Ao menos, sem afrontar a irreversibilidade da seta do tempo, podemos afirmar que este conto de Machado certamente influenciou o argentino Júlio Cortázar, além de Borges, para inciar uma longuíssima lista. Muito menos conhecido do outras grandes obras de sua pena, como O Alienista, “O cônego ou a metafícia do estilo” representa, provavelmente, o cume altíssimo de sua contística, ou, para falar como o próprio, o Everest de uma obra feita toda ela das mais elevadas altitudes literárias.

Publicado originalmente no site www.hedra.com.br

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