Estava eu lendo uma tese de Doutorado em Filosofia sobre a proposta hegeliana de um Estado Ético, onde a liberdade do cidadão encontra-se no respeito à lei e me vi obrigado a opinar sobre os desdobramentos da Operação Lava-Jato, sobre a política e o Congresso Nacional. Como se já não bastasse o ambiente turvo da economia brasileira, com aumento de impostos e redução de direitos trabalhistas, em nome do ajuste fiscal, parece que entramos no pior dos mundos possíveis. Num regime presidencialista como o nosso a pior coisa que pode acontecer é um presidente da República fraco ou que se veja obrigado a fazer tantas concessões aos "aliados" que termine por desfigurar a sua gestão.Nesse nosso arremedo de presidencialismo de coalizão (embora o melhor termo seja de cooptação), há quem admita que os avanços legislativos - econômicos e sociais - só foram possíveis a partir de coalizões centralizadoras, onde o Poder Legislativo foi posto de lado. Mas isso só é possível em situações excepcionais, com o Congresso fechado ou sem suas prerrogativas constitucionais. Em situações normais, com a Casa funcionando plenamente o exercício do Poder Executivo e a possibilidade da execução de sua agenda política dependem necessariamente do apoio de uma maioria parlamentar nas duas casas do Congresso. É aí onde se encontra os desafios à governabilidade da atual gestão presidencial. Parece que a Presidenta acaba de perder o apoio da maioria em ambas as casas, apesar de formalmente desfrutar do apoio do maior partido do Congresso Nacional ( o PMDB de Jarbas, Renan, Jader, Sarney etc.)
Os indícios levam a pensar que o resultado das eleições presidenciais, no ano passado, preparou esse cenário de crise que estamos assistindo: o PMDB deve ter visto na vitória apertada da Presidente Dilma uma forma de chantageá-la, a todo momento. Se a eleição da Presidência da Câmara dos Deputados era previsível, em função do alto grau de fragmentação e conservadorismo da atual legislatura, pior - muito pior - foi a eleição de Renan Calheiros para a Presidência do Senado Federal, onde se esperava que a Chefe do Poder Executivo dispusesse de uma ampla e confortável maioria. Enganou-se. Se no Estado Ético da filosofia hegeliana o império da lei ou da legalidade é a base do governo, na República brasileira, pelo visto, é o atendimento ou não dos interesses da chamada base aliada. Tendo o nobre senador sido contrariado em algumas de suas demandas particulares, a retaliação não se fez esperar através do jogo de cena da rejeição da MP do aumento da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento das empresas.
Não se discute aqui a técnica legislativa, o escopo da Medida Provisória ou se era constitucional ou não o aumento de impostos por essa via. O fato é que se outro fosse o relacionamento do Poder Executivo, com o Congresso, os partidos políticos e os nobres parlamentares, nada disso poderia ter acontecido. Mais grave é a imensa sombra da famosa lista do procurador geral da República sobre os atuais membros do Poder Legislativo. Há muita angústia e apreensão entre vivos e mortos e parentes de mortos sobre os nomes que lá estarão estampados e que muito brevemente serão amplamente veiculados pela imprensa, logo que o relator do processo autorize a quebra do sigilo e aceite os pedidos de investigação. Embora no Direito penal brasileiro, a presunção de inocência seja um princípio basilar, a reputação moral dos nomes que estão naquela lista será profundamente afetada pela sua veiculação. Não há certidão de inocência ou de "nada consta" que ajude a reparar os danos morais provocados pelo estrago da divulgação. Os parlamentares (fala-se em 52 nomes) envolvidos nessa questão tendem a transferir para o governo o ônus desse desgaste e gostariam que os escalões superiores se mexessem. O governo, por seu turno, quer distância dessa matéria, mas quer transferir para os parlamentares o ônus das medidas impopulares do ajuste fiscal. Naturalmente que tem pretensões eleitorais, a médio e curto prazo, não quer saber de marola, se puder fritar o governo no Congresso, fará. Neste filme não tem mocinhos. Só bandidos ou malandros. Ninguém quer ficar com o ônus político da má fama. Só com o bônus.
Esse é o estado de desagregação política e moral da república brasileira. A pior coisa que podia ter acontecido no início de um mandato, com tantos problemas graves a serem resolvidos. Pelo visto, ninguém quer saber do interesse público. Cada um está mais preocupado em se salvar da catástrofe que se avizinha.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
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