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por Silvio Caccia Bava | ||
Houve um tempo em que se definia a democracia como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Os tempos mudaram e a globalização impôs uma nova realidade: as grandes corporações, especialmente as financeiras, controlam as decisões de governo. Elas escrevem as leis e pagam os políticos para que eles façam o que elas querem. Temos assim uma democracia das grandes corporações, pelas grandes corporações, para as grandes corporações.¹
O fato de as decisões públicas estarem cada vez mais alinhadas com os interesses econômicos, e não com as expectativas da população, gera um descrédito crescente, praticamente em todos os países ocidentais, com relação aos partidos políticos, aos parlamentos e aos poderes de maneira geral.
Dados da Transparência Internacional apontam que o povo vê os partidos políticos como as instituições em que menos acreditam, identificando-os como corruptos ou extremamente corruptos. É a opinião de 70% da população da França, 80% da Espanha, 90% da Grécia.
As pessoas se sentem excluídas. Os cidadãos perderam o sentimento de que participam dos governos. Reduziu-se a democracia a eleições que, de quatro em quatro anos, passam um cheque em branco para candidatos que, em sua ampla maioria, não representam seus interesses.
Esse cenário internacional também se expressa no Brasil. As mais recentes pesquisas de opinião sobre esse tema revelam que 78% da população está com a confiança abalada em relação aos políticos em geral; 77%, em relação aos partidos políticos; e 60%, em relação ao Congresso Nacional.² O prestígio dos partidos políticos despencou para 5%; o do Congresso Nacional, para 22%.³ É o sistema político como um todo que entra em colapso.
Não podemos aceitar esse controle da democracia pelas grandes corporações, que criminaliza os atos de resistência democrática e restringe as liberdades cada vez mais. E as pesquisas demonstram que os partidos políticos, todos eles, não estão merecendo a confiança do eleitor. É nesse cenário que irão ocorrer as eleições municipais deste ano.
Quais opções então se colocam para o cidadão e a cidadã que defendem a democracia e os direitos sociais? Muitos estão propensos a se abster, a não votar. Se uma abstenção, por exemplo, de 40% deixasse vagas 40% das cadeiras da Câmara Municipal, esse protesto teria seu peso. Mas não é assim. O resultado dessa abstenção é piorar ainda mais o parlamento municipal, que irá de toda forma eleger os mais votados.
A crise política nacional afeta de muitas maneiras a atual conjuntura. Um de seus efeitos é praticamente ignorar as eleições municipais, que terão lugar em menos de noventa dias. Com o foco no impeachment e na Lava Jato, a grande imprensa ignora tudo o mais. Mas é preciso destacar que esta será a primeira eleição do século XXI em que as empresas estão proibidas de financiar seus candidatos. As campanhas terão de ser feitas nas ruas e dependerão muito das associações, coletivos, movimentos e sindicatos, que articulam a sociedade civil.
Trata-se de uma oportunidade para que a cidadania se reaproprie do espaço da política e venha a constituir, independentemente dos partidos políticos, suas bancadas de vereadores alinhadas com a defesa dos direitos e da democracia.
Enquanto não se realiza uma constituinte independente pela reforma política, é preciso pensar em outras estratégias para enfrentar estas eleições. Uma possibilidade é deixar de considerar os partidos políticos e votar em candidatos e candidatas que tenham uma história de compromissos com os direitos sociais, com os coletivos de defesa da cidadania, com os movimentos sociais, com a democracia. E, assim como existem as bancadas de interesses corporativos no Congresso Nacional – do agronegócio, dos bancos, da bala etc., distribuídas por vários partidos políticos –, teremos as bancadas da cidadania recrutando também vereadores eleitos por vários partidos.
As bancadas da cidadania são importantes nesta conjuntura porque as eleições se dão em um momento em que o governo federal golpista se propõe a cortar profundamente o orçamento das políticas sociais e a facilitar a transferência para o mercado de muitas das políticas públicas a cargo das prefeituras. É o caso do Sistema Único de Saúde, o SUS, que se mantém até hoje como o maior sistema público de atendimento do mundo porque é a população mobilizada nos municípios que o defende. É o caso do serviço público de água e esgoto, um dos alvos prediletos da privatização.
O povo não aguenta mais a mercantilização da vida, a transformação de todos os serviços e equipamentos de que necessita para viver nas cidades em mercadorias. Junho de 2013 foi uma manifestação contra essa mercantilização dos serviços e contra a prática de preços abusivos.
O direito à cidade é cada vez mais importante para garantir o bem-estar da população. As bancadas da cidadania poderão ser uma inovação de grande impacto. Elas serão a expressão parlamentar local, articuladas aos movimentos sociais, da luta pelos direitos e pela democracia.
Silvio Caccia Bava
Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil
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