sábado, 1 de outubro de 2016

A verdade tropical de Jorge Amado


Uma homenagem ao menino grapiúna
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Texto publicado em setembro de 2001, na edição 50 da Revista CULT
por José Arrabal e Eduardo Maretti
Jorge Amado era filho de Ferradas, um distrito de Itabuna, terra do cacau baiano. Nascido a 10 de agosto de 1912, numa fazenda do pai, cedinho foi para Ilhéus, onde viveu a infância junto de sua família. Lá, aprendeu a ler, por artifícios da mãe que mostrava para o filho as palavras nos jornais. Conta a história ou a lenda que, mais tarde, aos 11 anos, numa escola em Salvador, Jorge ouviu de um padre amigo que ele haveria de ser, com certeza, um escritor. Isso porque esse padre lera uma redação que o aluno escrevera sobre o mar, numa de suas aulas. Se profecia ou praga, o justo é que tais palavras do Padre Luiz Gonzaga, no Colégio Antônio Vieira, se cumpriram.
O que ouviu o garoto na escola dos jesuítas não foi, contudo, o bastante para prendê-lo ao estudo. Jorge fugiu do colégio. Indo aos trancos e barrancos pelo sertão baiano, como quem procura mundo, chegou à casa do avô, no interior de Sergipe. De lá, voltou para os pais: “Eu vim certo que ia levar uma surra, mas quando cheguei em casa ele só perguntou por que tinha fugido. Eu disse que não queria mais estudar. Pois muito bem, ele respondeu, você vai para a fazenda”. (declaração publicada no volume dedicado a Jorge Amado na coleção “Literatura Comentada”, da editora Abril)
Carnaval, cacau e sour
Tempos depois, Jorge Amado retorna a Salvador, onde passa a trabalhar nos mais diversos jornais. Liga-se a uns boêmios, todos jovens literatos de uma certa Academia que chamavam “dos Rebeldes”. Com dois desses companheiros – Dias da Costa, mais o Edison Carneiro – publica a novela “Lenita”. Tem 17 anos. Aproxima-se do candomblé. Frequenta, constantemente, os terreiros da Bahia, onde é bem recebido, sempre participando dos rituais com respeito. Consciente dos problemas e das dificuldades vividas pelos trabalhadores nas lavouras de cacau, agora também se torna valoroso anti-racista. Jornalista, ele vive defendendo pais de santo que são presos por somente praticarem suas crenças. Com 18 anos, Jorge Amado se instala na Capital Federal, à época o Rio de Janeiro, para estudar Direito e prosseguir escrevendo. Traz consigo “Lenita”, mais um primeiro romance que já vai além do esboço. Exigências de mudanças tomam conta do país, indicando que é tempo de grande transformação. A Revolução de 1930. No Rio, ele conhece quem já tem nome na praça. Dentre outros, convive com Otávio de Faria e Vinícius de Morais. Além dos dois, Raul Bopp, Carlos Lacerda e, também, Jorge de Lima, Jacobina Lacombe, Aurélio Buarque de Holanda, Santiago Dantas e o primo, Gilson Amado. Aproxima-se, igualmente, de Augusto Frederico Schmidt, poeta e editor, que publica, em 1931, O país do Carnaval, seu primeiro romance. O livro é um sucesso. Recebe apoio da crítica e aceitação do público. Com 19 anos, o estudante de Direito já é escritor respeitado, no rol dos regionalistas, uma literatura que parece perguntar qual a cara do Brasil – não apenas de um Brasil, mas dos Brasis mais diversos, com as suas diferenças e seu povo variado, seus problemas sociais do Oiapoque ao Chuí, Brasil de Gilberto Freyre, deCasa-grande e senzala, de Sobrados e mocambos. Brasil que tinha nas letras José Américo de Almeida, autor de A bagaceira, o pioneiro da moda que vinha lá do nordeste. Mais Rachel de Queiroz e, também, Zé Lins do Rego. Escritores que surgiram, espalhados no país – como Érico Veríssimo e Graciliano Ramos –, indo além do modernismo que nascera desvairado, contudo, meio elegante, na São Paulo da indústria e do café.
Pelo jeito do romance O país do Carnaval, Jorge Amado é levado a se meter na política. Logo vira comunista, desses de carteirinha. Um comunista, porém, que traz em seu coração os amigos e os santos do candomblé da Bahia. Quem leva Jorge ao Partido é Rachel de Queiroz. Em 1933, chega a vez de publicar Cacau. A obra, bem ilustrada, tem destaque bem maior do que o livro anterior. Trata das dificuldades vividas por quem trabalha nas fazendas de Itabuna. O romance é apreendido pela polícia política. Sem demora, é liberado, sendo o seu primeiro livro traduzido no estrangeiro. No mesmo ano se casa com Matilde Garcia Rosa, sua parceira no livro para crianças e jovens, Descoberta do mundo. Ela será mãe de Eulália, primeira filha de Jorge. Após essas duas obras, chega a vez de Suor, no ano seguinte. Agora, é pai e trabalha em jornais e editora, tornando-se tradutor de importantes autores da América Latina.
Jubiabá e prisão
O escritor considera que os três primeiros romances são obras de pouco fôlego, seus “cadernos de aprendiz”. Entende que, na verdade, o salto veio em seguida, ao lançar Jubiabá, em que o confronto social se mescla a outros problemas do dia a dia do povo, à questão do racismo e ao preconceito existente contra as crenças populares. Seu personagem maior, o épico Balduíno, valente líder grevista em Salvador, é o primeiro herói negro do romance brasileiro. Vale a pena ler o livro, ainda que seja a obra um romance de cartilha do realismo chinfrim do Partido Comunista. Jorge, amado, macumbeiro e grapiúna assanhado, mulherengo arretado, é, contudo, um escritor por demais disciplinado às ideias literárias exportadas por Moscou. Ainda que valoroso, na sua dignidade, o seu herói não tem mancha, nem vive contradição, sendo um perfeito panfleto. Um careta, meio chato. Sisudo propagandista das ideias do Partido.
Vale notar, porém, aspectos de gestos largos e alegrias presentes nos modos de nosso povo, já prenunciando seus futuros romances com bem mais sabor de vida, grande sensualidade, gosto de cravo e canela. Mas, para isso, primeiro precisa sair de cena a tragédia stalinista. E, enquanto está presente esse ralo realismo sem virtudes literárias, Jorge Amado se debate, acerta aqui, erra ali, para de novo acertar, nos livros que há de escrever, procurando seu caminho de escritor gigantesco com a cara do Brasil. O que há de encontrar, nos deixando de presente vasta obra preciosa, antes de partir para o céu.
Em 1936, o escritor tem mais um livro na praça. Dessa vez é Mar morto. Neste mesmo ano, Jorge Amado é detido, por causa da insurreição que ocorrera em novembro do ano anterior, o levante comunista denominado Intentona. Sua primeira prisão, dentre tantas outras vezes que foi levado ao xadrez por conta de seus princípios e de suas ideias sociais.  Libertado, ele viaja pela América Latina. Vai aos Estados Unidos. Conhece mil escritores e inicia a amizade que vai durar toda a vida com o chileno Pablo Neruda, companheiro comunista, chileno de fortes versos e futuro Prêmio Nobel. Enquanto está viajando, no Brasil tem publicado o seu sexto romance. É Capitães da areia, a história de Pedro Bala, livro de extrema grandeza, por sinal, atualíssimo. Jamais alguém escreveu outra aventura tão pungente defendendo com tal força, vivacidade e coragem os meninos de rua, menores abandonados, uma tragédia presente ainda nos nossos dias.
Em 1937, participa da campanha para eleger José Américo de Almeida, o autor de A bagaceira, presidente da República. Mas Getúlio dá o golpe e implanta a ditadura do Estado Novo. E, outra vez, Jorge Amado é preso pela polícia. Seus livros, considerados obras subversivas, são queimados pelo exército. Quase dois mil exemplares viram fogueira medonha da sanha obscurantista do fascismo tropical, numa praça em Salvador.
Liberto, em 1938, passa a trabalhar nos mais diversos jornais de São Paulo e do Rio. Ocupa-se plenamente com a atividade política, combatendo a ditadura, denunciando o fascismo, defendendo a anistia dos que ainda estão presos. Se empenha de corpo inteiro para reorganizar o Partido Comunista, um tanto esfacelado pela polícia de Vargas. Contudo, encontra tempo para A estrada do mar, um livrinho de poemas que edita por sua conta e distribui aos amigos. Enquanto vê seus romances traduzidos e editados nos mais diversos países da América, Europa e Ásia, no Brasil tem menos chance, sendo muito censurado. Com Dorival Caymmi e, também, Carlos Lacerda, companheiros de Partido, compõe “Beijos pela noite”, uma bela serenata. Já estamos em 1939.
De comunista a ministro de Xangô
Em 1940, principia ABC de Castro Alves, que será editado logo no ano seguinte, quando, em Montevidéu, e também em Buenos Aires, Jorge Amado já escreve O cavaleiro da esperança, vida de Luís Carlos Prestes, dirigente comunista que se encontra prisioneiro do Estado Novo de Vargas. A obra deve servir à campanha da anistia para libertar o líder. O livro é publicado na Argentina e vendido aos milhares nas cidades brasileiras, através do contrabando. Verdadeira coqueluche. No Brasil, a edição será em 1945.
Mal retorna, Jorge Amado já é preso em Porto Alegre e confinado na Bahia. Mal é solto, prossegue a atuar na imprensa e escreve outro romance, Terras do sem fim. Depois, São Jorge dos Ilhéus. Nesse tempo, se separa de sua primeira esposa. Chega 1945, com a ditadura e o fascismo em frangalhos. Em janeiro, Jorge Amado participa com destaque do Congresso de Escritores que acontece em São Paulo. Um arranjo de notáveis para abrir fogo cerrado contra o Estado Novo. O encontro é um sucesso. E o melhor lhe acontece. Conhece Zélia Gattai, que será sua companheira desde então e para sempre.
Mas, de novo, Jorge é preso. Solto, ele permanece na cidade de São Paulo, onde trabalha na imprensa. Dirige o jornal do Partido. Enquanto, também, publica Bahia de Todos os Santos. Com o fim da ditadura, é eleito deputado. Tem votação estrondosa. Darci Ribeiro tenta uma explicação: “Jorge é o romancista mais fértil do Brasil, entre os bons. É até o melhor deles, por sua invejável capacidade de sintonizar seus textos com o gosto das mulheres das classes médias, que formam a maioria dos leitores brasileiros. Teve, por isso, imensa influência.” (declaração publicada no volume dedicado a Jorge Amado na série Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles). Agora, parlamentar da bancada comunista na Assembléia Constituinte, tem projetos relevantes. Defende e faz aprovar a liberdade de culto. Por causa de Jorge Amado, ninguém mais seria preso por ser filho de Xangô ou fiel a Iansã.
Igualmente, cria lei defendendo os direitos do escritor brasileiro. Mais político que escritor, publica Seara vermelha, um romance panfletário que é dedicado a Prestes. Nele, a salvação é tão somente o Partido. Edita, também, na época, Homens e coisas do Partido Comunista, mais obra de propaganda. De qualquer jeito, um registro que merece atenção, por conter, delineado, o modo de ver a vida para os então comunistas. Ainda que deputado, militante combativo, em 1947, Jorge Amado encontra tempo para se aproximar do cinema nacional, uma de suas paixões. Trabalha em argumentos e até escreve roteiro. Vende para a Atlântida os direitos de filmagem do livro Terras do sem fim, que depois chegou às telas como Terras violentas. Escreve para o teatro O amor de Castro Alves. Mas o melhor desse ano é o nascimento, no Rio, de seu filho João Jorge.
Exílio, Jean-Paul Sartre, Picasso
Por sua vez, 1948 será um ano sombrio, com viradas violentas na vida do escritor. Por força da guerra fria e da farsa democrática que vivia o Brasil, naqueles anos de Dutra, o Partido Comunista, expulso do parlamento, volta à clandestinidade. Não sendo mais deputado por força das contingências, Jorge Amado vai embora, exilado em Paris. Na França, vive com Zélia e com o filho João Jorge. Tem os melhores amigos. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Pablo Picasso e Camus. Se, no Brasil, o governo difama e até proíbe a obra do escritor, no exterior Jorge Amado recebe o justo reconhecimento dos nomes mais importantes da cultura mundial. Viaja por toda a Europa. Visita Moscou. Quando o filho João Jorge completa seu primeiro ano de idade, o escritor exilado escreve o infantil O gato Malhado e a andorinha Sinhá. E, ainda exilado, Jorge Amado não assiste ao enterro de Eulália, a sua filha mais velha, que morre jovem, no Rio. Por pressões da Guerra Fria entre Washington e Moscou, o escritor, em 1950, vê-se expulso da França, por mais que muitos amigos protestem contra a medida. Vai residir em Dobris, no castelo onde funciona a União de Escritores da Tchecoslováquia. Escreve O mundo da paz, um livro de propaganda dos países que estão sob a batuta da Rússia e se dizem socialistas. A obra até faz sucesso. No Brasil, é proibida e seu autor processado. Mais tarde, em 1953, um tanto contrariado com a política de Moscou nessas nações satélites da Europa Oriental, Jorge resolve que nunca mais haverá de publicá-la. Morando ainda em Dobris, escreve, em 1951, uma grande trilogia sobre a dura tragédia que foi o Estado Novo. Três volumes valorosos (.Os ásperos tempos., .Agonia da noite. e .A luz no túnel.) reunidos sob o título de Os subterrâneos da liberdade. Junto a Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, é o que melhor existe, na nossa literatura, sobre a violência da ditadura de Vargas. Também em 1951, em Praga, nasce Paloma, sua filha com Zélia. E, em Moscou, Jorge Amado recebe o Prêmio Stalin, o Nobel dos soviéticos. Retorna em 1952, vindo para o Brasil, depois de breve viagem pela China e Mongólia. Passa a morar no Rio. Traz em seu coração a amizade daqueles que conheceu no exílio. Escritores renomados e gente simples da rua, mais humanistas brilhantes de colorações diversas. Comunistas, democratas e até religiosos. Alguns são até compadres, como Pablo Neruda e Nicolás Guillén.
Mudança de rumo
No Brasil, ele trabalha na Editora Vitória, ligada ao Partido. Dirige a coleção .Romances para o Povo.. Preside a Associa ção de Escritores Brasileiros. É chefe de redação da revista Para Todos. E prossegue publicando seus romances com sucesso. Entre os intelectuais e milhares de leitores, enfim, já é Jorge, amado! Eis que em 1956 abandona o Partido. Quem sabe muito abalado com as denúncias que Krushev faz contra Stalin, em Moscou, no XX Congresso do Partido soviético. Publicamente, garante que deixou a militância porque esse engajamento estava lhe impedindo de ser um escritor mais pleno, mais amplo no seu alcance: .Eu não senti a mesma reação violenta dos outros porque eu já sabia de tudo aquilo que veio à tona em 56. Eu soube de tudo em 54, logo depois da morte de Stalin. Numa das viagens que fiz à URSS, fiquei sabendo de tudo… tinha começado a haver o .degelo. na União Soviética. Ehrenburg tinha escrito seu livro O degelo… (…) Daí em diante, eu passei a pensar com minha própria cabeça. Eu era um homem que tinha vivido o stalinismo, que tinha sofrido o stalinismo.(…) Voltei a fazer minha vida de escritor. Hoje, eu sou político somente como escritor. Não abandonei a trincheira, faço política escrevendo, opinando cada vez que isso me parece necessário e útil…. (Jorge Amado . .Literatura Comentada.) Não se pode negar que abandonar o Partido foi controvérsia difícil, no mínimo complicada. Vale lembrar, inclusive, que, no princípio do ano, Jorge, ao escrever a letra de uma bela melodia do músico Cláudio Santoro, sem dúvida, não em vão, irá chamar a canção de. Não te digo adeus!.. Mas disse adeus ao Partido. Seus romances nunca mais serão os mesmos. Em 1957, trava amizade com a santa Menininha, mãe de santo do terreiro de Gantois, na Bahia. E, sem demora, recebe uma das honrarias mais altas do candomblé. Vira Obá Orolu, um ministro de Xangô.  
Tempo de Gabriela, tempo de morrer
Grande mudança desponta em 1958, com romance vigoroso, obra das mais emblemáticas de nossa literatura e jeito de nossa gente. É a hora e a vez de ampliar o tratamento das relações de poder, indo além de um olhar estreito para as classes sociais. Aliando a liberdade à felicidade, ao carnaval sensual da satisfação da vida. Tempo de Gabriela, cravo e canela e outros perfis de mulheres e de muitos oprimidos, gente marginalizada ao longo da eterna história de um país que mais parece uma grande transação de perversos poderosos, sanguessugas sociais que, numa .tocaia grande ., só querem espoliar as riquezas, o humor e toda a grande alegria do dia a dia do povo. Amado diz: .Há uma mudança séria. Antes, eu buscava o herói, o líder, o dirigente político. Cada vez mais eu acredito menos nessa gente, cada vez estou mais perto do povo, do povo mais pobre, do povo miserável, explorado e oprimido. E das mulheres. Cada vez, eu procuro mais o anti-herói… os vagabundos, as prostitutas, os bêbados.. (Jorge Amado . .Literatura Comentada.) Talvez não haja na história do romance nacional obra mais premiada que a história de Gabriela. Duas vezes é novela de TV. Na Tupi e na Globo. Vai para as telas de cinema. Na maioria dos livros que ainda há de escrever, ele irá colocá-la no centro das atenções, sempre lhe sugerindo ousadias libertárias. Para Dona Flor? Dois maridos! Mais Tereza Batista cansada de guerra. E Tieta do agreste. Entre tantas mulheres que atravessam o mundão de histórias que nos contou. Se algumas infelizes, mal-amadas e perdidas ou beatas moralistas, outras, valentes, guerreiras e amantes fogosas de vasta sabedoria. Todas amadas por Jorge!
Tenda dos milagres
Consagrado, Jorge Amado é voz forte o bastante para impor ao governo o .Dia do Escritor., que é 25 de Julho. Entra para a Academia Brasileira de Letras sem a menor contestação de qualquer outro imortal. Foi várias vezes indicado ao Prêmio Nobel, até mesmo com o apoio de François Mitterrand, presidente da França. Quando vem a ditadura, não abaixa a cabeça. Se os militares pretendem censurar os romances, junto de Érico Veríssimo, protesta com força e coragem, se fazendo respeitar. Não defende só os nomes da grande literatura. Quer liberdade pra todos. E fica indignado, quando vê Cassandra Rios, escritora popular de histórias sensuais, sofrendo com a censura. Com Tenda dos milagres, a história de Pedro Anchanjo, chega a sua melhor obra, conforme ele mesmo: .Trata da questão da nacionalidade brasileira, a miscigenação, a luta contra o preconceito, principalmente o racial, e contra a pseudociência e pseudoerudição europeísta. (…) De meus livros, é o meu preferido, cuja temática mexe muito comigo. Talvez Pedro Archanjo seja, de todos os meus personagens, o mais completo.. (Cadernos de Literatura Brasileira . Jorge Amado)
Sem medo da morte
Se a velhice lhe pega, nem por isso Jorge Amado cessa de escrever. Nem se espanta com a morte, com a qual brincou certa vez, ao escrever a novela exemplar de ousadia e humor: A morte e a morte de Quincas Berro Dágua (1959). Prossegue no seu trabalho. Entre seus tantos livros, romances audaciosos (Tocaia Grande: A face obscura), outros mais bem humorados, ainda que não menos críticos (Farda fardão camisola de dormir), homenagens aos amigos (O capeta Carybé) e aos brasileiros de fora, sempre amados pelo povo (A descoberta da América pelos turcos), mais histórias infantis (A bola e o goleiro). E um livro de memórias (Navegação de cabotagem), uma homenagem à vida. Assim como já escrevera suas memórias de infância (O menino grapiúna). Sente a maior alegria ao ver Zélia, a companheira, também escrevendo livros, excelentes romances. E estimula Paloma, sua filha caçula, a escrever belas obras. Assim como se dispõe a fazer indicações, prefácios e contracapas para jovens escritores que se aproximam dele. Nunca nega seu apoio. Às vezes, ousa conselhos, com modesta consciência do que fez de sua vida: .O escritor brasileiro tem que ouvir o Brasil… (Cadernos de Literatura Brasileira . Jorge Amado) Não para de escrever. Tem projetos de romances que teme não terminar. Um é Boris, o Vermelho, sonho antigo, inacabado. Outro, A apostasia universal de Água Brusca. Sua obra sempre é tema de muita Escola de Samba. E, se não é senhor do Nobel, tem o Prêmio Camões, que recebeu em Lisboa em 1995. A maior das homenagens que se dá a um escritor do idioma Português. Agora que foi embora, sem dúvida, foi para o céu. Quem confirma é Vargas Llosa, o escritor peruano, em depoimento aos Cadernos de Literatura Brasileira: .Quando era jovem, junto com um amigo, brincávamos de adivinhar quais os escritores do nosso tempo iriam para o céu, caso ele existisse. Fazíamos umas listas muito rigorosas, o que nos dava um trabalho dos diabos para elaborar, e o pior era que, cedo ou tarde, os escolhidos encontravam uma forma para que os tirássemos dali. Na minha lista atual, feita há muito tempo, permanece só um nome. E ponho as minhas mãos no fogo de que haja uma só pessoa neste mundo que, tendo conhecido e lido Jorge Amado, lhe ocorra tirá-lo de lá… Nosso grande Jorge Amado! O menino grapiúna!


José Arrabal é jornalista e escritor
Eduardo Maretti é jornalista e escritor

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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