Mércio Gomes - Maio 2016
Eu estava em São Paulo, uns cinco anos atrás, quando ouvi a palavra coxinha pela primeira vez usada para caracterizar uma pessoa. Meu amigo, que mora num bairro de classe média paulistana, rotulou um colega por esse nome e me explicou: “É aquele cara todo certinho, bem formado, com espírito competitivo, ideias moderninhas, carro bom, bem viajado, etc.” Ah, como fulano, eu disse, mencionando uma pessoa que conhecemos com essas características: formado na USP, dono de Audi, fala línguas, sedutor, etc. “Não, não, esse é gente boa, não é coxinha”. “Então como sicrano”, disse-lhe eu mais uma vez mencionando outro conhecido: fez PUC, direito, jornalista, Land Rover velho, aventureiro, etc. “Não, não, quer dizer, talvez, mas ... não.” “Então, quem é coxinha, meu caro amigo?” “É o cara que tem ideias meio de direita, pensa muito em grana e status, frequenta lugares da moda e é meio cuzão”. A palavra cuzão, típica de paulista, ainda não chegou por estas bandas. Também é difícil de explicar para quem não é nativo do linguajar e da cultura paulistanos. É evidente que, naquele momento, nada ficou claro para mim. De algum modo, esse meu amigo me parecia meio coxinha por várias características, mas também não, por outras. Por outro lado, não era cuzão, não, de jeito nenhum.Eu sou oposição ao seu governo, presidenta Dilma, mas eu tenho um contentamento em poder dizer isso na sua frente e dizer que vivo num Estado que se pretende utopicamente em realidade, em transformação, de ser um Estado democrático.
Atriz Letícia Sabatella, em discurso no Palácio do Planalto, 31 de março de 2016.
Passados uns tempos, comecei a ouvir a palavra sendo vocalizada mais frequentemente. Logo entendi. Coxinha é a pessoa que não se afina com o PT, ou com partidos que fazem parte diretamente dos governos do PT, ou com o apoio ao governo atual. Coxinha, consequentemente, é o cara marcado como de direita, mas também como de uma esquerda infiel por não ser PT, nem PSOL, nem PCdoB. Cuzão, ainda não entendi direito. Certamente é alguém que você pode até gostar, mas não admira de jeito nenhum, por talvez ser meio bobão, um tanto babaca, sem noção, além de fazer certas coisas que podem levá-lo a ser caracterizado como mau caráter, outra expressão dirigida a gente com suspeitosos defeitos.
Nos últimos tempos coxinha virou um epíteto acusatório, e a palavra corre solta pelas redes sociais. Sob muitos aspectos, no calor das disputas político-ideológicas do momento, coxinha se opõe a mortadela, que representa o sanduiche doado aos participantes de passeatas de sindicalistas, ou petralha, palavra criada pelo jornalista Reinaldo Azevedo, que seria o petista radical (para Reinaldo, mancomunado ou insensível às roubalheiras de políticos dos governos do PT), que não vacila por suas convicções, suas benesses e seus heróis. Ou que se tornou um ferrenho militante do governo atual.
Acontece que não se precisa ir muito longe para se compreender que aquilo que as pessoas dizem de si mesmas e aquilo que falam sobre os outros está quase sempre em polos opostos. A autoimagem do indivíduo é sempre delineada por um desejo muito grande de se parecer sempre bem, de quem os melhores adjetivos podem ser servidos para caracterizá-lo. Já, ao contrário, a imagem do outro é carregada de tintas foscas, melhor assim para não fazê-lo brilhar. Portanto, é fácil se autoenganar e não saber as motivações mais recônditas de sua alma.
Um dos aspectos psicológicos que mais afastam a pessoa de sua realidade é não conseguir se inserir no contexto em que está, seja por ignorar sua própria história coletiva, seja por desconsiderar sua própria vivência. Daí o “nunca antes na história deste país” e o “é só você querer”, duas expressões tornadas clássicas pelo uso frequente nos últimos anos pela hostes petralhas. Portanto, nessas circunstâncias, é fatal a autoenganação. Como já demonstrou o biólogo Robert Travis, a autoenganação, por ser inconsciente, não é desvirtude dos parvos, ao contrário, serve aos espertos para criar uma vantagem para si. Você nem sabe que está se autoenganando porque o resultado disso é que você está se saindo muito bem.
Esse é o caso de quem acusa o outro de coxinha ou de petralha. Frequentemente a pessoa partilha das mesmas condições sociais e culturais para ser merecedora de qualquer dos epítetos, mas se autoengana ao não se incluir nessas circunstâncias para melhor acusar os outros de uma característica que ele supostamente não detém. Diferença fundamental: o coxinha é acusado de ser elitista e não querer a ascensão do povo; o petralha é visto como um fanático por um líder, mas que no fundo quer é ficar no poder.
É preciso que fique claro que esse debate de acusações se dá exclusivamente no âmbito de segmentos de uma mesma classe social brasileira. As pessoas que se acusam mutuamente de coxinhas ou petralhas são quase todas da mesma classe social, partilham das mesmas condições educacionais e participam do mesmo panorama cultural. Isto é, é gente da classe média brasileira falando de gente da mesma classe média brasileira. Muitas vezes são pessoas da mesma família.
O povo trabalhador está, até o momento, totalmente divorciado dessas acusações. Acontece, apenas, que uma, digamos, facção da classe média está com o PT e seu governo e a outra não está; uma acha que o governo foi eleito e deve continuar, a outra acha que o governo perdeu a legitimidade por crimes administrativos e outros. Uma espera muito desse governo, a outra nunca esperou ou não espera mais grandes coisas. Uma acha que sem o PT o Brasil não existiria com a configuração que tem hoje, a outra acha que o Brasil nunca precisou do PT para se ter a si mesmo, e, sem o PT, com outra visão, teria outra configuração, quiçá até mais bem disposta. E, no processo de autoenganação, cada qual acredita piamente que o Brasil ou está passando pelo perigo de um golpe político e uma possível volta a tempos autoritários, ou está irremediavelmente afundado na corrupção e na autodestruição.
Em outras épocas, quando a discussão política girava em torno de questões levantadas pela temática do marxismo, os atuais coxinhas seriam chamados de pequenos burgueses; e os petralhas de comunas. As discussões eram igualmente virulentas, mas os termos eram diferentes, soavam teóricos e altissonantes. Quem tem razão, Jean-Paul Sartre ou Raymond Aron, por exemplo; Florestan Fernandes ou Gilberto Freyre, outro exemplo. Mas o marxismo deixou de ser o pano de fundo das discussões políticas, tendo sido substituído por uma linguagem propositadamente difusa e imprecisa, porém não menos politicamente influente, característica das contribuições dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Michel Foucault, como veremos abaixo. Aí, a discussão, quando esbarra num beco sem saída, naquela zona em que a razão discursiva dá vez à crença, deteriora-se para o deboche.
O fato é que a visão marxista do Brasil foi ultrapassada nas discussões e celeumas da atualidade por uma visão filosófica e política pós-moderna, onde a temática de classes, soberania política, desenvolvimento econômico e responsabilidade individual foi, se não substituída, ao menos diluída por uma nova temática difusa de coletividades localizadas e minoritárias, conexões infrassubjetivas (rizomáticas) entre sujeitos políticos, consumismo como base da produção econômica, desconsideração do sentido histórico dos povos e nações e, enfim, uma espécie de fuga coletiva da responsabilidade do indivíduo, agora definitivamente considerado refém da máquina do mundo. É desconcertante, no Brasil de hoje, ver um velho intelectual marxista perorando sobre o caráter revolucionário da classe trabalhadora, assim como, na década de 1950, era já penoso ouvir um defasado intelectual positivista descortinar sua erudição sobre a história inexorável da evolução da humanidade. Hoje, a classe trabalhadora é considerada um conjunto maleável de minorias e subjetividades múltiplas que se identificam como trabalhador caso isto lhe convenha, independente de sua real, objetiva, posição socioeconômica na sociedade. Um ricaço pode virar trabalhador, porque, afinal, ele se conecta com o mundo do trabalho.
Parece muito longe o tempo em que brasileiros de esquerda davam algum valor para uma sociedade que adotasse uma economia com algumas características do tipo socialista. Hoje em dia, qualquer modelo de economia comunista ou socialista não é levado em consideração por ninguém, a não ser, romanticamente, para Cuba e, com desprezo, para a Coreia do Norte. Entretanto, ainda que dominante, no Brasil, o capitalismo brasileiro continua impregnado de instituições de ordem patrimonialista e clientelista, de modo que a discussão sobre o modo capitalista de se exercer nas sociedades só penetra nos debates sobre o Brasil de soslaio e frequentemente para servir de boneco de judas no sábado de Aleluia.
Quase todo mundo acha, por exemplo, que a economia brasileira precisa adquirir mais produtividade, porque a maior produtividade é um ganho econômico que reverbera no plano social. Entretanto, logo que o tema é acolhido para se transformar em política pública, dá-se a primeira objeção de cunho ideológico (capitalismo com clientelismo): isto não pode acontecer, pois vai provocar uma maior exploração do trabalhador. Os economistas que se assumem capitalistas, chamados de conservadores, propõem que haja mais investimentos em aplicação de tecnologia, em melhora na organização interna das empresas e numa competitividade maior entre elas. Como método, isso significaria mudar a gestão do trabalho, reforçar a sua contabilização, ampliar a educação técnica, destravar a burocracia e os impostos e, no plano mais geral, reequacionar a relação entre trabalhador e a previdência.
Pontos pacíficos? Nada disso. Na discussão atual o economista formado nas universidades públicas brasileiras só concordaria se essas mudanças viessem para serem aplicadas às empresas privadas, e não às estatais, como a Petrobrás, ou ao serviço público, como as universidades. Teme-se por corte de empregos e perda de direitos adquiridos. No exagero, colocar-se-iam em risco direitos pétreos constitucionais. Por sua vez, quando confrontado com a facilitação de verbas públicas do BNDES para algumas poucas empresas, o economista com vergonha de se mostrar capitalista só aceitaria se tal política tivesse como finalidade fortalecer as empresas estatais.
Enfim, para dizer o mínimo, os economistas não se entendem no Brasil há muitos anos. Os economistas de esquerda ainda carregam consigo o trauma da imposição econômica feita durante o período da ditadura militar e, ao procurar proteger os direitos trabalhistas existentes, acobertam a influência do clientelismo de classe, especialmente os direitos de empregos de classe média. Por sua vez, os economistas capitalistas não suportam mais a tendência do governo em proteger as estatais, mas torcem a cara para acusações de favorecimento do patrimonialismo, que é o amparo da classe alta. Eis por que, ao contrário dos Estados Unidos, onde a política nacional se concentra numa discussão sobre ética e identidade nacional, a economia no Brasil ainda é o principal osso de disputa na nossa liça política, não porque haja dúvidas sobre o domínio do capitalismo em nosso país, mas porque o tema está encoberto de subterfúgios e autoenganações para fugir das questões do patrimonialismo e do clientelismo de classe.
Voltando à fofoca, mesmo pertencendo à mesma classe social, em sua diversidade estética e de propósitos, há alguns motivos para alguém ser rotulado de coxinha ou de petralha. O petralha mais renitente é em geral um membro do governo do PT, ou de algum partido a ele relacionado, ou de alguma ONG que aufere recursos do governo, ou do estrato social que depende do Estado. O menos renitente pode ser um funcionário público, um sindicalista de classe média, ou um membro da geração que sentiu tão arduamente as agruras políticas e culturais do período ditatorial que, passados 50 anos, ainda lamenta por sua existência atual. Em muitos casos, o petralha mediano sabe fazer o jogo político e pode correr de um governo a outro sem muita dificuldades. Muitos militantes do petralhismo vieram do tempo do governo FHC, ou antes até.
Faz diferença cultural ser um petralha ou ser um coxinha. Há os puros-sangues petralhas intelectuais, como os professores, estudantes e funcionários públicos que cultivam um discurso de origem marxista porém já encharcado pela penetração triunfante das propostas filosóficas de Deleuze e Foucault, como dito acima. Estes, inesperadamente, por mais que incompreensíveis sejam para a grande maioria dos seus leitores, se esparramaram e se diluíram de muitas formas pela sociedade letrada brasileira, talvez porque se coadunassem como parte das condições econômicas, políticas e culturais dos tempos atuais, tempos pós-modernos.
Os conceitos e argumentações desses autores se tornaram pedras angulares do comportamento social e do pensamento ideológico atual, tal como o sentimento prevalente de que todo comportamento humano é dominado pela vontade do poder; que a vida em geral está em eterna transformação sem nenhum sentido, portanto, é algo indefinido; que o ser humano (e também a sociedade e a nação, qualquer que seja ela) não possui propriamente uma identidade, mas tão somente multiplicidades ou o potencial múltiplo de contínuas variações de variações de “identidades” segundo suas conexões “rizomáticas” com outras multiplicidades, e, para encurtar, que é inútil e fantasioso buscar algo verdadeiro, pois a verdade não passa de uma asserção discursiva momentânea que interrompe o fluxo de olhares e perspectivas, e que, no fundo, só serve a quem a emite (favor ler de novo a epígrafe deste artigo).
Por sua vez, essa visão filosófica se faz extremamente atraente porque estimula uma abertura ilimitada para uma espécie de libertarianismo existencial, cultural e político, e contém altas doses de promessas de autonomia do homem. Por exemplo, no plano político-cultural, para os seguidores conscientes ou inconscientes de Deleuze, só os segmentos sociais que estão por baixo ou à margem de alguma situação de poder social estabelecido — mulheres, minorias étnicas e sexuais, e o que Marx chamaria de lumpenproletariado — se constituem por aquilo que Deleuze chama de devir, i.e., o ímpeto de mudança, de dispersão e de adaptação — portanto, de espírito crítico e de criatividade. Os demais segmentos sociais de algum modo estabelecidos estariam condenados a estiolar em seus míseros e desbotados lugares do não-devir, numa pretensa autossuficiência própria a uma sociedade capitalista (aliás, capitalista aqui é palavrão mais feio do que quando emitido por um stalinista).
Nessa atmosfera político-filosófica, com consequências sobre o pensamento e o comportamento dos brasileiros de várias gerações pós-1970, petralhas ou não, há algumas variações do pensamento que se assentam no campo teórico de um pós-marxista como Pierre Bourdieu, para fortalecer a ideia de que, nas condições atuais de vida, tudo é embate, tudo é tensão, tudo vem carregado de subterfúgios e manobras.
E, ainda que com menos popularidade, penetra nesse comportamento pós-moderno a visão de que a vida é um conjunto de ações que se interpenetram como numa rede, tal qual se vê nas comunidades da internet, de conexões praticamente infinitas, onde os interesses de cada um (pessoa, instituição, grupos) se assumem e se dissimulam para melhor tirar vantagem e estão à espreita dos incautos para pegá-los de surpresa. Em suma, este espírito do nosso tempo brasileiro de classe média nos faz conviver com espectros de todos os tipos e por todos os lados, fazendo do mundo (sua cidade, sua comunidade, até seu próprio lar) não somente uma arena de competição, mas um lugar onde prevalece um sentimento próximo do paranoico e faz do constante embate sua razão de ser. Não é por outro maior e mais profundo motivo que emergiu o discurso vocalizado de vários modos pelos mais eminentes intelectuais acadêmicos brasileiros segundo o qual a história do Brasil tem sido desde sempre uma farsa completa — no caso, para alguns, só redimível pela chegada do PT.
O pensamento acima delineado, que podemos cognominar de “marxista-deleuziano” (por mais que logicamente contraditório isto pareça ser), perpassa com maior ou menor intensidade a sociedade brasileira letrada, de classe média, que está nas ruas em protesto. No caso dos chamados coxinhas, a variação desse pensamento tende a se opor um tanto aos seus pontos mais radicais, isto é, aqueles que recusam a identidade do ser. Pudera, dado o predomínio desse discurso, os coxinhas estão na defensiva — mas ao menos querem que o ser tenha identidade palpável.
Entretanto, é preciso apontar desde já que há dois tipos de coxinha: os de esquerda e os de direita. Os de esquerda tomam como base a velha dialética marxista, à la Lukács ou Sartre ou até à la Bourdieu, mas fugindo dos filósofos já mencionados, agrupados como filósofos da diferença. Acham que entre esses últimos, por insistirem na volatilidade do comportamento e da verdade, falta-lhes sentido ético, por um lado, enquanto prevalece um ilusório radicalismo teórico, por outro. Os coxinhas de esquerda detestam as linguagens próprias de cada um dos filósofos da diferença, cheias de conceitos inusitados e aparentemente contraditórios, os quais consideram todos carregados de certa ambiguidade e inconsistência, difíceis de serem monitorados por quem não se dedica profundamente às novas e cambiantes palavras dos mestres. Os coxinhas pensam que Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro, ainda que de gerações diferentes e inclinações políticas distintas, pensam o Brasil por uma veia culturalista que lhes permite sentir na história do Brasil uma realidade em formação e algum conforto para sua existência atual. Coxinhas esquerdistas, já calejados por prévias ilusões políticas, principalmente a comunista, pensam que só com uma afirmação cultural radical é que o destino do Brasil pode encontrar seu caminho de desenvolvimento. Por conseguinte, consideram que a democracia é uma negociação política razoável e que as formas atuais do capitalismo devem ser acatadas como parte da modernização do Brasil, apenas para serem submetidas aos contornos mais característicos da identidade brasileira — que, aliás, deve se constituir.
Já os coxinhas de direita, ainda não bem assumidos, ou, quando assumidos, um tanto estrepitosos, estão buscando em autores conservadores um caminho mais seguro para a vida que veem se desenrolando pelo mundo. Uma vida que lhes parece caminhando para um abismo pela falta de fé cristã e pelo afã de mudanças e do consumismo. Filósofos como Roger Scruton, Eric Voegelin e o brasileiro Olavo de Carvalho são ícones do conservadorismo brasileiro, ou melhor, neoconservadorismo, que se descortina na atualidade. Os neoconservadores brasileiros, apesar de sua estridência verbal e política, se preparam a cada dia para produzir ideias e novos autores que um dia possam ser reconhecidos e influenciar os destinos do Brasil, tal como, imaginam, já o foram Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) e Vicente de Carvalho, entre outros. Do ponto de vista político-econômico os coxinhas de direita acatam as condições e exigências clássicas do capitalismo liberal ou socioliberal, se tal ainda puder existir.
Assim, os coxinhas vêm de duas direções opostas. E há evidentemente uma briga política se oferecendo como palco dessa intensa, obtusa e insciente contenda intelectual de bastidores brasileiros. Por enquanto os coxinhas de direita e esquerda tocam o banjo no mesmo diapasão porque aparentemente têm um adversário comum formidável — os petralhas, que, com o poder, ainda que, aparentemente, a escorrer entre os dedos, se apresentam com um vigor fantástico, com a gana de quem quer sobreviver. Entretanto, em breve, a aliança inopinada desses contrários — Bolsonaro e Gabeira, para exemplificar — se quebrará, na medida em que a causa petista for perdendo o fôlego e diminuindo a resistência à perda de poder, no caso, tanto político quanto intelectual. É muito provável que boa parte do atual quadro do petralhismo, os gentis filopetistas que se apresentam como denodados defensores de uma democracia unívoca, só possível sob o petismo, debandem para as hostes dos atuais coxinhas de esquerda em busca de uma nova visão de esquerda, mais aberta e mais generosa, na medida em que forem se dando conta de sua desconfortável posição filosófica.
Seja como for, atirando ao ar esse jogo de acusações mútuas que cada vez mais vai se transformando em lixo da história, vem chegando a hora de o Brasil não mais poder fazer vistas grossas para a nossa inusitada situação política, econômica e principalmente cultural. Na política a principal novidade é o reconhecimento cabal, por provas evidentes, da corrupção que nos atinge de um modo avassalador. Abrir a janela da verdade está nos levando para o sufoco do fedor que nos penetra, porém, em consequência, nos empurrando para a tomada de atitude determinante. A segunda é a necessidade irrecorrível da transparência do Estado, com tudo a que isso se refere. Na questão econômica está evidente a necessidade de se reconhecer que o desenvolvimento do país exigirá um novo modelo da relação entre capital, trabalho, tecnologia e o estado brasileiro, bem como novos métodos de trabalho, de apuração de lucro, de investimento do capital e de distribuição da riqueza privada e social. E no plano cultural, haveremos de nos orientar em torno de um comprometimento firme entre o povão trabalhador e a classe média construtora de um novo discurso político e cultural. Esse comprometimento deve se pautar não só pelas chamadas políticas de compensação e de direitos humanos, mas sobretudo por uma política educacional que reconheça de cara, para melhor superá-lo, o papel nefasto do professorado (de origem majoritariamente da classe média) na educação da população pobre brasileira. Papel este exercido por uma retórica de esquerda (o Estado opressor), esquentada por discursos de direitos de trabalhadores (o Estado como patrão), mas que serve só a si próprio, irresponsavelmente relegando seus deveres e comprometendo as mínimas chances de fortalecimento da classe trabalhadora e de sua integração na civilização brasileira.
Portanto, que nos desarmemos todos das mútuas acusações tolas e das firulas de palavreado que nos dominaram nos últimos tempos, e partamos para o que interessa: repensar o Brasil sob um novo paradigma a ser construído depois da iminente borrasca que se nos avizinha, não só por um possível impeachment da presidente do Brasil (ou sua continuidade como pato manco), mas também pela indefinição paralisante sobre como sair do declínio econômico e da depressão cultural que nos acometem.
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Mércio Gomes é antropólogo.
(Publicado originalmente no site Gramsci e o Brasil)
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