Hoje, faz uma semana que o povo da Catalunha, uma comunidade autônoma que integra o Estado espanhol, foi chamado a votar num plebiscito que deveria decidir se essa comunidade se separava ou não da Espanha, se se tornava uma nação independente. Composta por quatro províncias (Barcelona, Lleida, Girona e Tarragona), tendo como capital a cidade de Barcelona, a Catalunha possui uma população de 7 milhões e 526 mil habitantes, segundo o censo de 2016. Ela é, desde o século XIX, uma das regiões mais ricas e industrializadas da Espanha, beneficiada pela localização estratégica do porto de Barcelona, um dos maiores do mar Mediterrâneo.
O nacionalismo catalão tem profundas raízes históricas, já que o território que hoje compõe a comunidade autônoma da Catalunha, estabelecido pela Constituição de 1978, que pôs fim a longa ditadura de Francisco Franco e do franquismo (1939-1977), já viveu independentemente sob muitas formas de organização política. Já em 817, o conde de Carcassone, Vilfredo I de Barcelona, recebe de Carlos II, neto de Carlos Magno, rei dos francos, o condado de Urgell-Cerdanya, que no século XI será nomeado de Condados Catalães. Posteriormente, na condição de parte do reino de Aragão, devido o casamento, em 1137, do conde Raimundo Berengário de Barcelona com a princesa Petronila de Aragão, a Catalunha mantém seu status de reino autônomo e associado, mesmo quando, em 1474, os reis católicos Fernando II de Aragão e Isabel I de Castela passam a reinar sobre todos os reinos hispânicos. No reinado de Felipe IV, no mesmo período em que Portugal empreende a guerra de Restauração (1640-1652), buscando se separar do domínio espanhol, acabando com a chamada União Ibérica, explode na Catalunha a chamada guerra dos Ceifeiros (Segadores em espanhol), por ser chefiada por um deles, que contestava a presença de tropas castelhanas em solo catalão para guerrearem com a França, na chamada Guerra dos Trinta Anos. Foi em homenagem a esse episódio que, em 1892, o músico Francesc Alció compõe “Os Ceifadores”, o hino catalão. Mas foi em 01 de setembro de 1714, que, diante de mais uma tentativa dos catalães de se separarem da monarquia hispânica, o rei Felipe V, após derrotar militarmente o conde de Barcelona, suprime toda e qualquer forma de independência catalã, revoga suas leis, submetendo-a às leis castelhanas, proibindo o uso da língua catalã, uma língua derivada do latim, cujos primeiros registros escritos e eruditos remetem aos escritos do poeta, filósofo e teólogo Raimundo Lúlio, em plena Idade Média (por volta do ano 1162), eliminando todas as instituições e autoridades políticas locais. Em todo dia 01 de setembro, os catalães relembram o fim do cerco da cidade de Barcelona e sua capitulação para os exércitos castelhanos, é o chamado dia da Diada Nacional (expressão que remete a alteridade, divisão), que foi transformado, desde o século XIX, no principal símbolo de resistência do nacionalismo catalão, mesmo comemorando uma derrota, o que parece contraditório.
Com a industrialização e modernização da Catalunha, no século XIX, com o surgimento de uma burguesia liberal, o nacionalismo catalão renasce, notadamente sob a inspiração do romantismo, que idealiza o passado medieval e condal do território catalão. A língua catalã é retomada e modernizada. É a chamada Renaixença Catalana. Em 1914, após grande movimentação separatista capitaneada pela chamada Liga Regionalista, chefiada por Enric Prat de la Riba, chamado de Igualada, os catalães conquistam seu primeiro Estatuto de Autonomia (chamado de Mancomunitat), através do qual permanecem federados ao Estado espanhol, mas voltam a possuir uma legislação própria, a poder utilizar publica e oficialmente sua língua e a possuir instituições próprias de governo. A Catalunha amplia sua autonomia quando da vitória das forças republicanas e de esquerda nas eleições de 1931, após a queda da ditadura fascista de Primo de Rivera, que havia promovido mais um período de perseguição ao nacionalismo catalão. No entanto, a vitória de Francisco Franco na guerra civil espanhola (1939) lançou o nacionalismo catalão na ilegalidade, a repressão se abateu sobre a Catalunha, que foi o último território a ser conquistado pelas forças franquistas. O presidente catalão (aquele que ocupava a Generalitat, que é o órgão máximo de governo), Lluis Companys, que havia fugido para a França, foi capturado pelos nazistas, quando eles conquistam o território francês, e entregue a Franco, que o fuzila. Quando do fim do franquismo e da queda da ditadura, a Catalunha reconquista o estatuto de autonomia. Durante a ditadura chegam a se formar grupos que fazem ações terroristas, que se dissolvem, definitivamente, em 1982, às vésperas da celebração das Olimpíadas, em Barcelona.
No entanto, a crise econômica global e a não aprovação de pelo Superior Tribunal de Justiça (o equivalente ao STF no Brasil) de um novo estatuto de autonomia, aprovado inicialmente pelo Parlamento da Catalunha, em 2005, e posteriormente em referêndum pela população catalã, no ano de 2006, com mais de 73% dos votos, e pelas Cortes espanholas (Câmara dos Deputados e Senado), nesse mesmo ano, deu início a um processo progressivo de radicalização por parte de lideranças políticas catalãs, que levou ao atual momento. O partido que governa atualmente a Espanha, o Partido Progressista (PP), partido de direita, foi o responsável diretamente pela queda do novo estatuto de autonomia, ao recorrer ao Superior Tribunal de Justiça, à medida que foi derrotado no Parlamento. A falta de diálogo entre o primeiro ministro espanhol, Mariano Rajoy e as autoridades catalãs, representadas pelos partidos nacionalistas catalães, (somente o Partido Socialista Catalão consegue vencer eleições na Catalunha, dominada pelos partidos catalanistas), explica muito esse processo. A Catalunha, por sua própria história, sempre tendeu a ser politicamente mais alinhada a esquerda (durante a guerra civil espanhola, a Catalunha foi governada, por um curto período, por uma aliança entre socialistas e anarquistas e é da Catalunha o grande educador anarquista Francisco Ferrer, fuzilado pela ditadura de Primo de Rivera). O nacionalismo catalão se apoia muito no fato de que é da Catalunha que sai grande parte da arrecadação de impostos que sustenta o Estado espanhol.
A Catalunha e o país Vasco, desde o século XIX, se constituíram na base de sustentação da economia espanhola. Nos momentos de crise do capitalismo os conflitos distributivos se acirram. Tendo capitaneado, nos últimos anos, uma dura política econômica de estabilização da economia espanhola, profundamente endividada, apoiada no ideário neoliberal, os governos do PP aprofundaram os conflitos entre as comunidades autônomas (o que no Brasil equivale aos estados) por recursos, obras e distribuição de competências. O novo estatuto, votado em 2006, já nascia de uma reação dos nacionalistas catalães ao que julgam ser a espoliação constante feita por Madrid (uma cidade localizada numa das regiões mais áridas e pobres da Espanha: a meseta castelhana). Para os catalães Madrid se sustenta às custas das riquezas da Catalunha. Há muito de demagogia e oportunismo, por parte da elite política catalã, ao se utilizar do nacionalismo para se manterem no poder. Sabemos que os problemas que o capitalismo gera são globais, não será o separatismo que levará a solução dos problemas trazidos por essa nova etapa desse sistema: desempego; crescimento da miséria; precarização dos serviços públicos e das condições de trabalho; crescimento da insegurança física, laboral e existencial, notadamente entre os jovens; individualismo, competitividade e esgarçamento dos laços sociais; alienação e angustia coletivas com a falta de perspectivas de futuro, num mundo sem horizontes e utopias; ataque ao Estado de bem-estar-social, à previdência social e as políticas sociais, tornando a velhice uma etapa ainda mais dolorosa. Os nacionalistas catalães, com boas ou más intenções, canalizam para o separatismo a solução de todos esses problemas, quando não será a constituição de uma nação, ainda menor e sem grande força no cenário inter enacional, que solucionará esses problemas. As frustrações pessoais e coletivas são canalizadas contra o Estado espanhol que ao agir repressivamente e de modo truculento só reforça esse nacionalismo. Num momento que precisamos constituir uma cidadania global, para salvarmos a própria espécie de extinção, não me parece que a aposta em nacionalismos e regionalismos, que só faz nos dividir, ainda mais, seja a solução.
No entanto, não posso deixar de registrar minha profunda admiração pelas demonstrações de cidadania, de civismo, de resistência, de dignidade e de brio dadas pelo povo catalão nos últimos meses e, notadamente no último domingo e nos dias que o seguiram. Mesmo tendo sido aprovada no Parlamento catalão uma lei que permitia a realização do plebiscito, ele foi considerado ilegal pela Tribunal Constitucional da Espanha. Apoiado nas decisões judiciais, tomadas inclusive pelo judiciário catalão, o governo espanhol, com o apoio de três dos quatro maiores partidos do país, ditos constitucionalistas (o PP, o PSOE e Cidadans, partido que nasceu na Catalunha combatendo o separarismo), iniciou um processo de repressão que buscou impedir a realização do plebiscito. Autoridades do governo catalão foram processadas e intimadas a comparecer perante ao equivalente ao nosso Ministério Público (a Fiscalía). Num caso inédito, mais de 700 alcaides (o equivalente a nossos prefeitos), que se dispuseram a ceder prédios públicos para a instalação dos locais de votação, foram intimados a prestar depoimento e processados por prevaricação e desobediência civil. A autonomia orçamentária e financeira da Catalunha, prevista na Constituição, foi na prática suspensa, à medida que o governo espanhol passou a controlar todos os pagamentos, visando impedir que as autoridades catalãs conseguissem adquirir as urnas, computadores e outros materiais necessários à realização do plebiscito. Os funcionários públicos da Catalunha começaram a ser ameaçados com processos judiciais, demissões e de seus salários não serem pagos. Forças policiais foram autorizadas a invadir prédios públicos e, inclusive, gabinetes de autoridades e parlamentares catalães, para apreender urnas, cédulas de votação, computadores e qualquer material de propaganda do plebiscito. Os sites oficiais do governo catalão e qualquer página na internet falando do plebiscito ou defendo o voto sim, a favor da separação da Espanha, foram retiradas do ar. O governo da Espanha, diante dessas medidas, anunciava solene que não haveria plebiscito no dia 01 de outubro, pois haveria desmantelado a infraestrutura e cerceado as fontes de recurso para que isso ocorrera. Ainda, na madrugada do domingo, dia 01 de outubro, um juiz na Catalunha ordenou o fechamento de todos os locais onde pudessem se instalar as urnas, por parte dos Moços de Esquadra (a polícia nacional da Catalunha), ainda nas primeiras horas do dia. Já no sábado se dizia que cerca de 1.300 locais de votação, dos 2.600 previstos teriam sido fechados pela polícia.
No entanto, no domingo, apenas 700 locais não funcionaram. O plebiscito aconteceu. Dos mais de 5 milhões de eleitores aptos a votar, cerca de 2.2 milhões compareceram a votação, apesar da dura repressão que se abateu sobre os eleitores catalães. Dos votantes, mais de 90% foram favoráveis a separação da Catalunha. Como isso foi possível? Através de uma mobilização cidadã que merece ser conhecida para servir de exemplo. À medida que a repressão judicial e governamental se abatia sobre as autoridades catalãs, a organização do plebiscito foi sendo assumida pela sociedade civil. Inúmeros comitês pela realização do plebiscito foram criados em toda a Catalunha. Eles foram responsáveis por realizar as grandes manifestações públicas, as grandes passeatas em favor da independência, culminando com as grandes manifestações realizadas em todas as cidades catalãs no dia da Diada, dia 01 de setembro, justamente um mês antes do plebiscito. Eles foram responsáveis por criarem, em tempo record, novos sites para orientar a população sobre o plebiscito, fazendo a propaganda do Sim, mas também indicando locais de votação, inclusive dando orientação de como enfrentar a repressão policial, à medida que os sites oficiais eram retirados do ar. Na véspera da votação, eles levaram a população a ocupar inúmeros locais de votação para impedir que a polícia os ocupasse. As urnas e cédulas de votação, que o governo espanhol achava que havia apreendido todas, chegaram sem muito espalhafato pela fronteira da França, e foram estocadas em prédios particulares na pequena cidade de Eine. Para chegarem aos locais de votação em toda Catalunha, com todos os carros oficiais sob arresto, com as autoridades e com as estradas sob vigilância, as urnas e cédulas foram transportadas por particulares, num verdadeiro trabalho de formiguinha. O material ia em porta-malas, sob bancos de veículos, escondidos em cargas de caminhões, vans, carros baús, na semana que antecedeu a votação, sendo armazenadas em casas particulares, armazéns, igrejas, bares, restaurantes, para finalmente chegarem aos locais de votação na manhã do dia 01 de outubro, sob aplauso da população, que já se aglomerava em frente a esses locais, para tentar barrar o acesso dos policiais que vinham tentar confiscar o material.
Para facilitar a votação e burlar a possível apreensão das cédulas de votação, diversos sites permitiam a impressão antecipada da cédula, tendo o eleitor que levá-la até seu local de votação e depositá-la na urna assinando a lista de presença. O esforço da população em defesa das urnas e de seu direito de votar foi emocionante. O governo espanhol mandou para a Catalunha um espantoso contingente da Guarda Civil e de agentes de segurança do Estado, que perpetraram uma brutal repressão. Diante da resistência pacífica da população catalã, os policiais agrediram indiscriminadamente velhos e velhas, crianças, jovens, homens e mulheres que defendiam com seus corpos os locais de votação. Atacaram as pessoas com cassetetes, balas de borracha, ferindo gravemente os olhos de um jovem, gás lacrimogêneo. Arrastaram as pessoas pelo asfalto, chutaram e bateram com os escudos no rosto e na cabeça das pessoas. Ao final do dia, mais de oitocentas pessoas estavam feridas. Diante da brutal repressão o governo catalão autorizou a votação em qualquer local, mediante o uso de uma lista universal de eleitores, ou seja, os locais de votação passaram a utilizar uma lista que incluía não apenas os eleitores daquela sessão, mas de todos os votantes possíveis. Em vários locais, diante da iminente invasão do local pela polícia, as urnas foram retiradas pelas portas do fundo e por janelas e instaladas em outros locais cedidos por particulares. Em Santa Coloma do Penedés, uma urna foi deslocada para um restaurante e para justificar a aglomeração de pessoas se improvisou um show com um artista local. Em Barcelona, uma senhora causou constrangimento a um policial, ao beijar-lhe na boca quando ele a atacou. Os Moços de Esquadra e os bombeiros catalães se negaram a reprimir a população e foram aplaudidos em vários locais, eles chegaram a entrar em conflito com a Guarda Civil espanhola quando esta atacava dados manifestantes. Em algumas cidades catalãs a população em marcha e gritando “Fora, Fora”, colocaram os policiais para correr. Nos dias que se seguiram, diante da indignação com a violência policial, vários hotéis e hospedarias expulsaram os guardas civis de suas dependências. Para surpresa do governo espanhol, um grupo de especialistas em computação da sociedade civil montou um sistema paralelo de computação e apuração dos votos que, em menos de três horas após o fim da votação, já dava um resultado aproximado. Se criou através de uma versão mais segura do Whatssap, uma rede de comunicação que permitiu avisar com antecedência ações e deslocamentos policiais, orientando os mais de sete mil cidadãos que se dispuseram a compor as mesas de votação e as juntas de apuração, para saírem dos locais com as urnas e material de votação sempre que elas iam ser invadidas, além de avisar os eleitores da mudança de seus locais de votação. Muitas escolas e outros prédios públicos da Catalunha foram danificados pela ação policial, e agora estão sendo restaurados com a ajuda da arrecadação feitas pelo site de notícias independente Ara.cat que teve uma enorme importância na contraposição a midia espanhola. Na terça-feira, dia 03 de outubro, uma greve geral parou a Catalunha, em protesto contra a brutal repressão policial, que só afastou ainda mais os catalães dos espanhóis. Um rapaz que era contra a separação e que teve a coragem de sair com uma bandeira da Espanha, no dia da votação, indo até uma urna votar Não, foi aplaudido por onde passava, numa demonstração de maturidade democrática e republicana da população de sua cidade, agora diz que votaria pelo sim depois do que assistiu. Obrigado a entrar em campo para um jogo contra o Alavés, ameaçado pela Liga Espanhola, de perder seis pontos, a diretoria do Barcelona determinou o fechamento dos portões, como um protesto diante das cenas de violência daquele domingo em toda a Catalunha.
Creio que a população da Catalunha deu um exemplo de cidadania que bem poderia servir para nós brasileiros, no momento em que vivemos. A insurreição pacífica e cidadã dos catalães, em defesa do direito de decidir, do direito de votar, mostra que contra a força de um povo unido em torno de uma causa, mesmo que não seja uma das melhores, como é o caso do nacionalismo, nenhum Estado, por mais truculento que seja, pode alguma coisa. Ficou para o Estado espanhol a vergonha internacional, e para os catalães o orgulho e a dignidade de um povo historicamente rebelde e altivo, mesmo que seus políticos, como aqui, não estejam à altura deles. Sob a divisa “Votarem”, os homens e mulheres da Catalunha nos deram uma demonstração inequívoca que ser cidadão ainda é possível.
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, agencia de reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)
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