quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Imbecilizadores profissionais

                                          
Marcia Tiburi e Rubens Casara

Imbecilizadores profissionais (Arte Andreia Freire)
 

Uma nova profissão surge na sociedade atual. A do imbecilizador. Essa atividade, curiosa, cresce e aparece sem que ninguém conscientemente queira usar seu serviço, nem por desejo, nem por necessidade. Mesmo assim, o imbecilizador profissional faz sucesso. Ninguém pede sua atuação, ela se dá de graça, mas custa o preço da alma.
Professores trabalham em nome do conhecimento, médicos em nome da saúde, agricultores em nome da produção de alimentos, motoristas em função de transportes, advogados em nome de direitos, jornalistas em nome da informação (ou, pelo menos, era para ser assim). Há profissões voltadas para urgências ou emergências, outras que se dedicam a produzir ou realizar desejos. Entretenimento e lazer são campos que envolvem produtividades. Toda profissão existe em razão de uma necessidade que justifica uma atuação. Já o imbecilizador é improdutivo por sua própria natureza. Ou melhor, ele produz inutilidades.
Inutilidades que são funcionais à manutenção das coisas como estão. A inutilidade leva à ausência de reflexão: o imbecilizador atua para rebaixar o cidadão a consumidor de inutilidades. Aqueles para quem trabalha – ou contra quem trabalha – são cidadãos que ele ajuda a não pensar. Extirpar o senso crítico de cada um é um passo necessário nos procedimentos que levam à imbecilização. Mas enquanto suas vítimas sofrem com a aprendizagem de um destino infeliz, esse profissional parece realizar suas atividades sem esforço.
Mesmo que não possamos ver imediatamente sentido em sua atuação profissional, sabemos que ele faz parte do projeto capitalista sob o qual vivem todas as pessoas. Entendemos que o capitalismo usa a todos em busca de lucro e o imbecilizador profissional também serve ao capitalismo. Sabemos também que, embora não precise se esforçar, ganha mais do que qualquer trabalhador ou cidadão que ele, sem esforço, imbeciliza.
Necessariamente alienante, esse novo profissional presta um desserviço, mas ninguém deve perceber do que se trata. Estão todos por demais ocupados cumprindo com as obrigações assumidas e, quando surge um minuto livre, uma tarde, uma noite diante da televisão ou do computador, o pobre cidadão trabalhador terá seu espírito maltratado pelo imbecilizador do povo. Na mitologia de certos povos, o que mais se aproxima do imbecilizador profissional é a figura do feiticeiro encarregado do encolhimento das cabeças daqueles que acreditam no feitiço.
O imbecilizador profissional é uma espécie de ator sem arte. Às vezes, o imbecilizador diz que é trabalhador ou cidadão, alguém que se vende como igual ao trabalhador sem nunca ter trabalhado. Às vezes será candidato a um cargo político (um político que se diz não-político). Às vezes quer só pegar o tempo livre dos cidadãos comuns sem dizer que os roubou, porque se o cidadão ainda não imbecilizado perceber isso, não cairá na isca que foi armada para ele. Isso seria um desastre, claro sinal da incompetência do profissional da imbecilização, que por justa causa poderá perder o encanto, a credibilidade e o emprego.
Sem serviço e sem produto, ou melhor, escondendo a funcionalidade que se encontra na espetacularização da inutilidade, o novo profissional avança sem que ninguém precise dele – enquanto parece inofensivo. Mesmo sendo desnecessário à vida digna, o imbecilizador do povo está aí. Head hunters procuram cabeças de papelão para assumir essa profissão que vem à luz na era da publicidade e da propaganda como nunca se viu.
Auto-imbecilização
Toda profissão envolve um tipo de trabalho e podemos dizer que o trabalho constrói – para o bem e para o mal – a pessoa que somos. Há trabalho vivo e trabalho morto, há trabalho sujo e trabalho limpo. A nova profissão implica uma atividade que envolve a exploração da inutilidade. Não há nada de ilícito com ela, mas ao mesmo tempo não serve para nada a não ser piorar as coisas.
O imbecilizador profissional possui um saber. O bom imbecilizador deve conhecer a psicologia e a tecnologia que transforma seus consumidores em seres não-pensantes. Se o imbecilizador for competente, suas vítimas não sabem exatamente o que ele faz. Quando se tornam consumidores da arte, da técnica e da linguagem do imbecilizador já perderam a chance de descobrir, pois sua atuação funciona como um chip impossível de extirpar.
Os imbecilizados, depois de aparentemente indolores processos de imbecilização, começam a agir em nome do capital, de ícones em geral, ou em nome de Deus. Muitos passam a adorar pessoas ou roupas de marcas, alguns aprendem a cultuar a si mesmos. A imbecilização não funciona sem “deuses”, sem algo, uma pessoa ou um produto que é posto como objeto de um culto que prega o imobilismo ou o consumo acrítico.
O imbecilizador profissional prepara o caminho para toda uma vida voltada ao culto de algo capaz de reproduzir o processo de imbecilização. A imbecilização é, ainda que disfarçada, um mecanismo de reprodução. Quem antes era imbecilizado por uma ação externa, passa a produzir sozinho um raciocínio imbecilizante, sem dar mais trabalho ao imbecilizador profissional. O imbecilizador, tal qual um médico após um tratamento bem sucedido, também dá alta ao seu consumidor, que se revela capaz de se imbecilizar sozinho.
Tornar-se imbecil, contudo, não é algo natural. Consumir inutilidades e ser levado à ausência de reflexão só é possível quando há a ajuda desses especialistas. Lobotomia televisiva, virtual e digital é o que os imbecilizadores do povo oferecem como anestesia gratuita. Os imbecilizados não sentirão o preço que pagam, nem saberão que tipo de droga ou sentença foi administrada em seus corpos ou imposta sobre a sua alma.
Estupidez particular
Os candidatos a essa nova profissão devem ser especialistas em atuar sobre a ingenuidade e a vaidade alheias. Se não são natos manipuladores de interesses, devem aprender a manipular interesses, bem como saberes possíveis e ignorâncias abundantes. Os mais experientes, os mais competentes, são capazes de alcançar aquele ponto que cada pessoa oculta de todas as demais: a estupidez particular que faz parte da condição humana. Cada um sabe onde está a sua e o ponto da vergonha que ela implica. O imbecilizador profissional manipula a estupidez de cada um.
A estupidez particular é aquela que nos faz buscar ou aceitar algo de que não precisamos, perder algo de que gostamos demais, negligenciar o que nos importa, supervalorizar o que não faz sentido, mistificar o que seria evidente. A estupidez particular nos fará pessoas muito infelizes justamente porque nos faz crer que somos os mais inteligentes. É a estupidez particular, intimamente ligada à vaidade, que nos joga como peixinhos nas redes dos golpes. A estupidez particular é aliada à prepotência de cada um, aquela que usamos constantemente para nos proteger das misérias da vida.
Golpistas discursivos são sempre simpáticos, animadores, especialistas na enganação contra as pessoas, manipulando sua inteligência. Ora, alguém que consiga manipular a capacidade de pensar de outrem se torna de certo modo co-proprietário do seu pensamento. Aquele que se torna dono do pensamento de outrem exerce a mais profunda dominação: uma espécie de autodominação. Mas tudo isso é tratado como uma simples terceirização do tempo, do prazer. Muitos se esquecem que tempo e prazer em tudo tem ver com a inteligência.
Embora seres humanos sejam seres de linguagem, sejam seres racionais, aptos a ter ideias, capazes de conceituar, de abstrair, de criar, de questionar, de duvidar, de intuir, de imaginar, de estabelecer nexos entre aspectos dados da realidade – conjunto de atos do espírito ao qual podemos dar o nome bem conhecido de “inteligência” -, eles também são seres que vivem a linguagem confusamente e, desse modo, confundem também conceitos e ideias. A arte da manipulação se instaura nesse lugar. O amor louco que as pessoas têm pelas coisas fáceis é o instrumento na oficina da manipulação. Daí o sucesso do pensamento simplificador e dos esteriótipos. Daí o apego àquilo que se pode entender.
A corrupção da alma
As épocas fascistas são caracterizadas por uma profunda baixa de amor-próprio que se esconde atrás de violências diversas. Nada melhor do que xingar o outro para esconder a própria estupidez. É preciso aprofundar a prepotência para sobreviver. É preciso não pensar para ser feliz. O fascista é um frágil. E nisso está o seu caráter mais perigoso. A dialética da fragilidade e da força dá o que pensar.
A imbecilização generalizada do mundo é tema que encantou pensadores tão díspares quanto Adorno ou Nelson Rodrigues. Fato é que ninguém escolhe ser imbecil. Talvez seja um destino. Talvez seja uma condenação. Posto isso, não se pode dizer que há imbecis profissionais, o imbecil é uma espécie de degeneração do sujeito que, por ingenuidade, por estupidez particular, leva um golpe. O sujeito inteligente não se deixa golpear de novo, mas o imbecil é capaz de aderir ao golpe. De se tornar adepto daquele que o golpeia. De defender o imbecilizador que o reduziu a imbecil.
Pois é no clima do golpe, da cultura golpista e da ausência de reflexão que o imbecilizador profissional cresce e aparece. O imbecilizador profissional atua produzindo ignorância, insensibilidade e estupidez. Ele é tão nocivo à sociedade quanto um político que desvia os valores públicos. Ele corrompe a alma.
A partir daqui, deveríamos seguir classificando e dando nomes, mas o bom leitor não precisa de tantos exemplos, ele é bom de abstração. De Berlusconi a Luciano Huck, alguns com maior e outros com menor intensidade, vários profissionais ocupam o cargo de imbecilizadores do povo nas ricas mídias hegemônicas. No entanto, nas redes sociais, que fazem tanto sucesso na atualidade, há todo tipo de produção de “tonteria”. Cada um pode testar seu talento sendo o Silvio Santos da vez. Fiéis escravos e servos rezam diariamente no altar do Facebook, sacrificando seu tempo em forma de trabalho não remunerado.
Quando surge, como vimos no mês de setembro, um evento como o do Santander Cultural em Porto Alegre, que cedeu espaço à imbecilizadores profissionais que agem como promotores da ignorância, fica claro que a profissão está em alta.
Sempre bem remunerado, cheio de dinheiro ou de capital político, melhor do que muitos empresários e executivos, certamente melhor remunerado do que qualquer trabalhador, de qualquer dona de casa que entrega seu juízo à terceirização da inteligência que o imbecilizador profissional promove. Ele pensa por seus consumidores, produz as ideias que o imbecil irá reproduzir como um mantra, assim como um sacerdote reza por seus fiés.
Terceirizar a inteligência é como terceirizar a fé. Até filósofos entram nessa onda e passam a exercer essa nova profissão: afinal, a lei é a audiência e aparecer é o capital. A alma, esse assunto antigo que podemos chamar de subjetividade, foi emparedada no muro da imbecilização planetária.

(Publicado incialmente no site da Revista Cult)

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