sábado, 7 de julho de 2018

Crônica: Champs-Élysées dos Afogados

 
 
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José Luiz Gomes
 
 
Há um documentário do cineasta Silvio Tendler onde, em determinado momento, o antropólogo Darcy Ribeiro comenta sobre o exílio imposto pela ditadura ao sociólogo pernambucano Josué de Castro, afirmando tratar-se de uma das maiores crueldades cometidas pela regime militar. À época, lembra Darcy Ribeiro, Josué de Castro já era um pesquisador reconhecido internacionalmente. Sempre que ocorria grandes catástrofes, observa Darcy, a ONU costumava consultar não mais do que meia dúzia de grandes especialistas, entre os quais o brasileiro. Expulsá-lo do pais, portanto, foi de uma maldade sem tamanho. 
 
Darcy Ribeiro tinha uma grande admiração por Josué de Castro. Sua proximidade com o presidente João Goulart permitiu que ele o apresentasse ao presidente, com um pedido de sua nomeação para um ministério, o que foi prontamente aceito pelo presidente. Recomendou a Josué manter silêncio sobre o assunto. Vaidoso, ao chegar no Recife, Josué não se conteve e contou aos amigos, inclusive do seu PTB, que seria nomeado ministro. Foi o suficiente para despertar a conhecida inveja provinciana entre seus pares, que acabou por inviabilizar a sua nomeação para o cargo. Outros tantos casos dessa natureza já ocorreram, mas vou tratar do assunto numa outra crônica. 
 
Reformas de base no Brasil não podem ser feitas, por uma decisão de nossas elites. Veio o golpe civil-militar de 1964 e Josué de Castro, assim como outros tantos grandes brasileiros, estavam na lista negra dos militares. Exilou-se em Paris. Não sei se estou completamente certo, mas é possível que tenha sido dessa época a sua experiência como professor da conceituada Universidade Sorbonne. Há vários indícios que nos sugerem concluir que Josué de Castro não foi feliz em Paris. Teria pedido formalmente aos militares que o deixasse  voltar ao Recife. Relatos de sua família sugerem que ele viajava pelo mundo todo, mas, ao voltar ao Recife, mal guardava as malas e já se preparava para aqueles passeios da saudade pelos mangues dos bairros alagados aqui da província, como Pina, Afogados. Certa vez teria declarado ter aprendido mais com os catadores de caranguejos do Recife do que em todos os  compêndios de teses da Sorbonne. 
 
Ainda neste mesmo documentário, Jorge Amado relata a Zélia Gattai que o encontrou abatido, perambulando pelas avenidas de Paris, possivelmente a Champs-Élysées. Pouco tempo depois ele morre, sem ter tido uma última oportunidade de se embrear pela lama dos manguezais do Capibaribe, acompanhado dos seus amigos catadores de caranguejos . Os jornais brasileiros foram proibidos de anunciar a sua morte. Barbosa Lima Sobrinho, que circulava nas proximidades de um cemitério no Rio de Janeiro, ao perceber certa aglomeração de pessoas, quis saber quem estava sendo enterrado. Quando soube tratar-se de Josué de Castro, incumbiu-se de fazer a saudação.
 
Seu acervo hoje está sob a guarda da Fundação Joaquim Nabuco, criada pelo também sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. Ambos publicaram dois livros emblemáticos. Casa Grande & Senzala e Geografia da Fome. Casa Grande & Senzala foi publicado na década de trinta, precisamente, no ano de 1933, e Geografia da Fome em 1944. Ambos vaidosos, acabariam  por trocarem algumas farpas, notadamente no quesito alimentação. Já promovemos um encontro entre ambos, tratando deste assunto, na Ilha de Deus, aqui na periferia alagada do Recife, sob a arbitragem de Chico Science. E olha que nem precisamos consultar o VAR para dirimir essa pendenga. Tens que conhecer Josué de Castro, cara!

A Cidade


O sol nasce e ilumina
As pedras evoluídas
Que cresceram com a força
De pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam
Vigiando as pessoas
Não importa se são ruins
Nem importa se são boas
E a cidade se apresenta
Centro das ambições
Para mendigos ou ricos
E outras armações
Coletivos, automóveis,
Motos e metrôs
Trabalhadores, patrões,
Policiais, camelôs
A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade se encontra
Prostituída
Por aqueles que a usaram
Em busca de uma saída
Ilusora de pessoas
De outros lugares,
A cidade e sua fama
Vai além dos mares
E no meio da esperteza
Internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
Eu vou fazer uma embolada,
Um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado
Bom pra mim e bom pra tu
Pra gente sair da lama e enfrentar os urubus
Num dia de sol, recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior.

(Chico  Science)
 


 



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