terça-feira, 31 de julho de 2018

Durval Muniz: As tempestades que habitam os paraísos: reflexões em torno das utopias no mundo contemporâneo

 

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Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa aos nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história)
Walter Benjamin, em 1940, vivendo, o que ele nomeou, de um momento de perigo, escreveu esse texto, que o acompanhou durante toda a travessia dos Pirineus, em uma pasta de couro, para ser testemunha de seu suicídio, na fronteira entre França e Espanha, por onde tentava escapar do avanço das tropas nazistas. Para ele, o futuro se fechara definitivamente. Emparedado nas fronteiras de um presente aterrador, o desejo de morte prevaleceu sobre a pulsão de vida. Perseguido pela ameaça de morte, a ela se entrega como a única linha de fuga, o único gesto de resistência e rebelião possível: negar ao inimigo o prazer de sua morte, de seu sofrimento, de sua humilhação e degradação. Naqueles dias, em que o futuro era incerto, em que os horizontes eram sombrios e tempestuosos, Benjamin não deixou de alimentar, a seu modo, a utopia. Mas, em suas Teses sobre o conceito de história, nos alerta de que, para que as utopias ainda fossem possíveis, deveríamos estabelecer uma outra relação com os tempos, deveríamos reformular o conceito de tempo que emergiu na modernidade, que fora e era reafirmado e refigurado pelo historicismo, um tempo vazio e homogêneo, um tempo linear e processual, um tempo que como uma flecha apontada para o futuro, era visto como um processo inexorável do qual nada, nem ninguém escaparia, tempo universal e universalizante. Para que as utopias ainda fossem possíveis, paradoxalmente, era fundamental, para Benjamin, que rompêssemos com a visão de tempo presente nos pensamentos e projetos utópicos.
Para um filósofo que tinha no pensamento judaico uma das matrizes de suas ideias, o messianismo e o profetismo, traços destacados dessa tradição de pensamento, não deveria ser os elementos definidores de uma proposta utópica. Benjamin não podia ignorar que o formulador da própria noção de utopia, Thomas Morus, era um homem religioso, um cristão e católico, canonizado como mártir de sua crença. Há na própria palavra utopia uma tensão entre os significados que o termo adquiriu, a partir da publicação da obra de Morus, e os sentidos que a etimologia concede a essa palavra. Morus inventou a palavra que daria nome à sua ilha paradisíaca, onde os homens viviam sob uma ordem social perfeita, lançando mão das palavras gregas Ou (não, nenhum) e Topos (lugar), ou seja, lugar nenhum ou nenhum lugar. Desde o século XVI, quando foi inventada, a palavra utopia carrega essa dupla significação: ela pode ser um lugar perfeito e paradisíaco, como pode ser lugar nenhum. Ela pode ser a presença pletórica do perfeito ou a total ausência de presença. Benjamin, um melancólico, como Morus, partilhava com o filósofo e homem de estado inglês, da enorme desconfiança na possibilidade de haver paraísos terreais. Morus era um homem de fé, um homem crente na perfeição divina e, por corolário, na imperfeição humana, na incapacidade humana de construir a perfeição, apanágio do Senhor. Daí a ironia e o ceticismo presente em uma obra que foi lida, mais tarde, notadamente a partir do século XVIII, como o anúncio da possibilidade, no futuro, da existência de formas perfeitas de organização social. Para Morus, utopia era mais lugar nenhum, do que algum lugar, era mais ausência, que presença.
Para Benjamin, a fragilidade dos pensamentos utópicos de seu tempo, como aquele que movia a social-democracia, como a leitura que a social-democracia alemã fazia do marxismo, era, justamente, esse caráter futurista, esse caráter messiânico, teleológico e teológico dado projeto utópico. O que Benjamin criticava era a prevalência do futuro como tempo reitor das temporalidades modernas, tal como foi abordado por Reinhart Koselleck. O que Benjamin contestava era projetos utópicos que ignoravam o agora, o presente, que não conseguiam se deter diante dos mortos, das carnificinas, das ruinas, dos fragmentos do passado. Impelidos pela grande utopia da modernidade, a utopia do progresso constante e sem limites, os homens viravam as costas para o passado, viviam alienados no presente, com os olhos voltados para um futuro que, inexoravelmente lhes escapa, já que seu horizonte não cessa de se deslocar para a frente. Mesmo quando, como o anjo de Klee, são colocados diante do cumular de crimes e destruição que a história dos vencedores significa, os homens não conseguem ter com eles qualquer relação ou compromisso, pois as tempestades que sopram da busca por paraísos impele cada um a seguir em frente, a se deslocar em direção a esse lugar nenhum, a esse não lugar que é o futuro. Em busca do futuro, em busca da realização de uma utopia, os homens calcam sob os pés os cadáveres, os trapos de bandeiras e as fagulhas de esperança que jazem sob as cinzas das batalhas. Arrastados pelos fortes ventos das mudanças, do progresso, do desenvolvimento, da civilização, da evolução, da revolução, os homens e mulheres não param para mirar o passado, para olhar em seu entorno, deixam atirados na margem dessa grande estrada da história, que todos dizem conhecer e seguir, outroras e agoras que poderiam servir para a construção desse futuro, que se espera encontrar pronto ou se espera fabricar com materiais totalmente novos. Apressados para se chegar ao paraíso perdido e de novo prometido, retirasse do caminho às custas de muita violência, de muitas carnificinas e genocídios, aqueles que se colocam na passagem, aqueles que impedem e tentam barrar a chegada a esse lugar de perfeição e justiça.
Como vimos, nos séculos XIX e XX, as utopias podem ser assassinas, podem ser genocidas, podem ser exterminadoras. Como todo parto, parir o futuro, e de maneira veloz, requer muita dor e sofrimento. Ao longo dos dois últimos séculos, em nome de um futuro de perfeição que viria, em nome da civilização e do progresso, em nome do desenvolvimento e da revolução, muitas matanças de seres humanos, muitas matanças de animais, muita destruição da natureza e dos objetos, foram realizadas. E nome da construção de um corpo social perfeito, muitos corpos humanos e não humanos tombaram mutilados e feridos. Benjamin nos faz ver que, além dessas mortes que podemos testemunhar no agora, no presente, esses mortos são os herdeiros de milhões de outros mortos que jazem esquecidos e silenciados nas cinzas da história. Para o filósofo alemão, a redenção da humanidade, no futuro, só era possível com a redenção do passado, no presente. O futuro não é um tempo que está a nossa frente e ao qual se deve perseguir. O futuro habita o agora, habita a agulha de cada instante, é neles que o futuro se decide. Não haverá futuro de paz, com um agora, com um presente de mortes e assassínios. Não haverá um futuro de justiça, sem que façamos agora justiça aos que vivem e aos que morreram. Não haverá futuro de esperança, se o presente for de espera e o passado for desesperado. Não haverá futuro de bonança, sem que o presente seja de dádiva e o passado de dívida. Temos uma dívida com aqueles que vieram antes de nós e que sonharam futuros outros, temos uma dádiva de sonhos e desejos a fazer e partilhar com os que vivem agora. Utopia como espera por um por vir é uma fuga do devir, do vir a ser do tempo que se dá agora.
O compromisso e tarefa do historiador não é imaginar e propor futuros que se perdem e se sustém nas brumas de um horizonte incerto. Sonhar, desejar, imaginar, criar é fundamental para a vida humana, mas esses gestos devem ser feitos com os pés assentados na terra e não como anjos que têm o dom do voo e do sobrevoo. Todas as vezes que os homens tentaram sobrevoar a história, as asas eram de cera e como Ícaros desabaram de seus sonhos e de suas nuvens para quedas catastróficas. Quando miramos a história, quando a encaramos de frente, quando paramos para examiná-la de perto e com vagar, ao invés de planar em seu entorno, nos tornamos mais céticos e mais prudentes em embarcar em voos rasantes e arriscados sobre os tempos. A história humana não favorece visões paradisíacas. Talvez como em Morus, o lugar de perfeição se revele um não lugar, um lugar varrido por constantes tempestades. Além de sofrer de futurismo, as utopias tendem a pensar um tempo de perfeição onde a história entraria em êxtase. Alcançada a ilha da fantasia, o tempo sofreria uma paralisia e, como no paraíso bíblico, a morte não teria presença, os corpos seriam incorruptíveis e sequer saberiam de suas vergonhas. Por isso Benjamin inverte o sentido do messiânico, ele não aponta para o futuro, mas para o retorno de um passado redimido. Passado redimido no aqui e agora, nas ações dos homens presentes, ao impedirem que os vencedores continuem vencendo. O historiador que têm compromisso com a redenção da humanidade, tem compromisso não com um dado futuro, mas com dados passados, onde essa redenção foi possível, onde ela esteve em devir, onde ela foi um projeto, por fim derrotado. Sim, o historiador das utopias é aquele que escolhe, no passado, os restos de esperança, os destroços dos sonhos, os corpos ensanguentados e destroçados nas lutas por um mundo outro, diferente e distinto daquele em que viveu. O historiador é aquele que dá a mão para que os prostrados do passado, possam outra vez se porem de pé nos tempos que correm. O historiador utópico é aquele que escolhe topos, que escolhe lugares para habitar em seus escritos, em suas pesquisas, em seu ensino, que ficaram soterrados sob os escombros produzidos pela vitória dos vencedores. A utopia é uma prática, não uma ideia, a utopia é ação, não espera. Mas uma prática, uma ação voltada para o presente, para o contemporâneo, alimentada pelos passados e devires que aí habitam. O tempo é um emaranhado de linhas, um novelo de temporalidades, cada presente, cada contemporâneo é uma nebulosa de camadas de tempo, cada um habita diversas linhas temporais, cabendo escolhas e recusas de linhas temporais a percorrer. Se a utopia é uma tropologia, ela implica escolha de lugares temporais, espaciais, institucionais, conceituais para habitar. Se como diz Certeau, a operação historiográfica é inseparável da prática de um lugar, a utopia pode ser um deles, desde que não seja esse lugar nenhum, esse lugar vazio projetado para um futuro que sempre há de vir, esse dia que vai raiar depois de depois de amanhã. Enquanto os homens morrem e sofrem ao nosso lado, ficamos com o olhar cego pela miragem de um mundo perfeito e atropelamos os cadáveres que se amontoam a nossa volta, os espezinhamos, os desconhecemos, os ignoramos, os justificamos, os legitimamos, os comemoramos e homenageamos em nome desse futuro brilhante no qual eles não poderão mais entrar, a não ser como estátuas e monumentos. Se a utopia não pode ser materializada no aqui e agora, ela será efetiva algum dia? Ela não surgirá como delírio ou pesadelo?
Sejamos mais modestos em nossas utopias, definitivamente abramos mão da ideia de paraíso. A história do último século deve ter nos ensinado, pelo menos, que, ao contrário do que se pensa, os paraísos não são lugares de calmaria e viver de brisa. Os paraísos estão sujeitos a constantes tempestades pois é dos homens e mulheres ser tempestuosos. A história não carrega consigo nenhuma promessa, não há na história nenhuma necessidade ou destino imanente, a história humana não guarda nenhum sentido prévio ou em si mesma, a história humana é uma mistura de acontecimento, acidente, acaso, estrutura e processo. A história humana será aquilo que os humanos fizer dela. Nada promete ou garante que a história caminhe para a frente, para um estágio sempre mais perfeito ou superior que o anterior. Quem olha para a história vê inúmeras quedas, debácles, ruínas, destruições, desaparecimentos. Há povos que tomaram uma linha do tempo e caminharam na direção oposta ao que chamamos de futuro. A história não oferece uma avenida ou estrada principal, ela é feita de múltiplos caminhos e veredas e neles habitam a possibilidade de perdição. Errar pela história e errar na história é a condição mesma do humano, esse ser em contante deslocamento em relação a si mesmo. Creio que no mundo contemporâneo temos tarefas urgentes a fazer no presente, temos muitos compromissos com os passados e os futuros que imaginamos devem estar conectados com esses agoras e outroras que nos acediam.
Esse encontro tematiza duas grandes utopias do mundo moderno: a democracia e a liberdade. Em nosso país, então, são utopias mais no sentido de lugar nenhum, do que de algum lugar ou momento de existência ou perfeição. Nós historiadores não servimos a realização dessas utopias se continuarmos com os olhos voltados para um tempo futuro onde pretensamente elas estariam definitivamente presentes e construídas. Todas as vezes que nos deslumbramos com visões de futuro, o presente e o passado clamam por sua presença. Todas as vezes que esperanças vencem o medo, esquecemos que medos não desaparecem, medos presentes e passados continuam existindo, crescem, são veiculados e subjetivados, se tornam ódio, ressentimento, raiva, desejo de extermínio do outro, se tornam a base de uma vida assentada na inimizade e na repulsa do outro. De olhos no futuro, que parece ali há poucos passos, que parece vir se tornando presente, esquecemos dos passados que continuam presentes e que tomam a si mesmo como projetos de futuros outros, diferentes do esperado. Se continuarmos como reis magos seguindo a estrela no céu que leva ao encontro do redentor, do salvador, se continuarmos com os olhos fixos no horizonte, vamos acabar sempre por tropeçar aonde estamos, e a queda em um deserto atroz, será inevitável. Quando miramos apenas o futuro podemos ser vítimas de miragens, podemos ver donzéis de cavalo branco e alado vindo em nossa direção. Basta que o redemoinho na areia se alevante para que, com os olhos cheios de terra e poeira, nos darmos conta que negligenciamos o terreno em que estávamos pisando.
Nós historiadores contribuiremos para que a democracia em nosso país e em nosso mundo seja uma miragem sempre que esquecemos de contar os começos dessa ideia, na antiguidade e no mundo moderno. Tanto entre os gregos, quanto entre os europeus, a ideia de democracia e a sua prática nunca excluiu a falta de liberdade. A utopia liberal burguesa, que estabeleceu uma correspondência entre democracia e liberdade, jogou para debaixo do tapete toda a sujeira que está na base da democracia e da própria liberdade no mundo moderno. A democracia surgiu do ventre da escravidão, a democracia burguesa europeia se sustentou às custas das atrocidades do colonialismo e do imperialismo na África e na Ásia. As democracias europeias se sustentaram às custas do estabelecimento de estados de exceção nas colônias. A biopolítica moderna, aquelas práticas e tecnologias de governo que visavam preservar e prolongar a vida, foram possíveis às custas do exercício de uma necropolítica nos espaços coloniais. Para que houvesse vida na Europa foi preciso que milhares fossem trucidados, mutilados, feridos, destroçados nas colônias. Para que a acumulação capitalista levasse prosperidade econômica aos países centrais, para que se estabelecesse aí o trabalho livre, o trabalho compulsório e todas as formas brutais e cruéis de extração de sobretrabalho foram usados na chamada periferia do mundo. Para que as democracias se solidificassem na Europa, a tirania e a força deram o tom das chamadas administrações coloniais. Para que se instituísse regimes que paulatinamente iam considerando seus cidadãos como iguais em direitos e deveres, foi preciso existir áreas inteiras da terra onde reinava a lei discricionária do mais forte, onde matar aqueles considerados inferiores não acarretava nenhuma punição. Para que se inventassem as nações, as identidades nacionais, foi preciso destroçar as culturas e identidades de milhares de povos, foi preciso inocular em suas subjetividades o medo, a baixa autoestima, uma imagem negativa e degradada de si mesmo.
Como chama atenção Michel Foucault, para se colocar no centro da história o Homem, se matou Deus e todas as divindades, se dessacralizou o mundo e passou a se considerar todas as culturas e demonstrações do sagrado como retardatárias na evolução, estágio teológico ou animista. Para entronizar o homem racional como a expressão mesma da liberdade e como o agente privilegiado da política democrática, inventou-se a loucura como doença mental e se atirou os loucos para trás dos muros dos manicômios, construi-se hierarquias de racionalidade e o racismo tornou-se a explicação para as diferenças entre os homens. Com o racismo parte da humanidade passou a ser suspeita de não ser propriamente humana, o negro passou a ser o intermediário entre o macaco e o homem. O racismo ensinou a ter medo, desconfiar e odiar o ser diferente, o ser de pele e cor distinta, o ser de hábitos e línguas diversas. O mundo moderno é inseparável do racismo, nas suas manifestações mais virulentas, força histórica responsável por grandes genocídios e carnificinas, como o Holocausto. A sociedade que inventou a liberdade foi a mesma que inventou a prisão como forma privilegiada de punição, atirando milhões de vidas para vegetar atrás das grades, escondendo atrás de seus muros a continuidade da tortura, da sevícia, dos maus tratos, das humilhações e das execuções. Quando se vai tratar das utopias da modernidade, o historiador é colocado diante da escolha de seu lado solar e de seu lado noturno e sombrio. Ele vai festejar o avanço técnico e o desenvolvimento da ciência como forças libertadoras do homem, mas não poderá esquecer todos os crimes em que esses recursos técnicos e científicos foram utilizados. Na modernidade surgem as ciências da vida, as tecnologias da vida, mas também as tecnologias e as ciências da morte.
A forma campo de concentração, a ideologia concentracionária é um desdobramento da concentração populacional e da emergência dos espaços panóticos. O campo de concentração é uma fábrica, tem no trabalho sua justificativa e a morte como seu produto mais constante. Os campos de extermínio possuem uma racionalidade taylorista da morte, grandes máquinas de destruição e desaparecimento dos corpos, de desrealização e apagamento dos testemunhos, rastros e sinais do crime hediondo ali cometido. Automatismo da execução de tarefas tal como aprendido na fábrica moderna, essa grande utopia mecanicista. Por que vemos na palavra utopia apenas suas dimensões brilhantes e luminosas? A utopia nazista da pureza da raça e do estabelecimento de um Reich de mil anos era também uma utopia, na acepção mesma da palavra, pois buscava a realização do nada, era uma empresa utópica da nadificação, da morte, da destruição, da busca coletiva por um lugar nenhum (será que não estamos nesse momento trilhando esse caminho para o nada, tomamos a ponte para o futuro, e acessamos a terra de ninguém e do nada). Nós historiadores brasileiros não podemos esquecer que a nossa Republica mal se instala e realiza um grande genocídio daqueles vistos como fora da nação, como uma subraça, como semi-humanos. A utopia republicana em pouco tempo instala entre nós a forma campo de concentração. Esquecemos do pioneirismo de nossa República e de nossa democracia em instalar, quando da seca de 1915, no Ceará, campos destinados a juntar os retirantes chegados do sertão, como se fossem gado, amontoados para receberem rações, impedidos de se deslocarem até a cidade de Fortaleza para mendigarem e “importunarem” os citadinos. Cercados de arame farpado, amontoados em cabanas de ramos, panos, latas, papelões, barro, lonas, no mais completo abandono, eram presa fácil para as epidemias. Dezenas de cadáveres recolhidos por dia, corpos andrajosos, masserados, esqueléticos, chagados, se arrastavam como fantasmas em meio ao cheiro de morte e de fumaça. Eles viviam uma democracia e eram livres para morrerem do pior jeito possível nos chamados currais dos bárbaros. Mas todos têm certeza, mesmo diante dessas cenas, que a civilização venceu no Ceará, esses homens e mulheres foram enterrados em vida e na história. A medida que a historiografia teve sempre que olhar para o futuro, ela teve que ajudar a rapidamente se fazer o luto, produzir o esquecimento para abrir novos horizontes possíveis. Mas é possível construir algum futuro sem redimir esses mortos, sem salvá-los do esquecimento, sem que suas mortes venham doer nas consciências do presente? Que futuro será esse, que utopia será essa construída na ignorância e no silencio sobre esses corpos humanos que tombaram pelo caminho fruto do abandono, da exploração, da injustiça, da miséria, da desigualdade social, do preconceito, do racismo, da incúria, da ganância, do desprezo pelo outro?
Historiador tem que pensar futuros no contemporâneo? Creio que sim, mas isso implica acertas as contas com muitos passados que, por ser traumáticos, teimam em não passar. Passados que são como feridas não tratadas, não cicatrizadas, que tornam-se purulentas e empestam a nossa vida social. A escravidão e seu cortejo de violências, crueldades e misérias, mas também com o que de luminoso os negros conseguiram criar, apesar dela, têm que habitar nosso tempo, pois ele ainda é tempos de escravidão e escravização. As utopias não estão no futuro, muitas comunidades negras, muitas pessoas negras as estão criando aqui e agora. Eles que eram e são destinados a ser ninguém e a ter lugar nenhum, constroem seus lugares de habitação na vida e no espaço, no corpo e na linguagem. O racismo, o machismo, a misoginia, a homofobia são feridas abertas que não deixam de sangrar ao rés dos corpos, muitos deles violentados, espancados, assassinados, seviciados pela atuação dessas linhas do tempo que vêm do passado e constituem a malha, o tecido do nosso tempo, linhas doloridas e chocantes, que ainda costuram nossa vida social e nossas subjetividades.
As utopias contemporâneas devem nascer da realização desse diagnóstico do que foi o nosso passado e do que é o nosso presente. Benjamin julgava que a tarefa do historiador era trazer do passado para o presente as energias utópicas que haviam sido perdidas, dilapidadas, vencidas, desencaminhadas. As utopias não estavam a espera no futuro, mas estavam adormecidas e encobertas pelos escombros deixado pelas vitórias dos vencedores ao longo do tempo. O historiador devia ser capaz de vencer a força desse vento soprado do paraíso, devia ser capaz de aterrisar, de abrir mão de suas asas do sonho e da imaginação, para de volta à terra, poder fazer um inventário das perdas, das derrotas, dos crimes, das batalhas perdidas pelos vencidos, desentranhando dos acontecimentos as linhas utópicas aí adormecidas. Escolher no passado aqueles eventos e personagens capazes de estimular aqueles que habitam o agora no sentido da construção de novas relações sociais, da construção de novos mundos, da construção de realidades possíveis, sem ilusões de paraíso, mas aqueles que signifiquem o acerto de contas e a ruptura com o cortejo de horrores que a história humana acumula sob os nossos pés. Há, nesse momento, no Brasil, a formação de uma chapa para disputar a presidência da República que parece ser a síntese dos horrores de toda a nossa trajetória histórica. A chapa teratológica, que configura o nosso momento de perigo, talvez, através de um choque dialético, seja reveladora dos porões e das tripas de uma história nacional crivada de monstruosidades. Cabe ao historiador saber ler esses signos e torna-los iluminadores de possíveis vir a ser, aqui e agora. Talvez, como propôs Foucault, mais do que utopias, necessitamos de heterotopias, de lugares outros, mas do que de lugar algum, lugares outros no aqui e agora, lugares de realização de sonhos e desejos, lugares da realização de projetos e propostas, no tempo presente, no momento presente, no contemporâneo, fazendo da ausência uma presença imediata.

Durval Muniz é historiador e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

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