sexta-feira, 12 de julho de 2024

Editorial: Uma visão da indústria têxtil a partir dos operários e operárias.



Os críticos de Casa Grade & Senzala observam, de forma genérica, que o antropólogo Gilberto Freyre analisou a sociedade colonial brasileira a partir de um olhar lançado da Casa Grande. Rebento com descendência familiar na fina flor da aristocracia açucareira do Estado de Pernambuco, sugere-se que, em tais circunstâncias, talvez não pudesse ser diferente mesmo. Ariano Suassuna, por exemplo, enfatizava que o escravizado de Gilberto Freyre era o escravizado domesticado, jamais o escravizado do eito, menos ainda o escravizado que fugia do cativeiro e reconstituía sua vida nos quilombos escondidos nas matas adjacentes.  

"Reconstituía" é um termo que, provavelmente, mereceria enormes reparos dos historiadores. Na realidade, até hoje essas vidas não foram reconstituídas, se considerarmos, por exemplo, os altos índices de analfabetismo entre a população negra do país, principalmente entre as mulheres, o que indica um componente perverso de gênero. Como afirmou o professor Cristóvam Buarque, os escravos no Brasil foram soltos, nunca libertos. O abolicionista Joaquim Nabuco, certamente concordaria com essa afirmação do professor pernambucano. 

Em três romances, que perfazem um total de mais de quase 400 páginas, analisamos a trajetória de implantação, consolidação e decadência da indústria têxtil na cidade de Paulista, uma cidade localizada na Região Metropolitana do Recife, que, durante décadas, foi considerada uma cidade-fábrica ou uma espécie de fazenda da oligarquia industrial. O primeiro dos três romances é Menino de Vila Operária, vencedor do prêmio José Lins do Rego, na categoria romance, em 2022. 

O segundo romance é Cidade das Chaminés e, finalmente, completando a trilogia, Chaminés Dormentes. No seu conjunto, os romances reconstituem - aqui o termo pode ser usado - o processo de industrialização têxtil no país, com um foco mais particular para a situação emblemática, sobre diversos aspectos, do caso da cidade de Paulista, onde a família Lundgren mantinha duas fábricas de tecidos. Tudo o que ocorreu com a indústria têxtil no país, de alguma forma, repercutiu por ali, desde as novas tecnologias - como as mudanças dos pedais por exemplo - até as crises ou grandes greves do setor no país. 

O olhar que se lança sobre todo este processo não é o da vivenda dos coronéis, mas um olhar a partir da Vila Operária, que abrigava os operários e operárias que trabalhavam na indústria têxtil local. Eram pessoas recrutadas nas cidades interioranas dos Estados da Paraíba e Pernambuco e, consequentemente, permearam tal ambiente social com suas crenças, seus valores, seus costumes, suas trajetórias difíceis de vida. Eram comuns, por exemplo, as parteiras, as rezadeiras, os tipos "esquisitos", problemas psicológicos produzidos muito em função, possivelmente, dos desajustes da próprio relação de produção ali estabelecida. 

A hegemonia do grupo Lundgren sobre a cidade extrapolava a esfera produtiva, atingindo as esferas religiosa, política e cultural dos moradores locais, todos abrigados em sua Vila Operária. A questão era tão preocupante que um dos maiores adversários dos Lundgren no Estado, por aparentemente contraditório que possa parecer, foi justamente o interventor Agamenon Magalhães que representava, naquele momento, a Ditadura do Estado Novo. Foi por determinação de Agamenon que o arsenal mantido pela milícia local foi apreendido. 270 armas, entre fuzis, metralhadoras e milhares de munição.  

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