pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Durval Muniz: Uma fábrica de veneno
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domingo, 28 de janeiro de 2018

Durval Muniz: Uma fábrica de veneno

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O desenvolvimento da cidadania no Brasil tem um grande inimigo: a grande mídia. Seja em sua versão impressa (jornais diários e revistas semanais), seja em sua versão audiovisual (rádio, televisão, blogs e sites vinculados aos grandes grupos empresariais de mídia), a mídia brasileira apresenta características organizacionais, empresariais, editoriais e políticas que a torna um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do debate político, do senso crítico, da pluralidade política e ideológica, ao acesso à informação, que são fundamentais para a afirmação de uma cultura democrática e republicana em nossa sociedade. Ela é a maior responsável pela desinformação, pela ignorância política, pela parcialidade, pela intolerância, pelo crescimento do pensamento conservador, reacionário e microfascista na sociedade brasileira. A mídia tem sido um fator sistemático de desinformação e deseducação política, da veiculação de preconceitos, de favorecimento de uma cultura antidemocrática, do linchamento, do desrespeito às leis e à Constituição, de não observância dos direitos humanos e das garantias legais fundamentais para a convivência humana, de desobediência ao Estado democrático de direito.
No Brasil, a mídia deixa de ser uma instância crítica do social, para se arrogar o papel de diretora da vontade popular, de definir até mesmo eleições, de ditar a agenda dos governos, de julgar e condenar as pessoas antes mesmo do poder Judiciário, quando não as submete ao linchamento moral e à desconstrução de sua imagem, de antecipar os resultados das votações no Legislativo, pressionando parlamentares em votar conforme os interesses dos empresários e das empresas de comunicação. A centralidade que tem a televisão na sociedade brasileira (em nenhum lugar do mundo as pessoas são tão embasbacadas com a TV como em nosso país. A TV se tornou onipresente em nosso cotidiano, estando agora até nas farmácias, uma doença nacional) faz com que a versão televisiva da realidade passe como sendo a própria realidade. O que aparece na Rede Globo, em seus telejornais, é a versão oficial da realidade do país consumida acriticamente por boa parte da população. Mas é preciso que a gente reflita sobre algumas características da mídia brasileira que a torna particularmente danosa à pluralidade de visões sobre a realidade, indispensável para uma verdadeira vida democrática. É claro que a mídia, em qualquer lugar do mundo, apresenta uma leitura da realidade, tenta construí-la com imagens e textos, tenta que a população receba sua versão do real como sendo o real, mas em outros países essas versões são plurais e se digladiam entre si, o que favorece a formação do senso crítico e a independência de julgamento da população que se vê diante de versões contraditórias tendo que tomar uma posição diante desses desencontros.
A forma como a mídia brasileira está estruturada e o fato de que a legislação que visava democratizá-la continua letra morta por falta de regulamentação legislativa necessária para sua aplicação, dá à nossa mídia características bastante danosas para a cidadania no país. Vejamos essas características:
Concentração oligopolista dos meios de comunicação. Embora o capítulo destinado aos meios de comunicação da Constituição de 1988 tenha previsto mecanismos visando coibir a concentração do capital e dos meios de comunicação nas mãos dos mesmos grupos empresariais, por falta de regulamentação essa parte da Carta Magna vem sendo sistematicamente ignorada. Doze grupos empresariais, dominados por interesses familiares (o que mostra o caráter pouco moderno dessas empresas e do nosso capitalismo no setor de comunicação) dominam 80% dos grandes meios de comunicação no país. As famílias Marinho, Frias, Mesquita, Saad, Civita, com suas subsidiárias em cada estado da federação monopolizam os meios de comunicação do país, o que favorece a veiculação de um discurso único, nascido do conluio de interesses entre essas famílias. Sendo poucos empresários, sendo poucos agentes a dominar os meios de comunicação fica bem mais fácil a orquestração de verdadeiras campanhas midiáticas contra aqueles que vierem a se contrapor aos interesses de alguns desses grupos. Isso deu a essas famílias o poder de chantagear políticos, governos, empresas, instituições, que não conseguem encontrar um meio de comunicação opositor ou dissidente onde possa se defender das campanhas promovidas pelo conglomerado monopolista da mídia. A participação decisiva da grande mídia em todas as rupturas com o processo democrático, em todos os golpes políticos ocorridos no país deixa isso bem claro. São as verdadeiras campanhas orquestradas que preparam o ambiente para o golpe e trata de legitimá-lo.
Vinculação com interesses político-partidários. Ao contrário do que rege a legislação, a maior parte dos meios de comunicação está nas mãos das oligarquias políticas ou dos grupos partidários que dominam a política em cada estado, desde os principais jornais, até as estações de rádio e televisão. Sendo concessões públicas, ao contrários dos jornais e revistas, a concessão de estações de rádio e televisão tem sido usada como moeda de troca e barganha nos conchavos políticos nacionais. É através do controle da mídia que os grupos locais se perpetuam no poder, à medida que censuram qualquer abordagem crítica a seus governos e a atuação pública desses grupos. O monopólio estadual e municipal das mídias locais pelos grupos partidários se alia ao monopólio nacional das doze famílias, formando uma verdadeira pirâmide de interesses conservadores e reacionários a dominar os meios de comunicação. Em cada estado do Brasil é um oligarquia que tem o controle sobre a retransmissora da Rede Globo local, por exemplo, articulando uma rede de dependência e favorecendo a veiculação de um pensamento único. No Rio Grande do Norte, as famílias Alves e Maia são proprietárias dos principais meios de comunicação e, por isso, se perpetuam no poder político, interditando o debate e a crítica política. Na maior parte dos países europeus isso é terminantemente proibido.
Concentração regional. Embora a Constituição de 1988 preveja a regionalização dos órgãos de mídia, visando a sua democratização e maior aproximação com os contextos locais, os grandes grupos de mídia do país estão todos numa só região, a Sudeste, e em duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro. Isso provoca a emissão de uma visão completamente distorcida de um país com dimensões continentais. A maior parte das outras regiões do país pouco se veem na telinha e quase sempre, quando abordadas, são através do estereótipo ou da excepcionalidade e bizarrice do evento. Notadamente no que tange a televisão o Brasil não saiu da época da ditadura militar que foi quem concebeu, como estratégia de governo do país, essa centralização midiática, notadamente as constituições de redes nacionais de televisão mais fáceis de controlar e censurar. Foi a ditadura que levou a Rede Globo de Televisão a se tornar esse monstro tentacular que está presente em cada lugar do país, em cada momento do dia ou da noite, esse monstro que nos persegue em bares, restaurantes, cafés, consultórios médicos, hospitais, supermercados, farmácias, etc. A Rede Globo e a ditadura são inseparáveis desde o berço. Isso leva a que saibamos mais do que acontece no Rio de Janeiro do que o que acontece em nossas próprias cidades. Até os modos de falar regionais são marginalizados e substituídos por uma fala pasteurizada pretensamente de lugar nenhum. Nos EUA existem mídias até de bairros.
Prevalência da propriedade cruzada. Um dos aspectos mais antidemocráticos da mídia brasileira, também vetado pela Constituição de 1988, mas também dependente de que um Congresso Nacional, composto por donos de mídia estadual e local, regulamente os artigos da Lei Maior, é a prevalência da chamada propriedade cruzada dos meios de comunicação. Um mesmo grupo empresarial, no caso do Brasil, uma mesma família, três herdeiros como os filhos de Roberto Marinho, podem ser donos de jornais, de concessões de estação de rádio e de vários canais de TV aberta e fechada, de revistas semanais, de blogs, de portais de internet, de editoras, de agências de notícias, de empresas de oferta de TV fechada, de empresas produtoras de audiovisual e de cinema, etc, configurando um verdadeiro cerco imagético-discursivo a quem vive no país. Para onde nós nos virarmos daremos de cara com o Grupo Globo disfarçado sob vários nomes fantasia, veiculando a mesma mensagem, a mesma leitura do país. No ápice da campanha pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff até filmes despectivos foram patrocinados pela Globo Filmes. No desmonte da imagem do ex-presidente Lula vale tudo até a produção de um filme endeusando o juiz que o persegue. Isso é terminantemente proibido em quase todos os países, inclusive nos EUA.
Ausência de uma mídia pública e fragilidade da mídia estatal. Nesse aspecto o Brasil se aproxima muito do modelo americano de mídia e se distancia do modelo europeu. Nos principais países da Europa, notadamente no que tange ao rádio e a televisão, são as empresas públicas que possuem o predomínio em termos de audiência e respeitabilidade. Uma empresa pública de mídia não pertence a algum órgão do Estado, embora ele tenha participação em seu financiamento e fiscalização. Embora sendo também financiadas pela iniciativa privada através do pagamento de propaganda, essas empresas contam com a presença de capital público. Normalmente elas são geridas por alguém designado pelo próprio conselho diretivo da empresa do qual faz parte, obrigatoriamente, representantes de instituições da sociedade civil, como sindicatos patronais e de trabalhadores e por representantes de todos os partidos políticos presentes no Congresso Nacional, o que favorece o pluralismo político e ideológico da programação dessas empresas. Na TVE da Espanha, por exemplo, todo programa que envolva debate de ideias políticas deve contar com representantes das várias forças políticas. Não pode ocorrer, como na TV brasileira em que, não apenas não se convida pessoas de posições distintas, como, quando ocorre de alguém sair do script, é enquadrado pelo apresentador do programa que desrespeita a opinião do convidado impondo o discurso da casa. No governo Lula se criou a TV Brasil, uma TV pública que, no entanto, carece dos investimentos e da visibilidade que a pudesse fazer um contraponto à mídia privada. As TVs e rádios estatais, como é o caso da TV Senado, da RBR, da TV Justiça, também são quase invisíveis, ocupando um nicho quase desprezível da audiência. Muito menos escrava da audiência, essa modalidade de mídia pode veicular uma programação mais educativa, menos comercial, menos voltada para o entretenimento imediato.
O monolitismo político e ideológico. A partir do engajamento da grande mídia brasileira na tentativa de desalojar o Partido dos Trabalhadores do poder, embora esse tenha cometido, nessa área, um dos seus grandes equívocos, ao não buscar implementar o que mandava a Constituição de 1988, agindo no sentido de democratizar a mídia brasileira, sem o qual não haverá democracia no Brasil, erro que acabou o atingindo duramente a qualidade da cobertura jornalística do que ocorre no país foi decaindo de qualidade a ponto de muito profissionais sérios não resistirem, migrando para as emergentes mídias alternativas (Paulo Henrique Amorim, Luiz Carlos Azenha, Eduardo Guimarães, Fernando Brito, etc). Passamos a ter uma mídia que mente cotidianamente, que chega a se associar a grupos criminosos (como a Editora Abril com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, visado cometer ilícitos que gerassem manchetes contra o PT), que passou a veicular um discurso de ódio, de intolerância, de rancor, cheio de preconceitos e estigmatizações. Um discurso que levou a uma visão distorcida da vida pública, um discurso de criminalização da política, que favoreceu ao aparecimento de fenômenos políticos como o crescimento de grupos fascistas e de extrema-direita no país. Bolsonaro e os bolsominions são uma criação direta de uma mídia de discurso raivoso e apoplético. Chegamos, com as mídias alternativas crescendo no país, oferecendo versões alternativas às versões da grande mídia, a um crescente descrédito daquilo que ela diz, notadamente entre os setores mais progressistas do país (o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo se houve sempre, em qualquer manifestação política). Uma mídia que não teme a desmoralização e o ridículo, contanto que destile cotidianamente o seu veneno fascista.
O setor vive tendências opostas. Outro fenômeno preocupante no setor de mídia no país é o espantoso crescimento das mídias ligadas a denominações religiosas evangélicas e católicas. O setor de radiodifusão está sendo praticamente dominado por grupos ligados a interesses políticos e empresariais que se acobertam sob o manto do pertencimento a uma dada religião. Pastores e religiosos ficam milionários e se tornam políticos profissionais veiculando seus discursos, muitas vezes intolerantes e preconceituosos, através do acesso a mídia. Embora ainda seja menos expressivo no que tange às concessões de canais de televisão (a compra da TV Record pela Igreja Universal do Reino de Deus é o único caso mais expressivo), preferindo o aluguel de espaços na grade de programação, as denominações religiosas são responsáveis, hoje, pela aportação de boa parte dos recursos que mantêm empresas tradicionais de mídia como a Rede Bandeirantes de Televisão. Esse segmento da mídia tem reforçado o caráter conservador das mensagens veiculadas por nossa mídia, inclusive no plano dos valores e dos direitos. Uma confissão religiosa monoteísta, que se arroga a ser portadora da única mensagem verdadeira e da única visão válida sobre a realidade e sobre a maneira de organizar o social não pode favorecer a diversidade e a pluralidade de opiniões, não favorece a formação de subjetividades democráticas. O verdadeiro massacre que essa mídia exerce em relação as religiões de matriz africana, desqualificando-as e conclamando a intolerância é um exemplo de como essa mídia está levando a sociedade brasileira para o perigoso caminho da caça as bruxas. Em nome da democracia e da cidadania deveria ser vetada a propriedade de grupos de mídia a grupos religiosos. Se o nosso Estado é definido constitucionalmente como laico e se rádios e TVs são concessões públicas deveria ser vetada a concessão a grupos religiosos, sejam eles quais forem.
Por outro lado, temos o crescimento das chamadas mídias alternativas, embora muitos dos blogs, portais na internet, páginas de notícias sejam vinculados aos mesmos grupos que controlam as grandes mídia. O grupo Abril, que publica semanalmente o lixo fascista chamado revista Veja, emprega vários colunistas de blogs que ajudam a disseminar o seu veneno, a mesma coisa ocorre com o grupo Folha de São Paulo. A força da mídia alternativa se viu na cobertura paralela que foi feita dos eventos dessa semana em Porto Alegre, foi a mídia alternativa e a mídia internacional que ofereceram versões distintas da narrativa oligopolista dos grandes conglomerados de mídia no país. Por incrível que possa parecer essa semana ficamos sabendo que o conservador New York Times pode ser mais crítico e imparcial do que nossos grandes órgãos de imprensa. O New York Times, claro, ainda pretende fazer jornalismo, o que nossos jornais, revistas, rádios e TVs dos grandes grupos empresariais há muito deixaram de fazê-lo, com uma ou outro honrosa exceção como Mino Carta e a Carta Capital. O que nossa mídia produz, todo dia, é veneno, que rapidamente está matando a sociedade brasileira e o próprio país. Quando tivermos regredido como sociedade e como nação, como ocorreu com muitos países, quem vai cobrar dessa fábrica de veneno as suas responsabilidades?

Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Jornalismo, aqui reproduzido com autorização do autor)

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