pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Poderes obscuros
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terça-feira, 14 de abril de 2020

Poderes obscuros


Biografia narra a ascensão de Mussolini, morto há 75 anos, a líder do fascismo e faz refletir sobre a ameaça presente da tirania
Manuel da Costa Pinto 01abr2020 01h12
 
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Benito Mussolini, 40º primeiro-ministro da Itália, em 1922 Topical Press Agency/Wikimedia Commons
Scurati, Antonio M, o filho do século
TRAD. Marcello Lino
Intrínseca • 816 pp • R$ 79,90
Em 1981, o ensaísta e crítico literário George Steiner — que morreu em fevereiro deste ano — publicou o romance The portage to San Cristobal of A.H. (“O  transporte para San Cristobal de A.H.”). As iniciais do título correspondem a Adolf Hitler — que teria sobrevivido à Segunda Guerra e, localizado na América do Sul por caçadores de nazistas, é perseguido e capturado na selva amazônica, sendo julgado ali mesmo devido a seu estado de saúde precário. O romance causou furor e protestos, redobrados quando, no ano seguinte, uma adaptação teatral deu corpo e voz ao Führer. Há inúmeras obras ficcionais que encenam a vida de Hitler, na literatura e no cinema. Mas a narrativa de Steiner, além de inserir Hitler no mainstream artístico-intelectual, desafiava o mandamento formulado por Emil Fackenheim, conhecido como “teólogo do Holocausto”, de “não conceder a Hitler nenhuma vitória póstuma”, uma vez que o livro de Steiner termina dando a última palavra ao ditador, no discurso em que se defende diante do tribunal.
Agora, outro romance traz no título a inicial de um ditador sobre o qual pesam interditos éticos semelhantes: M, o filho do século, de Antonio Scurati. O “M”, como fica claro de saída, refere-se a Benito Mussolini, o líder fascista que ascendeu ao poder em 1922, aliou-se a Hitler, levou a Itália à Segunda Guerra Mundial e, melancolicamente destituído em 1943, ficou  acuado na República de Salò (Estado fantoche sob proteção nazista) até ser morto por membros da resistência em 28 de abril de 1945. Vencedor do prêmio Strega de 2019 com o romance, Scurati declarou, em entrevistas, que só foi possível escrever essa narrativa por causa da queda de um tabu sobre o qual se fundou a República italiana. Durante quase setenta anos, diz o escritor, qualquer discussão ou ação política teria como premissa uma tomada de posição antifascista.
Organizações inspiradas na extrema direita de Mussolini nunca deixaram de existir, mesmo no imediato pós-guerra. E vários partidos, a partir dos anos  1980 e 90, retomaram seus valores sob a máscara do nacionalismo e de uma xenofobia “legitimadas” pela globalização e por um sistema político que, em vários momentos, usou o escudo do antifascismo como salvo-conduto para a corrupção.
Cinismo despudorado
Tudo isso é arquiconhecido e está na gênese de partidos separatistas como a Liga Norte. O tabu a que se refere Scurati diz respeito menos a questões políticas e institucionais do que a um clima de cinismo despudorado. Um clima que hoje permite a Matteo Salvini — político da Liga que alcançou o papel mais relevante no Executivo entre 2018 e 2019 — fazer pronunciamentos em que parafraseia Mussolini. Ou que o movimento estudantil seja dominado por extremistas de direita, tendo como referência a CasaPound — agremiação social que se apropria de métodos de esquerda e do éthos anarquista: nasceu com a ocupação ilegal de um imóvel em 2003, tem como presidente o líder da ZetaZeroAlfa, uma banda de rac (Rock against communism, ou “Rock contra o comunismo”), e hoje se espalha por mais de cem sedes com paredes cobertas por lemas e imagens do Duce (além, obviamente, de portar um nome em homenagem a Ezra Pound, poeta norte-americano que viveu no país e foi entusiasta do fascismo). Enfim, se no século passado era tolerável se declarar nostálgico do fascismo, só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas. 

Só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas

Paradoxalmente, foi esse ambiente que rima neofascismo com cultura pop, a calva de Mussolini com skinheads, que propiciou o surgimento de um livro claramente antifascista como M, o filho do século. A nota introdutória diz: “Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte”. Ao longo de mais de oitocentas páginas, temos uma sucessão de momentos-chave da história da Itália sob Mussolini descritos por um narrador que, a cada capítulo, se coloca do ponto de vista de uma personagem, com indicação de data e localidade do episódio. Importante: o volume começa em março de 1919, com a fundação dos Fasci di Combattimento (grupos paramilitares que estão na origem do movimento fascista), e termina em janeiro de 1925, com um discurso de Mussolini como primeiro-ministro para o plenário do Montecitório (sede da Câmara dos Deputados). Os períodos sucessivos serão abordados em outros dois volumes já anunciados pela editora italiana Bompiani.
A imensa maioria dos capítulos, como era de se esperar, é narrada do ponto de vista de Mussolini. Vários outros partem da perspectiva de asseclas de expressão local ou de personagens célebres, como o socialista Giacomo Matteotti e o poeta decadentista Gabriele D’Annunzio — que, antes mesmo da ascensão do Duce, chegou a liderar um delirante governo de feição fascista em Fiume (atual Rijeka), cidade da Croácia então reivindicada pela Itália. E, reforçando o caráter de “romance documental” de M, o filho do século, Scurati insere, entre cada capítulo, a transcrição de trechos de notícias de jornal, manifestos partidários, discursos e cartas. 
O narrador de Scurati se coloca em cena com cada personagem, mas nunca em seu lugar. E adota o presente do indicativo como tempo verbal dominante — procedimento semelhante, por exemplo, ao usado por Emmanuel Carrère em Limonov (livro que, aliás, acompanha a trajetória de um ativista russo com muitas afinidades com o “fascismo eterno” de que fala o célebre ensaio de Umberto Eco). Com isso, a escrita ganha um sentido de imediatez teatral ou cinematográfica. 
Romances narrados retrospectivamente, nos quais predominam verbos no pretérito, em geral conduzem o enredo para um fim que nós, leitores, ignoramos, mas que o narrador parece dominar desde o início. Aqui, a situação se inverte: todos, inclusive o autor, já sabem onde a história vai dar, mas o narrador, imerso no tempo presentificado, abdicando da plausível onisciência, se limita ao puro acontecimento, dramaticamente encerrado em si mesmo. 
Esse procedimento formal, mais do que simples opção estilística, dá espessura linguística à incerteza permanente que caracteriza o nascimento do fascismo e realça os momentos em que o movimento parece liquidado, mas consegue se reerguer, no momento seguinte, de modo tão inacreditável para seus protagonistas quanto para os leitores. Dito isso, existe uma tese que atravessa a encenada falta de onisciência do narrador: para Scurati, o fascismo nasce da aliança entre a vontade de potência de Mussolini e as pulsões de morte de uma legião mítica de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, os Arditi, que durante o conflito puseram seu apetite pela violência a serviço do Exército italiano — mas que, ao fim da guerra, voltaram a ser o que sempre foram: delinquentes e assassinos.
É o caso de Ferruccio Vecchi: “A seu respeito, circulam relatos inverossímeis e extraordinários: ferido mais de vinte vezes, diz-se que tomou de assalto sozinho, lançando granadas, uma trincheira austríaca, e trepou com a mulher do coronel enquanto ela dormia ao lado do marido”. Ou de Albino Volpi, um dos “jacarés do Piave” especializados em atravessar esse rio a nado para apunhalar sentinelas na outra margem; mais tarde, ele seria responsável por jogar uma granada sobre a multidão que comemorava o triunfo socialista após o fiasco na primeira eleição disputada pelos fascistas, em 1919 (quando nomes ilustres como o poeta futurista Marinetti e o maestro Toscanini foram candidatos da extrema direita). Ou ainda Domenico Ghetti: “Anarquista, exilado na Suíça com Mussolini durante a juventude, assassinou padres, é desonesto, violento, conspirador, desvalido”.  
Em um dos mais sinistros capítulos do romance, esses Arditi estão reunidos numa trattoria com o futuro Duce, que tem de conter os impulsos homicidas de seus recrutados quando, na sala ao lado, um grupo de trabalhadores do jornal socialista Avanti! entoa o hino Bandiera rossa trionferà! (“A bandeira vermelha triunfará”) e chama Mussolini de traidor. 
Ex-diretor do Avanti!, Mussolini fora expulso justamente por discordar da postura pacifista dos socialistas na Primeira Guerra Mundial e fundara o Il Popolo d’Italia, periódico no qual, além de se mostrar “apóstolo sincero e apaixonado pela intervenção bélica” (segundo relatório policial transcrito por Scurati), conclama a “multidão de desajustados” dos Arditi, que vagam pelas ruas como “minas errantes”, para formar os Fasci di Combattimento.
Mas as milícias fascistas só terão seu triunfo em 1922, quando, após incontáveis episódios de vandalismo e durante uma crise na formação do gabinete de governo no sempre tumultuado sistema político italiano, acontece a “marcha sobre Roma”. É o momento que sintetiza o livro. Mussolini, com sua tática de “dosar, diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força”, prega em público uma solução parlamentar para o impasse. Em surdina, porém, insufla o ímpeto golpista dos Fasci di Combattimento, que haviam se transformado nas temidas esquadras de camisas negras, disseminando o terror. Na iminência da chegada dos socialistas ao poder por via institucional, eles precipitam, em 27 de outubro de 1922, uma mobilização que, partindo de Florença e Cremona, arrasta milicianos de outras cidades e atinge Roma no dia seguinte.
Enquanto isso, Mussolini estava no teatro Manzoni, de Milão, assistindo ao drama O Cisne, de Ferenc Molnár, com a amante Margherita Sarfatti — sofisticada crítica de arte, judia da alta burguesia casada com um advogado socialista, única mulher com quem Mussolini não manteve as tantas relações sexualmente predatórias e misóginas descritas no livro. É só quando a marcha sobre Roma se torna um putsch irreversível que ele parte para a capital, onde o rei Vittorio Emanuele 3º, acuado pelos camisas negras, lhe entrega o cargo de primeiro-ministro.
Mas ainda não é a ditadura. Em seu primeiro pronunciamento diante da Câmara dos Deputados, em novembro de 1922, Mussolini faz o célebre discorso del bivacco (“discurso do acampamento”) diante de parlamentares apavorados: “Eu poderia ter obtido uma vitória acachapante. Impus limites a mim mesmo. […] Com trezentos mil jovens impecavelmente armados, prontos para tudo e esperando quase misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento exíguo” — e aqui, infelizmente, a ótima tradução de Marcello Lino põe a perder a força metafórica do original, pois Mussolini ameaça fazer do plenário um “acampamento de legionários” (bivacco di manipoli). 
Chefe do crime
A ocasião não tardará. Em 1924, em represália a acusações de corrupção e fraude eleitoral feitas pelo deputado socialista Giacomo Matteotti, sicários fascistas o sequestram e assassinam com conhecimento do primeiro-ministro. Em vez de assinalar o fim do regime, a reação ao famigerado “Delitto Matteotti” leva o Duce a desafiar o Parlamento a processá-lo: “Se o fascismo foi uma organização criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”. Ninguém ousa levantar a voz. Estava aberto o caminho para a ditadura plena, que certamente será tema do próximo volume de Scurati. 
Nesse primeiro volume da trilogia, o ex-socialista Mussolini funda o fascismo menos como um projeto ideológico distinto e inovador do que como pura e simples ideologia do poder: ele mesmo se proclama “o homem do depois”, que reina sobre o caos que fomentou, mobilizando primeiramente os instintos degenerados de criminosos de guerra e, em seguida, a insatisfação de italianos “enjoados de si mesmos”, fartos de “verem seus defeitos representados no Parlamento”.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje. De um lado, o populista que afirma que os fascistas são um “antipartido” que faz “antipolítica” para salvar a Itália do bolchevismo, mas negocia astuciosamente nos bastidores enquanto mantém à espreita uma guarda pretoriana pronta para transformar o Parlamento numa caserna. De outro, o capitão e deputado do baixo clero que, em meio à salvaguarda para milicianos e um clã que ameaça enviar um soldado e um cabo para fechar a Suprema Corte, se apresenta como o messias antissistema que salvará o Brasil do comunismo. 

Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje

Mussolini, entretanto, é uma personagem arquetípica — tanto pela envergadura intelectual (inexistente em sua contrafação) quanto pela capacidade de produzir o mal. Nesse sentido, só é mesmo comparável a Hitler. Scurati correu o risco de incorrer na mesma infração ética apontada por intérpretes do Holocausto e do ditador alemão: inserir Mussolini na ordem natural das coisas, produzir alguma forma de empatia pela compreensão do caráter patológico de sua obsessão pelo poder. Mas sua minuciosa reconstituição de cada gesto do ditador italiano, de cada brutalidade ou traição cometidas contra adversários, aliados e mulheres pode ter outra conotação. 
O teólogo Emil Fackenheim, citado no início deste texto, dizia haver uma “desconexão radical entre a natureza humana e a natureza de Hitler”. Com isso, talvez tenha nos obrigado, involuntariamente, a colocar genocidas como Hitler e Mussolini não numa espécie de santuário maligno, apartado do gênero humano, mas como núcleo obscuro de nossa natureza. É, aliás, o que propôs o próprio Steiner em Linguagem e silêncio. E é o que faz Antonio Scurati nesse magnífico M, o filho do século.

(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

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