pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : A classe média vai às ruas: emoção, política e gestão.
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sexta-feira, 15 de maio de 2015

A classe média vai às ruas: emoção, política e gestão.


Daniel Pereira Andrade, Sociólogo e professor do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração (FSJ) da EAESP-FGV

Como el de otras pasiones, el origen de un odio siempre es oscuro”. A observação de Jorge Luis Borges nos conduz a refletir com mais cuidado sobre as causas da forte emoção que tem mobilizado uma parcela considerável da classe média brasileira. Se hoje essa energia psíquica está investida nas manifestações contra a corrupção, o fato é que sua aparição se deu ainda antes do caso da Petrobrás, datando ao menos dos protestos de junho de 2013 e sendo reeditada com crescente fulgor no período pré-eleitoral. Sua origem não está, assim, ligada diretamente aos escândalos atuais, sendo mais provável que tenha sido gestada no dia-a-dia das pessoas. É na transformação da mais cotidiana das atividades, o trabalho, que podemos encontrar o solo fértil onde germina esse sentimento.
Nos últimos anos, não foram poucas as ocasiões em que ouvi queixas sobre a piora das condições de trabalho. Não se tratava das reclamações habituais, mas de mudanças substantivas em profissões tradicionais como engenheiros, professores, advogados, profissionais da saúde, administradores e jornalistas. Muitos foram sujeitos ao fenômeno da “pejotização”, ou seja, à contratação de serviços prestados por pessoas físicas, mas efetivados legalmente sob a forma de pessoa jurídica (PJ), de modo a disfarçar relações de emprego e burlar direitos trabalhistas. Outros foram empregados temporariamente, com baixos salários, e, a despeito de grande esforço, não conseguiram ser efetivados, sendo ou dispensados ou subcontratados como terceirizados. A informalidade também não foi rara. Serviços permanentes ou “bicos” foram formas alternativas para obter ou melhorar os orçamentos.
A fragilização dos vínculos trabalhistas se converteu assim em uma ameaça permanentemente de demissão, mesmo que os índices de desemprego estejam baixos. Esse temor é amplificado por estratégias de gestão que colocam os profissionais em concorrência, numa espécie de seleção contínua. Métodos como o “20-70-10”, em que os 20% que melhor desempenham recebem aumentos substantivos, enquanto 70% permanecem estáveis e os piores 10% são demitidos submetem as pessoas a um jogo de eliminação similar aos reality shows. Nesse contexto, não há como as relações de trabalho se manterem boas. Se o sucesso de meu colega representa o risco da minha demissão, não posso ficar feliz por ele, devo antes me preocupar comigo. Trata-se de uma máquina de maus sentimentos recíprocos, em que a agressividade, o medo, a angústia, a inveja e o ressentimento são os motores da produtividade. Se houver dúvida quanto ao exagero da afirmação, sugiro o teste que Hobbes propunha aos seus leitores: que cada um examine as suas próprias emoções – no caso em questão, durante um dia de trabalho.
O resultado dessa experiência cotidiana de parcela da classe média é uma concepção do mundo como uma luta de todos contra todos no livre mercado, pressupondo acriticamente a igualdade de condições no ponto de partida. A crença cega na meritocracia faz com que toda falha na recompensa aos esforços individuais seja sentida como uma injustiça pessoal pela qual alguém deve ser culpado, e não como uma arbitrariedade cada vez mais comum em uma economia baseada na flexibilidade e na precarização. Qualquer discurso que fuja a esta crua racionalidade econômica e problematize a origem da injustiça social é repudiado como uma forma de burlar a disputa, não havendo lugar para a compaixão.
A consequência desse ethos competitivo é o repúdio de toda política de redistribuição de renda. Os beneficiários das políticas sociais são vistos como usurpadores ilegítimos dos impostos e os partidos que as promovem são acusados de interferência indevida na disputa, rompendo com a “meritocracia” e tornando-se duplamente corruptos. A desaceleração do crescimento econômico intensifica o descontentamento, pois um cenário recessivo amplia o risco de demissão e acirra a concorrência.
Boa parte da classe média tende assim a direcionar a agressividade que vive cotidianamente no trabalho, resultante dos modernos métodos de gestão, contra o governo e os trabalhadores pobres emergentes. Ainda mais quando a ascensão social pode representar o aumento de competidores qualificados dispostos a receber menores salários, resultado da ampliação do ensino superior. Pode também representar maior custo dos serviços, cujo consumo caracteriza a classe média, diferenciando-a até então da trabalhadora. A “classe C” não apenas se tornou também consumidora de serviços, reduzindo a exclusividade distintiva de classe, como ainda obteve a formalização de seus empregos e o aumento do salário mínimo, deixando os serviços braçais mais caros.
A competição, agora de classes e política, é encarada por parcela da classe média como uma luta darwiniana pela sobrevivência. Ainda mais quando o que está em jogo é quem vai pagar a conta da crise econômica. Assim como no trabalho, o inimigo deve ser eliminado ou colocado no seu lugar subalterno. O impeachment ou, mais radicalmente, a intervenção militar surgem assim como alternativas à derrota nas urnas, desqualificando os votos daqueles que recebem auxílios sociais. Mas resta a questão fundamental: mudar o partido no governo vai desfazer esse mal-estar cotidiano? Quem, afinal, ganha com a precarização do trabalho e com o aumento da competição? Certamente não são os pobres, que compartilham da mesma angústia. E não está claro que seja diretamente um partido político. Por isso, além do governo, cabe politizar também a gestão.

(Publicado originalmente no Estadão, 13 de maio de 2015)

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