pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Le Monde: Por que racializar o discurso da esquerda?
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sábado, 18 de novembro de 2017

Le Monde: Por que racializar o discurso da esquerda?

Publicamos nesta edição o segundo texto da série “Racismo na mídia e na esquerda”, cujo objetivo é diagnosticar, problematizar e combater esse tipo de opressão presente nesses setores. A seguir, confira artigo da historiadora Suzane Jardim, que pesquisa a estereotipação do negro nas mídias e atua como educadora em periferias de São Paulo
A VOZ DA RAÇA
Em dezembro de 1933, A Voz da Raça, jornal da Frente Negra Brasileira – maior organização negra existente no país até então –, respondia a um boletim “lançado pela canalha anarquista-comunista-socialista”. O texto convocava os frentenegristas a se colocarem contra “a onda estrangeira”, apontando que tais ideologias haviam surgido graças a “imigrantes que a incompetência e cegueira dos nossos governos democráticos do passado […] importaram para esmagar os negros, que vão ficando completamente à margem da vida do trabalho, visto que, em quase toda parte, não se aceitam empregados de cor”. O autor convida os “intrusos” a se retirarem com suas ideologias para que, assim, fique mais fácil para os negros resolverem seus assuntos internos.1
O texto causa estranhamento, mas a realidade dos negros da época torna compreensível toda a negação expressa: se à população negra o trabalho era negado, se viviam no subemprego exercendo funções com forte ranço escravista, qual seria a identificação possível com o discurso daqueles que vieram ocupar seus cargos e clamavam por uma revolução proletária? Se estes viviam melhor do que a população negra, que direito tinham de dar lições para um povo que resistia sozinho havia anos? O que sabiam sobre os problemas e a história do negro no Brasil? Restava, então, a identificação com as ideologias da direita que prometiam renovações imediatas, moralização e valorização da pureza racial e da trajetória histórica de todo um povo.
Vistas como pautas que dividiam os trabalhadores e impediam o avanço da luta de classes, as demandas negras nacionais só passaram a dialogar mais efetivamente com a esquerda a partir das décadas de 1960 e 1970 – época de mudanças em todo o mundo. Foi o desmonte do mundo neocolonialista, período de revoluções e ditaduras na América Latina, de inauguração do campo dos estudos pós-coloniais e da explosão da luta por direitos civis nos Estados Unidos; a esquerda passou a discutir o problema do Terceiro Mundo; o radicalismo de Malcolm X e dos Panteras Negras chegou à militância nacional; e o negro já não podia mais ser ignorado. Entretanto, como aponta Muniz Sodré ao falar sobre o pensamento do francês Badiou: “Não basta, assim, afirmar a evidência da multiplicidade humana. A percepção da diversidade vai além do mero registro da variedade das aparências, pois o olhar, ao mesmo tempo que percebe, atribui um valor e, claro, determinada orientação de conduta” (Sodré, 1999, p.17).
E qual é o valor que a esquerda atribui à história e ao ponto de vista do negro atualmente?
É inegável que o tópico “racismo” está na mídia com um alcance talvez nunca antes visto em um país onde sempre foi mascarado e velado, porém as mídias de esquerda seguem com dificuldades de dialogar com a população negra, militante ou não. Prova desse fato é a própria existência desta série – sejamos sinceros: você estaria lendo este texto, escrito por uma mulher negra vinda de escolas públicas, caso esta revista não tivesse sido rechaçada após a publicação de uma capa racista? Esta série existiria espontaneamente se não fosse por pressão?

O que vemos é uma tendência da intelectualidade de esquerda, a mesma que produz publicações como esta, em desprezar outras linhas narrativas em suas análises, em priorizar o que julga relevante, insistindo em ignorar as diferenças históricas entre negros e brancos neste país. Esse comportamento nem sempre é consciente – é automático, um narcisismo que põe a branquitude como única protagonista possível. Acompanhar as mídias de esquerda críticas ao atual cenário político constitui um ótimo exercício que confirma essa tendência.
Ninguém que se identifique com os ideais da esquerda dirá, em sã consciência, que o atual governo do país é benéfico para qualquer estrato da população que não seja o formado por empresários e banqueiros. Entretanto, parte da narrativa do golpe usada para denunciar a questão ao povo traz em si contradições. Diz-se que vivemos novos tempos, uma nova “ditadura” posta por um governo que chegou ao poder de modo ilegítimo, invalidando eleições diretas com base em acusações descabidas. Para apontar os feitos desse novo regime, o discurso se inflama mediante conduções coercitivas, prisões arbitrárias e violência policial contra manifestantes no centro da cidade – elementos que, segundo o discurso, sinalizam o fim da democracia. Lembro-me de ouvir de uma professora da Universidade de São Paulo um discurso de alerta que trazia um paralelo entre 1964 e os tempos atuais: “Sem democracia, você não tem garantia à vida, você vive com medo. A polícia pode entrar na sua casa, te prender, te torturar e te espancar como na ditadura…”.
A afirmação tocou os demais estudantes, porém soa descabida quando notamos que todos os pontos indicados sempre fizeram parte da rotina de milhões de brasileiros que jamais entraram na USP a não ser para limpar privadas. Quando foi que a população negra viveu em paz na democracia? Quando o Estado brasileiro deu de fato garantia à vida para essa população? Prisões arbitrárias, falta de direitos básicos, empregos precários e sem direitos trabalhistas, chacinas, torturas, invasões e intimidações vindas da PM são rotina para quem vive nas áreas pobres das cidades e marcas na vida da população negra desde que a escravidão teve fim; logo, conclui-se que a segurança da democracia só é efetiva para uma parcela da população e que esse discurso fatalista é baseado em uma narrativa histórica não racializada.
Fazer ressalvas para mostrar que violência e repressão sempre fizeram parte da rotina da população negra periférica não é tirar o foco dos problemas do governo Temer, mas alertar para que não se deseje que esses problemas voltem a atingir apenas um grupo específico. É atentar para outras linhas históricas que precisam ser levadas em conta na hora da crítica, da análise e da aproximação visando à luta conjunta. Legar aos tempos atuais um Estado de exceção inédito invisibiliza todo um povo nascido e criado em lugares onde a ditadura nunca acabou. A mensagem que fica é de que a violência só é mobilizadora quando atinge vocês, brancos universitários ou membros de partidos políticos; caso contrário, é cotidiana e banalizada, parte da paisagem natural da pobreza – pobreza e negritude que só aparecem de modo instrumentalizado no discurso, como o que diz que o “golpe racista” piorará a situação do negro e do pobre ao mesmo tempo que os culpa pela situação.2 É aí que voltamos ao impasse histórico inicial: se os que fazem a mídia de esquerda vivem melhor do que a população negra, que direito têm eles de dar lições para um povo que resiste sozinho há anos? O que sabem sobre os problemas e a história do negro no Brasil? Aparentemente, muito pouco. Diante da falta de identificação, cresce o apego às pautas liberais que focam a solução de problemas imediatos no campo do consumo, maquiando os problemas estruturais do sistema racista em que vivemos. Enquanto a esquerda não questionar seriamente qual é o sujeito-base que protagoniza suas análises, continuará pregando para convertidos.

*Suzane Jardim é historiadora formada pela Universidade de São Paulo, pesquisa a estereotipação do negro nas mídias e atua como educadora em periferias de São Paulo.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115  – fevereiro de 2017}



(Publicado originalmente no Jornal Le Monde Diplomatique)

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