pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : Uma leitura da Carta ao Pai, de Kafka.
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quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Uma leitura da Carta ao Pai, de Kafka.


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Largando o pai, de quem se queixa, a quem recrimina, Kafka teria de confrontar-se, sozinho e sem álibis
por Filipe Pereirinha
Aparentemente, a Carta ao pai parece desmentir a afirmação lacaniana de que “uma carta chega sempre ao seu destino”, uma vez que ela não chegou efetivamente a ser enviada e, como tal, o pai também não pôde recebê-la de fato.
No essencial, essa carta é uma longa e detalhada resposta a uma pergunta que o pai, certo dia, lhe teria feito. Kafka inicia a carta retomando a questão atribuída ao pai: “perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti”. Está assim dado o mote: como se este “medo” fosse a causa e o centro (móvel) que atrai e em torno do qual vai girando a argumentação de Kafka.
É ele mesmo quem o afirma desde o princípio: a resposta que não foi capaz de dar no momento certo, não sabendo na altura o que dizer – justamente por causa do medo que sentia em relação ao pai – aparece agora sob a forma escrita. A escrita mostra assim aquilo que não foi possível dizer de viva voz. O impossível de dizer transmuda-se em causa de desejo: o desejo de responder por escrito à pergunta do pai.
Neste aspecto, a escrita constitui uma outra resposta ao Veredicto paterno, isto é, à condenação proferida por este no conto homônimo em relação ao filho: “condeno-te a morrer afogado!” Em vez de correr loucamente em direção à água, isto é, ao suicídio, tal como acontece com o protagonista desse conto, que corre como se fosse movido unicamente pela força desta frase imperativa e condenatória do pai, Kafka experimenta aqui uma outra solução: a escrita como resposta não suicida.
Por mais que a Carta ao pai seja longa e difícil de resumir, é possível, em meu entender, destacar nela pelo menos duas grandes vertentes, separadas e unidas ao mesmo tempo por um eixo comum. Na sua maior parte, ela é composta por uma série de recriminações que Kafka dirige ao pai, como se este fosse o grande culpado dos seus problemas, em particular os que dizem respeito ao relacionamento com os outros, nomeadamente com as mulheres da sua vida, bem como da imagem de si próprio, do seu corpo ou até mesmo da relação, cada vez menos pacífica, com a escrita, como é de resto evidente numa das últimas notas dos Diários, escrita em 1923: “Sempre com mais medo de escrever. É incompreensível”.  Mesmo se Kafka modera por vezes a crítica ao pai, reconhecendo que talvez ele não seja o único culpado e que uma parte da culpa resida em si mesmo, o tom recriminatório é o que domina substancialmente em grande parte do texto nesta primeira vertente. De tal forma que aquilo que sobressai é a ideia de que o pai funciona, para Kafka, essencialmente como um sintoma; como algo, digamos, que faz sintoma, que não o deixa dormir nem, quando acorda, viver em paz.
Dizer que o pai é um sintoma pode significar pelo menos duas coisas diferentes: ou que o sintoma é ainda, em última análise, um dos nomes do pai ou, pelo contrário, que o pai é somente um dos nomes do sintoma. Ou seja: o pai é apenas um caso particular de uma função mais geral. O que pode enganar é aquilo que vemos – ou lemos – em primeiro lugar é o que, porventura, é secundário.
Porém, há uma dobra, uma viragem no texto que é preciso ter em conta. É já quase no fim daCarta ao pai. Como se recebesse do Outro a sua própria mensagem de forma invertida, como diria Lacan, Kafka escreve o seguinte: “Ao teres uma panorâmica geral da justificação do medo que tenho de ti, podias responder o seguinte”. Aquilo que se segue é uma objeção, ponto por ponto, ao raciocínio que Kafka expusera em detalhe ao longo da carta. Uma objeção que desemboca no seguinte: “A isso respondo que, antes de mais toda esta resposta […] não parte de ti mas de mim”.
Na verdade, este pai, a quem o autor endereça as suas recriminações, a quem dá a oportunidade de objetar, a quem responde de novo, não será finalmente um sintoma, êxtimo, de si mesmo, isto é, algo que é a sua coisa mais familiar (íntima) e estranha ao mesmo tempo? Talvez por isso a carta – que foi escrita e reescrita – não tenha sido nunca enviada, uma vez que o remetente coincidia, afinal, com o seu destinatário. O pai é um outro nome do sintoma-Kafka.
Há um sonho de Kafka, aliás, dos muitos que ele anotou nos seus Diários, que pode eventualmente ajudar-nos a precisar ainda melhor o que está em causa. “Sonhei há pouco tempo: vivíamos no Graben, perto do Café Continental. Um regimento virou da Herrengasse a caminho da estação. O meu pai: ‘Eis uma coisa para se contemplar, enquanto se pode’; e arroja-se para o peitoril […] e com os braços abertos estendeu-se lá fora na borda larga mas muito inclinada da janela. Eu agarrei-o por duas casas por onde passa o cinto do roupão. Cheio de maldade, ele ainda se debruça mais, eu faço toda a força para o agarrar. Penso em como seria bom se conseguisse amarrar os pés com cordas que se segurassem a qualquer coisa para que o meu pai não me pudesse arrastar. Mas para fazer isso eu teria de largar o meu pai, pelo menos durante uns instantes, e isso é impossível. O sono – o meu sono em especial – não consegue suportar toda esta tensão e eu acordo.”
Falando à maneira de Hamlet, poderíamos formular o impasse kafkiano com que este sonho nos confronta do seguinte modo: largar ou não largar o pai? Ou ainda: ser ou não ser… largado? O fato de o sonho desembocar numa tensão insuportável, que faz acordar o sonhador, parece constituir a prova de que ele se aproxima de algo real, no sentido lacaniano do termo, isto é, impossível (e o termo é de Kafka), como se o desejo de largar o pai, deixando-o à sua sorte, ficasse impossivelmente preso num outro desejo: o de não o largar. Mas por quê? O que leva Kafka a queixar-se tanto do pai, como testemunha em particular a carta que lhe é dirigida, e, ao mesmo tempo, considerar que seria impossível largá-lo? Dizendo de outro modo: o que leva Kafka a guardar para si a carta que deveria ter sido enviada ao pai, ou seja, a não largar da mão essa carta(da)?
Num texto escrito a 18 de dezembro de 1910, Kafka procurou esclarecer a difícil relação que mantinha com as cartas, tanto as que enviava quanto as que recebia, nos seguintes termos: “se não fosse absolutamente certo que a razão por que deixo cartas […] sem as abrir durante um tempo é apenas fraqueza e covardia, que hesitaria tanto em abrir uma carta como hesitaria em abrir a porta de um quarto onde um homem estivesse, talvez já impaciente à minha espera, poderia explicar-se muito melhor que era por profundidade que deixava ficar as cartas. Ou seja, supondo que sou um homem profundo, tenho então de tentar estender o mais possível tudo o que se relacione com a carta, portanto, tenho de a abrir devagar, lê-la devagar e várias vezes, pensar durante muito tempo, fazer uma cópia a limpo depois de muitos rascunhos, e finalmente hesitar ainda em pô-la no correio. Tudo isto posso eu fazer, só que receber de repente uma carta não se pode evitar. Ora é precisamente isto que eu atraso com um artifício, não a abro durante muito tempo, ela está em cima da mesa, à minha frente, oferece-se a mim continuamente, recebo-a continuamente, mas não a aceito”.
Não só estamos perante uma antecipação do que vai acontecer mais tarde relativamente à carta (não enviada) ao pai – talvez porque o próprio remetente, Kafka, não a queria receber, sabendo que era ele o seu verdadeiro destinatário, “o homem impaciente atrás da porta” –, como, ao mesmo tempo, perante uma espécie de “instinto de defesa”, como Kafka dirá a 31 de janeiro de 1922, numa passagem dos Diários: “[…] há em mim um instinto de defesa que não permite que eu tenha o mais pequeno grau de bem-estar duradouro e despedaça irremediavelmente a cama de casal, por exemplo, mesmo antes de ela estar pronta”. Instinto de defesa em relação a quê? O que ficaria desnudado ou se revelaria finalmente se, porventura, o filho tivesse largado o pai, ao contrário do que acontece no sonho?
Largando o pai, de quem se queixa, a quem recrimina, Kafka teria de confrontar-se, sozinho esem álibis, não apenas com sua própria morte, mas, antes disso, às suas dificuldades mais básicas ao nível do real do gozo, não só o gozo próprio, de um corpo que se rebela, mas também do difícil, se não mesmo impossível, relacionamento com o Outro sexo. Como escrevia Kafka em 1916, no dia 6 de julho: “Impossível viver com F. Intolerável viver com alguém. Não lamento isto; lamento a minha impossibilidade de viver sozinho”. Ou, em 10 de abril de 1922: “Quando era rapaz eu desconhecia e não estava interessado em assuntos sexuais (e assim teria ficado durante muito tempo se eles não tivessem sido lançados sobre mim) tal como hoje estou, digamos, desinteressado pela teoria da relatividade”.
A relação ambivalente de Kafka com o pai está bem manifesta na seguinte passagem: “A escrever cartas no quarto dos meus pais – as formas que o meu declínio assume são inconcebíveis! Este pensamento ultimamente, que em criança fui derrotado pelo meu pai e que por ambição nunca fui capaz de sair do campo de batalha durante todos estes anos apesar das contínuas derrotas que sofro…”.
Por que não abandona ele o campo de batalha? Não se dará o caso de estar não apenas vencido (continuamente), mas já morto e não o saber? Eis o que parece confirmar o próprio Kafka, como se tivesse atravessado a sua fantasia fundamental, a 23 de janeiro de 1922: “A minha vida é o hesitar antes do nascimento”. Tal como as personagens dos seus romances estão condenadas, por exemplo, a errar em vão, a transformar-se em estranhos insetos ou a morrer como cães, o próprio Kafka parece condenado a não ter nascido. Não se trata apenas de ocupar o lugar do morto ou dos mortos, mas, mais do que isso, de aproximar-se de uma zona onde, como diz Édipo em Colono, seria preferível não ter nascido. E, nesse caso, toda a obra é vã, como nos lembra o testamento de Kafka para que a mesma fosse destruída.
Em jeito de balanço de uma vida, em 17 de janeiro de 1922, ele escrevia o seguinte: “Um momento de pensamento: resigna-te (aprende, quarentão) a ficar contente no momento (sim, já foste capaz de o fazer). Sim, no momento, o terrível momento, não é terrível, o medo que tens do futuro é que o faz assim. E também, olha para trás, para ele. Que fizeste como dom do teu sexo? É um fracasso, no fim é tudo o que vão dizer. Mas poderia ter sido facilmente um sucesso. Uma ninharia, de fato tão pequena que não se via, decidiu entre o fracasso e o sucesso. Por que estás surpreendido? Foi assim nas grandes batalhas da história do mundo. Ninharias decidem sobre ninharias”.
Estaria, pela minha parte, tentado a dizer, em jeito de conclusão, que o real é isso: ninharias decidindo ninharias. Ninharias sem lei. Acasos que fazem série, que nos tramam. E é por isso, talvez, que, em certa medida, somos todos kafkianosTodos tramados, embora cada qual à sua maneira, pelos acasos de um real sem lei.
E não será, finalmente, porque se defendem dessa ausência de lei (desse nonsense do real) que muitas personagens kafkianas, incluindo o próprio Kafka, não param de se torturar a si mesmas ou de gravar na própria carne, como acontece por exemplo na Colônia penal, uma lei insensata e que parece ter sido feita à medida de cada um?
Deste ponto de vista, não se trata de compreender a verdade de Kafka, muito menos da obra, por meio da sua relação problemática com o pai, mesmo se podemos facilmente cair na armadilha, mas antes ver nesta relação o nome e o modo de uma “defesa contra o real sem lei e sem sentido”. Um real de que as maiores criações de Kafka se aproximaram de tal modo que, para nós, elas se tornaram no seu nome próprio: o nome próprio de um certo real. É por isso que, muitas vezes, quando nos falta um nome ajustado para aquilo que queremos nomear, mas que não conseguimos, nos ocorre dizer: kafkiano.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

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