pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : agosto 2018
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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Crônica: Viator ou, simplesmente, Guimarães Rosa.


 
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José Luiz Gomes


A Livraria José Olympio Editora, há alguns anos atrás,  instituiu um concurso literário para homenagear o escritor maranhense Humberto de Campos. O escritor Graciliano Ramos, amigo de José Olympio, integrava o júri desse concurso. Como seria natural, todos os anos, a editora recebia milhares de folhas escritas, de todo o país, com candidatos a escritores procurando um lugar ao sol ou a uma sombra no campo literário. Um desses concursos, realizado no ano de 1938, foi vencido pelo escritor pernambucano Luiz Jardim, que acaba de ganhar um estudo de sua obra, escrito pelo escritor e editor Sidney Rocha, publicado numa das edições da revista Hexágono. Graciliano pegou para ler um calhamaço de mais de quinhentas páginas de contos, assinado por um tal de Viator. O autor de Caetés, num desses momentos de sinceridade, admite que, nessas ocasiões, torcia para que, logo de início, o trabalho fosse rejeitado, em razão da má qualidade das primeiras páginas, evitando o transtorno de ir até o final da obra.

Para a sua surpresa, no entanto, não foi bem isso o que ocorreu com o tal livro assinado com o pseudônimo de Viator, fato que instigou o alagonao a ler todos os contos ali existentes. O livro escrito por Viator não ganhou o concurso, mas mereceu, digamos assim, uma menção honrosa, levando Graciliano a aconselhar a José Olympio a publicá-lo, quem sabe, suprimindo alguns contos que distoavam um pouco da qualidade do texto do livro como um todo. Infelizmente, à época, ninguém conseguiu localizar o tal Viator. Apesar de Viator ter perdido o prêmio para Luiz Jardim, Graciliano reconhecia a qualidade do seu texto. José Olympio chegou a sugerir a Graciliano que escrevesse um artigo, uma espécie de anúncio, mas todas as buscas se mostraram inúteis. Em fins de 1944, escreve Graciliano, Idelfonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-lhes a João Guimarães Rosa, secretário da embaixada, recém chegado da Europa.  
- O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
-Como era o pseudônimo.
-Viator.
-Ah! O senhor era o médico mineiro que andei procurando.
-Idelfonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário da embaixada.
-Sabe que votei contra o seu livro.
-Sei. Respondeu-me sem nenhum ressentimento.  
O Livro? Sagarana, que depois foi publicado pela Editora Universal, em 1946. A recepção do livro Sagarana pela crítica foi muito boa, embora, evidentemente, não tenha alcançado o mesmo êxito de Grande Sertão:Veredas. Num rompante de deslumbramento com a obra de Guimarães Rosa, em carta ao escritor Fernando Sabino, a poetisa Clarice Lispector assim se expressa: "Aflita de tanto gostar. Nunca vi coisa assim. Adeus, literatura nordestina de cangaço, zélins, gracilianos e bagaceiras: o homem é um mostro para escrever sobre jagunços do interior de Minas e com uma linguagem que nem Gil Vicente, nem ninguém."


P.S.: A leitura da crônica, publicada em Linhas Tortas, não sugere que o escritor Graciliano Ramos tenha votado contra o livro Sagarana, de João Guimarães Rosa. Muito ao contrário. Estabeleceu-se uma contenda e um empate técnico entre o livro de Guimarães Rosa e o livro de Luiz Jardim, não citado. Um voto de minerva é que decidiu a disputa em favor do escritor pernambucano. Convencido da qualidade do texto do escritor mineiro, Graciliano intercedeu junto a José Olympio para publicá-lo, mesmo não tendo vencido o certame literário.

Só a luta popular salva o SUS





André Vianna Dantas



“O orçamento da saúde no Brasil é de R$  130 bilhões, o da educação é de R$ 110 bilhões. Então os cinco maiores bancos cobram, só de tarifa, mais que esses dois orçamentos, quase que o tamanho do déficit brasileiro. Se hoje em dia as pessoas soubessem como funcionam as coisas, os pobres e a classe média fariam uma revolução”.

A contundente afirmação que você acabou de ler não é de um candidato da esquerda à presidência da República, nem de um intelectual universitário ou de um militante do movimento da reforma sanitária brasileira. Seu autor é Eduardo Moreira, economista e ex-sócio do antigo Banco Pactual. Curiosamente, um ex-banqueiro é quem identifica a perda de combatividade da luta popular, que só tem resultado em derrotas.

O Sistema Único de Saúde, parido pela Constituição Federal de 1988, é a política social de maior envergadura da Nova República. De lá pra cá, são 30 anos de um equilíbrio instável entre conquistas e também imposições de limites à sua expansão. O subfinanciamento é a maior expressão dessa tensão. Segundo dados de 2017 divulgados pela Organização Mundial de Saúde, a OMS, os gastos públicos do Brasil com saúde estão entre os mais baixos do mundo, atrás da média de gastos dos países das Américas, da África e da Europa.
É comum entre os sanitaristas a reclamação de que até hoje nenhum governo levou o SUS a sério e tomou para si a tarefa de expandi-lo e consolidá-lo – ainda que em quase metade desse tempo a presidência da República tenha estado nas mãos do PT, originário da mesma luta popular contra a ditadura empresarial-militar da qual emergiu o movimento sanitário.
A produção de estudos sobre o subfinanciamento, a publicação de notas públicas por entidades representativas do setor, a formação de campanhas e frentes políticas defendendo mais recursos e as tentativas de construção de maiorias no Congresso Nacional para a superação desse gargalo não foram poucas.
A realidade parece nos mostrar que o papel do Estado é, em última análise, defender os interesses de manutenção e avanço do sistema do capital.
Será, então, mero acidente de percurso que durante três décadas a tão buscada correlação de forças favorável ao SUS não tenha dado o ar da graça? É a mera existência de cúpulas governamentais descompromissadas e articulações partidárias malsucedidas que explicam a perda de terreno do SUS? Acredito que não.
Um outro caminho de entendimento pode ser buscado no fato de que as reconhecidas lideranças individuais e coletivas do setor saúde, que formularam o projeto da reforma sanitária, se dedicaram à construção do SUS pela via gerencial do sistema por apostarem na harmonização de interesses entre capital e trabalho, acreditando que o Estado poderia ser o fiel da balança dessa convivência pactuada.A realidade parece nos mostrar, sobretudo depois do golpe parlamentar de 2016 que, embora necessária a luta por direitos e democracia, o papel do Estado é, em última análise, defender os interesses do sistema do capital, a despeito de governos e da qualidade de vida dos trabalhadores.
E o que está em disputa hoje é o Fundo Público. Constituído principalmente a partir da arrecadação de impostos e contribuições, representa toda a capacidade de mobilização de recursos que permitem a intervenção do Estado na economia. É, portanto, a principal fonte de financiamento das políticas sociais.
Atualmente, a gestão da dívida pública interna é, disparado, o principal mecanismo de transferência de recursos desse fundo para o capital privado, especialmente os bancos. Segundo dados apurados pela ONG Auditoria Cidadã da Dívida, do orçamento federal executado em 2017, na casa dos R$ 2,483 trilhões, quase R$ 1 trilhão (39,7% do montante) foi destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida.
Em 2017, o bolsa empresário consumiu mais R$ 280 bilhões, mais duas vezes o orçamento federal da saúde previsto para 2018.
O fenômeno não é novo, embora venha se intensificando na medida em que se agravam as condições de saúde do capital. Marx, em 1867, já alertava: “A dívida pública converte-se numa das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva. Como uma varinha de condão, ela dota o dinheiro de capacidade criadora, transformando-o assim em capital”.
A sangria de recursos não para por aí. As desonerações e subsídios concedidos pelo governo federal a grandes empresas, embutidos em operações de crédito e financeiras, alcançaram a cifra de quase R$ 1 trilhão, entre 2003 e 2016, segundo dados do próprio Ministério da Fazenda.
Em 2017, o bolsa empresário, como é conhecido o programa de incentivo governamental, já consumiu mais R$ 280 bilhões – o equivalente a mais de duas vezes o orçamento federal da saúde previsto para 2018. O golpe de misericórdia no SUS e nas políticas sociais, no entanto, foi a Emenda Constitucional (EC) 95, aprovada em 2016 já sob Temer, que congelou as despesas da União por 20 anos.
Segundo a nova regra, na prática os recursos que anualmente se destinam para a saúde (e educação) deixam de estar atrelados a eventuais aumentos futuros da arrecadação. Isto significa que a participação das despesas dessa natureza diminuirão potencialmente em relação ao PIB, contrariando a lógica de proteção social justamente num momento de crise econômica e das expectativas de crescimento populacional (e consequente aumento de despesas) para as próximas duas décadas. Projeções do economista Francisco Funcia apontam para perdas superiores a R$ 400 bilhões no período de vigência da emenda. Não por acidente, mantêm-se intactos os recursos públicos destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública.
Como parece ficar claro, de pouco adianta clamar por mais recursos para o SUS se ignoramos o verdadeiro centro da disputa. O subfinanciamento do sistema nada mais tem sido do que expressão da nossa derrota na disputa pelo Fundo Público. O Estado, mesmo que disputável nas suas franjas, é estruturalmente operador dessa expropriação.
Se o SUS foi produto de luta social potente, nas ruas, sua defesa não poderá obedecer a outra exigência.
Os tempos estão mais duros, mas o céu nunca foi de brigadeiro. A luta por sobrevivência, melhoria das condições de vida, dos direitos democráticos e a busca da emancipação plena foi sempre uma exigência histórica que pesou sobre os trabalhadores. No Brasil e no mundo, o estudo da história não nos autoriza a apostar em conquistas civilizatórias que não tenham sido produzidas por lutas sociais de peso, para além das eleições e da ocupação de cargos públicos ou em entidades.
Se o SUS foi produto de luta social potente, nas ruas, sua defesa não poderá obedecer a outra exigência. Saídas consensuais, pactuadas, disputas eleitorais, documentos, manifestos, abaixo-assinados e lobbies no parlamento não serão suficientes para conter a reverter a escalada global do drama social e de produção da barbárie que vivemos. Nem na saúde nem fora dela.

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Crônica: Macunaíma




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José Luiz Gomes


Geralmente, Pierre Bourdieu, os “campos” são bastante unidos quando estão em jogo os seus interesses corporativos. Aqui, o discurso é surpreendentemente sincronizado, lançando suas baterias contra aqueles que não estão legitimados para entrarem no “clubinho”. Naturalmente, como o ser humano é bastante vaidoso, existem as disputas internas, notadamente em busca do olimpo, entre os membros de cada "campo" específico, uma disputa que dá não necessariamente orientada por princípios éticos. Chegam ao olimpo aqueles atores que atingem o ápice em cada campo específico, como Marilena Chauí, no campo filosofico, Machado de Assis, no campo literário e Jânio de Freitas, no campo jornalistico. Outro dia um amigo queixava-se que Marilena Chauí atingiu esse estágio sem sequer falar inglês. Imagina? 

Já estamos numa fase final de leitura das crônicas do escritor alagoano, Graciliano Ramos, numa época em que o grande escritor alagoano ainda escrevia para os jornais do Estado. Como se diz lá para aquelas bandas das terras de quilombos onde o autor de Vidas Secas nasceu, agora é que a chapa começa a esquentar. Ontem o alagoano não se conteve e resgou o verbo numa avaliação do romance de estreia de Dinah Silveira de Queiroz, Floradas na Serra apontando que a menina abusava das preposições. Num único parágrafo, usou-as seis vezes. Graciliano não perdoou a falta de criatividade da aspirante ao campo literário. Salvou-a pela construção dos diálogos, que a colocava ao mesmo nível de um Jorge Amado, de uma Raquel de Queiroz e do amigo José Lins do Rego. 

Não se sabe muito bem se guiado por alguma motivação específica, o fato é que, de volta ao Brasil, o escritor de Macunaíma, Mário de Andrade, resolveu elaborar uma lista separando o joio do trigo entre os escritores brasileiros. De uma lado, os bons, os verdadeiros homens do ofício das letras. De outro, os charlatões, de munheca pesada e cérebros turvos, que não escreviam lá grandes coisas. Para ser mais preciso, não sabiam escrever. Em resposta, o cronista sergipano Joel Silveira produziu um longo artigo, rebatendo Mário de Andrade. Polêmicas à parte, não vamos aqui entrar no mérito das assertivas de Mário de Andrade, até mesmo por uma questão de bom senso, além de não reunirmos condições de avaliar a contenda.  
 
Mas, por outro lado, não posso deixar de registrar aqui as observações de Graciliano Ramos sobre essa discussão, carregando pesado na ironia: “Podemos supor que Joel Silveira valha mais de um tostão? Não podemos, razoavelmente, porque ele chegou perto de nós e gritou: Eu sou um tostão. Entretanto, Joel Silveira inventa uns negócios que sujeitos entendidos elogiam. Ora, se Joel, tão arrastado, tão amarelo, tão barato, faz contos e crônicas interessantes, por que não faremos nós coisa igual? Mexamo-nos, fundemos sociedades e pinguemos em revistas cinco vinténs de literatura. Um desastre. É necessário por fim a essa confusão, que nos pode render muito prejuízo. Já existe por aí uma quantidade enorme de livros ruins. E o senhor Joel Silveira não é tostão. Nunca foi. Escreveu um excelente artigo para demonstrar que não saber escrever”.

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

domingo, 26 de agosto de 2018

Crônica: Papa Machado de Assis

 
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José Luiz Gomes
 
Na semana passada li uma grande matéria sobre o centenário do critico literário Antônio Candido. Sem nenhum exagero, o articulista o apontava como um dos grandes intérpretes do Brasil, bem ali ao lado de Gilberto Freyre, Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado. Entre outros, Manuel Correia de Andrade, que, quando vivo, organizou uma série de seminários com os "novos" intérpretes do Brasil. Mas, o núcleo da matéria tratava de sua tese de doutorado, onde o então acadêmico, professor da USP, enfurnou-se numa cidadezinha do interior paulista para estudar o modo de vida daquela comunidade rural. Apesar de ser um estudo de caso, já ali o mestre antecipava as mudanças substantivas que se tornariam a regra das alterações do modo de vida das comunidades rurais no país. Vivo fosse, certamente Antonio Cândido me autorizaria a colocar Machado de Assis na condição de nosso papa, entre os escritores nacionais,assim como ocorre com Ernest Hemingway, em relação aos americanos.
 
Talvez isso não ocorra entre os escritores nacionais, mas, nos Estado s Unidos, os romancistas sofrem de uma espécie síndrome de Ernest Hemingway. Há, entre eles, uma tendência a tentar imitar o seu estilo, quase como uma reverência ao mestre, autor de Por Quem Os Sinos Dobram. Hemingway era muito exigente com a sua escrita. Há relatos que dão conta de que ele não escrevia mais do que 500 palavras por dia, deitado, sempre pela manhã. Confessou certa vez a Scott Fitzgerald que uma dessas páginas era uma obra prima e o resto ele atirava ao lixo. Ao menos se vestia, diferentemente de Victor Hugo e Franz Kafka, que escreviam nus. Um dos seus fãs reescreveu todas as palavras de um dos seus livros para tentar assimilar o seu estilo. Não tenho dúvida de que a incapacidade de escrever precipitou o seu suicídio. O serviço secreto americano desconfiava de sua relação com o governo revolucionário cubano, mas nada ficou devidamente comprovado, exceto que tais perseguições não eram fruto de alguma mente doentia. Fidel encontrou-se com ele uma única vez, durante um concurso de pesca do marlim, vencido pelo escritor. Depois da revolução, sua casa foi confiscada e transformada num biblioteca pública.
 
Sobre o "Papa", reproduzo aqui um trecho de uma crônica do escritor alagoano, Graciliano Ramos, tratando deste assunto: "Tanto se repetiu o nome do velho presidente da academia com a afirmação de que ele influía demais na produção de hoje, que o homem se tornou odioso. Se um sujeito admitia a concordância e não trocava o lugar das palavras, o jornal diria: Bem. Isto e Machado de Assis. Se o camarada evitasse o chavão e não amarrava três adjetivos em cada substantivo, a explicação impunha-se. Muito seco, duro. Esqueleto. Machado de Assis. Faltavam num livro cinquenta páginas de paisagem? Claro. Esse homem aprendeu isso com Machado de Assis. É a história da casa sem quintal. E quando  senhor Marques Rabelo publicou Oscarina. Contos? Machado de Assis. Não há outro."  
 
 

Charge! Renatto Aroeira

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sábado, 25 de agosto de 2018

O pastor e o professor

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     Nascido em Atlanta no dia 15 de janeiro de 1929, Martin Luther King Jr., foi um grande ativista político. Considerado um líder de relevância para o movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos da América. Sua luta se estendeu pelo mundo, defendendo o fim da violência e promovendo a prática da alteridade.

     Em 1955, Luther King esteve à frente do boicote aos ônibus de Montgomery, além de ser cofundador da Conferência da Liderança Cristã do Sul, em 1957. Na famosa Marcha sobre Washington em 1963, proferiu o discurso “I Have a Dream” (Eu Tenho Um Sonho). Mas no a no de 1968, em Memphis, Luther King foi assassinado. Calaram sua voz, mas não seus ideais.

     No dia 18 de julho de 1918, Mvezo (África do Sul), nasceu Nelson Rolihlahla Mandela. Considerado um rebelde, antes de tudo, até hoje, é o mais importante líder da África. Mandela nasceu em uma família nobre, entretanto, aos 23 anos recusou a chefia da tribo, seguindo para Joanesburgo, dando início a sua atuação política. Nelson Mandela passou 27 anos encarcerado, transformando-se no prisioneiro mais famoso do mundo. Provocando movimentos internacionais em defesa da sua liberdade. Ferrenho defensor dos Direitos Humanos, Mandela foi preso por causa da segregação racial que dominava politicamente o seu país. Falecendo no dia 05 de dezembro de 2013, em Joanesburgo, recebeu honrarias de chefe de Estado, pois chegou à presidência do seu país.

      Acontece que o leitor deve indagar o que tem haver Luther king com Mandela? Antes de tudo, ambos foram ativistas políticos que ganharam notoriedade internacional.  Lutaram em defesa dos Direitos Humanos. Se vivessem no Brasil seriam rotulados irresponsavelmente de defensores de bandidos, já que muitos atribuem ser um ramo do Direito que visa exclusivamente proteger facínoras. Ganharam o Prêmio Nobel da Paz. Eram protestantes. Luther King foi pastor e Mandela professor da Escola Bíblica Dominical da Igreja em que era membro. Algo que no Brasil seriam no mínimo acusados de intransigentes ou alienados.  Não é debalde a falta de menção, ora por desconhecimento histórico, ora por questões preconceituosas.  

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Charge! Tacho via Jornalistas Livres

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Crônica: Graciliano, o crítico literário


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José Luiz Gomes

Ao assumir sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, por ocasião do momento protocolar de saudação ao ocupante anterior, o escritor José Lins do Rego quebrou as regras e proferiu um discurso contundentemente crítico sobre a pobreza literária de Ataulfo Paiva. Naturalmente, Bourdieu, isso não ficou nada bem no contexto daquele campo literário, onde as expectativas se orientavam por saudações  meramente protocolares, ensejando, quiçá, rasgados elogios ao antecessor. A repercussão foi tão negativa que, a partir de então, as saudações teriam sido abolidas da cerimônia de posse dos novos imortais. Já àquela época, convém considerar as críticas do escritor de Fogo Morto não apenas a Ataulfo Paiva, mas, a rigor, a própria Academia Brasileira de Letras, cujos critérios de admissão já estavam corrompidos, com eleição de escritores sem livros e, pior, até denúncias de fraudes. Portanto, "A sua vida foi um five o'clock em casa de Dona Luarinda" bem que poderia servir como carapuça aos demais imortais.

Alguns escritores são muito exigentes consigo mesmo. Por vezes, o próprio estilo da escrita denota essa “depuração”, como é o caso, por exemplo, da obra do escritor alagoano Graciliano Ramos. São textos rigorosamente enxutos, por vezes áridos ou agrestes, identificados com a sua personalidade. Até os títulos indicam isso: Vidas Secas, Angustia, Infância. O cronista Graciliano Ramos escrevia para dois jornais alagoanos. Em termos de linha editorial, esses jornais constituíam um binômio de oposição. Um era uma espécie de Diário Oficial, ou seja, concordava com todos os atos do Governo. O outro, um jornal bastante crítico, que não concordava com absolutamente nada. Difícil mesmo, como ele observa, era se equilibrar entre esses dois extremos. Neste último, o ponto de equilíbrio significava, naturalmente, dar vazão à sua verve ácida e meter o pau, com críticas políticas, de costumes e, também, literária. 

Aparentemente, as relações entre Graciliano Ramos e José Lins do Rego eram muito boas. Ambos participaram dos círculos literários de Maceió e, José Lins deu aquele “empurranzinho” para viabilizar a publicação de obras do escritor alagoano. Li, por exemplo, muitos elogios de Graciliano ao colega paraibano, a quem dizia que usava bota de sete léguas, numa referência à sua extensa produção literária. Um segredo de alcova - pouco conhecido, se não não seria de alcova - é que, num desses momentos de sinceridade, Graciliano Ramos deixa escapar uma dura crítica ao conterrâneo: mas se até o José Lins é escritor... Dizia Gracialiano que a coisa mais fácil do mundo é fazer crítica literária. Num texto carregado, pedia aos leitores para retirarem dali os chavões, os galicismos e as tolices e observassem o que restava. Pouca coisa de concreto. Algo que denota apenas a indisposição dos "legitimados" aos calouros que objetivam entrar no "clube".

Sempre condizente com a linha editorial dos dois jornais onde escrevia, um crítico e um a favor, Graciliano brincava com os textos de ambos, quando, por exemplo, analisava os sonetos de uma tal poetisa Mlle.Gertrudes, possivelmente um nome ficcional. Hoje me ocorreu ser bem possível que essa observação ao escritor e amigo José Lins do Rego tenha surgido, possivelmente, no bojo de algum texto seu, quiçá, publicado no jornal do contra, aquele em que, contingenciado pela linha editorial do vespertino, o Velho Graça identificava-se com a franqueza e a imparcialidade que caracterizavam sua personalidade. Talvez. Nunca saberemos.

Charge! Benett via Folha de São Paulo

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quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Le Monde Diplomatique: A economia política do fascismo

O fascismo mais evidente, explicitado politicamente, tende a vir à tona em conjunturas econômicas difíceis

Nos anos 1930, década da maior crise econômico-social já ocorrida no capitalismo, o mundo se viu às voltas com o surgimento e crescimento do nazismo na Alemanha e de ideias e movimentos fascistas, que acabaram por assumir o poder em diversos países – principalmente na Europa, mas não exclusivamente.
A sua consequência mais imediata foi a instalação nesses países de regimes ditatoriais (Estados policiais), que destruíram o Estado de direito típico das democracias liberais: fechamento ou controle dos parlamentos, subordinação do judiciário às necessidades do regime de exceção, extinção da liberdade de imprensa e de opinião, suspensão das garantias individuais do cidadão, proibição de reunião e associação sindical e partidária e, no limite, prisões arbitrárias, torturas e assassinatos.
O seu desdobramento mais deletério foi a Segunda Guerra Mundial, que envolveu praticamente todos os países e regiões do planeta, resultando em 50 milhões de mortos, com a chacina e o genocídio assombroso de populações civis, em especial judeus, ciganos e outras minorias étnicas, homossexuais e deficientes físicos e mentais. Ao final do conflito (1945), o nazismo e o fascismo foram derrotados em todas as frentes (apesar de sua sobrevida em Portugal e na Espanha); mas logo a seguir instalou-se a chamada Guerra Fria, entre o capitalismo (com o seu Estado de bem-estar social nos países centrais, mas não na periferia) e o socialismo soviético – disputa encerrada pelo desmoronamento interno deste último, no início dos anos 1990.
A partir daí, entrou-se em um período de hegemonia absoluta do imperialismo dos Estados Unidos, apoiado no ideário neoliberal e acompanhado pelos processos de reestruturação produtiva e financeirização do capitalismo em escala mundial; ambos difundidos pela mundialização do capital (a chamada globalização). Os resultados daí decorrentes foram ficando cada vez mais explícitos com as sucessivas crises econômicas; primeiro nos países periféricos (anos 1990) e em 2008 no centro do capitalismo (os Estados Unidos).
Ao lado dos avanços tecnológicos até então inimagináveis e do extraordinário crescimento da riqueza material, evidenciou-se o aumento escandaloso da concentração da riqueza e da renda em quase todos os países, crescimento da pobreza, distanciamento cada vez maior entre os países centrais (ditos desenvolvidos) e os países periféricos (subdesenvolvidos), elevação do desemprego estrutural e precarização do trabalho, desmoralização da democracia liberal (dos parlamentos e políticos profissionais, dos judiciários e seus agentes, da mídia corporativa dominada pela plutocracia). Tudo isso acompanhado pela criminalização da política, xenofobia, homofobia, misoginia, racismo e… a volta do fascismo – no mundo e no Brasil.
O filósofo e escritor italiano, Umberto Eco, constatou, acertadamente, que o nazismo foi uma experiência única, localizada na Alemanha na primeira metade do século XX; diferentemente do fascismo, que existiu, e pode existir e se reproduzir, de várias maneiras e formas em distintos lugares e épocas. Mas, ao falarmos de fascismos, no plural, estamos afirmando também que existe um “núcleo duro” comum a todos eles que os igualam. Então, quais seriam as características ou atributos que definem qualquer tipo de fascismo? A resposta a essa questão é decisiva, condição necessária embora não suficiente, para compreendermos fenômenos como, entre outros, Trump nos Estados Unidos, a Frente Nacional na França, a Liga Lombarda na Itália e Jair Bolsonaro no Brasil; bem como termos a exata noção e dimensão do perigo e do fantasma que ameaçam atualmente a convivência civilizada nas sociedades contemporâneas.
O fascismo mais evidente, explicitado politicamente, tende a vir à tona em conjunturas econômicas difíceis (como a brasileira atualmente e o centro do capitalismo desde meados dos anos 2000) de crise (desemprego, precarização do trabalho, queda da renda e aumento da pobreza) que penaliza a maioria da sociedade, especialmente os grupos e camadas que caem na escala social: que descem econômica e socialmente, que mudam para pior o seu status social. É principalmente nessa parte da população, atingida pela crise de modo particular, e também entre aqueles que, potencialmente, podem vir a cair, que o fascismo pode proliferar e recrutar seus apoiadores.
Essa hecatombe social, que atinge duramente o modo de vida desses indivíduos, é sentida como uma derrota pessoal e uma enorme injustiça (o que de fato é); sentimento que pode (não necessariamente, portanto) ser transformado em rancor, ressentimento e ódio contra o status quo (o sistema vigente) – qualquer que seja este último. O fascismo apelará a esse grupo de “perdedores” frustrados com um conjunto de ideias e sentimentos difusos e confusos, como explicação para a situação desfavorável em que se encontram – ignorando e obscurecendo as razões e contradições mais profundas do desenvolvimento capitalista, que levaram à crise.
Em primeiro lugar, o fascismo traz um apelo fortemente emocional contra o “outro”: imigrantes, minorias étnicas (como ciganos), judeus, comunistas, homossexuais, negros, nordestinos no caso do Brasil, mulheres independentes e/ou feministas (misoginia), vagabundos e marginais de todo tipo, moradores de rua, sem teto, sem terra etc. Tudo misturado, o “outro” é o responsável (culpado) direto, ou indireto, pela situação desfavorável vivida pelo indivíduo, o perigo a ser combatido – devendo ser negado liminarmente e, se possível, ser eliminado simbólica e/ou fisicamente.
Em segundo lugar, exatamente pelo fato do “outro” ser tão heterogêneo, os argumentos políticos contra ele, que procuram desqualificá-lo e criminalizá-lo, são sempre toscos, confusos e contraditórios, primários, quase infantis. Por isso, a racionalidade e a coerência não são o forte do fascismo; o que o leva a mobilizar seus potenciais adeptos (o fascismo é fortemente mobilizador!) apelando para o senso comum e sentimentos/emoções irracionais – que não são passíveis de serem entendidos nem explicados minimamente de forma lógica. Essa característica se expressa, de forma inequívoca, no líder fascista – que encarna toda a irracionalidade dessa ideologia regressiva.
Por fim, o fascismo, por definição, é autoritário e antidemocrático pela própria natureza: não admite a presença e a participação do “outro”, podendo, no limite, fazer uso de violência paramilitar. Tem como um dos seus principais aliados os sentimentos de “raiva”, “medo” e “insegurança”: raiva dos que decaíram socialmente e medo e insegurança dos que ainda não desceram na escala social, mas se sentem ameaçados (de fato ou subjetivamente). E, para coroar, apresenta soluções simplórias (e perigosas) para problemas complexos, soluções compatíveis com o senso comum e a diminuta capacidade intelectual de seus militantes e potenciais apoiadores, movidos fundamentalmente por emoções negativas (rancor, ódio e inveja). Exemplo: propor que a população adquira armas, como resposta à insegurança e criminalidade.
No Brasil, na atual conjuntura, o fascismo, além de apresentar as características listadas acima, se constitui também de uma mistura bizarra de moralismo (no âmbito do comportamento, dos costumes e da cultura), fundamentalismo mágico-religioso reacionário (difundido principalmente, mas não apenas, por variadas denominações evangélicas), ideologia da meritocracia e do empreendedorismo (avessa às políticas sociais, aos impostos e a tudo que é público), negação dos direitos humanos e apelo à violência e às formas mais extremadas de repressão policial (justificadas pela necessidade de segurança), e exaltação do individualismo, da competição e do mercado como valores maiores da vida social. É o fascismo brasileiro da era neoliberal, com fortes vínculos religiosos, abertamente pró-capital e que tem apoio e expressão importante no âmbito das instituições do Poder Judiciário e do Ministério Público – que vem contribuindo, juntamente com a “direita moderna neoliberal”, para legitimar a construção de um Estado de exceção no país, cuja ponta de lança, operacional e simbólica, é a Operação Lava-Jato.
Essa estranha mistura ideológica amplia, para além dos “perdedores”, os segmentos sociais potencialmente sensíveis ao fascismo; em especial atinge parte daqueles que conseguiram ascender socialmente (tiveram sucesso) na Era Lula (regredindo ou não posteriormente), mas que acreditam que isso ocorreu exclusivamente por esforço individual e mérito próprio, sem qualquer vínculo com políticas públicas, e cuja sociabilidade se dá fundamentalmente através da religião – e não, ou muito secundariamente, através do trabalho.
Nesse segmento de “classe média baixa”, o sucesso econômico-social, sempre individual, é justificado pelo merecimento (a teologia da prosperidade), um prêmio (uma benção) de Deus àqueles que trabalham disciplinadamente e que seguem os seus ensinamentos (os da igreja). Os que não conseguem obter sucesso (a maioria) é porque não se esforçaram o suficiente e, por isso, não têm o merecimento e a chancela de Deus. A experiência individual é extrapolada, indevidamente, para o conjunto da sociedade através da ideologia da meritocracia, associada também a uma espécie de teologia mercantil: uma troca interessada entre o Deus e o fiel (é dando que se recebe).
Adicionalmente, o “fascismo brasileiro”, na atual conjuntura político-econômica, também tem forte apelo entre segmentos importantes da massa pobre marginalizada, totalmente precarizada e sem qualquer tipo de organização política (trabalhista, partidária etc.). E por fim, o seu atual candidato a Presidência da República, Jair Bolsonaro, sensibiliza parte da população jovem desinformada e despolitizada, mas que tem presença nas redes sociais e que enxerga nele um “comportamento supostamente transgressor”, distinto dos demais políticos profissionais – em geral desmoralizados.
Aqui vale uma observação importante: a maioria das pessoas que faz parte desses grupos, potencialmente sensíveis na atual conjuntura, por diferentes razões, à mensagem fascista, não são politico-ideologicamente fascistas. Na verdade, elas expressam uma decepção enorme com a sua condição de trabalho e de vida, associada à total descrença com a política institucional, os partidos e, no limite, a própria democracia. Os sentimentos de insegurança (em todos os níveis) e impotência conspiram contra a possibilidade de conceber planos e imaginar o futuro de suas trajetórias de vida. Uma ausência completa de perspectiva, restando apenas o aqui e o agora.
Em suma, o fascismo, mais do que um credo político, é uma visão (prática) social do mundo reacionária (anti-iluminista) e um modo de sociabilidade, que procura influenciar e dirigir a vida cotidiana das pessoas – separando-as em grupos dotados, segundo ele, de especificidades irredutíveis. Na atual conjuntura brasileira ele vem acompanhado pelo racismo biológico e/ou cultural (discriminando principalmente negros e nordestinos), machismo, misoginia e homofobia.
Em qualquer lugar, o fascismo situa-se na extrema direita do espectro político-ideológico e se caracteriza pela defesa da propriedade privada de forma absoluta e do capitalismo – sendo visceralmente anticomunista ou mesmo antisocialdemocrata. Por isso, a depender das circunstâncias (como na Itália fascista de Mussolini), pode ser utilizado e apoiado pelo grande capital (hoje, a grande burguesia financeirizada) – quando este se sente fortemente ameaçado em seus interesses de classe. Reuniões recentes de Bolsonaro com agentes do capital financeiro e grandes empresários aplaudindo, rindo e se divertindo são sintomáticas: Mussolini e Hitler, histriônicos como Bolsonaro, no início também eram considerados irrelevantes, “folclóricos” e engraçados, quase que palhaços (com o perdão destes). Na sequência, a história se mostrou trágica.

*Luiz Filgueiras é professor titular da Faculdade de Economia da UFBA. Doutor em Teoria Econômica pela Unicamp e pós-doutorado em Política Econômica pela Universidade Paris XIII. Autor do livro História do Plano Real (São Paulo, Boitempo, 2000; última edição em 2016) e coautor do livro Economia Política do governo Lula (Rio de Janeiro, Contraponto, 2007).

Guernica, Pablo Picasso. Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madrid
 

Editorial: O combate à violência em Honduras



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Salvo melhor juízo, o sociólogo Francisco Weffort teria produzido alguns trabalhos teóricos apontando uma tendência populista ou autoritário entre os países colonizados do continente latino americano. De concreto, pode-se concluir que estes países não guardam nenhum compromisso ou vocação para a consolidação de suas experiências democráticas. As razões são diversas e não daríamos conta neste espaço de editorial. No final de semana, tive a oportunidade de acompanhar, através de um canal fechado, uma série sobre o combate à violência em Honduras, um dos países mais violentos do mundo, de acordo com os organismos internacionais. Para ser mais preciso, consoante relatório da ONU, o mais violento no ano de 2012.

O país estava no caos quando resolveu adotar uma série de medidas com o propósito de enfrentar o problema. Com o apoio do Estado, Ministério Público e sociedade civil, várias ações de políticas públicas de combate à violência foram desencadeadas, o que resultou no desmonte de gangs organizadas, que se dedicavam à extorsões, tráficos de drogas, quadrilhas que operavam nos perímetros urbano e rural, com frequência de dentro das próprias unidades prisionais do país. Existiam famílias de bandoleiros que controlavam e espalhavam o terror em unidades federadas ou departamentos, como eles se referem aos Estados. Com essas medidas, a redução da criminalidade naquele pais caiu drasticamente.

Uma pena mesmo que essas medidas saneadoras não tenham atingido o sistema politico, que continuou susceptível às quarteladas  ou, mais precisamente, aos golpes de um novo tipo, que se tornariam frequentes no continente. O não aperfeiçoamento das instituições da democracia naquele país, infelizmente, contribuíram para fragilizar o Estado Democrático de Direito. Num arranjo entre forças congressuais, do poder judiciário e setores militares foi afastado um presidente legitimamente eleito pelos cidadãos e cidadãs daquele país, ampliando o alcance da violência institucional, que hoje atinge notadamente camponeses e lideranças indígenas, um fenômeno recorrente aos países que passam por essa experiência autoritária no continente.  

terça-feira, 21 de agosto de 2018

A Vale está atropelando quilombolas com processos para duplicar ferrovia no Maranhão


Sabrina Felipe

“O senhor se vê em alguma dessas quatro fotos, seu Benedito?”, pergunto ao lavrador Benedito Pires Belfort, 75 anos. Ele aperta os olhos, ajeita os óculos no rosto, se aproxima da tela do computador e examina as imagens. “Não, não me vejo.”
Informo a ele que foi com base em um boletim de ocorrência e nas quatro fotos em preto e branco apresentadas, bastante granuladas e com a maioria das 28 pessoas aparecendo de costas que ele e mais cinco quilombolas foram processados pela mineradora transnacional Vale S.A. em 2014. É impossível ver com nitidez o rosto das cinco que aparecem de frente. “É mesmo?!”, pergunta, rindo da inconsistência da ação de reintegração de posse ajuizada pela empresa.
Em 23 de setembro daquele ano, mais de 500 quilombolas de Itapecuru-Mirim, no Maranhão, bloquearam os trilhos da Estrada de Ferro Carajás, a EFC, da Vale. O bloqueio aconteceu na altura do quilombo Santa Rosa dos Pretos para exigir que a mineradora e o poder público fossem transparentes no processo de consulta à população sobre as obras de duplicação da ferrovia, em curso desde 2013. Os quilombolas exigiam também que o governo federal cumprisse demandas relativas à demarcação das terras remanescentes de quilombos.
O processo de titulação de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo foi segurado por pelo menos três anos pela Vale, que em 2009 contestou a demarcação dos dois territórios alegando que não foi deixada terra suficiente para a duplicação da ferrovia. O protesto durou cinco dias e só terminou em 27 de setembro, quando uma comitiva do governo federal se apresentou no acampamento para conversar com a população.

Seu Benedito Belfort
Benedito Belfort está acostumado a defender a terra quilombola. Só não esperava um inimigo sem rosto.
Foto: Sabrina Felipe

Belfort não só não aparece nas fotos que a Vale usou para processá-lo, como também não participou do primeiro dia de protesto, mesma data em que a ação de reintegração de posse foi movida. Ele havia passado por uma cirurgia em 2011 para a retirada de um coágulo no cérebro, e a família quis poupá-lo do calor antes que o acampamento estivesse totalmente montado, com proteções contra o sol. “No dia 24 [segundo dia de protesto], não me seguraram mais. Eu fui e fiquei até o dia que levantamos nossas baterias e viemos pra casa.”

De autores a réus

Anacleta Pires da Silva, 52 anos, é outra quilombola de Santa Rosa dos Pretos processada. Assim como Belfort, ela não se reconheceu em nenhuma das quatro fotos. Ela e as outras cinco pessoas citadas na ação da Vale são lideranças dos territórios Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.
Com exceção do lavrador, todas apresentaram denúncias contra a mineradora em ação civil pública ajuizada em 2011 pelo Ministério Público Federal contra a Vale e o Ibama. A ação, que ainda tramita, foi aberta por que o grupo alega que há irregularidades no estudo de impacto ambiental das obras de duplicação da estrada de ferro. Segundo o MPF, a mineradora foi omissa ao não considerar no estudo Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo como territórios impactados pelo empreendimento. Em 2012, a Justiça Federal obrigou a empresa a realizar uma série de ações de mitigação e compensação nos dois territórios.
Seis anos após a decisão, a Vale ainda não cumpriu todo o acordo, segundo manifestação do juiz federal Ricardo Macieira e depoimentos de quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo. Já a duplicação da EFC está 85% finalizada, de acordo com a empresa, com 542 km duplicados do total de 637 km. A conclusão das obras está prevista para o fim deste ano.

Anacleta Silva
Anacleta Silva também é uma das processadas. E também não está na foto.
Foto: Sabrina Felipe

No dia do protesto, a mineradora enviou um ofício ao juiz informando sobre o bloqueio. Disse não ter nada a ver com o assunto, alegou ser a única prejudicada com o fechamento da EFC e pediu uma audiência sobre o tema. No dia seguinte, o juiz federal negou o pedido alegando que a insatisfação das comunidades não seria resolvida em audiência, mas, sim, no momento em que a Vale cumprisse as obrigações já demandas pela Justiça na ação civil pública.
Questionei a Vale sobre como a empresa identificou as pessoas nas fotos apresentadas como provas e pedi que apontasse nas imagens cada indivíduo citado na ação de reintegração de posse. A mineradora não respondeu a essas e outras questões relativas ao processo e informou que “não comenta decisões judiciais.”
Segundo Caroline Rios Santos, da rede Justiça nos Trilhos, advogada dos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo no processo, mover ações de reintegração de posse com provas inconsistentes é uma prática comum da mineradora.
“Na maioria das ações decorrentes de protesto nas quais a gente tem atuado, a identificação é super vaga. Não há uma preocupação, por exemplo, de indicar os motivos de aquelas pessoas serem apontadas como rés na ação. Em alguns casos são apenas moradores da região que nem participaram da manifestação”, ela me disse. “Mas a jurisprudência entende, em casos como esse, que é um ônus grande para a parte autora ter que identificar especificamente cada pessoa, e aceita uma identificação mais genérica.”

Nunca mais ocupar a EFC

Mesmo após três anos desde que a ação de reintegração de posse foi movida, e mesmo com a desobstrução da via – objeto da ação – ao fim do protesto, a juíza Mirella Freitas, titular da 2a. Vara da Comarca de Itapecuru-Mirim, intimou os seis quilombolas para uma audiência de conciliação com a Vale em junho de 2017.
A proposta do advogado da Vale foi que os quilombolas nunca mais, por qualquer motivo, ocupassem os trilhos da EFC, segundo Anacleta Pires da Silva, uma das líderes do movimento. Como contraproposta, Silva exigiu que a mineradora retirasse das terras quilombolas todos os trilhos da estrada de ferro. Não houve acordo.
No último dia 9 de julho, quase quatro anos depois da desobstrução da EFC, a juíza Mirella Freitas determinou que fosse feita “a citação por edital das demais pessoas que participaram da invasão à EFC.” A advogada da rede Justiça nos Trilhos afirmou que não há, nos autos do processo, nenhuma notícia de nova manifestação ou perturbação da posse da empresa. “Inclusive, ao assumir obrigações com as comunidades na ação civil pública, ela [Vale] reconhece a legitimidade da reivindicação”, explicou a advogada. Considerando todos esses fatos, a defesa dos quilombolas considera que o processo perdeu a razão de existir, especialmente porque a EFC foi desocupada em setembro de 2014.
Belfort é escolado na defesa de sua terra. Há quatro décadas, enfrentava grileiros e fazendeiros face a face. Sua luta pelo quilombo Santa Rosa dos Pretos seguia o rastro da batalha pregressa dos homens e mulheres sequestrados na Guiné-Bissau nos séculos 18 e 19 e trazidos a Itapecuru-Mirim para trabalharem como escravos em fazendas de algodão, café e cana de açúcar de invasores europeus.
Belfort brigava por uma terra conquistada na ponta da chibata. “Eu conversava com grileiro de olho a olho e dizia ‘o senhor está errado, nós vamos resolver o problema aqui, e, se não resolver, vamos levar pra justiça. E levava. Eu nunca tive medo”, ele me disse. Nos anos 1980, chegou a peitar o então vice-governador, João Rodolfo Ribeiro Gonçalves, que havia colocado gado para pastar na roça de mandioca de Benedito, destruindo a produção. Na ação direta e no argumento, a briga foi vencida pelos quilombolas.
Hoje, porém, as coisas mudaram. O antagonista não tem rosto e nem se apresenta para o confronto. Age à distância e em silêncio. Para o lavrador, a continuação do processo, tanto quanto seu início, não tem sentido.
“Quando eu recebi a notícia do processo, pra mim aquilo não existiu. A gente não tava tirando nada da Vale. A gente tava brigando pelo nosso direito, e, se a Vale tava com a culpa, ela tinha que desocupar o que era nosso”, diz o lavrador. “Ser processado pela mineradora intimidou o senhor na sua luta?”, perguntei. “Não. Na época que eu era delegado sindical, eu resolvia as coisas sozinho. Agora, nós temos vários companheiros, amigos, não só daqui de Itapecuru, como de São Luís, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Estados Unidos, e com isso a gente se fortalece muito mais. Agora é que não dá de ter medo. Essa luta eu só deixo quando morrer.”

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Crônica: Pernambuco Novo


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José Luiz Gomes
 
Em nossas crônicas, não raro, surgem referências à cidade de Paulista, localizada na região metropolitana do Recife, onde nasci. Seria natural que assim o fosse, sobretudo numa fase mais inicial, onde as fontes de inspiração dos candidatos a cronistas estão recheadas de suas reminiscências de infância. Graciliano Ramos é natural de Quebrangulo, mas foi prefeito de Palmeiras dos Índios por 02 anos. Dizem que renunciou. Íntegro e republicano, não deve ter tido estômago para suportar ou pulmões para respirar aquele ambiente tão profundamente comprometido de safadezas e imoralidades. Não é para qualquer um não. Não sei se já informei isso aqui antes aos leitores, mas continuo lendo os livros de crônicas de Graciliano, de um tempo em que ele escrevia para jornais alagoanos. Um outro interesse nesse trabalho, como já observou o escritor Raimundo Carrero, é que o autor de Vidas Secas, nessas crônicas, disseca um pouco sobre o ato de escrever, o que se constitui numa boa aprendizagem para os calouros. De fato, sim, Carrero tem razão. Graciliano nos brinda com boas dicas de escrita naquelas crônicas cotidianas. Na Maceió daqueles tempos - ainda descubro onde eles se reuniam - havia um círculo literário que reunia nomes de peso da literatura nacional, como Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, além do Velho Graça. Numa prática recorrente entre escritores, não era incomum Graciliano revisar ou criticar os trabalhos dos colegas. E o Velho Graça não perdoava: o engajamento ideológico do Jorge Amado comprometeu o enredo de "Suor"; José Lins perdeu o "controle" dos seus personagens. Por vezes, um pouco de exagero: como uma mulher pode ter escrito O Quinze? Além do mais, ainda tão jovem!

Na crônica de hoje ele fala sobre a cidade que governou por um período de 02 anos, Palmeira dos Índios, localizada na Zona da Mata de Alagoas, nas terras de quilombos. Desta vez não vou aqui fazer comentários sobre a sua gestão, mas sempre costumo enfatizar a nobreza de seu irredutível espírito público. Embora tenha muita coisa a se destacar aqui, essa sua faceta de gestor acaba sendo superada pela sua condição de um dos maiores escritores brasileiros. Nesta crônica, o alagoano parece fazer coro com o antropólogo Roberta DaMatta, quando se refere a importância do carnaval para o brasileiro. O Brasil é um país essencialmente carnavalesco. Os defeitos e virtudes de um país como o Brasil, de alguma forma, acabam se refletindo nas pequenas cidades como Palmeira dos Índios. Não sei se ainda existe essa rua por aquela cidade, mas, na época de Graciliano Ramos existia uma rua denominada Pernambuco Novo. Curiosamente, uma rua de prostituição. 

No texto, o Velho Graça não sugere pistas que nos permitam compreender melhor a situação. No Recife, por exemplo, existia uma Rua da Guia que era famosa pelos pontos de prostituição, mas a isso ocorria circunstancialmente, em razão da proximidade do Porto do Recife. No nome, em particular, nenhuma associação, exceto, talvez, na cabeça dos boêmios do Recife. Ainda ontem, no trabalho, conversava com um colega sobre a cidade de Abreu e Lima, aqui no Recife, uma espécie de Sodoma em décadas passadas. Possivelmente a maior concentração de prostíbulos por metro quadrado do Brasil. Curiosamente, antes que a ira de Deus sugerisse jogar enxofre sobre os seus habitantes, a cidade, aos poucos se transformou num reduto evangélico. Hoje, é a maior densidade evangélica da América Latina. Noutros tempos, ainda curioso sobre o porquê dessa concentração de evangélicos na cidade, descobri que nas décadas de 30/40 aqui em Pernambuco, na vigência do Estado Novo, sob o comando do China Gordo, ou o sujeito era batizado, frequentava as missas todos os domingos e se confessava ao padre ou estava literalmente lascado. Evangélicos e praticantes de cultos de matriz africana eram violentamente perseguidos. Sem possibilidade de pregarem o evangelho no Recife, os crentes se refugiaram na antiga Maricota. A carne é fraca, irmão.  

 

Ao mestre com carinho: Conferência da Saudade e os 40 anos de docência de Durval Muniz

 



O professor e historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. se despede da UFRN na próxima quinta-feira (12) não sem antes dar mais uma de suas concorridas aulas. Ele ministra a Conferência da Saudade, a partir das 18h30, no auditório da Reitoria. A homenagem está sendo organizada pela UFRN e a Ong Resposta.
Durval Muniz celebra em 2018 quatro décadas em sala de aula como professor, quase a metade no curso de história da UFRN. Por meio das redes sociais, ele comunicou semana passada a amigos, alunos, colegas e familiares sobre o pedido de aposentadoria. Ganhou de volta centenas de mensagens de carinho e gratidão. Ainda que se afaste da graduação, Muniz continuará ligado ao curso de pós-graduação, no programa Histórias e Espaços, como professor voluntário e colaborador.
O historiador dará sequência à carreira na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). As aulas serão ministradas na unidade de Guarabira. Paraibano, Durval Muniz estará praticamente em casa. Ele nasceu em Campina Grande e concluiu a graduação em História na própria UEPB. Já o mestrado e o doutorado foram realizados na Unicamp, em Campinas (SP).
Durante as quatro décadas na UFRN, Durval ministrou as disciplinas Teoria da História; História dos Espaços; História e Literatura; e História, Gênero e Sexualidade.
Paralelamente à carreira de pesquisador e professor de História, Durval Muniz publicou centenas de artigos e ensaios científicos em revistas de renome nacional e internacional. E transformou em livros várias de suas teses, frutos de pesquisas na área.
Foram oito livros até agora: História: a arte de inventar o passado – ensaios de teoria da história; Xenofobia: medo e rejeição ao estrangeiro; Nordestino: invenção do ‘falo’: uma história do gênero masculino; A Feira dos Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular; ‘O Morto Vestido para um Ato Inaugural’: procedimentos e práticas dos estudos de folclore e de cultura popular; A Invenção do Nordeste e outras artes; Nos Destinos de Fronteira: história, espaços e identidade regional; Preconceito contra a origem geográfica e de lugar – As fronteiras da discórdia.
Algumas das pesquisas de Durval Muniz transcenderam as obras literárias. Há dois anos, o grupo potiguar Carmim de Teatro levou para os palcos uma adaptação do livro A Invenção do Nordeste e Outras Artes, sob direção de Quitéria Kelly. O espetáculo vem rodando o país e conquistou elogios do público e da crítica.
As pesquisas de Muniz também foram fundamentais para os cineastas Paulo Caldas e Bárbara Cunha, na produção do documentário Saudade. O filme é inspirado no capítulo Espaços de Saudade, do livro A Invenção do Nordeste, e foi transformado numa série de nove capítulos exibida recentemente pelo canal Arte 1.
Aliás, a saudade é o atual tema de pesquisa do historiador.
Crítico da realidade e consciente do momento grave de ruptura democrática no país, Durval Muniz é colunista do portal da agência Saiba Mais desde a fundação do projeto e escreve aos domingos sobre temas de extrema relevância para o Brasil.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem)

Michel Zaidan Filho: A ONU, a justiça brasileira e a prisão de Lula


 
Questionado sobre a eficácia da recente resolução do comitê de Direitos Humanos, da ONU sobre a elegibilidade do Presidente LULA, tenho respondido que a resolução tem dois aspectos distintos, embora interligados:   o   legal e a questão da legitimidade internacional. Isto porque o ministro da Justiça, do governo de temer, alegou que a ONU não devia interferir em assuntos internos no Brasil, em razão da soberania jurídica e política de que goza o país no concerto das nações.

Essa é uma meia verdade. O nosso país é membro da comunidade internacional e signatário dos acordos, tratados e projetos de convenção da ONU. O Brasil, ao contrário de outras nações, tem cumprido rigorosamente todas as decisões da entidade internacional, e no governo de LULA, tornou-se –inclusive – uma “Player” mundial, arbitrando conflitos e ajudando outros países a resolverem suas contendas   externas. A verdade (inteira) é que a nossa ordem política internacional se apoia ainda no Tratado de Westfália, que elegeu os estados-nação como atores privilegiados da comunidade política internacional. O que implica no respeito à sua soberania total e absoluta na aceitação de leis e acordos. Isto significa que os tratados, acordos e projetos de convenção, aprovados nas conferências de cúpula pelo órgão multilateral, precisa da homologação dos parlamentos nacionais para ter eficácia jurídica. A rigor, eles não possuem força vinculante e não são autoaplicáveis. E há países que não os cumpre e desafiam abertamente a organização internacional: EEUUs. E o Estado de Israel. Alegam o direito de autodefesa, inclusive quando violam direitos humanos internacionais. Outros especialistas alegam que não há um regime internacional de direitos humanos, o que permite que determinados países   avoquem a si o direito de polícia do mundo para invadir, destruir e saquear as riquezas de estados menores.

Mas existe um   outro aspecto que deve ser considerado: a questão da legitimidade e da imagem de cada país, externamente. Embora as decisões da ONU nem sempre tenham força vinculante, como as leis internas de cada estado nacional, faz parte do reconhecimento  de cada povo ou nação – no cenário diplomático e comercial do mundo de hoje-  que ele não seja considerado um país fora da lei ou pária, ou seja uma entidade estatal fora do sistema jurídico internacional. Nesta condição, ele pode sofrer embargos e sansões econômicas e comerciais dos demais membros da Organização das Nações Unidas e de suas agências regionais. A questão da prisão e da inelegibilidade de LULA vai além da questão jurídica externa. Ela tem a ver essencialmente com a legitimidade de uma eleição presidencial sem a presença do candidato mais aprovado nas pesquisas de opinião, que não teve ainda seus direitos políticos cassados por nenhum tribunal e cuja condenação ainda não transitou em julgado. A presunção de inocência é um preceito constitucional. Não pode ser atropelado por uma lei ordinária menor. Faz   parte do ordenamento jurídico brasileiro e   pensamento garantista dos nossos melhores juristas (togados ou não).

Ignorar a resolução do Comitê de Direitos Humanos, da ONU, a vontade da maioria do povo brasileiro, o direito à presunção de inocência e a elegibilidade de qualquer candidato lança uma suspeita muito grave sobre o resultado dessas próximas eleições presidenciais e pode custar caro ao país na esfera do  direito internacional.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

 

As coinfissões da carne, a libidinização do sexo e a mamadeira

                                           
Marcia Tiburi

As confissões da carne, a libidinização do sexo e a mamadeira
O filósofo Michel Foucault, 1984 (Arte Andreia Freire | Foto Michele Bancilhon / Reprodução)

Por Alessandro Francisco
Em 8 de fevereiro deste ano, foi publicado, pelas Éditions Gallimard, mais um inédito de Michel Foucault (1926-1984): As confissões da carne (Les aveux de la chair). Trata-se do quarto volume de seu projeto de uma História da sexualidade.
O texto, na versão datilografada, fora depositado na editora no outono de 1982 e, ainda que Foucault tenha falecido em 1984, não fora publicado. Já no depósito, ele advertiu a editora que a publicação não seria imediata, pois havia outro escrito que o devia preceder. Este foi desdobrado em dois volumes – 2 e 3, respectivamente, da mesma História da sexualidade: O uso dos prazeres e O cuidado de si, – publicados em 1984, pouco antes de sua morte. O primeiro volume, A vontade de saber, havia sido publicado em 1976, oito anos antes.
Para o estabelecimento do livro, foi realizado um verdadeiro trabalho de pesquisa. Frédéric Gros, que se dedica ao estudo do pensamento de Michel Foucault ao menos desde seu doutoramento, é o responsável por esta edição. Gros não somente recorreu à versão datilografada do texto, mas também ao manuscrito, depositado na Biblioteca Nacional da França por Daniel Defert – companheiro e um dos herdeiros de Foucault –, em 2014, dois anos após o Ministério da Cultura francês classificar a “obra” de Michel Foucault como Tesouro Nacional.
As confissões da carne, que deve ter em breve uma tradução para a língua portuguesa, abarca a análise de discursos de filósofos dos dois primeiros séculos de nossa era, tais como Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.) e Caio Musonio Rufo (25 d.C. – 95 d.C.), passando pelo cristianismo de Clemente de Alexandria (150 d.C. – 215 d.C.) e de Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.), atravessando os discursos de exegetas cristãos como Gregório de Nissa (330 d.C. – 395 d.C.), Basílio de Ancira (ca. 336 d.C. – ca. 362 d.C.) e João Crisóstomo (347 d.C. – 407 d.C.), alcançando, por fim, Agostinho (354 d.C. -430 d.C.).
Em sua análise, Michel Foucault aborda, dentre outros, temas como o matrimônio e as relações entre esposos, em especial a relação sexual; o batismo e toda uma série de procedimentos que o preparavam no âmbito do chamado cristianismo primitivo; a segunda penitência, oferecida aos cristãos como segundo recurso após o batismo; a virgindade; e a concupiscência.
Neste escrito, Foucault nos faz ver, por exemplo, que os problemas que envolviam a prática da virgindade se transferem de um quadro negativo, presente em alguns tratados da Antiguidade, em que ela era concebida como interdição ao ato sexual, para um quadro positivo, em que se faz o elogio da castidade como distinção do “sujeito”, na medida em que sua prática o aproxima do estado paradisíaco. Toda esta discussão perpassa tratados destinados aos monges, que já praticavam a castidade – sequer mencionando a relação sexual ou a dita fornicação – e outros tantos que visavam a difundir a “vida cristã” a toda uma comunidade.
No dito cristianismo primitivo, o matrimônio (relação entre esposos) passa de objeto de recusa a “bem positivo” sobre o qual se deve estar atento e que, portanto, deve obedecer às prescrições de um certo modo de vida cristão, de uma “vida verdadeira”. O matrimônio se torna elemento que requer gestão.
Batismo, prática da virgindade, matrimônio, todos envolviam uma tecnologia, isto é, um conjunto amplo de procedimentos preparatórios, de um lado, e permanentes, de outro. O exame de consciência era um deles: uma contínua vigilância do pensamento que, já nos exegetas dos séculos 3 e 4 d.C., tinha por finalidade fazer o “sujeito” acessar uma verdade interior, os “segredos do coração”, para que fosse purificado.
Não é diferente o caso das chamadas “provas de exorcismo”: para aceder à iluminação se deve extirpar os males – neste caso, os pecados –, sendo a fornicação o pior de todos, pois, conforme a leitura que Foucault faz de diversos tratados dos primeiros séculos de nossa era, ela seria o primeiro dos males na ordem causal. Todos os pecados estariam apoiados na fornicação, pois é ela que enraíza o “sujeito” no mundo terreno.
No que se refere à confissão, são ainda as noções de purificação e de iluminação que estão em jogo. Uma vez realizado um exame da própria consciência, por meio de contínua vigilância dos pensamentos – não basta ocupar-se do corpo, é preciso buscar igualmente a limpeza da alma –, é necessário enunciar as faltas cometidas e aquelas presentes “em ato” na consciência. Sim! Segundo diversos tratados antigos, o pecado reside em ato nos pensamentos, daí ser indispensável um incessante exame de consciência.
A penitência, por sua vez, também é ato de purificação e é evocada, por vezes, não como uma simples prática, mas como uma vida inteiramente penitente. Se o batismo lava e purifica pela água, a penitência não é distinta: o faz pelas lágrimas do “sujeito”. Se, de uma parte, ela requisitava práticas privadas – a penitência tem lugar, por exemplo, a partir da confissão realizada privativamente a um sacerdote –, de outra, exigia a manifestação pública do “estado de pecador” do catecúmeno. Exemplo disso é o rito de andar vestido com um saco e coberto de cinzas, referência à Bíblia (Ester 4,1).
Todos, como vimos, são procedimentos que lavam, purificam o corpo e a alma, conduzem à iluminação e, portanto, a uma relação direta da alma com Deus. Entretanto, ainda na esfera do dito cristianismo primitivo tal como analisado por Foucault, nada se pode fazer sem uma adequada direção de consciência. Toda esta tecnologia – esta coleção de técnicas, portanto – deve se dar no quadro da orientação de um mestre. Esta direção de consciência requer a renúncia total da própria vontade e se funda na obediência global ao mestre-diretor.
É, então, que, nos últimos dois capítulos do texto, Foucault se debruça sobre escritos de Agostinho, na passagem do século 4 para o 5 d.C.. Aí, o problema da concupiscência ganha uma nova configuração. Antes do aparecimento daquilo que Foucault denomina “teoria da libido”, presente no discurso de Agostinho, a atração entre os sexos se dava pela manifestação de um desejo natural que, exercido pelo corpo, confundia a alma e a fazia pesar. A libido – concebida como desejo, vontade, prazer, se considerarmos o complexo composto por seus sentidos antigos – aparece, no exemplo do discurso de João Cassiano (360 d.C. – 435 d.C.), como algo que se desdobra nas profundezas da alma. Assim, pouco antes de Agostinho e em alguns de seus contemporâneos, o problema da libido se organizava no quadro de uma partição alma-corpo: a concupiscência está inscrita na alma e é motivada pelo corpo.
Consideremos ainda que alguns pensadores anteriores a Agostinho defendiam que o ato sexual não era realizado no Paraíso, antes da queda, enquanto, para este, o ato era efetuado, mas sem concupiscência, sem libido. Isto promove a transformação de todo o complexo de ingredientes presentes no discurso ocidental.
No discurso de Agostinho, a libido não aparece mais assentada na distinção alma-corpo, mas fundada no próprio “sujeito”: é somente após a queda que o ato sexual se torna libidinoso. A libido, segundo Agostinho, habita a natureza do próprio homem, o modo como ele faz uso de sua vontade. Ele não deve desejar o que quer a concupiscência que nele reside. O homem surge, assim, no discurso de Agostinho, como “sujeito de desejo”, de modo que sua vontade não se relaciona diretamente com o objeto desejado, mas com o desejo inscrito em seu próprio ser. Segundo esta compreensão, no ato sexual, pode-se buscar a satisfação da concupiscência ou conceber filhos. Destarte, conforme o discurso de Agostinho, a libido estará sempre presente, pois faz parte da natureza decaída do homem. Cabe ao “sujeito” querer o que ela quer ou fazer outro uso de sua vontade.
O escrito póstumo de Michel Foucault é de uma riqueza sem tamanho, trazendo elementos que interessam, dentre outras áreas, à História, à Sociologia, à Antropologia, à Psicologia, ao Direito, à Teologia. Não podemos menosprezar a relevância que os temas abordados suscitarão no campo da prática psicanalítica. Entretanto, devemos destacar que, numa perspectiva dita foucaultiana, seu escrito contribui menos a desenvolver a Psicanálise como prática terapêutica e mais a compreender os ingredientes que tornaram possível o aparecimento do discurso psicanalítico. Estaria a psicanálise, ainda hoje, devotada a analisar um certo sujeito cuja emergência se faz ver, até certo ponto, já na passagem entre os séculos 4 e 5 de nossa era?
No que compete à filosofia, o texto aporta muitos elementos. Mormente no quadro dos problemas que envolvem as relações entre a subjetividade e a verdade. Os inúmeros procedimentos de purificação-iluminação presentes no chamado cristianismo primitivo não somente permitem ao “sujeito” uma relação com Deus, e, portanto, um certo modo de relação com a verdade divina, mas também o acesso à sua própria verdade, incrustada – segundo os discursos dos primeiros séculos de nossa era – em nossos pensamentos. É preciso vigiar os pensamentos, extirpar os males, purificar-se pelas águas do batismo e das lágrimas, confessar a verdade mais secreta àquele que dirige nossa consciência, para alcançar a mais íntima e própria verdade de si. Triste percurso trilhado pela história da experiência da subjetividade ocidental, cujos resquícios ainda ressoam aqui e ali em nossos saberes e em nossas práticas.
Por fim, para atenuar esta discussão um tanto quanto densa, não sem recorrer à tradição penitencial em que os cristãos se cobriam de cinzas – é preciso lembrar que estas permanecem presentes na chamada Quarta-feira de cinzas –, partilho, aqui, uma curiosidade. Em julho de 1977, as mesmas cinzas foram evocadas ao final de uma sessão organizada por normalistas – como são chamados os estudantes da École Normale Supérieure de Paris –, com a presença de Michel Foucault. A reunião reservada – publicada em forma de texto originalmente num boletim freudiano francês e posteriormente na série que reúne alguns ditos e escritos de Michel Foucault – tinha por objetivo discutir o primeiro volume da História da sexualidade, publicado um ano antes. Na ocasião, um dos normalistas era o querido amigo e mestre Alain Grosrichard – atualmente Professor Emérito da Universidade de Genebra, onde sucedeu Jean Starobinski –, que recordou a citada reunião ainda em março deste ano quando estivemos juntos.
Na época, próximo de Foucault e conhecendo seu senso humor, Alain Grosrichard não perdeu a oportunidade de lançar a isca: em meio a uma discussão sobre o desenvolvimento de métodos contraceptivos no século 18, ele diz “É a época em que se inventa a mamadeira moderna”. Foucault exclama: “Não conheço a data”. E Grosrichard, por seu turno, assevera: “1786”, indicando seu inventor italiano e a tradução francesa do texto. Num clima de companheirismo entre normalistas, Foucault arremata “Renuncio a todas as minhas funções públicas e privadas! A vergonha se abate sobre mim! Cubro-me de cinzas! [grifo nosso] Eu não sabia a data da mamadeira!”. E a sessão se encerra numa sinfonia de risos.

Alessandro Francisco é doutor em Filosofia pela PUC-SP e pela Université Paris 8, é professor dos cursos de Pós-Graduação Lato Sensu do UNIFAI e pesquisador associado à Université Paris 8 e à École Normale Supérieure de Paris, em nível de Pós-Doutorado.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)