pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: julho 2019
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domingo, 28 de julho de 2019

Uma pensadora brasileira

  Raquel Barreto

Uma pensadora brasileira

A antropóloga, filósofa, escritora e feminista Lélia Gonzalez (Foto: Cezar Loureiro/ Reprodução)

“A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo. As outras são mulatas, marrons, pardos etc.” Esse trecho está num depoimento de Lélia de Almeida Gonzalez, publicado em 1988.
Lélia foi filósofa, antropóloga, professora, escritora, intelectual, militante do movimento negro e feminista. Em sua trajetória – encerrada há 25 anos –, teoria e prática estiveram organicamente conectadas.
A sua produção autoral é de fundamental importância para o pensamento social brasileiro. A obra da autora enfatiza o protagonismo negro, particularmente das mulheres negras, na formação social-cultural do país. No entanto, a pensadora ainda é pouco lida e conhecida.
Nascida em Belo Horizonte, em 1935, numa família de poucos recursos econômicos, Lélia foi a penúltima de 13 filhos. Em 1942, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, porque seu irmão, o jogador de futebol Jaime de Almeida, foi contratado pelo Flamengo.
Perfazendo um percurso pouco usual para as mulheres negras na década de 1950, conseguiu ingressar na universidade. Cursou História e Geografia (1958) e Filosofia (1962) na antiga Universidade do Estado da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Militância
Lélia teve uma atuação de pioneirismo e liderança  no movimento negro brasileiro. Participou do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, o IPCN, uma das primeiras organizações do movimento negro contemporâneo. Foi também umas das fundadoras do Movimento Negro Unificado, o MNU, tendo participado do ato histórico do movimento, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, no dia 7 de julho de 1978. Em 1983, formou com outras mulheres negras o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, no Rio de Janeiro. Além disso, foi a primeira mulher negra a sair do país como representante do movimento negro, em 1979.
Em sua percepção, a política compreendia tanto a militância coletiva na base, nos movimentos sociais, como a dimensão institucional. Por essa razão, em duas ocasiões, tentou eleger-se a cargos legislativos. Em 1982, candidatou-se a deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores. Posteriormente, em 1986, a deputada estadual pelo Partido Democrático Trabalhista. Não se elegeu em nenhuma das tentativas, porém, teve uma expressiva votação na primeira eleição, tornando-se a primeira suplente da bancada. Também integrou a formação original do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985.
Por sua atuação e projeção, Lélia foi “observada” em algumas ocasiões pelo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS. Encontram-se referências a ela em alguns documentos. No entanto, ela não chegou a ser interrogada, presa ou torturada.
O momento mais intenso de sua militância foi no período da Ditadura Militar (1964-1985), que proibiu, entre outras coisas, a organização política da sociedade civil. A Lei de Segurança Nacional, de setembro de 1967, em seu Artigo 39, parágrafo VI, definia que: era crime “Incitar publicamente ao ódio ou à discriminação racial”, com detenção de 1 a 3 anos. O que, na verdade, poderia ser usado contra o movimento negro, uma vez que denunciar o racismo, expor o mito da democracia racial, poderia ser considerado uma ameaça à ordem social, um estímulo ao antagonismo e incitação ao preconceito.
É importante reiterar que tanto Lélia como o movimento negro atacavam categoricamente o mito da democracia racial, que se baseava na ideia do “contato harmônico” entre portugueses, africanos e indígenas,  apagava a violência dessas relações e negava a existência do racismo. O mito era um símbolo da identidade nacional, pautado em uma visão harmônica de nação, adotada pelos militares no comando do país, mas também idealizada pelos próprios brasileiros.
Pensamento
Quando iniciou a militância no movimento negro, em meados da década de 1970, Lélia já possuía uma carreira como professora, pesquisadora e uma boa circulação nos meios intelectuais e culturais cariocas. Em 1975, participou da fundação do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, uma das primeiras instituições a divulgar o pensamento lacaniano no Brasil, e lecionou em várias instituições de ensino superior no Rio de Janeiro. Ela criou o primeiro curso institucional de Cultura Negra na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 1976, no  Rio de Janeiro, um espaço de reunião de artistas e intelectuais, que produziam uma visão crítica sobre a realidade brasileira.
Escreveu um número considerável de artigos e ensaios. Publicou dois livros: O lugar de negro, de 1982 (coautoria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg) e Festas populares, de 1989. Entre suas outras publicações há textos e reflexões essenciais e fundamentais para a consolidação de uma teoria do feminismo negro brasileiro e do pensamento social brasileiro.
Ao longo de quase três décadas, Lélia percorreu um número significativo de temas, valendo-se das matrizes do pensamento ocidental e africano. Explorou teorias distintas como afrocentrismo, marxismo, existencialismo. Dialogou com áreas de conhecimento como  antropologia, sociologia, história e filosofia. Desenvolveu um pensamento original sobre a formação social-cultural brasileira, a partir da centralidade de sujeitos negros, especialmente de mulheres negras.
Era um imperativo para ela e o outros intelectuais negros de sua geração criar um pensamento próprio do negro brasileiro. A partir de suas proposições, mostrou como as teorias tradicionais das Ciências Sociais não eram capazes de explicar a experiência negra brasileira. Por isso, desenvolveu categorias/conceitos próprios de análise.
As ideias de Lélia tinham relação com os movimentos sociais, o contexto histórico, os lugares pelos quais circulou e as pessoas com as quais dialogou. Seu pensamento não esteve afastado do momento em que viveu.
A pensadora era crítica da importação mecânica do discurso e da teoria negra estadunidense,  para que não se reproduzisse uma lógica de dominação cultural, uma vez que a experiência brasileira era distinta. Para Lélia, era preciso que os negros brasileiros olhassem para dentro de si, para sua experiência e realidade cultural e não para o estrangeiro.
De acordo com ela, o modelo do negro brasileiro não estava nem na África nem nos Estados Unidos, mas em sua própria experiência histórica, local, nas resistências políticas, culturais, na lembrança do Quilombo dos Palmares. A autora não negava a importância da África para nós, mas considerava tratar-se de uma recriação possível. “A África é um barato muito diferente do que a gente imagina, diferente, principalmente, do que os negros americanos imaginam. Uma das coisas que eu chegava dando porrada em cima deles é isso: a África de vocês é sonho, não existe. Nós aqui, no Brasil, temos uma África conosco, no nosso cotidiano. Nos nossos sambas, na estrutura de um candomblé, da macumba…”
Sua produção refletiu criticamente sobre o lugar do negro na cultura brasileira, visto, tradicionalmente, como o lugar do folclore, do louco, da criança, do primitivo.  Uma vez que os sujeitos africanos “trazidos” para o Novo Mundo foram tratados como uma massa anônima de pessoas sem cultura, que só possuíam uma capacidade: a força de trabalho.
Sob perspectivas inovadoras, a autora produziu uma interpretação para a cultura brasileira que rompia com a dicotomia colonizador vs colonizado. E conferia protagonismo ao colonizado na transmissão de valores civilizatórios para nossa  formação cultural.
Ela conferiu à mãe preta, a folclorizada, a função materna da cultura brasileira, transmitindo  valores africanos para os brasileiros. “A mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro. Ela passou os valores culturais negros, a cultura brasileira é eminentemente negra,  esse foi seu principal papel desde o início.”
A autora introduziu elementos pertinentes para a caracterização do racismo no Brasil, que se  constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade euro-cristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação (…) e direciona o olhar da produção acadêmica ocidental”.
Lélia é mais conhecida pelo seu papel pioneiro na criação de uma teoria do feminismo negro brasileiro, enraizado em referências e experiências históricas, em trocas com outras mulheres negras, articulando a raça, o gênero e a classe. Sustentando-se na teoria e na prática, preocupada em vincular a experiência do vivido (coletivamente) à observação e à teoria.
“Ao reivindicar nossa diferença enquanto mulheres negras, enquanto amefricanas, sabemos bem o quanto trazemos em nós as marcas da exploração econômica e da subordinação racial e sexual. Por isso mesmo, trazemos conosco a marca da libertação de todos e todas. Portanto, nosso lema deve ser: organização já!”
Legado
Há 25 anos, em julho de 1994, Lélia partiu para o Orun, local que segundo a tradição Iorubá corresponde ao mundo espiritual (o Ayé é o que corresponde ao mundo físico).
Apesar de sua relevância intelectual e política, ela continua sendo timidamente citada. A importância de sua produção autoral ainda não foi reconhecida. O que não é de se estranhar, uma vez que as referências acadêmicas das Humanidades permanecem profundamente marcadas por uma lógica eurocêntrica que hierarquiza o conhecimento e privilegia apenas uma vertente de pensamento, o Ocidental.
Vale ressaltar que no Brasil a presença negra, seja autoral ou intelectual, tem sido marcada por uma dualidade constante entre o apagamento e o embranquecimento. O escritor Machado de Assis é o caso mais notório de embranquecimento. Já os apagamentos foram inúmeros, decorrentes de uma política do esquecimento, que, segundo a socióloga Angela Paiva, é um “mecanismo pelo qual apagamos da memória das novas gerações a contribuição acadêmica de autores negros”.
Neste sentido, entende-se o porquê da ausência de referências à produção de Lélia e de outros pensadores como Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Guerreiro Ramos, Virgínia Bicudo e muitos outros.
Uma das prováveis razões para o apagamento reside no fato de esses pensadores serem acusados de produzir um conhecimento posicionalizado, ou seja, comprometido como uma enunciação política do lugar de onde se produz o conhecimento. Segundo Lélia, É importante ressaltar que emoção, a subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam na renúncia à razão, mas, ao contrário, num modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão.”
Nestes 25 anos de sua passagem, a melhor forma de lhe prestar uma homenagem é reconhecer sua contribuição epistemológica para decolonizar os pressupostos eurocêntricos na produção do saber. E principalmente ler Lélia Gonzalez.
RAQUEL BARRETO é doutoranda em História pela UFF

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Editorial: Você tem fome de que? ( O empobrecimento da linguagem nos regimes autoritários)

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    Nesta semana, publicamos o segundo texto de uma série que objetiva discutir as categorias dos regimes autoritários, consoante uma apropriação original do livro 1984, do escritor inglês George Oswell, a partir de uma leitura do filósofo francês Michel Onfrey, discussão apresentada pelo jurista Rubens Casara, em artigo publicado no site da revista Cult. Ainda absorto com o texto da semana passada, nesta mesma linha de raciocínio, refleti bastante sobre um outro livro emblemático, do escritor americano, Ray Bradburry, 451, onde é demonstrado como os regimes fascistas perseguem os intelectuais, prendendo-os e queimando seus livros em praça pública. Em Ray Bradburry fica evidente o anti-intelectualismo característico dos regimes fechados de governo ou, para ser mais preciso e atual, as ditaduras de um novo tipo.

    Hoje, no entanto, depois de uma autocensura imposta a um editorial contundente que já havia escrito - vamos tratar do empobrecimento ou dessimbolização da linguagem, ou seja, a perda de sentido de valores como "liberdade", "igualdade", "fraternidade", "verdade", "ética". Nos últimos dias, então, tivemos muito pano para as mangas. A semana foi pródiga nesses exemplos. George Oswell observa, afirma Rubens Casara, que nesses momentos de obscurantismo, quando o regime político vai se fechando, há uma espécie de eufeminização da linguagem, ou seja, coisas tidas antes como absurdas vão se tornando corriqueiras, triviais. Num país de miseráveis, onde seria uma excrescência desconhecer os milhões de famintos, pode-se, por exemplo, negar a existência da fome. Os nordestinos podem ser reduzidos a paraíbas, assim como a preocupação com o meio ambiente, reduzida a uma questão de veganos. Uma portaria que depõe contra os princípios de convivência democrática e da liberdade de expressão ganha o número fatídico da besta ferra do apocalipse: 666.

    Não se constitui uma tarefa complexa entender as razões pelas quais os atores políticos identificados com projetos autoritários odeiam tanto os intelectuais. A razão mais óbvia é que os intelectuais, em princípio, são menos infensos a projetos políticos desta natureza, esboçando maiores resistências à sua consolidação. De qualquer forma, recomenda-se a prudência necessária, no entanto, quando se trata dos intelectuais brasileiros, cuja origem é notadamente a classe média e a elite, com os valores e vieses daí decorrentes. Em todo  caso, anpassant, a principal razão parece ser mesmo o esboço da reação desse grupo social aos projetos autoritários. 

    Coincidentemente, atores políticos identificados com projetos autoritários são pessoas com sérios recalques e frustrações pessoais, não raro com a academia. A investida e o projeto de desmonte da estrutura pública universitária brasileira, assim como a queima de livros na obra de Ray Bradburry parecem evidenciar a assertiva acima, ou seja, o ódio ao conhecimento. Na próxima semana, daremos prosseguimento a essas reflexões, tratando da abolição da verdade ou o seu relativismo. Embora comprovadamente verdadeiros, o conteúdo dos áudios perdem em importância em relação aos métodos utilizados para obtê-los. 



sábado, 27 de julho de 2019

Editorial: Você tem fome de que? ( ou o empobrecimento da linguagem)

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    Duas declarações do presidente Jair Bolsonaro causaram muitas polêmicas nesta última semana. Numa delas, durante uma coletiva para jornalistas estrangeiros que atuam no país, o presidente afirmou que não havia fome no Brasil, afirmação que não contou nem mesmo com o aval dos seus partidários mais fiéis, pois, sabidamente, historicamente o país nunca superou o flagelo da fome. Num outro momento, num desses descuidos de áudio - onde sempre se revelam os atos falhos, meu caro Freud - Jair Bolsonaro observou  que, "Daqueles governadores de paraíba, o pior é o Maranhão." Na realidade, ele quis dizer: entre os governadores nordestinos, o mais pior era o governador do Maranhão, Flávio Dino, um dos Estados da região Nordeste. Essas duas declarações renderam muitas postagens nas redes sociais e na blogosfera, assim como suscitaram artigos e reportagens na imprensa escrita. 
     
    Algumas ponderações indignadas de nordestinos, que se sentiram ofendidos com a observação do presidente. Polemicas à parte, no nosso raciocínio, sempre ancorado numa caracterizado das ditaduras de um novo tipo, a partir de uma apropriação de Onfrey do livro do escritor inglês George Oswell, 1984, discutida num artigo de Casara, o artigo de hoje se concentra naquilo que George Oswell identifica como um empobrecimento ou eufemizacao ou desimboluzacao e perda de sentido da linguagem. Ou seja, aquilo que seria um absurdo inimaginável - alguem, por exemplo, - afirmar que não existe fome num país, onde cruanas morrem desnutridas todos os dias e que ostenta 9 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza - pede seu sentido, sempre com o objetivo de manipular a população e restringir o pensamento. Uma espécie de "novilíngua". Neste sentindo, ainda neste contexto, exempkufuca o que observamos as recentes " des importância " dada pelo presidente quando sevtrata dis dados de desmatamento da amazônia. Como afirmamos antes, essa nova língua está consorciada a um projeto dr sociedade autoritária, quiçá, classificada aqui como um subproduto ou consequência das categorias pos verdade e pos- democracia. Em 1944 um sócioligo pernambucano publicou um livro emblemático,,: Geografia da Fome. Este livro foi um verdadeiro divisor de agua sobre a análise dobprblema da fome no país. Talvez os senhores que assumiram o poder no país prefiram o termo carência alimentar ou Desnutricao, naquela preocupação com a de simbolização ,- eu, prefiro mesmo o termo fome. Com este trabalho Josué de Castro imprime ao drama da fome um.status político, ao asdicuala à questão das cknficoesy efetivas de acessibilidade AIS alimentos. Em ultima análise a fome é um fenômeno resultantes das engrenagens sociais perversas. A fome é produzida socialmente. 80 anos depois de lancado , o livro continua atalisimo. O Brasil ainsa ostenta taxas vergonhafas de pessoas que vivem nesta condição. Josué alcançou projeção e reconhecimento internacional com o seu trabalho, chegando a ocupar a presidência da FAO e ser indicado para o Nobel da Paz. Deu aulas na Soorbone, mas gostava mesmo era dis bairros alagados do Recife, cuja população vivia dis frutos do mangue. Foi nesses manguezal palafitas que ele começou a timar conhecimenu sobre o fenômeno da fome, observando cruancas alimentadas com leite de caranguejo. Depôs descobriria que existiria situações ainda piores, pois os paus desses criança eram oriundos da zona da mata ou do serão do estado, onde a situação era ainda maus grave. Até bem pouco tempo, im jornal local publicou um caderno especial sobre o assunto, concluind que crianas ainda tem o cristalino de seus olhos irremediavelmente comprometidos pela ausência de vitamina A na alimentação. studiosos como Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall, cujos trabalhos de pesquisas estão vinculados aos estudos culturais, advogam a tese de que de a identidade não é algo estável, mas em processo constante de afirmações e de afirmações. As reações de nordestinos indignados com as declarações recentes DP presidente, que se referiu a nos como Paraíbas, talvez se constitua num bom exemplo da tese levantada por esses autores. Um momentos de ratificar uma identidade, a identidade de nordestino. Mas, afinal, o que significa ser nordestino? Para alguns autores, ser nordestino, não passa de construção discursiva, uma invenção. Sociólogos como Gilberto Freye, por exemplo, figuraruam nessa galeria de inventores. Para outros autores. Ha uma essência que caracteriza essa região. Alguns elementos distintivos e portanto identitários, uma vez que a identidade é bastante formada pela diferenças, ou déjà aquilo que não e. Ni caso DP Nordeste, aquilo que não é sulista, por exemplo. Por falar nesses elementos tipicamente regiobaisy, recomendo a leitura do texto do ciestusta político Michelv Zaidan Filho, aqui publicado. O reducionismo utilizado pelo presidente - ao se referir a nós como "paraíbas" - é outro exemplo de empobrecimento da kinguagrm, comuns meses momentos bicudos bicudos pelo país. Percebendo o grave rquivoco , ele tentou minimizar as declarações e, num evento na região,  fez declaracoezy e até caracterizou se como um nordestino o, num figurino que não lhes caiu muito bem. Contextualizando o debate com a aproximada da obra de George Oswekl, 1984, o empobrecimento da linguagem carateruzase como uma categoria das ditaduras de um novo tipo, assunto que estamos tratando nesses edutiruaus, acompanhando o raciocínio do César a. Em artigo publicado no site da revista Cukt.

Charge! Folha de São Paulo

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Michel Zaidan Filho: Nordestinados

 


Nos anos anos 80, um poeta armorial cunhou uma expressão muito difundida nos meio literários da região: "nordestinado". O escritor e teatrólogo Ariano Suassuna foi além e afirmou, certa vez, que não conhecia uma terra tão trágica como o nordeste, em razão dos conflitos existenciais e humanos de seus habitantes consigo mesmo, os outros e natureza. E houve até ensaístas que "inventaram" o nordeste a partir do imaginário das secas, do cangaço e do messianismo. O ciclo da literatura regionalista dos anos 30 ajudou muito, partindo daqueles elementos, a vender uma imagem de nordeste pobre, místico e atrasado, dominados por coronéis de oligarcas. O Brasil passou a conhecer o nordeste, por estes estigmas e trata-lo na poesia, na música, no teatro e no cinema.
Não há nada de errado com o nordeste que não possa ser consertado com políticas públicas de desenvolvimento regional. O que passa necessariamente por um projeto de nação, povo, direitos e identidade nacional. O arremedo de política regional que nasceu com Celso Furtado e a Sudene foi rapidamente abortado pelos militares. Os governos neo-liberais de Collor/FHC desregionalizaram a economia, como forma de integrar (ou entregar) competitivamente o país na globalização. O governo LULA foi uma exceção, com grandes obras estruturadoras, investimentos, transferências voluntárias e universidades. O atual (des)governo não tem nenhum compromisso com a região. Como gerente do capitalismo internacional, seu objetivo é destruir o que resta de políticas regionais, sociais e ambientais para entregar nossas riquezas ao mercado.
Não sou nordestinado. Tenho minhas raízes culturais, mas tenho asas para voar bem alto. Orgulho-me muito dessas raízes e acho que podemos reconstruir a nossa identidade telúrica e social num registro planetário e sermos cidadãos e cidadãs do mundo.
Resistir, resistir, resistir contra essa iníqua política de terra(região) arrasada".

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD- UFPE

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Do lugar da fala ao lugar da escuta

 


Perguntamos ao psicanalista Christian Dunker: é possível ter empatia com aqueles que achamos repugnantes?
Paulo Werneck 23jul2019 11h32
 

O psicanalista Christian Dunker na Flip 2015
Escutar o outro deveria ser uma premissa de qualquer atividade intelectual, em particular a edição de revistas, jornais e livros e a curadoria de festivais, debates e outras programações culturais. Quanto mais falamos em escuta, no entanto, mais difícil vem se tornando praticá-la de verdade em meio à intolerância que parece dominar o debate no Brasil de hoje. 
Escritores sofrem ameaças e têm cancelada a sua participação em eventos literários por razões de segurança; autores enfrentam potentes caixas de som e saraivadas de rojões enquanto tentam se apresentar em Paraty. Conservadores “raiz” não se dizem representados por essas hordas e clamam por espaço igualitário no debate. Assustados com as ameaças do governo e de setores da população, artistas e intelectuais progressistas se fecham em copas por não verem condições de diálogo em meio à barbárie.
Hegemônica no mercado editorial e nas universidades brasileiras, a intelectualidade de “esquerda” tem sido cobrada, inclusive por textos publicados na Quatro Cinco Um, a abrir os ouvidos para compreender de fato o câmbio ideológico na cultura e na política. Mas haverá espaço para equilíbrio, compreensão e temperança intelectual enquanto o bolsonarismo come solto? Muitos, como o colunista Paulo Roberto Pires, não aceitam o adesismo de intelectuais “Nutella” ao novo quadro mental do governo brasileiro e clamam em seus textos que as coisas “sejam chamadas pelo nome”. Como desatar esse nó?
O psicanalista Christian Dunker esteve na Flip 2019, onde lançou, em programações paralelas, o seu novo livro: O psicanalista e o palhaço (Planeta), escrito com o educador Claudio Thebas. Ambos estão costumados a intervir em delicadas situações de conflito — tanto aqueles que afloram no sigilo do consultório como os que explodem junto com as barragens de Brumadinho e Mariana, deixando um rastro de lama e de traumas e dramas humanos. Como se não bastasse observar tão de perto essas tragédias, Dunker foi processado pelo escritor Olavo de Carvalho por causa de críticas que fez a ele. 
Para nos ajudar a nos situar nessa enxurrada de lama ideológica que ameaça nos soterrar, convidamos Dunker para uma conversa por email sobre lugares de fala e de escuta, palhaços e lideranças políticas, empatia, fascismo, o que fazer no WhatsApp da família, autores de esquerda e de direita que deveríamos escutar mais, na opinião dele — e também, é claro, sobre a Flip, a Flipei, tins e bens e tais. 

Qual é a diferença entre bagunçar o coreto e ver o circo pegar fogo?
“Bagunçar o coreto” é introduzir vozes dissonantes na conversa, perturbar a ordem dos instrumentos que fazem parte da banda, colocar a boca no trombone. Palhaços e psicanalistas adoram bagunçar o coreto alheio, e de certa forma esta é a sua função enquanto escutadores do mal-estar social e do sofrimento individual. Mas note que o coreto continua lá, com os seus paramentos, no lugar central da cidade. 
“Ver o circo pegar fogo” é outra coisa, porque daí você queima a lona, dissolve o encontro e deixa as pessoas com medo e sem diversão. O coreto bagunçado é o que faz quase todo mundo rir, mas quando o circo pega fogo, quase todo mundo chora, menos os que gostam de olhar a desgraça alheia.
O que pensa do debate sobre ausência de autores conservadores na Flip?
Participei de quatro apresentações na Flip 2019 e acompanhei outras tantas, em geral com o coreto tocando suas marchinhas e chorinhos uma ou duas oitavas acima do usual. Quando quiseram calar a fala do Glenn Greenwald com fogos de artifício, achei bem alegórico. Afinal, se tem alguma coisa que caracteriza o nosso momento político é a pirotecnia nas declarações erráticas e toscas. O circo pegou fogo e nem a Sabrina nem o Glenn conseguiram fazer sua parte no Barco Pirata. Não dá para comparar com as vaias contra [a blogueira cubana anticastrista] Yoani Sanchéz em uma livraria [em 2017, em São Paulo], ou o bloqueio da apresentação do filme [documentário sobre Olavo de Carvalho] O Jardim das Aflições em uma universidade [em 2017, em Recife], como se agora fôssemos contar as arbitrariedades assim como antes contávamos quem matou mais, Hitler ou Stálin, para ver quem está mais errado. 
A Flip sempre teve uma participação minoritária de pensadores à direita, mas de uma forma ou outra  sempre fez questão de chamar autores representativos como [Christopher] Hitchens, homenagear literatos conservadores, como Nelson Rodrigues, e ecoar fenômenos de repercussão mais popular como o Pondé, aliás presente nesta edição. Nisso, estou misturando o coreto com o circo, e o barco com o palanque. Estou considerando tanto a programação principal da como a Flipei, a Off Flip e a gama cada vez mais variada de editoras independentes e organizações culturais como o Sesc. 
O que significa esse movimento?
Para alguns isso significa que ela se tornou mais extensa, representativa e menos elitista, ou seja, ela está indo da direita para a esquerda em um momento no qual o vento sobre o navio nacional em sentido posto. A Flip tinha mais mulheres, mais negros e mais indígenas no coreto. Isso significa que ela fechou-se num circo vermelho? Ou que ela está tentando incluir melhor a nossa diversidade? 
Aqui a questão toca no fervente debate sobre a hegemonia da esquerda na cultura, na educação e nas universidades. Deveria a Flip, dadas as condições do palanque cultural que vivemos, convidar mais teólogos conservadores, economistas do Instituto Millenium e novas vozes emergentes da direita, como digamos... Kim Kataguiri, Caio Coppola, sem falar em alguns discípulos de Olavo de Carvalho? Seria esta a via régia para sair da bolha?  
Você tem empatia intelectual para com autores conservadores? Quais?
Tenho sim, e devo dizer que devo isso ao meu querido avô. Como bom liberal formado no Canadá, ele ficou com medo quando entrei na USP e comecei a trazer umas ideias estranhas para casa. Sabendo da minha pobreza de estudante e minha cobiça por livros ele se comprometeu a me dar uma grana extra semanal, se eu em troca fizesse uma lição de casa extra lendo The Economist, Paulo Francis, quase todos os articulistas do Estadão nos anos 1980, sem falar em gente como Tocqueville, Rush Limbaugh e naturalmente o ídolo dele, “Bob Fields”, o Roberto Campos. 
Por isso venho perguntando há anos, em colunas e ao vivo e em cores, quando posso: o que aconteceu com a nobre tradição de pensamento conservador brasileira? Não vejo linha de continuidade nem arqueologia possa existir entre Merquior, os jesuítas hegelianos, os economistas desde Roberto Simonsen, até gente como Bruno Tolentino, Miguel Reale ou Luiz Werneck Viana, com esta trupe liderada por Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, Leandro Narloch ou Nando Moura. Onde foi parar a boa direita brasileira? É uma pergunta que faço, genuinamente, como convite para a discussão organizada. Pondé chegou a me dizer diretamente: “Você está diante dela...”. Critiquei Olavo de Carvalho com argumentos  e o sujeito me processa judicialmente (e perde).  
E autores estrangeiros?
Fora do Brasil há vários pensadores de direita interessantes: Marc Lilla, Onfray, Michael Oakeshott, Scruton é “not more then fine”, gosto particularmente dos scholarsingleses, insuperáveis quando tratam dos clássicos. Vargas Llosa é bem legível. Penso que aconteceu um sequestro do pensamento de direita no Brasil, uma verdadeira ocupação de ocasião do um espaço deixado vago, que pode custar muito caro e fazer demorar mais ainda para que as coisas se equilibrem mais por aqui.
Como escutar aqueles que nos causam repugnância?
Tenho dito que um erro clamoroso do campo progressista foi recusar reconhecer e dar cidadania a seus adversários. Plutarco já dizia: é tão importante escolher seus amigos quanto seus inimigos, e se você não o fizer eles farão por você, na pior hora e da maneira mais cruel. Também, do ponto de vista psicopatológico, quando deixamos de escutar a quem consideramos loucos, quando os deixamos falar sozinhos, quando os destituímos de algum grão de verdade, o mais provável é que ele comece a falar mais alto, mais convicto e mais bravo. Depois de um tempo o sujeito está vociferando, amaldiçoando picadeiros e coretos, colocando fogo na lona, simplesmente para dizer que ele quer ver sua palavra reconhecida. 
Nessa hora é preciso pensar se a nossa repugnância é para com aquela pessoa ou com relação ao funcionamento de massa pelo qual ela se deixou apossar. Daí a importância de, a mesmo tempo, ser hospitaleiro e fazer uma geografia do hospital no qual estamos, contar os mortos e feridos, as relações e os valores que deixamos queimar no afã de ver alguma coisa diferente. Perguntar mais, ler mais (seus opositores, biblicamente know thy enemies) e sobretudo entender a geografia e história do debate.
As categorias como “esquerda” e “direita”, “conservadorismo” e “progressismo”, “liberalismo” e “neoliberalismo” volta e meia são postas em questão. Ainda valem para um debate como esse?
Muita tolice sobre a dissolução de noções como esquerda e direita foi evocada usando a geografia da Segunda Guerra Mundial ou da guerra fria. Precisamos de mais do que isso. Precisamos distinguir a direita liberal da direita neoliberal e da direita tosca. Mas aqui há uma coisa importante a lembrar sobre o coreto. Ele tem uma dupla função: vira palanque na época da eleição, mas na maior parte do ano é o lugar de músicos. Por mais que existam músicos de direita e músicos de esquerda, músico é músico. Na hora da festa o que importa é como você toca seu instrumento e não só se você é amigo do prefeito. E vamos lembrar que a Flip é uma festa, não uma feira ou um congresso científico. 
Uma comparação exagerada. Por que não temos mais representantes de esquerda no encontro de Davos? Sempre que os esquerdistas aparecem por lá eles vão para bagunçar o coreto ou para tacar fogo no circo. Ora, para fazer parte da festa de Davos tem que levar seu instrumento. Injusto que a esquerda vá tão pouco? Monte sua festa alternativa em Porto Alegre! Essa seria uma narrativa na geografia da direita. Ocorre que a esquerda cisma em dizer que a sua festa é aberta, quando na verdade só entra músico profissional. 
Como assim?
Faça você mesmo as contas sobre os homenageados da Flip, desde que ela começou em 2003, volte na história e considere, no crivo da época de cada um destes autores, se eles eram de direita ou de esquerda. Se quiser troque por conservadores ou progressistas, tradicionalistas ou liberais, ideológicos ou críticos: Vinícius de Moraes, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Millôr Fernandes, Mario de Andrade, Ana Cristina Cesar, Lima Barreto, Hilda Hist e Euclides da Cunha.       
Para mim esta contagem dá algo como 15 a 2, ou 14 a 3, mas podem os meus olhos, vermelhos... de sono. Isso pode significar três coisas diferentes: 
                  1. A Flip só escolhe parcialmente, dentro da sua bolha narcísico-especular, portanto, esta lista não é uma seleção representativa.
                  2. A hegemonia da esquerda nas universidades, nas Flips e quejandos reflete a história da cultura literária brasileira. Mas talvez não da economia, do direito ou do pensamento de inflexão teológica.
                  3. O pensamento de direita tem o tamanho que sempre teve, com a sua usual representação na Flip. Se agora a direita está no poder, isso não implica que teriam assento garantido no bonde da história, sem aprender a tocar um instrumento e formar uma boa banda. 
Existe empatia possível com o fascismo? E com fascistas?
Minha avó viveu na Alemanha na época do nazismo e meu pai nasceu lá quando Hitler estava no poder. Sempre ouvi deles que os nazistas eram pessoas vulgares e empobrecidas, com medo e que se aproveitavam da situação para oprimir seus pequenos inimigos históricos. 
Nenhuma empatia com o fascismo, porque é fascismo é um discurso e uma forma de vida covarde. Muita empatia com a maior parte dos encapuzados, escondidos no coreto fascista, sentindo-se intimidados pela retórica das armas e batendo bumbo para não escutar seus fantasmas. Há verdadeiros fascistas no Brasil, mas eles são muito menos do que os eleitores de Bolsonaro. 
Tenho empatia pelos possuídos. Pelos que funcionam em estrutura de “churrasco fascista”, protegendo-se uns aos outros em ódio comum a um terceiro. Mas quando deitam no divã mostram-se como todo mundo, falsos corajosos, valentes de ocasião e em geral pessoas que precisam gritar mais alto, xingar os outros e partir para a baixaria, para continuar acreditando, mais ainda, em suas pequenas certezas.   
Como ter certeza de que as nossas discussões sobre “lugar de fala” e “escuta” não estão sendo repetidas em loop para a mesma bolha?
A teoria da bolha é muito aproximativa. Se quiser falar em condomínios reais, com seus shoppings centers conexos e seus muros de verdade, eu aceito. Bolhas se dissolvem no ar, como aquilo que antes era sólido. Bolhas deixam ver de forma translúcidas quem está fora e quem está dentro. Não saberia dizer se as bolhas brasileiras são fenômenos reativos  de retorno à excessiva exposição de diversidade, que o Brasil efetivamente viveu nos últimos quinze anos, ou se são, primeiras edições de um novo tipo de xenofobia digital.  
Penso que os ganhos e excessos da prática do lugar de fala foram percebidos fora da bolha, e infelizmente mal percebidos: “se você pode ser feminista eu posso ser machista”, “se você pode ser a favor da equidade de negros ou posso defender minha superioridade branca”.  Este tipo de justiçamento imaginário é muitas vezes confundido com escutar os outros. Como dizemos em nosso livro: escutar não é obedecer, nem representar, muito menos realizar uma comunicação perfeita por meio de uma linguagem comum e benevolente. 
Haveria então um “lugar de escuta” a ser mais valorizado?
Propomos, Claudio Thebas e eu, que ao lugar de fala deve corresponder o lugar de escuta. Uma chamada para acolher o antagonismo e organizar a contradição, não para dissolvê-la. Por outro lado, sim, a teoria sobre isso pode ser feita em um contexto específico, com maior ou menor densidade ética ou política. Mas a prática que estas duas noções implicam é o que é mais importante. 
A disposição a falar fora de lugar é o que define a prática dos intelectuais, por isso há intelectuais nos coletivos, nas periferias, nas universidades para as quais não foram convidados ou se sentem estrangeiros. É nesta situação infamiliar que nos pomos a pensar, o que pode acontecer numa festa literária ou no quintal da sua casa. Se você leva sua casa bolha onde você vai? É sempre possível que isso aconteça. Mas não vá colocar a culpa na agência de viagens.    
E se estivermos falando apenas com a nossa turma, qual é o problema? Existe alternativa?
Existe alternativa a esta sensação de fechamento sobre si e seu mundo. Chama-se boa literatura, mas pode ser também reflexão crítica, práticas transformativas, e se quiser, pode ser psicanálise também. Deveríamos ter aprendido com a nossa incrível experiência de inclusão levada a cabo nas escolas brasileiras, mas também pelas cotas nas universidades, nos aeroportos que se tornaram mais diversos, nossas propagandas que se tornaram mais coloridas. 
Deveríamos ter percebido que colocar muita gente que viveu em currais e condomínios por tempo demais, de repente juntas, não cria por si só uma comunidade. É preciso mediação, é preciso narrativa, novos pactos, sacrifícios e enfrentamento de temores identitários. Mas nunca em caso algum este processo poderia ter ocorrido como uma reta triunfal de ganhos acumulados contínuos. 
A alternativa à bolha está aí, chama-se realidade, e nós tivemos doses excessivas dela, daí que estejamos sonhando e nos refugiando e temendo bolhas. Creio que existe uma tensão entre novas formas de comunidade e antigas equações institucionais que foram bem aproveitadas por um projeto errático de poder e uma expressão tosca de nossa própria cultura. Realmente o Brasil é muito mais do que isso, e também muito menos do que isso.     
Como lidar com o WhatsApp da família?
Nunca saia do WhatsApp. Há presenças que ainda que silenciosas são muito importantes para manter o senso de que “as crianças estão olhando” e impedir que a barbárie prospere em sua soberba ignorância. Precisa variar o discurso, precisa entender a recristianização do Brasil, exigir as explicações e justificativas teológicas para colocar Cristo atrás da arma, que para meu espanto existe sim, por São Isaías. 
Precisa alternar o rigor e a paciência com conversas longas. Quem xinga e grita geralmente está ficando nervoso porque a conversa não terminou nos dois parágrafos iniciais. Leve em conta que muito do que se diz não é exatamente para você, mas para a projeção imaginária que você representa. E quando perceber que isso está acontecendo, saia do lugar, responda de outro lugar. Não dê lição de moral, nem menospreze, peça razões e prepare-se para ser xingado. Se você leva a sério é porque há ainda um grão de pequeno fascista em você mesmo. 
O escutador profissional é como um canibal, ele sempre quer devorar tios mais gordos e tias mais execráveis, como um esporte de longo prazo. Quando começar a se repetir ou perder a calma, saia e desanuvie. Pense que o desafio não é contra o outro, mas contra você mesmo: a arte cavalheiresca de manter-se respirando. 
Se você conseguir manter o humor com todos contra você acredite, isso vai trazer alguns pontos para sua saúdem mental, acredite. Não banque o herói nem o professor, as pessoas respeitam muito quem está realmente a fim de escutar. Esteja preparado para enfrenar a turma do deixa-disso, gente que vai aparecer de todos os lados querendo manter as aparências e o Natal feliz. 
Não, o Natal nunca mais será aquele. Aquele que apanhou não esquece, o que bateu vai dizer para si mesmo: “Mas era só política”. O silêncio e algumas notícias de jornal fazem milagres. Nunca, em tempo algum diga: “Eu avisei”. (Isso fará a pessoa te odiar para sempre, por uma razão que ela jamais vai admitir para você, e vai trocar a sua razão pelo juízo de que você é arrogante e metido a superior). Deixe a realidade impor-se soberana... lentamente. Nunca diga: “eu sabia!” ou “tá vendo?”. Mas pensar, pode.
Obama foi retratado por direitistas com a maquiagem do Coringa, Trump é visto como um clown, Boris Johnson segue o mesmo caminho e Bolsonaro é chamado de Bozo. Por que o palhaço aparece de forma tão sinistra em todas essas situações?
O palhaço é um símbolo de nossas ilusões infantis, ele representa o adulto no qual não podemos confiar porque ele põe fogo no circo ou balança o coreto. Só depois que descobrimos que os adultos mentem, particularmente sobre sexo, morte e violência, nos reconciliamos com o palhaço assassino da primeira infância e aprendemos a usá-lo para tratar e suportar a hipocrisia representada pelo convívio humano. 
Se isso é o que o imaginário do palhaço evoca, ele mesmo, como palhaço real, simboliza a nossa condição perdedora, errante, despossuída, o fato de que, olhando bem, estamos todos meio fora do jogo dos interesses e das máscaras de poder. Os novos líderes populistas são bem chamados de palhaços porque eles combinam estas duas disposições, mas de maneira invertida. Eles encantam e amedrontam os eleitores infantilizados à procura de um pai protetor, e que portanto tem que ser um adulto que nos engana quando se apresenta como não mentiroso. 
Por outro lado, são o contrário dos palhaços reais e despossuídos, eles nos vendem a promessa de que podemos voltar a ser grandes, grandes como achávamos que éramos quando crianças e os nossos pais nos enganavam prometendo-nos que tínhamos superpoderes. Afinal, se os palhaços... e os psicanalistas são uma função de recusa e de ironizar o exercício do poder, nada mais justo do que ofender os que foram possuídos pela loucura do poder com esta alcunha.

(Publicado originalmente no site do Jornal Quatro Cinco Um)

Charge! Jaguar via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2019/07/25/15641076625d3a638ed6578_1564107662_3x2_th.jpg

sábado, 20 de julho de 2019

Michel Zaidan Filho: Universidade sem futuro


                                                               

  

Durante os últimos anos do regime militar, nós – docentes universitários – lutamos bravamente contra o projeto de transformação das Autarquias Universitárias em Fundações. Alegavam os militares que a transformação traria mais autonomia de gestão aos reitores e eles podiam criar receitas para suas instituições, através da venda de serviços e produtos, sem a participação do governo federal. Era uma clara tentativa de transferir o ônus do financiamento público-estatal para a venda   de serviços ao mercado, às empresas e a investidores privados, numa tentativa de alienação da autonomia científica e didático-pedagógica das universidades públicas do país.

Essa tentativa espúria, que copiava o modelo de financiamento de algumas universidades americanas, onde o sistema de cátedras patrocinado por fundações privadas é comum, foi largamente rechaçado pelo movimento docente e sua entidade representativa, a ANDES. Agora, volta com nova roupagem, tentando seduzir os reitores com a promessa de mais recursos e mais autonomia administrativa. Ledo engano.  Está configurado aí um imenso passo curto para a privatização do sistema universitário brasileiro e sua domesticação ante os interesses das empresas privadas (e instituições de ensino privadas).

O sistema universitário brasileiro (onde predomina o modelo autárquico e financiamento público-estatal) é uma das grandes conquistas do nosso povo. Ele se destaca no contexto latino-americano. E algumas das nossas universidades públicas estão entre as melhores do mundo. E não é só pela acessibilidade pública, ampliada com o sistema de cotas raciais, étnicas e sociais. É pela excelência acadêmica, em todas as áreas de pesquisa, ensino e extensão. Se nossas instituições de ensino fossem meros apêndices de empresas privadas ou fundações empresariais, jamais teriam conquistado o respeito e a admiração e todo o mundo. Não há no planeta, países que se desenvolveram e se tornaram prósperos, sem universidades livres, fortes, autônomas e produtivas. Os únicos financiadores da pesquisa pura, das humanidades, das benfeitorias na saúde, na nutrição, no esgotamento sanitário, na construção de habitações populares, transporte público etc. são os órgãos do governo federal. 

Mas não de qualquer governo. Só os gestores que se inspiravam em objetivos nacionais e democráticos se preocupam com a vida das universidades.  Um presidente que se comporta como um gerente de empresas e investidores privados, pouco vai se importar com a qualidade pública e democrática da educação. Vai, sim, privatizá-las e neutralizar o potencial de crítica e invenção dessas instituições de ensino. Se o gerente não fosse tão estúpido, entenderia o valor das universidades públicas, inclusive para a reprodução do capital. Afinal, a ciência e a tecnologia transformaram-se há muito tempo em forças produtivas de primeira grandeza. Mas a miopia e o estreitamento de visão impede ao “analfabeto político” de entender essa afirmação.

Nenhum reitor que tenha sido eleito democraticamente pela sua comunidade vai se deixar seduzir por este autentico “canto das sereias” de mais liberdade administrativa, mais recurso e mais produção. Mas os oportunistas e carreiristas de plantão vão se manifestar – na hora difícil de defender o patrimônio  educacional público – a favor, entrevendo possibilidades de auferir muitas vantagens pessoais e profissionais com sua adesão a essa pá de cal se se jogará sobre as universidades brasileiras.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Quem defende o indefensável? Categorias psicopolíticas para entender o Brasil atual



  1. Marcia Tiburi
Quem defende o indefensável? Categorias psicopolíticas para entender o Brasil atual

Tais categorias dispostas aqui nos colocam diante da tarefa cada vez mais urgente do pensamento crítico (Arte: Revista CULT)

Com Rubens Casara
Introdução
Em recente manifestação popular, alguns simpatizantes da ditadura militar instaurada em 1964 carregavam uma faixa em que era possível ler o slogan “pelo direito de não ter direitos”. Também se tornaram conhecidas as manifestações pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal “em nome da democracia”. Isso para não mencionar o apoio de parcela da sociedade a pessoas que, hoje, defendem explicitamente a prática da tortura ou a violação ao sistema de garantias constitucionais (que tem como única finalidade evitar o arbítrio e a opressão estatal contra os indivíduos, inclusive aqueles que se manifestam contra esses direitos e garantias). Mas não é só.
Há trabalhadores que defendem reformas do Estado que só favorecem os donos do capital. Há quem defenda o trabalho infantil e o fim do ensino público. Há dirigentes políticos que criticam o pensamento crítico e têm ódio do conhecimento. Há afrodescendentes que aplaudem medidas que potencializam o genocídio da população negra. Há mulheres que acreditam que o feminismo é puro ressentimento de mulheres feias e/ou lésbicas. E, mais recentemente, ficou evidente que não faltam aqueles que, em nome do combate ao crime, defendem a prática de outros crimes.
Em todas essas manifestações, há algo em comum: a defesa daquilo que deveria ser indefensável. Em outras palavras, tratam-se de manifestações que atacam valores, direitos e conquistas que deveriam ser objeto de consenso e de defesa em uma sociedade civilizada, republicana e democrática.
Esse fenômeno da “defesa do indefensável” aos olhos de qualquer pessoa que busque compreender a realidade, torna-se ainda mais interessante à pesquisa se estivermos atentos para o fato de que, não faz muitos anos, algumas dessas manifestações seriam imediatamente repudiadas no Brasil ou arrancariam risos diante do ridículo próprio a espetáculos de programas de auditório que recorriam a políticos inexpressivos e outras pessoas exóticas, dentre exorcistas, pessoas que se alimentam de luz ou novos messias. Os políticos que deveriam ser pessoas responsáveis pelo decoro, ocuparam o lugar desses personagens.
Mas infelizmente, embora bufões, esses políticos não estão de brincadeira. Pense-se, por exemplo, na defesa da tortura, que nem mesmo os governos militares pós-1964 ousaram admitir ou muito menos elogiar publicamente diante da repugnância que uma prática como essa provoca em qualquer pessoa com o mínimo apreço à dignidade humana.
Tendo isso em vista, a pergunta passa a ser: o que explica, no Brasil em 2019, a “defesa do indefensável”? Nessa primeira aproximação diante desse problema, estamos levantando a hipótese de que se trata de um problema complexo e, como tal, possui múltiplas causas, dentre elas destacando-se: a) a ignorância; b) a burrice; c) a vergonha; d) vantagem; e) o autoritarismo; f) a paranoia; e g) o cinismo. Não raro, mais de um desses fatores psicossociais se faz presente em uma mesma pessoa. Assim, por exemplo, a pessoa pode ser ignorante e burra, paranoica e autoritária, burra e envergonhada ou ainda ignorante, burra, autoritária e cínica.
Ignorância
A ignorância é a ausência de informação e conhecimento. Se o indivíduo possuísse informação de qualidade ou detivesse o conhecimento necessário à compreensão dos fenômenos, não “defenderia o indefensável”. Se, por exemplo, entendesse que o sistema de direitos e garantias existe para evitar o arbítrio de que ele mesmo pode ser vítima, se conhecesse os horrores históricos que levaram à criação e um sistema internacional de proteção aos direitos humanos, não defenderia a violação das garantias que derivam da Constituição e dos Tratados Internacionais. O ignorante tem salvação, mas é constantemente alvo de ações governamentais que tem por objetivo mantê-lo na ignorância e, portanto, passivo diante do absurdo.
Todo governo que precisa da ignorância para se manter (ou todo governo que deseja o povo “defendendo o indefensável”) adota medidas concretas para impedir o pensamento crítico (acabando com cursos de sociologia e filosofia, por exemplo), para solapar a credibilidade das universidades públicas (diminuindo os investimentos em pesquisa e educação), desvalorizar a educação, empobrecer a linguagem, destruir as palavras (ou criar novas como “conje”), suprimir e reescrever a história (atacar os cursos de história ou divulgar versões revisionistas que atendam aos objetivos do governo), reforçar a ideologia disfarçada de “neutralidade” (pense-se no movimento “Escola Sem Partido”), instrumentalizar a imprensa (perseguir jornalistas que ousam “fazer jornalismo”, por exemplo), desincentivar as artes (reduzir o investimento em cultura) e destruir os projetos de leitura etc.
Burrice
Nelson Rodrigues dizia que se a ignorância é o desconhecimento dos fatos e das possibilidades, a burrice é uma força da natureza. A burrice é a incapacidade de articular e usar corretamente a informação que a pessoa possui. Uma pessoa burra consegue fazer o mal ao outro, mas também a si-mesma sem perceber a relação de causa e efeito entre a sua ação e o mal que vem a suportar.
Pode-se dizer que a burrice é, em certo sentido, uma categoria moral, na medida em que produz efeitos na esfera de terceiros. Mas, não raro, ela caminha junto com a arrogância e a prepotência que não permitem a alguém desvencilhar-se da própria burrice. O Burro defende o indefensável porque é incapaz de entender as consequências dessa defesa, inclusive para ele próprio. Pensem na manifestação em defesa do “direito de não ter direitos”. Uma vez vitoriosa, a “tese” levaria à perda do direito de se manifestar. Pensem na “defesa da tortura” que coloca o manifestante na condição de potencial alvo dessa prática contrária à defesa da dignidade da pessoa humana. O Burro é vítima da crença, efeito de sua falta de reflexão, de que ele não possa ser vítima de um erro judicial ou de uma armação da polícia.
Vergonha
A vergonha costuma ser apresentada como uma condição psicológica e uma forma de controle relacionada ao medo ou consciência da desonra, desgraça ou condenação. Frequentemente, a vergonha relaciona-se com dogmas religiosos, preceitos jurídicos, valores políticos ou preconceitos sociais.
A vergonha pode explicar a tentativa do oprimido de se defender da recriminação e da condenação do opressor através do fenômeno do mimetismo. O oprimido passa a “defender” o que ele tenderia a considerar indefensável para se misturar com o opressor. Alguns exemplos podem ajudar a entender: o indivíduo que tem vergonha de sofrer o estigma de ser “pobre”, “favelado” ou “negro” passa a defender ações militares desordenadas e abusivas, que colocam em risco concreto a sua própria vida e a de seus familiares. Para tentar parecer “igual” ao opressor uma pessoa pode passar a aplaudir o discurso e a prática que a colocam na condição de vítima em potencial.
A vergonha também pode justificar a “defesa do indefensável” sempre que ela impedir o indivíduo de reconhecer que estava errado em um anterior julgamento ou manifestação. Para fugir da condenação moral diante do erro, o indivíduo revela-se capaz de se manter no erro e continuar a defender aquilo que, com o tempo, se revelou indefensável. Pense-se nas pessoas que passaram a adorar e a enaltecer falsos heróis e que agora, mesmo diante da revelação de que esses heróis eram de barro, se fecham em uma postura fundamentalista de defesa daquilo que não mais é defensável.
Vantagem
A vantagem é o ganho, a diferença a favor, que uma pessoa ou um ente exerce ou recebe de outra pessoa ou ente. O fato de uma pessoa, uma classe, um grupo econômico ou uma categoria levar vantagem com o “indefensável” não pode ser menosprezado ao se estudar manifestações que aos olhos de um indivíduo desinteressado pareceriam absurdas. Vale imaginar que um grupo econômico investiu em um projeto de poder e que, mesmo depois de uma série de ilegalidades de seus comparsas terem sido reveladas, insiste em defender o que se tornou indefensável.
Em uma sociedade em que o egoísmo passou a ser tratado como uma virtude, no qual os valores da utilidade e do interesse tornaram-se fundamentais e condicionantes da ação da maioria das pessoas, em uma sociedade em que muitas pessoas acham “normal” violar regras constitucionais para conseguir uma vantagem ou ter maior lucro, não é de se estranhar que também se “defenda o indefensável” para conseguir uma vantagem.
Autoritarismo
Se a personalidade democrática convive com a existência de limites tanto aos seus desejos quanto ao exercício do poder, a personalidade autoritária se caracteriza pela desconsideração de qualquer limite aos seus desejos e aos seus projetos. O autoritarismo leva ao culto da violência, ao ódio aos direitos humanos e ao conhecimento, ao medo da liberdade, à criação de inimigos imaginários, à confusão entre o julgador e o acusador, ao pensamento etiquetador (ao discurso empobrecido que recorre à chavões, slogans e frases feitas), à naturalização de preconceitos, à aceitação acrítica de fake news (em especial aquelas que confirmam os piores preconceitos do indivíduo autoritário) e, principalmente, à intolerância com qualquer limite ao poder e aos desejos do detentor da personalidade autoritária.
A razão, os direitos, os valores, as regras, os princípios e as práticas civilizatórias que impõem limites aos desejos forjados no autoritarismo passam a ser odiados e afastados. Nesse movimento, não raro, o autoritário passa a “defender o indefensável”, desde a “prática de crimes para combater a criminalidade” à solução final administrada pelos nazistas no século passado.
Paranoia
A paranoia costuma ser definida como uma espécie de psicose que se caracteriza por uma certeza delirante que se funda na ausência da inscrição do “não” (e, portanto, de limites) no psiquismo do sujeito. Há uma perda do simbólico e o sujeito passa a recusar limites externos e a substituí-los por uma espécie de “lei imaginária’, ou seja, a fazer aquilo que na cabeça dele é o certo e o legal.
O caso do juiz Daniel Paul Schreber, cuja biografia foi objeto da atenção de Freud, e que passou a acreditar que era destinado a ser a “mulher de Deus”, do ponto de vista dos quadros clínicos propostos pela psicanálise, não difere muitos daqueles que aderem a uma certeza delirante que precisa ser confirmada e, para tanto, precisam abandonar os fatos, as provas, as leis, a ética etc.
O paranoico, como se percebe, “defende o indefensável” para confirmar a sua certeza delirante, as hipóteses a que aderiu em razão de um quadro mental paranoico.
Cinismo
Para além de designar uma doutrina filosófica grega, por extensão, o significante “cinismo” busca dar conta da atitude ou caráter de uma pessoa que revela desconsideração pela moral vigente, pelas normas jurídicas e pelas convenções sociais. O cínico vive um pacto com a inverdade como se ela fosse verdade, porque nada que seja verdadeiro lhe importa. O cínico “defende o indefensável” por caradurismo ou desfaçatez. A inverdade lhe convém e a verdade não vem ao caso. Para que o cínico alcance sucesso ele precisa ser muito forte, muito vazio ou frio, emocionalmente falando. Além de suas características pessoais, é necessário um grupo de ignorantes (ver acima) e de burros (ver acima) que sirvam de audiência e forneçam apoio em um verdadeiro arranjo, um círculo cínico.
Tais categorias dispostas aqui para, humildemente, nos ajudar a pensar, nos colocam diante da tarefa cada vez mais urgente do pensamento crítico. E isso não é pouca coisa diante do cenário atual, fruto da ausência de pensamento que se expande em escala nacional. A luta é mais uma vez contra o obscurantismo sempre útil ao poder.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)