pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: julho 2018
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terça-feira, 31 de julho de 2018

É possível vários juízes julgarem da mesma maneira...errada?

                                         
Além da lei

É possível vários juízes julgarem da mesma maneira… errada?
Incapaz de concretizar os direitos da maioria da população, o Judiciário passa por uma séria crise de legitimidade (Arte Andreia Freire)

Muitos acreditam, ou são levados a acreditar, que uma decisão judicial confirmada por vários juízes tende a estar correta. Esse pensamento, porém, não passa de um sofisma. Trata-se de um argumento, com estrutura interna inconsistente (quanto não deliberadamente enganosa), que tem o objetivo de produzir uma ilusão que substitui a verdade, sempre mais complexa.
Motivos não faltam para diversos juízes errarem ao decidir sobre uma mesma causa. Desde acordos explicitamente espúrios a fenômenos muito mais sutis. Da má-fé à ingenuidade. De déficits cognitivos a falsas compreensões, plenamente justificadas, da realidade. Da ignorância sobre fatos ou direito à distorções teóricas com finalidade de atender a crenças compartilhadas pelos julgadores.
O objetivo deste breve texto é expor, ainda que brevemente, alguns desses fenômenos, que levam a constantes sequências de erros, deliberados ou não, nos julgamentos.
Da tradição autoritária em que estão inseridos os intérpretes brasileiros
Há uma explicação hermenêutica para diversas decisões contrariarem, ainda que inconscientemente, a Constituição da República e o respectivo projeto de realização dos direitos e garantias fundamentais (aquilo que o jurista italiano Luigi Ferrajoli chamou de conteúdo material/substancial da democracia).  A aplicação (função que é sempre criativa) do direito está condicionada pela tradição em que os intérpretes estão inseridos.
Existe uma diferença ontológica entre o “texto de lei” e a “norma” produzida pelo intérprete (no Brasil, por todos, Lenio Streck a partir das lições de Martin Heidegger). A norma é sempre o produto da ação de um intérprete, por sua vez, condicionado por uma determinada tradição. Em outras palavras, a compreensão e o modo de atuar no mundo dos atores jurídicos ficam comprometidos em razão da tradição em que foram lançados. Intérpretes autoritários carregam uma pré-compreensão inadequada à democracia (em especial, a crença no uso da força em detrimento do conhecimento e o medo da liberdade) e, com base em seus preconceitos, suas visões de mundo e nos valores em que acreditam, produzem ações e normas autoritárias, mesmo diante de textos legais tendencialmente democráticos. Determinados casos penais, portanto, que deveriam receber decisões adequadas à democracia, não raro são decididos em desconsideração aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.
No Brasil, os atores jurídicos estão lançados em uma tradição autoritária que não sofreu solução de continuidade após a redemocratização formal do país com a Constituição da República de 1988. A naturalização da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas, um dos legados da escravidão, por exemplo, continua a ser percebida na sociedade brasileira e, em consequência, também influencia a atuação dos atores jurídicos.
Ao contrário da Argentina e do Chile, em que a repressão subterrânea à oposição política dominou o processo de controle e eliminação da oposição política, aqui o sistema de justiça foi o locus privilegiado para a persecução política e a eliminação dos adversários do regime autoritário. Os atores jurídicos brasileiros, salvo raríssimas exceções, serviram sem constrangimento ao projeto de repressão da ditadura civil-militar instaurada em 1964, como antes já haviam servido à ditadura do Estado Novo (registre-se, por oportuno, que o Código de Processo Penal de 1941, ainda em vigor no Brasil, é praticamente uma cópia do Códice Rocco de orientação fascista). E essas mesmas pessoas continuaram a exercer poder nas agências do sistema de justiça após a redemocratização.
Ministros do Supremo Tribunal Federal indicados pelos ditadores brasileiros e juízes que tanto se acostumaram com o arbítrio quanto relativizaram violações graves de direitos humanos, por exemplo, continuaram a ditar os rumos da jurisprudência produzida após a Constituição da República, que pretendia servir de base normativa à democratização do país. Mas não só. Essas mesmas pessoas ficaram responsáveis pelos processos de seleção e formação dos novos juízes.
Em apertada síntese: não se pode pensar a atuação do Poder Judiciário (e entender como decisões flagrantemente contrárias ao projeto democrático se repetem) desassociada da tradição em que os magistrados estão inseridos. Há uma relação histórica, teórica e ideológica entre o processo de formação da sociedade brasileira (e do próprio Poder Judiciário) e as práticas observadas na Justiça brasileira. Pode-se apontar que em razão de uma tradição autoritária, marcada pelo colonialismo e a escravidão, na qual o saber jurídico e os cargos no Poder Judiciário eram utilizados para que os rebentos da classe dominante (aristocracia) pudessem se impor perante a sociedade, sem que existisse qualquer forma de controle democrático dessa casta, gerou-se um Poder Judiciário marcado por uma ideologia patriarcal e patrimonialista (poder-se-ia dizer até aristocrática), constituída de um conjunto de valores que se caracteriza por definir lugares sociais e de poder, nos quais a exclusão do outro (não só no que toca às relações homem-mulher ou étnicas) e a confusão entre o público e o privado somam-se ao gosto pela ordem, ao apego às formas e ao conservadorismo, o que, não raro, leva a decisões em contrariedade à Constituição de 1988 e, portanto, erradas.
Do comodismo crônico
No Brasil, motivos não faltam para os juízes brasileiros extrapolarem o dever-poder previsto na Constituição, ultrapassarem as suas funções constitucionalmente delimitadas, naquilo que hoje se conhece por “judicialização da vida”. Fenômeno que se torna ainda mais grave sempre que, na vida judicializada, os direitos e garantias fundamentais são violados sem maiores constrangimentos. Do conservadorismo exacerbado de alguns ao vanguardismo capenga de outros, do pedantismo distanciador de muitos ao mau-caratismo de poucos, sem excluir a responsabilidade das faculdades de direito e a baixa qualidade do ensino jurídico, não faltam explicações para o fato de juízes, de norte a sul do país, abandonarem os limites de atuação impostos pelo Estado Democrático de Direito.
Um desses motivos é ligado à burocratização da carreira: o comodismo crônico, identificado por Raul Zaffaroni. Esse fenômeno está relacionado ao desejo de ascensão e estabilidade funcional. O juiz, para não criar dificuldades em sua carreira, procura não contrariar o sistema, decidindo mesmo em contrariedade à lei ou reproduzindo teses ainda que equivocadas para evitar a colisão direta com a opinião de outros juízes, de lideranças políticas ou de grupos econômicos que detêm os meios de comunicação de massa que podem criar obstáculos à vida funcional do mesmo.
O comodismo crônico é, então, uma espécie de “reação preventiva” contra a ameaça de sanções, afastamentos, pressões policiais ou políticas, bloqueio de ascensões/ promoções, campanhas difamatórias e outros instrumentos de pressão e controle ideológico das decisões. Para evitar problemas, alguns juízes dispensam a tarefa de pensar (há nesses juízes um pouco de Eichmann), reproduzem teses e decisões (ainda que equivocadas) e sempre buscam não contrariam o sistema.            
Tentação populista
A esperança depositada no Poder Judiciário, que a Constituição de 1988 prometeu transformar em guardião da democracia, cede rapidamente diante do indisfarçável fracasso do Sistema de Justiça em satisfazer os interesses daqueles que recorrem a ele. Torna-se gritante a separação entre as expectativas geradas e os efeitos da atuação do Poder Judiciário no ambiente democrático. Não raro, para dar respostas (ainda que meramente formais) às crescentes demandas, o Poder Judiciário recorre a uma concepção política pragmática que faz com que ora se utilize de expedientes técnicos para descontextualizar conflitos e sonegar direitos, ora recorra ao patrimônio gestado nos períodos autoritários da história do Brasil para manutenção da ordem.
Não obstante, na medida em que cresce a atuação do Poder Judiciário (ainda que essa atuação não atenda às expectativas geradas), diminui a ação política, naquilo que se convencionou chamar de ativismo judicial. Esse quadro está a indicar um aumento da influência dos juízes e tribunais nos rumos da vida brasileira, fenômeno correlato à crise de legitimidade de todas as agências estatais e ao crescimento do sentimento de desconfiança em relação à Justiça.
Percebe-se claramente que o Sistema de Justiça tornou-se um locus privilegiado da luta política, o que torna a escolha dos ministros dos tribunais superiores (ou seja, dos tribunais com competência em todo território nacional e que produzem as decisões que servem de diretrizes/modelos para todos os órgãos do Poder Judiciário) um ponto sensível (embora, constantemente negligenciado) no processo de construção da democracia brasileira (democracia aqui entendida em seu sentido material, como efetiva participação popular na produção das decisões fundamentais à República somada ao respeito incondicional aos direitos fundamentais).
A burocratização, marcada por decisões conservadoras em um contexto de desigualdade e insatisfação, e o distanciamento da população fazem com que o Judiciário seja visto como uma agência seletiva a serviço daqueles capazes de deter poder e riqueza. Se por um lado, pessoas dotadas de sensibilidade democrática são incapazes de identificar no Poder Judiciário um instrumento de construção da democracia; por outro, pessoas que acreditam em posturas fascistas (na crença da força em detrimento do conhecimento, na negação da diferença, etc.) aplaudem juízes que atuam a partir de uma epistemologia autoritária. Não causa surpresa, portanto, que considerável parcela dos meios de comunicação de massa, a mesma que propaga discursos de ódio e ressentimento, procure construir a representação do “bom juiz” a partir dos seus preconceitos e de sua visão descomprometida com a democracia.
Não se pode esquecer que “o sistema midiático tem a capacidade de fixar sentidos e ideologias, o que interfere na formação da opinião pública e na construção do imaginário social”, como afirma Dênis de Moraes. Assim, o “bom juiz”, construído/vendido por essas empresas de comunicação e percebido por parcela da população como herói, passa a ser aquele que considera os direitos fundamentais como óbices à eficiência do Estado (ou do mercado). Para muitos, alguns por ignorância das regras do jogo democrático, outros por compromisso com posturas autoritárias, o “bom juiz” é justamente aquele que, ao afastar direitos fundamentais, nega a concepção material de democracia.
Note-se que o distanciamento em relação à população gerou em setores do Poder Judiciário, mesmo entre aqueles que acreditam na democracia, uma reação que se caracteriza pela tentativa de produzir decisões judiciais que atendam à opinião pública (ou, ao menos, aos anseios externados através dos meios de comunicação de massa). Tem-se o chamado “populista judicial”, isto é, o desejo de agradar ao maior número de pessoas possível através de decisões judiciais (ou, mais simplesmente, a opinião pública construída pelos meios de comunicação de massa), como forma de democratizar a Justiça aos olhos da população, mesmo que para tanto seja necessário afastar direitos e garantias previstos no ordenamento. Assim, juízes de todo o Brasil passaram a priorizar a hipótese que interessa à mídia ou ao espetáculo em detrimento dos fatos que podem ser reconstruídos através do processo.
Da racionalidade neoliberal
Também a compreensão do funcionamento da racionalidade neoliberal, entendida como “nova razão de mundo” (Laval e Dardot), pode servir para explicar porque tantos juízes decidem do mesmo modo: todos contrários à Constituição. Com o empobrecimento subjetivo e a mutação do simbólico produzidos pela razão neoliberal (os únicos objetivos são o enriquecimento dos que já são ricos e a realização dos desejos do mercado, isso ao mesmo tempo em que o egoísmo foi elevado a virtude), que leva tudo e todos a serem tratados como objetos negociáveis, os valores da jurisdição penal democrática (“liberdade” e “verdade”) sofrerem profunda alteração na subjetividade de muitos juízes. Basta pensar, por exemplo, no alto número de prisões contrárias à legislação (como nos casos de prisões decretadas com o objetivo de forçar “delações”), nas negociações entre acusadores e acusados em que “informações” (por evidente, apenas aquelas “eficazes”, ou seja, que confirmam a hipótese acusatória) são trocadas pela liberdade dos imputados, dentre outras distorções que levam a reiteradas decisões judiciais materialmente inconstitucionais.
A racionalidade neoliberal altera também as expectativas acerca do próprio Poder Judiciário. Desaparece a crença em um poder comprometido com a realização dos direitos e garantias fundamentais. O Poder Judiciário, à luz da razão neoliberal, passa a ser procurado como um mero homologador das expectativas do mercado (em especial, do mercado financeiro) ou como um instrumento de controle dos indesejáveis, sejam os pobres, que não dispõem de poder de consumo, sejam aquelas pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal.
Conclusão
Na democracia, porém, os direitos fundamentais de todos (culpados ou inocentes, desejáveis ou odiáveis) devem ser respeitados. A atuação dos magistrados não pode ser pautada pelos desejos do mercado ou mesmo das maiorias, sob pena de inviabilizar o direito das minorias e o conteúdo substancial da democracia. O Poder Judiciário deve voltar a atuar como uma garantia contra a opressão, inclusive contra abusos promovidos pela maioria. Deve voltar a ser, portanto, contramajoritário.
Mais do que isso: para assegurar o direito de um, o Poder Judiciário pode (e deve) julgar em sentido contrário à vontade de todos os demais. Dito de outra forma: os direitos fundamentais funcionam (ou deveriam) como trunfos tanto contra as maiorias de ocasião quanto contra projetos autoritários, e cabe (ou deveria caber) ao Poder Judiciário assegurar não só esses direitos como também a própria democracia.
Em suma, a tradição em que os atores jurídicos estão inseridos, as práticas autoritárias e conservadoras, a burocratização e a adesão à racionalidade neoliberal são fatores que fazem com que vários juízes constantemente produzam decisões equivocadas e não contem com a confiança da sociedade brasileira. Percebido como uma agência estatal seletiva, voltada somente aos interesses da elite (os detentores do poder político e do poder econômico, certo que na atual quadra história o poder político e poder econômico são exercidos pelas mesmas pessoas), incapaz de concretizar os direitos da grande maioria da população, o Poder Judiciário passa por uma séria crise de legitimidade. Crise agravada pelo fato de que as tentativas de satisfazer a opinião pública, com a adoção de medidas judiciais que contam com o apoio dos meios de comunicação de massa, tem resultado em violações aos direitos fundamentais, que deixam de funcionar como limites à opressão do Estado e das maiorias, colocando em risco a própria democracia.
Diante desse quadro, para evitar frustrações, é importante reconhecer que o Poder Judiciário é incapaz de substituir a luta política. Os membros desse poder, na condição de agentes políticos, devem reconhecer essa luta. Para tanto, precisam se interpretar, compreender o contexto em que atuam, seus preconceitos e suas limitações, como forma de romper com a tradição em que estão inseridos e reconquistar a legitimidade perdida (quiçá construir uma legitimidade que nunca existiu). Impõe-se, pois, trabalhar pelo resgate da política como meio de satisfação das potencialidades humanas e, ao mesmo tempo, atuar sempre voltados à concretização do projeto constitucional e ao respeito aos limites legais e éticos impostos pelo Estado Democrático de Direito. Isso, por sua vez, significa assumir a função do Poder Judiciário no jogo democrático, de assegurar o respeito aos direitos fundamentais e acomodar os conflitos, e zelar pela divisão das responsabilidades nesse processo de reconstrução da democracia brasileira.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Durval Muniz: As tempestades que habitam os paraísos: reflexões em torno das utopias no mundo contemporâneo

 

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Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa aos nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história)
Walter Benjamin, em 1940, vivendo, o que ele nomeou, de um momento de perigo, escreveu esse texto, que o acompanhou durante toda a travessia dos Pirineus, em uma pasta de couro, para ser testemunha de seu suicídio, na fronteira entre França e Espanha, por onde tentava escapar do avanço das tropas nazistas. Para ele, o futuro se fechara definitivamente. Emparedado nas fronteiras de um presente aterrador, o desejo de morte prevaleceu sobre a pulsão de vida. Perseguido pela ameaça de morte, a ela se entrega como a única linha de fuga, o único gesto de resistência e rebelião possível: negar ao inimigo o prazer de sua morte, de seu sofrimento, de sua humilhação e degradação. Naqueles dias, em que o futuro era incerto, em que os horizontes eram sombrios e tempestuosos, Benjamin não deixou de alimentar, a seu modo, a utopia. Mas, em suas Teses sobre o conceito de história, nos alerta de que, para que as utopias ainda fossem possíveis, deveríamos estabelecer uma outra relação com os tempos, deveríamos reformular o conceito de tempo que emergiu na modernidade, que fora e era reafirmado e refigurado pelo historicismo, um tempo vazio e homogêneo, um tempo linear e processual, um tempo que como uma flecha apontada para o futuro, era visto como um processo inexorável do qual nada, nem ninguém escaparia, tempo universal e universalizante. Para que as utopias ainda fossem possíveis, paradoxalmente, era fundamental, para Benjamin, que rompêssemos com a visão de tempo presente nos pensamentos e projetos utópicos.
Para um filósofo que tinha no pensamento judaico uma das matrizes de suas ideias, o messianismo e o profetismo, traços destacados dessa tradição de pensamento, não deveria ser os elementos definidores de uma proposta utópica. Benjamin não podia ignorar que o formulador da própria noção de utopia, Thomas Morus, era um homem religioso, um cristão e católico, canonizado como mártir de sua crença. Há na própria palavra utopia uma tensão entre os significados que o termo adquiriu, a partir da publicação da obra de Morus, e os sentidos que a etimologia concede a essa palavra. Morus inventou a palavra que daria nome à sua ilha paradisíaca, onde os homens viviam sob uma ordem social perfeita, lançando mão das palavras gregas Ou (não, nenhum) e Topos (lugar), ou seja, lugar nenhum ou nenhum lugar. Desde o século XVI, quando foi inventada, a palavra utopia carrega essa dupla significação: ela pode ser um lugar perfeito e paradisíaco, como pode ser lugar nenhum. Ela pode ser a presença pletórica do perfeito ou a total ausência de presença. Benjamin, um melancólico, como Morus, partilhava com o filósofo e homem de estado inglês, da enorme desconfiança na possibilidade de haver paraísos terreais. Morus era um homem de fé, um homem crente na perfeição divina e, por corolário, na imperfeição humana, na incapacidade humana de construir a perfeição, apanágio do Senhor. Daí a ironia e o ceticismo presente em uma obra que foi lida, mais tarde, notadamente a partir do século XVIII, como o anúncio da possibilidade, no futuro, da existência de formas perfeitas de organização social. Para Morus, utopia era mais lugar nenhum, do que algum lugar, era mais ausência, que presença.
Para Benjamin, a fragilidade dos pensamentos utópicos de seu tempo, como aquele que movia a social-democracia, como a leitura que a social-democracia alemã fazia do marxismo, era, justamente, esse caráter futurista, esse caráter messiânico, teleológico e teológico dado projeto utópico. O que Benjamin criticava era a prevalência do futuro como tempo reitor das temporalidades modernas, tal como foi abordado por Reinhart Koselleck. O que Benjamin contestava era projetos utópicos que ignoravam o agora, o presente, que não conseguiam se deter diante dos mortos, das carnificinas, das ruinas, dos fragmentos do passado. Impelidos pela grande utopia da modernidade, a utopia do progresso constante e sem limites, os homens viravam as costas para o passado, viviam alienados no presente, com os olhos voltados para um futuro que, inexoravelmente lhes escapa, já que seu horizonte não cessa de se deslocar para a frente. Mesmo quando, como o anjo de Klee, são colocados diante do cumular de crimes e destruição que a história dos vencedores significa, os homens não conseguem ter com eles qualquer relação ou compromisso, pois as tempestades que sopram da busca por paraísos impele cada um a seguir em frente, a se deslocar em direção a esse lugar nenhum, a esse não lugar que é o futuro. Em busca do futuro, em busca da realização de uma utopia, os homens calcam sob os pés os cadáveres, os trapos de bandeiras e as fagulhas de esperança que jazem sob as cinzas das batalhas. Arrastados pelos fortes ventos das mudanças, do progresso, do desenvolvimento, da civilização, da evolução, da revolução, os homens e mulheres não param para mirar o passado, para olhar em seu entorno, deixam atirados na margem dessa grande estrada da história, que todos dizem conhecer e seguir, outroras e agoras que poderiam servir para a construção desse futuro, que se espera encontrar pronto ou se espera fabricar com materiais totalmente novos. Apressados para se chegar ao paraíso perdido e de novo prometido, retirasse do caminho às custas de muita violência, de muitas carnificinas e genocídios, aqueles que se colocam na passagem, aqueles que impedem e tentam barrar a chegada a esse lugar de perfeição e justiça.
Como vimos, nos séculos XIX e XX, as utopias podem ser assassinas, podem ser genocidas, podem ser exterminadoras. Como todo parto, parir o futuro, e de maneira veloz, requer muita dor e sofrimento. Ao longo dos dois últimos séculos, em nome de um futuro de perfeição que viria, em nome da civilização e do progresso, em nome do desenvolvimento e da revolução, muitas matanças de seres humanos, muitas matanças de animais, muita destruição da natureza e dos objetos, foram realizadas. E nome da construção de um corpo social perfeito, muitos corpos humanos e não humanos tombaram mutilados e feridos. Benjamin nos faz ver que, além dessas mortes que podemos testemunhar no agora, no presente, esses mortos são os herdeiros de milhões de outros mortos que jazem esquecidos e silenciados nas cinzas da história. Para o filósofo alemão, a redenção da humanidade, no futuro, só era possível com a redenção do passado, no presente. O futuro não é um tempo que está a nossa frente e ao qual se deve perseguir. O futuro habita o agora, habita a agulha de cada instante, é neles que o futuro se decide. Não haverá futuro de paz, com um agora, com um presente de mortes e assassínios. Não haverá um futuro de justiça, sem que façamos agora justiça aos que vivem e aos que morreram. Não haverá futuro de esperança, se o presente for de espera e o passado for desesperado. Não haverá futuro de bonança, sem que o presente seja de dádiva e o passado de dívida. Temos uma dívida com aqueles que vieram antes de nós e que sonharam futuros outros, temos uma dádiva de sonhos e desejos a fazer e partilhar com os que vivem agora. Utopia como espera por um por vir é uma fuga do devir, do vir a ser do tempo que se dá agora.
O compromisso e tarefa do historiador não é imaginar e propor futuros que se perdem e se sustém nas brumas de um horizonte incerto. Sonhar, desejar, imaginar, criar é fundamental para a vida humana, mas esses gestos devem ser feitos com os pés assentados na terra e não como anjos que têm o dom do voo e do sobrevoo. Todas as vezes que os homens tentaram sobrevoar a história, as asas eram de cera e como Ícaros desabaram de seus sonhos e de suas nuvens para quedas catastróficas. Quando miramos a história, quando a encaramos de frente, quando paramos para examiná-la de perto e com vagar, ao invés de planar em seu entorno, nos tornamos mais céticos e mais prudentes em embarcar em voos rasantes e arriscados sobre os tempos. A história humana não favorece visões paradisíacas. Talvez como em Morus, o lugar de perfeição se revele um não lugar, um lugar varrido por constantes tempestades. Além de sofrer de futurismo, as utopias tendem a pensar um tempo de perfeição onde a história entraria em êxtase. Alcançada a ilha da fantasia, o tempo sofreria uma paralisia e, como no paraíso bíblico, a morte não teria presença, os corpos seriam incorruptíveis e sequer saberiam de suas vergonhas. Por isso Benjamin inverte o sentido do messiânico, ele não aponta para o futuro, mas para o retorno de um passado redimido. Passado redimido no aqui e agora, nas ações dos homens presentes, ao impedirem que os vencedores continuem vencendo. O historiador que têm compromisso com a redenção da humanidade, tem compromisso não com um dado futuro, mas com dados passados, onde essa redenção foi possível, onde ela esteve em devir, onde ela foi um projeto, por fim derrotado. Sim, o historiador das utopias é aquele que escolhe, no passado, os restos de esperança, os destroços dos sonhos, os corpos ensanguentados e destroçados nas lutas por um mundo outro, diferente e distinto daquele em que viveu. O historiador é aquele que dá a mão para que os prostrados do passado, possam outra vez se porem de pé nos tempos que correm. O historiador utópico é aquele que escolhe topos, que escolhe lugares para habitar em seus escritos, em suas pesquisas, em seu ensino, que ficaram soterrados sob os escombros produzidos pela vitória dos vencedores. A utopia é uma prática, não uma ideia, a utopia é ação, não espera. Mas uma prática, uma ação voltada para o presente, para o contemporâneo, alimentada pelos passados e devires que aí habitam. O tempo é um emaranhado de linhas, um novelo de temporalidades, cada presente, cada contemporâneo é uma nebulosa de camadas de tempo, cada um habita diversas linhas temporais, cabendo escolhas e recusas de linhas temporais a percorrer. Se a utopia é uma tropologia, ela implica escolha de lugares temporais, espaciais, institucionais, conceituais para habitar. Se como diz Certeau, a operação historiográfica é inseparável da prática de um lugar, a utopia pode ser um deles, desde que não seja esse lugar nenhum, esse lugar vazio projetado para um futuro que sempre há de vir, esse dia que vai raiar depois de depois de amanhã. Enquanto os homens morrem e sofrem ao nosso lado, ficamos com o olhar cego pela miragem de um mundo perfeito e atropelamos os cadáveres que se amontoam a nossa volta, os espezinhamos, os desconhecemos, os ignoramos, os justificamos, os legitimamos, os comemoramos e homenageamos em nome desse futuro brilhante no qual eles não poderão mais entrar, a não ser como estátuas e monumentos. Se a utopia não pode ser materializada no aqui e agora, ela será efetiva algum dia? Ela não surgirá como delírio ou pesadelo?
Sejamos mais modestos em nossas utopias, definitivamente abramos mão da ideia de paraíso. A história do último século deve ter nos ensinado, pelo menos, que, ao contrário do que se pensa, os paraísos não são lugares de calmaria e viver de brisa. Os paraísos estão sujeitos a constantes tempestades pois é dos homens e mulheres ser tempestuosos. A história não carrega consigo nenhuma promessa, não há na história nenhuma necessidade ou destino imanente, a história humana não guarda nenhum sentido prévio ou em si mesma, a história humana é uma mistura de acontecimento, acidente, acaso, estrutura e processo. A história humana será aquilo que os humanos fizer dela. Nada promete ou garante que a história caminhe para a frente, para um estágio sempre mais perfeito ou superior que o anterior. Quem olha para a história vê inúmeras quedas, debácles, ruínas, destruições, desaparecimentos. Há povos que tomaram uma linha do tempo e caminharam na direção oposta ao que chamamos de futuro. A história não oferece uma avenida ou estrada principal, ela é feita de múltiplos caminhos e veredas e neles habitam a possibilidade de perdição. Errar pela história e errar na história é a condição mesma do humano, esse ser em contante deslocamento em relação a si mesmo. Creio que no mundo contemporâneo temos tarefas urgentes a fazer no presente, temos muitos compromissos com os passados e os futuros que imaginamos devem estar conectados com esses agoras e outroras que nos acediam.
Esse encontro tematiza duas grandes utopias do mundo moderno: a democracia e a liberdade. Em nosso país, então, são utopias mais no sentido de lugar nenhum, do que de algum lugar ou momento de existência ou perfeição. Nós historiadores não servimos a realização dessas utopias se continuarmos com os olhos voltados para um tempo futuro onde pretensamente elas estariam definitivamente presentes e construídas. Todas as vezes que nos deslumbramos com visões de futuro, o presente e o passado clamam por sua presença. Todas as vezes que esperanças vencem o medo, esquecemos que medos não desaparecem, medos presentes e passados continuam existindo, crescem, são veiculados e subjetivados, se tornam ódio, ressentimento, raiva, desejo de extermínio do outro, se tornam a base de uma vida assentada na inimizade e na repulsa do outro. De olhos no futuro, que parece ali há poucos passos, que parece vir se tornando presente, esquecemos dos passados que continuam presentes e que tomam a si mesmo como projetos de futuros outros, diferentes do esperado. Se continuarmos como reis magos seguindo a estrela no céu que leva ao encontro do redentor, do salvador, se continuarmos com os olhos fixos no horizonte, vamos acabar sempre por tropeçar aonde estamos, e a queda em um deserto atroz, será inevitável. Quando miramos apenas o futuro podemos ser vítimas de miragens, podemos ver donzéis de cavalo branco e alado vindo em nossa direção. Basta que o redemoinho na areia se alevante para que, com os olhos cheios de terra e poeira, nos darmos conta que negligenciamos o terreno em que estávamos pisando.
Nós historiadores contribuiremos para que a democracia em nosso país e em nosso mundo seja uma miragem sempre que esquecemos de contar os começos dessa ideia, na antiguidade e no mundo moderno. Tanto entre os gregos, quanto entre os europeus, a ideia de democracia e a sua prática nunca excluiu a falta de liberdade. A utopia liberal burguesa, que estabeleceu uma correspondência entre democracia e liberdade, jogou para debaixo do tapete toda a sujeira que está na base da democracia e da própria liberdade no mundo moderno. A democracia surgiu do ventre da escravidão, a democracia burguesa europeia se sustentou às custas das atrocidades do colonialismo e do imperialismo na África e na Ásia. As democracias europeias se sustentaram às custas do estabelecimento de estados de exceção nas colônias. A biopolítica moderna, aquelas práticas e tecnologias de governo que visavam preservar e prolongar a vida, foram possíveis às custas do exercício de uma necropolítica nos espaços coloniais. Para que houvesse vida na Europa foi preciso que milhares fossem trucidados, mutilados, feridos, destroçados nas colônias. Para que a acumulação capitalista levasse prosperidade econômica aos países centrais, para que se estabelecesse aí o trabalho livre, o trabalho compulsório e todas as formas brutais e cruéis de extração de sobretrabalho foram usados na chamada periferia do mundo. Para que as democracias se solidificassem na Europa, a tirania e a força deram o tom das chamadas administrações coloniais. Para que se instituísse regimes que paulatinamente iam considerando seus cidadãos como iguais em direitos e deveres, foi preciso existir áreas inteiras da terra onde reinava a lei discricionária do mais forte, onde matar aqueles considerados inferiores não acarretava nenhuma punição. Para que se inventassem as nações, as identidades nacionais, foi preciso destroçar as culturas e identidades de milhares de povos, foi preciso inocular em suas subjetividades o medo, a baixa autoestima, uma imagem negativa e degradada de si mesmo.
Como chama atenção Michel Foucault, para se colocar no centro da história o Homem, se matou Deus e todas as divindades, se dessacralizou o mundo e passou a se considerar todas as culturas e demonstrações do sagrado como retardatárias na evolução, estágio teológico ou animista. Para entronizar o homem racional como a expressão mesma da liberdade e como o agente privilegiado da política democrática, inventou-se a loucura como doença mental e se atirou os loucos para trás dos muros dos manicômios, construi-se hierarquias de racionalidade e o racismo tornou-se a explicação para as diferenças entre os homens. Com o racismo parte da humanidade passou a ser suspeita de não ser propriamente humana, o negro passou a ser o intermediário entre o macaco e o homem. O racismo ensinou a ter medo, desconfiar e odiar o ser diferente, o ser de pele e cor distinta, o ser de hábitos e línguas diversas. O mundo moderno é inseparável do racismo, nas suas manifestações mais virulentas, força histórica responsável por grandes genocídios e carnificinas, como o Holocausto. A sociedade que inventou a liberdade foi a mesma que inventou a prisão como forma privilegiada de punição, atirando milhões de vidas para vegetar atrás das grades, escondendo atrás de seus muros a continuidade da tortura, da sevícia, dos maus tratos, das humilhações e das execuções. Quando se vai tratar das utopias da modernidade, o historiador é colocado diante da escolha de seu lado solar e de seu lado noturno e sombrio. Ele vai festejar o avanço técnico e o desenvolvimento da ciência como forças libertadoras do homem, mas não poderá esquecer todos os crimes em que esses recursos técnicos e científicos foram utilizados. Na modernidade surgem as ciências da vida, as tecnologias da vida, mas também as tecnologias e as ciências da morte.
A forma campo de concentração, a ideologia concentracionária é um desdobramento da concentração populacional e da emergência dos espaços panóticos. O campo de concentração é uma fábrica, tem no trabalho sua justificativa e a morte como seu produto mais constante. Os campos de extermínio possuem uma racionalidade taylorista da morte, grandes máquinas de destruição e desaparecimento dos corpos, de desrealização e apagamento dos testemunhos, rastros e sinais do crime hediondo ali cometido. Automatismo da execução de tarefas tal como aprendido na fábrica moderna, essa grande utopia mecanicista. Por que vemos na palavra utopia apenas suas dimensões brilhantes e luminosas? A utopia nazista da pureza da raça e do estabelecimento de um Reich de mil anos era também uma utopia, na acepção mesma da palavra, pois buscava a realização do nada, era uma empresa utópica da nadificação, da morte, da destruição, da busca coletiva por um lugar nenhum (será que não estamos nesse momento trilhando esse caminho para o nada, tomamos a ponte para o futuro, e acessamos a terra de ninguém e do nada). Nós historiadores brasileiros não podemos esquecer que a nossa Republica mal se instala e realiza um grande genocídio daqueles vistos como fora da nação, como uma subraça, como semi-humanos. A utopia republicana em pouco tempo instala entre nós a forma campo de concentração. Esquecemos do pioneirismo de nossa República e de nossa democracia em instalar, quando da seca de 1915, no Ceará, campos destinados a juntar os retirantes chegados do sertão, como se fossem gado, amontoados para receberem rações, impedidos de se deslocarem até a cidade de Fortaleza para mendigarem e “importunarem” os citadinos. Cercados de arame farpado, amontoados em cabanas de ramos, panos, latas, papelões, barro, lonas, no mais completo abandono, eram presa fácil para as epidemias. Dezenas de cadáveres recolhidos por dia, corpos andrajosos, masserados, esqueléticos, chagados, se arrastavam como fantasmas em meio ao cheiro de morte e de fumaça. Eles viviam uma democracia e eram livres para morrerem do pior jeito possível nos chamados currais dos bárbaros. Mas todos têm certeza, mesmo diante dessas cenas, que a civilização venceu no Ceará, esses homens e mulheres foram enterrados em vida e na história. A medida que a historiografia teve sempre que olhar para o futuro, ela teve que ajudar a rapidamente se fazer o luto, produzir o esquecimento para abrir novos horizontes possíveis. Mas é possível construir algum futuro sem redimir esses mortos, sem salvá-los do esquecimento, sem que suas mortes venham doer nas consciências do presente? Que futuro será esse, que utopia será essa construída na ignorância e no silencio sobre esses corpos humanos que tombaram pelo caminho fruto do abandono, da exploração, da injustiça, da miséria, da desigualdade social, do preconceito, do racismo, da incúria, da ganância, do desprezo pelo outro?
Historiador tem que pensar futuros no contemporâneo? Creio que sim, mas isso implica acertas as contas com muitos passados que, por ser traumáticos, teimam em não passar. Passados que são como feridas não tratadas, não cicatrizadas, que tornam-se purulentas e empestam a nossa vida social. A escravidão e seu cortejo de violências, crueldades e misérias, mas também com o que de luminoso os negros conseguiram criar, apesar dela, têm que habitar nosso tempo, pois ele ainda é tempos de escravidão e escravização. As utopias não estão no futuro, muitas comunidades negras, muitas pessoas negras as estão criando aqui e agora. Eles que eram e são destinados a ser ninguém e a ter lugar nenhum, constroem seus lugares de habitação na vida e no espaço, no corpo e na linguagem. O racismo, o machismo, a misoginia, a homofobia são feridas abertas que não deixam de sangrar ao rés dos corpos, muitos deles violentados, espancados, assassinados, seviciados pela atuação dessas linhas do tempo que vêm do passado e constituem a malha, o tecido do nosso tempo, linhas doloridas e chocantes, que ainda costuram nossa vida social e nossas subjetividades.
As utopias contemporâneas devem nascer da realização desse diagnóstico do que foi o nosso passado e do que é o nosso presente. Benjamin julgava que a tarefa do historiador era trazer do passado para o presente as energias utópicas que haviam sido perdidas, dilapidadas, vencidas, desencaminhadas. As utopias não estavam a espera no futuro, mas estavam adormecidas e encobertas pelos escombros deixado pelas vitórias dos vencedores ao longo do tempo. O historiador devia ser capaz de vencer a força desse vento soprado do paraíso, devia ser capaz de aterrisar, de abrir mão de suas asas do sonho e da imaginação, para de volta à terra, poder fazer um inventário das perdas, das derrotas, dos crimes, das batalhas perdidas pelos vencidos, desentranhando dos acontecimentos as linhas utópicas aí adormecidas. Escolher no passado aqueles eventos e personagens capazes de estimular aqueles que habitam o agora no sentido da construção de novas relações sociais, da construção de novos mundos, da construção de realidades possíveis, sem ilusões de paraíso, mas aqueles que signifiquem o acerto de contas e a ruptura com o cortejo de horrores que a história humana acumula sob os nossos pés. Há, nesse momento, no Brasil, a formação de uma chapa para disputar a presidência da República que parece ser a síntese dos horrores de toda a nossa trajetória histórica. A chapa teratológica, que configura o nosso momento de perigo, talvez, através de um choque dialético, seja reveladora dos porões e das tripas de uma história nacional crivada de monstruosidades. Cabe ao historiador saber ler esses signos e torna-los iluminadores de possíveis vir a ser, aqui e agora. Talvez, como propôs Foucault, mais do que utopias, necessitamos de heterotopias, de lugares outros, mas do que de lugar algum, lugares outros no aqui e agora, lugares de realização de sonhos e desejos, lugares da realização de projetos e propostas, no tempo presente, no momento presente, no contemporâneo, fazendo da ausência uma presença imediata.

Durval Muniz é historiador e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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sábado, 28 de julho de 2018

Crônica: O "desnudamento" dos operários da Companhia de Tecidos Paulista




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José Luiz Gomes


Estamos lendo o livro do professor José Sérgio Leite Lopes, "A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés", uma tese de doutoramento sobre as relações sociais e de produção na Companhia de Tecidos Paulista, na cidade do mesmo nome, localizada na região metropolitana do Recife. O trabalho é o resultado de algumas pesquisas realizadas pelo professor, e outros pesquisadores, acerca das condições de trabalho nas fábricas têxteis mantidas pelo Grupo Lundgren. Não fosse suficiente o interesse do trabalho de José Sérgio, ao abordar o "sistema paulista" - algo que nos estimulou bastante, em razão de um trabalho que estamos produzindo sobre a vida nas vilas operárias - José Sérgio ainda dedicou parte de suas pesquisas aos operários canavieiros do Estado, muitos deles aliciados para o trabalho têxtil nas fábricas da família Lundgren.

Quanto mais nos aprofundamos nesses estudos, mas descobrimos fatos curiosíssimos, como a engrenagem montada no processo de recrutamento de funcionários para a tecelagem. Curioso não é o adjetivo mais adequado. Pavoroso e assustador se aplicam melhor à situação descrita por José Sérgio. Através de suas lojas de varejo de tecidos espalhados por todo o Estado, a Companhia de Tecidos Paulista conhecia a realidade social e econômica de alguns vilarejos do interior, locais que se constituíam como alvos preferenciais para o início do processo de recrutamento( ou seria aliciamento?). Através dos seus agentes, o pessoal era previamente selecionado, envolvendo até mesmo algumas situações de clandestinidade, ou seja, algumas dessas famílias literalmente fugiam das condições precárias de trabalho nas usinas dos Estados de Pernambuco e da Paraíba.

Até geograficamente, era possível delimitar a área de abrangência desse recrutamento inicial. Esses trabalhadores eram literalmente "desnudados", saíam de uma situação precária para entrar numa outra, quiçá, ainda pior. Eram transportados num ônibus com o nome de sopa, um veículo que não oferecia o mínimo de respeito à dignidade dos seus passageiros. Ao chegarem na cidade de Paulista, cumpria-se o ciclo das instituições totais, bem ao estilo descrito por Goffman e Foucault. Separados por sexo, em alojamentos ou "depósitos", eram mantidos numa espécie de quarentena, esperando que sua sorte fosse determinada pelo Coronel Frederico Lundgren. Entrevistada pelo autor do trabalho, uma cidadã descreve bem aquela situação, ao se referir ao momento da alimentação: "Não tinha refeitório não. A gente comia até na mão mesmo, sentado por riba das camas. A comida era própria nas mãos, era assim mesmo. Era assim como um hospital mesmo."


Sérgio atenta para o cumprimento de um rito - para outros, possivelmente Pierre Bourdieu, uma "teatralização da dominação" - onde eram consolidadas as relações de poder. A começar pela Jardim do Coronel, ou a Casa Grande, mantida pela família no centro da cidade, numa arquitetura milimetricamente planejada com o objetivo de lhes facultar observar todo o andamento dos trabalhos na CTP. Era aqui, e não nas dependências ou escritório da Companhia de Tecidos, onde os operários eram selecionados. Impressionante como essa arquitetura se reproduz em todo conglomerado de indústrias têxteis que se instalaram em Pernambuco. A seleção era feita pelo próprio coronel, pessoalmente, que, a partir da textura das mãos dos futuros operários(e os olhos) determinava o local onde eles seriam locados. "este vai para as caldeiras"; "este aqui vai para o escritório"; "este será vigia". O controle sobre a vida dos operários era onipresente, absoluto. Além do trabalho, os operários recebiam uma chave para residirem numa das casas da vila operária, que, no seu apogeu, chegou a ter 06 mil casas, possivelmente a maior vila operária da América Latina. Um vínculo orgânico, de absoluta dependência, centrado no binômio fábrica/vila operária.


Alimentos eram adquiridos em armazéns também mantidos pela companhia. Parafraseando Gilberto Freyre, ao se referir aos senhores de engenhos do Estado, no livro Nordeste, na época do apogeu do ciclo da cana-de-açúcar, os Lundgren eram donos das terras, das águas, das matas, das máquinas, das casas, do porto, do aeroporto e das melhores mulheres. Havia uma indisposição política entre Agamenon Magalhães e a família Lundgren. A princípio, em alguns momentos, o grupo de Agamenon e da família Lundgren apoiaram candidaturas distintas no Estado, o que talvez explique, em parte, essas indisposições. Essas divergências se transformariam em ódio, nutrido pelo "China Gordo" em relação à família Lundgren. A matriz disso penso ser mesmo uma idiossincrasia proporcionada pela relações de poder de ambos. Agamenon era o "carrasco de Vargas" no Estado. Em Paulista, os Lundgren mandavam em tudo, possuindo, inclusive milícia armada e uma grande quantidade de armas. Era um "Estado Paralelo", de porteiras fechadas, onde a lei que prevalecia era a lei da família Lundgren.

O jornalista Sebastião de Neri comenta que Agamenon pediu o auxílio de um dos filhos - que estudava na Faculdade de Direito do Recife - no sentido de escolher um promotor para aquela cidade. Queria o melhor aluno da turma e um cabra de coragem, de sangue nos olhos, disposto a impor a Lei naquele feudo familiar. Não sabemos se o coitado do promotor foi bem-sucedido em sua empreitada. Mais adiante, quando se pleiteava a emancipação do distrito, que pertencia à cidade de Olinda, o China Gordo ainda tirou uma casquinha com a situação. Vamos fazer primeiro uma reforma agrária nas terras dos Lundgren. Como vamos emancipar uma cidade cujas terras pertencem a uma única família?

O preço da insatisfação





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       A mais recente pesquisa que aferiu o interesse e a identificação do eleitor brasileiro com relação aos partidos políticos, reflete a insatisfação que o cidadão vive para com as agremiações partidárias.

     No dia 09 de dezembro de 2004, a Transparência Internacional divulgou uma pesquisa, em que foi perguntado ao eleitor qual a instituição mais corrupta. Os partidos políticos apareceram em primeiro lugar. Pasmem, entre os 64 países em que o povo foi ouvido, o Brasil ficou de fora. Portanto, o quadro atual não é de causar espanto. Nem mesmo no conceito platônico.  A indiferença para com os partidos políticos e a apologia a determinados pré-candidatos à presidência da República ou a qualquer outro cargo, que não possuem ideais democráticos, só promovem mazelas, já que não se resolvem os problemas democráticos, fragilizando o sistema partidário. Pelo contrário, a saúde de uma democracia está atrelada ao fortalecimento dos partidos políticos. É bem verdade, que via de regra, o eleitor brasileiro pouco se preocupa com o partido que o seu candidato encontra-se filiado. Em contra partida, muitos candidatos disputam algum cargo público sem nenhuma identificação com o partido que lhe deu guarida, mas por uma questão de sobrevivência eleitoral e por causa do Art. 14, § 3º, V da Carta Política em vigor.

     Entender os partidos políticos brasileiros é um desafio para ciência política, pois as alianças e coligações que são construídas, boa parte delas, ferem à lógica humana. Partidos e grupos políticos que antes eram rivais, se juntam não em torno do melhoramento do Estado-Nação, mas exclusivamente para perpetuação do poder. Por aí se entende a postura de alguns políticos, que mesmo sabendo não haver nenhuma relação ideológica com determinados partidos, sacrificam toda sua história ou da sigla, para concretização do projeto pessoal.

 

Hely Ferreira é cientista político.

 

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Lançamento no segundo semestre!

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Michel Zaidan Filho: A apoteose da intolerância.



 
 
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Estive neste fim de semana em Garanhuns, a convite do Instituto Histórico e Geográfico, para lançar a revista RUBER e fazer uma palestra sobre a história e a historiografia de Garanhuns. Nas noites frias, chuvosas e cerradas da minha terra natal, o que mais ouvi foi reclamação. Parece que o governo do estado resolveu punir a cidade das 7 colinas e do clima maravilhoso, por conta da sua baixa popularidade e aceitação pelos garanhuenses. Fala-se da pouca afluência aos eventos, dos próprios convidados e sobretudo, da intolerância política e cultural da organização do FIG em relação à programação do mesmo. O ponto alto desse  descontentamento foi a explosão de  Daniela Mercury, quando ela fêz  um discurso político contra os partidos, os administradores e ao próprio governo de Pernambuco, em razão da censura à exibição de uma peça que faz uma leitura transsexual sobre a vida de Jesus Cristo. É curioso isso tudo. Numa cidade, onde a catedral do santo padroeiro da cidade  (Santo Antônio) foi palco de vários espetáculos profanos, e onde foi lançado o livro sobre a morte do bispo D. Expedito Lopes, onde quase era realizado o congresso nacional dos integralistas e onde uma das maiores atrações turísticas é o santuário de Mãe-Rainha, a explosão da cantora baiana acendeu uma luz na escuridão do festival.
                         
 
Não é de hoje que se discute a  sexualidade de Maria, de José e do próprio Jesus. Há quem afirme a bissexualidade  do nazareno, ou da  existência de uma prole  com  Maria Madalena. De todo jeito a relações do Cristianismo com as questões de gênero e  de orientação sexual não são e nunca foram pacíficas. Há na religião, como herdeira dos filósofos neo-platonicos e gregos, uma vocação misogena muito grande, que põe as mulheres numa posição desconfortável. Isso para não falar   das influências do primo mais velho - o judaismo - patriarcal, machocentrico, como dizem as feministas. A Igreja Católica ainda precisa pedir perdão às mulheres, pela sua misogenia  impenitente.
 
Na questão da orientação sexual,  é pior.  Pura hipocrisia. Em razão do celibato adotado pela Igreja (que muitos explicam  por meras razões econômicos, sucessórias e legais), a Igreja tem sido conivente com o  crime de pedofilia, embora condene o homoerotismo, que não é crime é um direito civil e  humano:a escolha da orientação sexual. Sou testemunha  de que muitos homossexuais   são bons cristãos, sofrem com a discriminação sexual   e não querem morrer sem extrema-unção. Ou seja, não há nenhuma incompatibilidade entre gênero,  identidade sexual  e piedade ou confissão religiosa. Só a elaboração ascética e puritana   do Cristianismo  paulino é que se tornou incompatível com o sexo, o genero e a  transsexualidade.
 
Portanto, é perfeitamente compreensível a   crítica feita aos censores   do governador em relação ao direito (constitucional) da liberdade de expressão artística daqueles que propuseram fazer a leitura "heterodoxa" da vida do nazareno.  Infelizmente, nestes tempos bicudos que nos foi dado a viver, com um governador rude, despojado de qualquer sensibilidade humana para essas questões (como para outras, aliás) é de se esperar essas e outras patranhas culturais. Mais grave ainda é quando essa campanha digna de Savanarola se insere dentro de uma política mesquinha de  punir a cidade e seus   habitantes, em decorrência  de   legítimas  discordâncias políticas e  partidárias.
 
Chega de tanta intolerância, senhor  governador!
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Crônica: Jackson do Pandeiro

 
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 José Luiz Gomes 
 

Domingos de julho são dias para curtir a região do Brejo Paraibano. Estamos em pleno festival cultural e gastronômico Caminhos do Frio. Um bom agasalho, uma boa companhia, um chocolate quente, uma seresta e uma caninha branca, típica da região, fecha o pacote. Outro dia fiquei surpreso com o número de cachaças que são produzidas na região do Brejo. Hoje elas estão entre as melhores do Brasil. Não deixam nada a dever às tradicionais cachaças artesanais mineiras, antes hegemônicas nesses rankings.Chegamos à Alagoa Grande, a cidade de Jackson do Pandeiro.
 
José Gomes Filho, o Jackson do Pandeiro, era filho de um paraibano e uma pernambucana, cantadora de coco, que, certamente, teve forte influência em sua formação artística. Com 08 anos de idade já a acompanhava nas emboladas por Alagoa Grande, sempre ao lado de uma zabumba. A trajetória de vida de Jackson, como a de qualquer artista popular de origem humilde, é marcada por muitas adversidades. Por essa época, curtia cinema, notadamente os filmes de faroeste. Brincava com outros jovens, de pistoleiro, bandido, índio, com a alcunha de Jack Parry. Com a morte do pai, precisou largar as brincadeiras e trabalhar para ajudar a mãe a sustentar a família. Engraxava sapatos e entregava pães pelas ruas de Campina Grande.
 
Como tinha habilidade para tocar instrumentos musicais, começou se apresentando em público, como integrante de pequenas bandas, sempre acompanhado de um pandeiro. Já era, então, o Jack do Pandeiro. Daí para o Jackson do Pandeiro foi um pulo. Um pulo de Comadre Sebastiana, um dos seus maiores sucessos. Depois, já como cantor solo, chegou às rádios, um grande impulso para a sua carreira, mesmo com o grande atraso com que lançou seu primeiro disco. Ao lado de Luiz Gonzaga, tornou-se o maior representante da música nordestina. Hoje é dia da Confraria do Arnaldo prestar-lhe uma merecida homenagem, sob o comando de Paulinho, que conhece bem seu repertório. Arnaldo escolheu o bar do Chicão, que possui uma carta com as melhores cachaças do Brejo e um cupim de deixar o caboclo de orelha em pé. Quando se trata de equipamentos de hospedagem, Alagoa Grande deixa um pouco a desejar. Já de madrugada deveremos voltar para Serraria. A anfitriã já teria reservado um quarto de carneiro e algumas garrafas de Cobiçada. Será que a turma aguenta o tranco? Pode isso, Arnaldo?

Sebastiana


Convidei a comadre Sebastiana
Pra dançar e xaxar na Paraíba
Ela veio com uma dança diferente
E pulava que só uma guariba
E gritava: A, E, I, O, U, Y

Já cansada no meio da brincadeira
E dançando fora do compasso
Segurei Sebastiana pelo braço
E gritei, não faça sujeira
O xaxado esquentou na gafieira
E Sebastiana não deu mais fracasso
E gritava: A, E, I, O, U, Y


(Jackson do Pandeiro)
 


 


segunda-feira, 23 de julho de 2018

Michel Zaidan Filho: Reencantar a educação



1. A escola como palco de disputas de projetos de hegemonia


É um grande equívoco, senão má fé, conceber a escola sem partido, tal como propôs o ex-ministro da Educação, Mendocinha, junto com o MBL e o deputado responsável pelo projeto de lei no Congresso. A escola é um aparelho atravessado por uma contínua luta de projetos de hegemonia, ou de uma hegemonia dominante e de contra-hegemonias. A escola não é um quartel, uma igreja ou um curso de formação de quadros partidários. É o espaço da disputa entre diversos projetos e leituras do mundo, a partir do processo argumentativo, do diálogo discursivo entre pessoas de boa fé e verazes. Aqueles que defendem a escola sem partido querem, na verdade, impor um único projeto de hegemonia, o seu. E proibir ou censurar os outros, criminalizando-os ou demonizando-os. Numa época em que o respeito à alteridade e diferença de gêneros, orientação sexual, etnia é um imperativo moral e pedagógico, esse projeto é autoritário.
         

2. Educação para vida/educação para o trabalho

Trabalhando com educadores e educadoras de meninas de ruas, no Recife, chegamos à conclusão que o ideal pedagógico para a escola pública, em tempo de exclusão social, é uma pedagogia do desejo, não do trabalho, em razão do processo de marginalização da sociedade e da própria escola. Este projeto pedagógico - que rejeita a educação de resultados e uma concepção triunfal da história - tem como principal objetivo o resgate da autoestima dos alunos, a sua fala, a sua história de vida, seus sonhos e a valorização de seu corpo. Seu escopo é a felicidade, não o sucesso profissional, a qualquer custo. E tem no mundo da cultura seu eixo principal. Lembrar o projeto integrado de educação, cultura e trabalho

3. Neste sentido foi proposto para a secretaria de Educação de Estado, através do programa "Protagonismo Juvenil" - uma agenda pedagógica adaptada a esses nossos tempos de globalização e mundo da cultura. Seus elementos principais seriam: A oralidade como forma de expressão; a cotidianeidade como estrutura social; a sociabilidade como fator de aprendizagem; o uso expressivo da linguagem; saber ler a escrita do mundo. E conceito de cidadania planetária ou cidadania em rede, cujos pilares é o ser-do-cuidado e o respeito à diferença. Parte-se do pressuposto que o mundo da juventude é o mundo da cultura, da informação, da economia política do signo ou da palavra.

4. Um projeto para as Universidades Públicas:

1.O imprescindível financiamento público-estatal ao ensino público de qualidade. Não pensar o gasto com a educação na relação custo-benefício, mas como investimento nas capacidades humanas. A PEC da morte. E a privatização do ensino público.
2. A inadiável necessidade da interiorização da Universidade Pública. A visão cosmopolita e universalista do saber não pode dar as costas às necessidades do local, regional. O global e o local sem fetichizar as raízes locais ou regionais, utilizar a ampla formação humanística a serviço das pessoas e comunidades locais.
3. Aprofundar a cultura inter, multi, transdisciplinar, que não separe o conhecimento, da beleza e da ética. Isto implica num novo conceito (ampliado) de razão. E não apenas sua limitação à chamada racionalidade instrumental. Avançar para o campo de uma razão lúdica, sensível.

4. A universidade como lugar da Utopia, do sonho, dos projetos de alteridade social. Não de atender às demandas do mercado ou do governo. Mas ter uma agenda aberta ao imaginário da sociedade.

FONTES:
A PEDAGOGIA DO DESEJO. Recife, Pindorama, 2000
Educação. Multiculturalismo e Globalização. NEEPD, 2006
"Em defesa da Universidade Pública". Diário de Pernambuco. 23/9/1999
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia
 



domingo, 22 de julho de 2018

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

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Crônica: "Estou aqui para ser louco"

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José Luiz Gomes
 
 
Já confessamos aos leitores a nossa admiração pelo escritor Franz Kafka. O que mais nos aproximou da obra de Kafka, além do estilo, naturalmente, foi a sua temática de cunho filosófico e político. Esse caráter esta presente em todos os percursos da obra do escritor tcheco. Também já confessei, nessas entrelinhas, ser um incorrigível colecionador de papéis, para desespero de nossa(s) esposa(s), leitores amigos. Outro dia, num papo informal, um colega nos confidenciou ter retirado de sua residência algo em torno de 15 mil exemplares entre livros, revistas e outros papéis. A esposa teria contraído câncer e responsabilizaram seus livros pelo ocorrido. Nunca ouvi dizer que livros provocasse câncer. Ao contrário, os livros, na realidade, nos proporcionam orgasmos espirituais que fazem um bem danado para a saúde.  
 
Havia algum tempo que procurava, entre esses papéis, um recorte antigo, acerca do escritor preferido de Kafka. Imagina os leitores se eu ia deixar de guardar esse recorte. Se ele era o escritor preferido de Kafka, por tabela, já despertava minha admiração e curiosidade. Encontrava de tudo, menos esse tal recorte. Não sou, assim, uma pessoa muito organizada. Em inúmeras buscas, encontrei coisas inusitadas, que suscitariam ótimas crônicas, mas o bendito recorte sobre o tal escritor, nada. Pedir o apoio da esposa nessa empreitada não seria muito prudente. Passei a suspeitar da possibilidade, inclusive, de um possível complô armado por ela. Vocês sabem do que são capazes essas mulheres naqueles dias de fúria. Apontam sua ira para aquilo que temos de mais sagrado. Uma delas, aqui na província, ateou fogo num caderno de poemas inéditos de um grande poeta. Vocês podem imaginar o dano para o infeliz?
 
Mas, mania de perseguição e teorias conspiratórias à parte, eis que, numa sexta-feira 13(imaginem!), bateu aquele insight de procurar o bendito recorte entre um amontoado de coisas mais antigas. Dei sorte. Lá estava o texto sobre Robert Walser, o escritor suíço. Walser é uma espécie de escritor para escritores. Não atingiu o grande público, mas tinha admiradores confessos como Robert Mussil, Thomas Mann, Herman Hesse e Franz Kafka, que confessava sua influência sobre a sua produção literária. É preciso ser dito, Kafka era um fã de carteirinha de Walser. De acordo com Moacyr Scliar, Walser transitou sobre vários gêneros, podendo ser considerado um gênio em alguns momentos. Os leitores teriam a oportunidade de ler de Walser, no Brasil, uma obra escrita por ele em 1907, quando o autor contava com apenas 29 anos de idade: O Ajudante.  
 
O filósofo Michel Foucault já observava que a literatura era uma espécie de barco dos loucos, um não lugar. Mais interessante ainda, Foucault, observar que Walser, em virtude de uma perturbação mental, foi transferido, a contragosto, para uma dessas instituições disciplinares: um hospital psiquiátrico. Como protesto, se recusava a escrever: Estou aqui para ser louco, não para fazer literatura. Walser, certamente, ocupa um lugar de destaque nesse barco de Foucault. Uma viagem sem âncoras - como é comum aos ditos loucos - apenas em razão de uma narrativa discursiva. Boa viagem, Walser.
 
 
 
 
 

Charge! Renato Aroeira

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Charge! Benett via Folha de São Paulo

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Hely Ferreira: Presente Público.


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     O relato histórico nos diz (embora haja contestação), de que o primeiro ato de nepotismo ocorrido em terras brasileiras foi praticado por Caminha em sua carta ao rei D. Manuel. Surgindo a vulgarização da expressão “pistolão”, oriunda de epístola. Daí em diante, o nepotismo se tornou algo corriqueiro por aqui. É bem verdade, que nos últimos anos, algumas medidas foram tomadas, visando tolher a prática nefasta e anti-republicana. Acontece que vivemos em um país onde o público e o privado se confundem, onde boa parte da chamada classe política, não mede esforços para fazer um mimo aos parentes, principalmente quando o mesmo vem do erário público.

     Empregar parentes em órgãos públicos é algo “normal” na história de Pindorama. E pelo jeito, vai continuar sendo. Com todas as medidas criadas para combater a falta de espírito público no país, não é difícil se ter notícias em que os Estados e principalmente os municípios, estão abarrotados de parentes das lideranças políticas, ocupando cargos estratégicos, onde na maioria das vezes o critério não é o da meritocracia, mas o do sobrenome. Aliás, no Brasil vale muito mais do que o currículo.

     Em uma visão além do bem e do mal, as nomeações de parentes na esfera pública, em tese não sofre nenhum tipo de interpelação de quem tem competência para fazer. Pelo contrário, assiste a tudo calado em um claro retrato de omissão e de falta de compromisso com os ideais republicanos.

 

Hely Ferreira é cientista político.


P.S.: Contexto Político. Muito nos honra a sua presença e colaboração aqui no blog, Prof. Hely Ferreira. Um grande abraço!

 

terça-feira, 17 de julho de 2018

Crônica: Cachaças do Brejo Paraibano

 
 
 
 
José Luiz Gomes
 
 
 
Há alguns dias publicamos por aqui uma crônica onde mencionamos algumas cachaças produzidas na região do Brejo Paraibano. Logo em seguida, recebo alguns e-mails de apreciadores do produto, informando-nos sobre outras tantas cachaças produzidas naquela região, algumas delas de qualidade até mesmo superior às citadas naquela crônica. Já antecipo um pedido de desculpas a esses leitores, observando, no entanto, o fato de ter citado as cachaças produzidas no Brejo como as melhores do país, atestadas por rankings nacionais. Não há nenhum bairrismo aqui. Na realidade, leitores, se isso minimiza tuas críticas, devo informar de que sou mais um estudioso do que um apreciador do produto. Tomo as minhas "lapadas" justamente quando visito tua região, quase sempre acompanhado da confraria. No final de semana passado estivemos no Engenho Vaca Brava, onde apreciamos a Matuta, outra caninha branca produzida ali. Não deixa nada a dever às melhores. Se tem uma costeleta de porco para acompanhar, então...
 
Não tenham dúvidas os leitores de que há, sim, naquela crônica umas ausências notáveis, como a Triunfo, por exemplo, produzida no engenho do mesmo nome, na cidade de Areia, assim como a Cobiçada, produzida no Engenho Martiniano, em Serraria. E o que não dizer da Serra Limpa, produzida no Engenho Imaculada Conceição, na cidade de Duas Estradas? que já superou até mesmo a Volúpia, do Engenho Várzea Grande, da cidade de Alagoa Grande. Comenta o Arnaldo que o ex-presidente Lula já foi presenteado com uma Serra Limpa e fez questão de agradecer o presente pessoalmente. Na realidade, leitores, quando o assunto é gastronomia, somos muito felizes por aquelas bandas. Hoje, por exemplo, acordei com o gosto de café do Brejo na boca. Tu sabes, por experiência, que convém forrar o estômago antes de cair na bagaceira. Normalmente apreciamos a marvada acompanhada do famoso caldinho de fava. Ninguém fazia melhor do que os cozinheiros do Vale do Paraíso daqueles tempos. Mas, como disse, sou mais um estudioso do que um apreciador.

Outro dia, compramos uma briga feia porque tentaram substituí-la pelo vinho num circuito expositivo que se propõe a representar o Nordeste. Ora, a cachaça nasceu na senzala, como um subproduto utilizado, a princípio, pelos negros, com o objetivo de amaciar a carne dos caititus ou caititus, um porco do mato capturado pelos escravos. A cachaça é secular. A produção de vinho na região Nordeste é coisa recente, desses tempos dessa tal de globalização. A cachaça, ao contrário do vinho, tem uma história intrinsecamente vinculada à raça negra escravizada. Todos os grandes movimentos libertários do país, como a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817, em Pernambuco, foram brindados com cachaça. Em seus encontros conspiratórios na antiga Vila Rica, os conspiradores tomavam porres homéricos de cachaças mineira. Isso talvez explique os estudos tão reticentes de Kenneth Maxwell sobre aquela movimento nativista. 

Importante, leitor, é que através dessas crônicas estamos mostrando um pouco da região do Brejo Paraibano para todo o Brasil. Citada na última crônica, a Rainha, produzida no Engenho Goiamunduba, em Bananeiras, foi retirada da lista por não ser bem uma "cachaça", mas uma aguardente. A danada é muito forte. Ultrapassa o limite dos 48 de teor alcóolico exigidos. Chega aos 52. Coisa para cabra macho.  Um grande abraço deste cronista e até breve. A Confraria agradece imensamente as observações.

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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domingo, 15 de julho de 2018

Crônica: Tambaba

 

 

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José Luiz Gomes
 
 
Tambaba foi uma das primeiras praias de naturismo do nordeste. Talvez a primeira. Mas não desejo arriscar cometer aqui algum equívoco. Tambaba é um belíssimo recanto que se esconde no distrito de Jacumã, aqui na cidade do Conde, litoral sul paraibano. Tambaba é uma das praias mais lindas do litoral da Paraíba.  É uma praia, além de bela, tolerante e democrática. Ali convivem todas as tribos, seja os discretos banhistas, os jovens adolescentes, seja os adeptos do naturismo, que para ali se dirigem, com freqüência, para curtirem seu lazer em absoluta convivência com a natureza, muito bem à vontade.
 
Tambaba é toda bela. Não  conheco a área reservada aos naturistas, onde são adotadas regras rígidas para o acesso. Dizem que o seu espaço mais bonito foi reservado aos naturistas. Não posso confirmar a afirmação, mas pode ser intriga da oposição. A parte de cá já nos satisfaz muito bem. Uma pena que o nosso comendador Arnaldo seja um bairrista convicto. Quando reúne a turma em Jacumã, se permite apenas um link com Carapibus, por ali nas imediações do Maceiozinho. Não mais. Nesses anos todos de convivência, foram poucas as vezes em que a turma da confraria se deslocou para Coqueirinho ou Tambaba. Arnaldo alega que a turma é muito bem tratada em Jacumã. Não nego que ele tenha razão. Alguma razão, é bem verdade.
 
Tambaba permanece bela, mas já não é aquela mesma praia de algumas décadas atrás. Há uma série de empreendimentos imobiliários no local e hoje já se fala num indisciplinamento do acesso à área exclusivo de naturistas. Mas, a mística permanece. Ao ponto de movimento naturistas mundiais a elegerem como um dos points favoritos. Os americanos já fretaram um voo exclusivo dos Estado s Unidos, direto para aquela praia, todos nus no avião. Aconteceu um fato curioso. Sem infraestrutura local, os naturistas tiveram que se reunir em Jacumã. Não sei se estavam todos nus, mas faltou energia justamente no momento da reunião.