pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO: setembro 2019
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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: A nova esfera pública centrífuga

          

 

As redes foram usadas, não para formar uma comunidade humana de interlocutores de boa vontade, mas de fascistas, neofascistas, pedófilos, intolerantes e fanáticos, que passaram a fazer uma catequese pelo avesso. Instaurou-se uma rede demoníaca de leitores (chamada de “imbecis”, por Umberto Eco) prontos a apoiar ditadores, messias, salvadores da pátria, aventureiros
No exato momento em que o Senado federal cria uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a ocorrência das ” fake news” durante o processo eleitoral passado e sua persistência nas redes sociais, CPI que tem como relator e secretária parlamentares independentes do bolsonarismo e no filho senador do primeiro mandatário da nação um dos principais envolvidos, a editora Companhia das Letras publica uma estimulante biografia intelectual dos principais membros da chamada “Escola de Frankfurt”(O Grande Hotel Abismo). Os leitores hão de perguntar o que tem a ver a publicação desse estimulante livro com um assunto tão pedestre como a apuração do crime de “fake news” pelas redes sociais. Aparentemente, nada. Mas, ao contrário, tem tudo a ver.
A obra discute de uma maneira ampla a contribuição do filósofo Jürger Habermas à teoria crítica, chamando a atenção para a correção democrática e cívica que o pensamento deste teórico terminou por fazer na visão pessimista e sem perspectiva de seus predecessores e mentores intelectuais. Entre as inúmeras contribuições à teoria crítica, já na terceira geração, avulta uma da maior importância para o ideário democrático: o conceito normativo e republicano de “esfera pública”. Diria um autor contemporâneo, a formação da vontade política” dos cidadãos e cidadãs é a moralidade do regime democrático. Não há democracia, digna desse nome, sem esfera pública.
Esse tema tinha sido o objeto de estudo da tese de doutorado de J. Habermas: “Mudança estrutural da esfera pública”. Nele, o filósofo tinha estudado a origem da moderna esfera pública nos cafés, saloons, encontros da sociedade francesa no século XVIII e constatado seu declínio com o surgimento da indústria cultural, dos grandes jornais, da propaganda etc. Mas o conceito ganhou cidadania na Ciência Política como a essência normativa (e moral) do regime democrático, escorado no processo de formação discursiva da opinião pública esclarecida e informada, na linha da argumentação kantiana do “uso público” da razão. Processo este responsável pela autonomia, a liberdade e o espírito crítico das pessoas, numa sociedade que marchava para sair do absolutismo e o monopólio da verdade por uma minoria. Depois, o conceito de esfera pública veio se corporificar nas chamadas “democracias deliberativas”, com seus fóruns onde o livre debate de ideias ajudaria a criar agendas públicas, apoiadas em consensos racionais.
Mas o que interessa aqui é discutir as virtualidades cívicas e democráticas que a rede mundial dos computadores (a internet) poderia ter criado para a existência de uma verdadeira “esfera pública mundial”. Este é o ponto. Houve inicialmente muito entusiasmo e esperança que esta rede pudesse ajudar ao surgimento dessa comunidade internacional de cibercidadãos, animados de boa-fé, a produzirem consensos racionais em torno de causas humanitárias, republicanas e democráticas, Naturalmente, o exemplo era a União europeia. Infelizmente, depois das consequências do Tratado de Maastrich, a unificação macroeconômica dos países europeus, a crise econômica e o fundamentalismo casado com a xenofobia, produziu-se o que Boaventura Santos intitulou de “fascismo social”: toda a causa da imensa crise social foi jogada nas costas dos imigrantes, dos pobres, dos muçulmanos etc. Ao invés do cumprimento das promessas desse novo iluminismo (agora chamado de “razão comunicativa”), tivemos o inferno de governos de extrema-direita ou socialistas rendidos à agenda de “guerra ao terror”.
Nesse contexto, a mundialização das redes sociais não podia promover uma comunicação racional, desprovida de imperativos de poder ou interesses. A ampliação das redes de comunicação deu lugar à disseminação da xenofobia, do fundamentalismo, do preconceito racial, de gênero ou orientação sexual. As redes foram usadas, não para formar uma comunidade humana de interlocutores de boa vontade, mas de fascistas, neofascistas, pedófilos, intolerantes e fanáticos, que passaram a fazer uma catequese pelo avesso. Instaurou-se uma rede demoníaca de leitores (chamada de “imbecis”, por Umberto Eco) prontos a apoiar ditadores, messias, salvadores da pátria, aventureiros, que prometiam segurança, paz e prosperidade para essa extensa massa de “idiotas úteis”.
Essa morte da esfera pública chegou ao Brasil e produziu os seus malefícios antidemocráticos e antirrepublicanos na eleição presidencial passada. Escritórios, estipendiados por empresas interessadas na eleição de um dos candidatos, foram montados por milícias virtuais para inundarem as redes sociais de “fakenews”, com as piores calúnias, injúrias e difamações – que aliás, permanecem impunes- com uma influência direta na formação da vontade política dos eleitores. Imagine-se o oposto do conceito normativo de “esfera pública”, com o objetivo de suscitar o aparecimento de uma mentalidade fascista ou pró-fascista, ajudado pelas igrejas neopentecostais, inspiradas numa teologia da prosperidade.
Por tudo isso, afirmou o nosso filósofo que não era possível ver nesse fenômeno uma espécie de neo-iluminismo, até pela fragmentação das audiências; mas ao contrário, o caldeirão perfeito para a produção da intolerância, do racismo, da teocracia e da xenofobia.
Vamos dar boas-vindas a esta iniciativa do Senado Federal brasileiro e esperar que ela apure cabalmente as responsabilidades daqueles que difamaram, caluniaram e injuriaram os adversários, utilizando-se das redes sociais. A se continuar a impunidade pelos crimes de opinião na internet, jamais teremos – não digo, uma comunidade racional de pessoas – um regime democrático e republicano entre nós.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Charge! Hubert via Folha de São Paulo

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domingo, 22 de setembro de 2019

Livros contra o autoritarismo

Censura na Bienal do Rio faz lembrar os maus bocados enfrentados por editores nos tempos da censura ditatorial
10set2019 13h09
 
A censura voltou. Felizmente de forma explícita, na iniciativa de um teocrata oportunista que, de olho nas eleições de 2020, decidiu fazer festinha em seu rebanho pedindo a apreensão de um gibi na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. O beijo entre dois homens da HQ da Marvel pode parecer um motivo trivial, mas a pauta moral, tão tola quanto aparenta, é dos atalhos mais curtos para o cerceamento da liberdade de expressão. Nenhuma ditadura nasce ditadura, mas se torna ditadura. 
É certo que, ao violentar a Constituição com a cumplicidade de um juiz, o fundamentalista de chanchada conseguiu o que queria, afagar seus eleitores. Mas também despertou uma reação inequívoca dos editores de livros, que com raras e honrosas exceções vinham observando um silêncio preocupante diante das sistemáticas ameaças aos princípios democráticos anunciadas na campanha de 2018.
Há menos de um mês participei de uma conversa na Livraria Leonardo da Vinci, no Rio, sobre o que acontece com editores numa ditadura. Fui falar sobre Jorge Zahar, que biografei; o editor e livreiro Marcus Gasparian deu um depoimento sobre seu pai, Fernando, publisher do Opinião e da Paz & Terra; Américo Freire, pesquisador da FGV, lembrou a atuação de Ênio Silveira à frente da Civilização Brasileira. Na década de 1960 como hoje, continua valendo o princípio: livros são alvo preferencial do autoritarismo.
Os três editores foram perseguidos por fazerem circular ideias e valores contrários à ditadura civil-militar instaurada em 1964. No final daquele ano, no início da escalada de arbítrio, Jorge teve que tirar os filhos do Bennett, tradicional colégio carioca: o sobrenome Zahar tinha virado sinônimo de História da riqueza do homem, e o livro de Leo Huberman, um sinal exterior de pensamento crítico. Dos três, Jorge foi o único a não ser preso. Ênio, seu melhor amigo, respondeu a sete processos, e os pernoites na cadeia viraram rotina na vida de Fernando Gasparian. 
Jorge e Fernando foram mais estratégicos no enfrentamento. Ênio desconhecia sutilezas. Pouco antes da quartelada, tinha lançado uma coleção, a Cadernos do Povo Brasileiro, com livrinhos baratos e didáticos de títulos sugestivos como Quem dará o golpe no Brasil?Por que os ricos não fazem greve? Salário é causa da inflação?. Em 1965 criou a Revista da Civilização Brasileira e nela publicou duas “Epístolas ao Marechal”, corajosas cartas abertas em que interpelava o marechal Castello Branco. Sofreu represálias econômicas, ameaças físicas e até um atentado terrorista, que destruiu a livraria da Civilização Brasileira no Centro do Rio. Do ataque, ficou um eloquente documento de barbárie, a foto terrível das portas da loja retorcidas sob um cartaz com o lema da casa: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”. 
Na tese de doutorado A lista negra dos livros vermelhos: uma análise etnográfica dos livros apreendidos pela polícia política no Rio de Janeiro, a pesquisadora Luciana Lombardo Costa Pereira constatou que, na lista que nenhum editor gostaria de frequentar, os três primeiros lugares ficaram justamente com a Civilização Brasileira (60 títulos), a Paz e Terra (51) e a Zahar (30). Num relatório do período mais violento da ditadura, a Zahar era acusada de “ação ideológica antidemocrática” – talvez porque estampasse em seus livros o moto “a cultura a serviço do progresso social”.
Em 1965, Ênio foi preso depois de ter oferecido um almoço a Miguel Arraes. O famoso IPM da Feijoada, é claro, não deu em nada. Mas no dia 29 de maio, os principais jornais publicaram o manifesto “Intelectuais e artistas pela liberdade”. Assinado por mais de mil nomes, o documento dizia: “Os intelectuais e artistas brasileiros abaixo-assinados pedem a imediata libertação do editor Ênio Silveira, preso por delito de opinião. Não entramos no mérito das opiniões políticas de Ênio Silveira, mas defendemos seu direito de expressá-lo livremente, direito garantido pelo artigo 141, parágrafo oitavo, da Constituição do país: ‘Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum de seus direitos.’”
Mesmo com uma mobilização cerrada, a ditadura só se intensificaria com mais prisões, tortura, mortes e exílios. A anistia, marota, foi seletivamente ampla, relativamente geral e, definitivamente, nada irrestrita. Intacto, o autoritarismo continuou reproduzindo sua lógica nas sombras e nas instituições. E, uma vez mais, bota na mira os livros, aqueles que os publicam, os que os escrevem e os que os leem contra a imposição de valores nefastos. 

(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros, Quatro Cinco Um)

O cinema e a decência no ato de acusar

  Elmir Duclerc

O cinema e a decência no ato de acusar
Cena de "Os oito odiados", de Quentin Tarantino (Foto: Divulgação)

Ainda antes de entrar no curso de Direito, assisti a um filme estrelado por Al Pacino, chamado …And justice for all, em que o ator interpreta um advogado idealista que tenta desesperadamente tirar da cadeia um jovem injustamente acusado de um delito.
A certa atura, ele recebe a notícia de que seu cliente teria se rebelado, assassinado alguns outros presos e funcionários, e estava amotinado, mantendo pessoas como reféns, até ser finalmente abatido pela polícia. Tudo isso depois de ter sido brutalmente violentado (sexualmente, frise-se) por outros presos.
Talvez por influência desse filme, durante os anos de faculdade jamais me vi atuando na área penal. Imaginava que não suportaria a responsabilidade de ter nas minhas mãos o destino de qualquer pessoa que estivesse de alguma maneira exposta àquele tipo de violência, aterradora para um jovem de classe média, branco, e confortavelmente instalado na casa dos pais, recebendo todo o cuidado e proteção. Havia em mim, claramente, a ideia de que nenhuma ação humana mereceria aquele tipo de consequência trágica como resposta punitiva, mesmo em se tratando de réus culpados.
Ao final da graduação, entretanto, logo após a promulgação da Constituição de 1988, acabei prestando concurso para o Ministério Público, órgão extremamente fortalecido e redesenhado para a tutela de outros importantes direitos coletivos e difusos, e reconfigurado, inclusive, no que se refere à acusação criminal, a ponto de se dizer (quantas vezes ouvi isso!) que a instituição já não poderia ser vista como um órgão de “acusação sistemática”, mas que poderia e deveria velar pelos interesses da própria pessoa acusada de delito, para que os seus direitos fossem preservados, para que a sua inocência presumida fosse levada a sério e para que a eventual punição não ultrapassasse um milímetro daquilo que a lei estabelecia. Havia até um bordão para isso: “não somos mais promotores públicos, mas promotores de justiça”.
Ao longo desses quase trinta anos, portanto, alimentei a esperança de que a função de acusar, vale dizer, de trabalhar para que um ser humano qualquer fosse submetido aos horrores do cárcere, poderia ser exercida com dignidade, desde que fossem observadas algumas premissas.
A primeira coisa que sempre esteve clara para mim é que eu jamais poderia me colocar na condição de censor moral de quem quer que fosse (Não julgueis, porque com o mesmo critério que julgardes também sereis julgados, diz a escritura). Desde sempre, portanto, vi o crime, por mais monstruoso que parecesse, como algo humano, que precisava de uma resposta humana, dentro dos limites do que a Lei e somente ela poderia estabelecer, como condição necessária à manutenção da vida em sociedade, mas sem qualquer autoridade de juízo moral sobre quem a tivesse violado.
A segunda coisa é que, na condição de promotor de justiça, eu era apenas um servidor público, remunerado para fazer um trabalho técnico, nem mais nem menos, e sem qualquer preocupação, portanto, em obter “vitórias”, mas apenas em cumprir com minhas obrigações funcionais da melhor forma possível.
Por isso, mesmo quando atuava no júri, falando para pessoas do povo, nunca me senti confortável em agredir ou insultar as pessoas que se apresentavam como acusadas. Sempre achei isso totalmente desnecessário e de uma covardia sem tamanho.
Causa-me um imenso desconforto, portanto, ver o que está sendo exposto às escâncaras para o grande público, mas que já vem sendo percebido há muito tempo por quem acompanha de perto (de dentro, na verdade) o caminhar da Instituição na sua atuação criminal ao longo de todos esses anos. Há muito tempo já escrevi sobre aquilo que me parece um problema seríssimo na seleção e na formação dos quadros que compõem o sistema de justiça, submetidos a concursos que muito mal avaliam a capacidade de decorar irrefletidamente textos de lei ou de informativos dos tribunais superiores e desprezam qualquer outro tipo de competência, como, por exemplo, a capacidade de compreender os limites éticos e políticos de sua atuação.
O triste resultado, como já disse várias vezes, é que temos um grande número de colegas que realmente alimenta uma certa superioridade moral que os habilita a vestir a capa de vingadores contra as ações de pessoas moralmente degeneradas, que merecem a punição não exatamente pelo que supostamente fizeram ou fazem, mas pelo que são, o que significa, inclusive, que a Lei é apenas um detalhe, e muitas vezes um embaraço, uma filigrana (pra usar uma expressão em voga) que pode e precisa ser ignorada em nome de questões de ordem moral ou política.
Pior que isso, aliás, é ver esse comportamento ser tolerado e até estimulado em nome de interesses corporativos, que identificam nessa forma de se apresentar à sociedade uma maneira de assegurar prestígio e com ele manter determinadas vantagens econômicas para a carreira ou mesmo na forma de palestras regiamente remuneradas, vazias de conteúdo, onde tudo que se pretende é entorpecer a plateia desejosa de vingança com um discurso proselitista e emocional.
Na filmografia de Tarantino há um genial diálogo entre um carrasco e sua futura executada, uma mulher que está sendo levada para ser enforcada numa determinada cidade do Oeste estadunidense, desses trechos que só poderiam estar presentes num clássico como Os oito odiados.
Transcrevo:
“Muito bem, você é procurada por assassinato. Só para minha analogia, vamos supor que você fez isso. John Ruth quer levar você até Red Rock para ser julgada por assassinato. E, se for considerada culpada, o povo de Red Rock vai enforcá-la na praça da cidade, e eu, como carrasco, farei a execução. E se todas essas coisas acabarem acontecendo, é isso que uma sociedade civilizada chama de ‘justiça’. Entretanto, se os parentes ou amigos das pessoas que você matou estivessem lá fora neste momento, e depois de quebrar essa porta, eles arrastassem pela neve e a pendurassem pelo pescoço, isso, isso seria um linchamento. Agora, a parte boa do linchamento é que aplaca a sede de vingança. A parte ruim é que pode fazer o certo se tornar errado.”
“Qual a diferença?” (alguém pergunta).
“A diferença sou eu. O carrasco. Para mim não importa o que fez. Quando eu enforcar você, não terei satisfação pela sua morte. É o meu trabalho. Enforco você em Red Rock, parto para outra cidade e enforco outro lá. O homem que puxa a alavanca, que quebra o seu pescoço será um homem imparcial. E essa imparcialidade é a essência da justiça. Justiça aplicada sem imparcialidade corre sempre o risco de não ser justiça.”
Em suma, talvez esteja sobrando decoreba de legislação e faltando bom cinema na formação dos operadores das diversas instituições jurídicas.
Elmir Duclerc é promotor de Justiça em Salvador-BA e professor adjunto de Direito Processual Penal da UFBA

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Um acordão?

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: O 11 de setembro

terça-feira, 10 de setembro de 2019

O aprendizado da angústia

  


O aprendizado da angústia

Girolata Triptych, Joan Mitchell, 1964 (Foto: WikiArt/Domínio Público)


Acha-se num dos contos de Grimm uma narrativa sobre um moço que saiu a aventurar-se pelo mundo para aprender a angustiar-se. Deixemos esse aventureiro seguir o seu caminho, sem nos preocuparmos em saber se encontrou ou não o terrível. Ao invés disso, quero afirmar que essa é uma aventura pela qual todos tem de passar: a de aprender a angustiar-se, para que não venham a perder, nem por jamais terem estado angustiados nem por afundarem na angústia; por isso, aquele que aprender a angustiar-se corretamente, aprendeu o que há de mais elevado
Soren Kierkegaard – O conceito de Angústia
Uma sensação difusa, próxima de uma ansiedade, mas sem objeto, parecida também com o medo, mas sem causa específica. Uma inquietude metafísica, mas sem linguagem organizada. Nem bem um pavor, nem bem horror ou terror, mas um mal estar, uma falta flutuante, uma ameaça fantasmática e um sobressalto iminente. Eis o quadro de uma experiência conhecida individualmente e que hoje se torna um sintoma social. Ele diz respeito a um conceito filosófico fundamental, a angústia.
A angústia é um sentimento disperso e desagradável e, ao mesmo tempo que carrega uma inquietação metafísica, é algo paralisante. Um filósofo que pode nos ajudar a compreendê-la é Kierkegaard que viveu no século 19 na Dinamarca. Kierkegaard vai influenciar muitos pensadores com seu tratado sobre O conceito de Angústia escrito em 1844 sob o pseudônimo de Vigilius Haufniensis. Nesse livro ele nos apresenta o conceito de angústia como uma posição fundamental, talvez a mais essencial no desenho do complexo ser humano. E por que a angústia seria tão fundamental? Porque ela que nos ensina o que é a “interioridade existencial”. É a angústia que nos dá a medida da experiência do sujeito enquanto sujeito humano. No lugar de um “penso, logo existo”, poderíamos definir a experiência da angústia como aquilo que está no lugar do pensamento. Como se a angústia fosse o nascedouro da consciência.
Na visão do filósofo dinamarquês, a angústia é constitutiva da condição humana. Ela faz parte da vida. Inevitável, ela surge no momento em que somos confrontados justamente com as possibilidades da vida, sejam elas boas ou não aos olhos acostumados às sombras das verdades prontas. Surgirá daí a liberdade como uma condenação, como depois nos explicarão Sartre, Beauvoir e outros pensadores existencialistas.
A angústia é o efeito do nosso contato com as possibilidades da vida mais ou menos estreitas conforme as circunstâncias vividas por cada um. Ao falar de angústia, estamos diante daquilo que nos oprime, como um canal estreito, um obstáculo a ser atravessado. Tal é a sua etimologia. Mas ela é mais do que um sentimento, ela é a posição que implica a percepção, um certo tipo primitivo de saber sobre o caráter absurdo da vida e, no meio dele, a consciência do minúsculo ser humano lançado entre a potência e a impotência, o brilho e o apagamento, a grandeza e a miséria de sua própria condição. Heidegger, influenciado por Kierkegaard, dizia que temos que fazer escolhas, mas não temos certeza de que haverá resultados favoráveis a nós. “A única certeza é a vida de culpa e ansiedade”, ele dirá em um livro como Ser e tempo (1927).
Talvez o reconhecimento de que há um destino para além da vontade humana reposicione o ser humano diante da natureza, da história, do outro e de si mesmo. Talvez a angústia ceda de sua imobilidade diante da aceitação da finitude. Mas como aceitar a finitude nesse tempo em que perdemos a capacidade de meditar sobre a morte e, ao mesmo tempo, tudo parece tão morto?
Autopedagogia
A angústia nos coloca, portanto, a questão de nossa presença no mundo. Não se trata apenas da pergunta pelo que somos, ou o que fazemos, mas o que estamos experimentando. O que recebemos, damos e “levamos” dessa vida? O que é realmente importante? O que realmente pode ou deve ser vivido? Como vivemos diante do fato de que estamos necessariamente relacionados a nós mesmos, além de estarmos relacionados aos outros e à alteridade como lugar da diferença?
Bem vivida, a angústia é a chance de estabelecer uma relação autêntica com a gente mesmo. Com o que somos. Ela envolve uma autopedagogia pessoal.
Nela é que podemos nos perguntar “como me relaciono comigo mesmo?”, que é algo bem mais complexo do que a crença em um “autoconhecimento”. É a angústia que pode nos dar as condições de fazer a pergunta “como me torno quem eu sou?”.
E me faz saber que não posso responder a ela se não avaliar as demandas, as imposições, as ordens e os modismos que me afastam de mim. É a angústia, portanto, que me devolve a mim mesmo. Que evita a alienação à qual nos convida o nosso tempo sombrio.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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sábado, 7 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Vindita social

                  
 
A ação de despejo movida pelo INCRA contra o MST, retomando a posse da fazenda Normandia (Caruaru) cumpre estritamente o programa de retaliação e criminalização dos movimentos sociais no Brasil, anunciado antes pelo senhor Jair Bolsonaro.

A exemplo das ações criminosas contra as terras dos indígenas, quilombolas, contra os negros, homossexuais, a escola pública e o meio-ambiente, este governo pratica um verdadeiro crime de lesa-sociedade.

O MST é um movimento social moderno, exaltado por personalidades do mundo inteiro. Faz parte de um comitê mundial dos povos da terra, tem sido um participante assíduo do fórum social mundial e contribuído, também, para o avanço da democratização das estruturas agrárias brasileiras.

A fazenda Normandia é uma verdadeira escola da mais alta importância para os trabalhadores rurais. As universidades públicas têm contribuído frequentemente com seus quadros para o trabalho de formação de agentes sociais. Tem sido também um laboratório de novas formas coletivas e solidárias de produção autossustentável. As cooperativas do MST ajudam a colocar comida boa e barata na mesa do povo brasileiro e ensina os princípios da agroecologia.

É lamentável sob todos os aspectos essa espécie de vindita social contra os movimentos sociais.  Tal medida só pode partir de uma mente insana a serviço dos grandes agro negociantes, das empresas de alimentos transgênicos e do agrotóxico. Poucos movimentos sociais granjearam tanta admiração e apoio da sociedade como o Movimento dos trabalhadores sem-terra. Foi ele considerado por Manuel Castels um movimento de “identidade de projeto” não apenas de “reação”.

Chico Buarque de Holanda, José Saramargo e Sebastião Salgado reconheceram o seu importante papel na sociedade. Abundam na universidade os estudos sobre a capacidade do MST produzir fatos políticos através do poder simbólico. Sua tríade: “terra, trabalho e vida” se opõe como nenhuma coisa a esse capitalismo rentista que faz da propriedade rural mera reserva de valor, enquanto milhares de brasileiros morrem de fome ou não tem um chão para plantar.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Charge! Folha de São Paulo

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quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Bacurau e a síntese do Brasil brutal


Bacurau e a síntese do Brasil brutal
Silvero Pereira como Lunga em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

Há algo de profundamente perturbador em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, talvez o mais importante filme contemporâneo sobre o Brasil distópico da era Bolsonaro. Mesmo tendo sido filmado antes das eleições de 2018 e da catástrofe política em andamento, Bacurau é um filme visionário e violento, uma ficção científica e política que não tem nada de alegórica. Ao contrário, é explicita e brutal, de uma lucidez aterradora.
Um filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de terror, filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se encontram com um rural contemporâneo que explode clichês.
Bacurau é um extraordinário remix do imaginário hollywoodiano com a tradição do Cinema Novo brasileiro: a estética da fome, a estética do sonho e a pedagogia da violência de Glauber Rocha com banhos de sangue prêt-à-porter vindos dos filmes de ação e reality shows. Um filme de crítico de cinema, de cinéfilo e de um diretor que chegou ao auge da destreza narrativa.
Cinema Transgênero
Com Bacurau Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem uma espécie de faroeste transgênero, no sentido dos gêneros do cinema, mas também ao explodir os clichês dos comportamentos. Um cangaço trans em que cada espectador projeta suas referências e desejos.
Mas o que o aproxima do Glauber de Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, ou de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de 1969? Estamos falando de filmes de invenção de um imaginário rural brasileiro catártico, que inventam uma mística política vinda do povo. Vinda dos oralistas, dos interioranos, do inconsciente explodido das periferias rurais do Brasil.
Mas são muitas as referências: o Godard de Weekend à francesa (1967) ou de Alphaville (1965), ficção cientifica godardiana profundamente distópica. Com a diferença que não há mais nenhum romantismo em Bacurau, apenas um sarcasmo ou riso vingador ou irônico. Como na cena das execuções públicas no Anhangabaú, exibidas na TV, cenas que ecoam os linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas.
Mad Max sertanejo
O filme trata de questões urgentes: crise da água e do meio ambiente, empresas e políticos com ethos milicianos, forças paramilitares ou mercenários globais. Atravessada por essas forças, uma nova Canudos na beira da estrada ou uma cidade Mad Max sertaneja. Uma Canudos genérica, pronta para explodir. Tudo filmado como uma espécie de reality show perverso e alucinatório, com jogos violentos e extremos e com personagens estranhamente familiares e “normais”.
Mas do que se trata o filme? Antes de mais nada de um rural contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa.
O que fazer diante do capitalismo gore?
A segunda questão é exatamente essa. O que podem (como agir, resistir, se governar) as comunidades que estão sendo atacadas e apagadas pelo capitalismo das “tripas e sangue”? E aqui tomo emprestado o conceito da mexicana Sayak Valencia para descrever a vida nas fronteiras de Tijuana, em que comunidades inteiras têm que lidar com o que nomeia de “capitalismo gore”, um capitalismo mafioso, da narcocultura, milícias, assassinatos.
Esse capitalismo gore, com suas tripas e sangue, é também uma construção cultural. O termo tem origem no gênero cinematográfico splatter, com o uso gráfico e extremo da violência, o grotesco e a violência explícita como linguagem. O assujeitamento e ações predatórias, onde se pode infligir dor e violência contra os corpos, mas também pensar a violência como necroempoderamento.
Diante de um neoliberalismo que fracassou na sua utopia de mercado, diante de uma democracia em agonia, os sujeitos, os cidadãos, a comunidade também quer partilhar e participar da violência como forma de resistência e sobrevivência.
As fronteiras, as cidade das bordas e periferias, as periferias, as comunidades apelam para um autogoverno e ações extrajurídicas. Como em Canudos amotinada, novos laboratórios do pós-colonialismo, mas também das insurreições contemporâneas. Enclaves, tribos, comunidades distópicas e utópicas se inventando.
Sonia Braga as Domingas _ Victor Jucá
Sonia Braga como Domingas em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)
Os insurgentes em uma democracia em agonia
Diante de fantasias de poder ultraconservadoras, diante de figuras ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros, seres “endriagos”, demolidores, que surgem produzindo a gestão da morte, as comunidades se apropriam da violência como ferramenta de empoderamento e de resistência. Uma saída possível do lugar de vítima para a de vingadores.
Bacurau traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos 70 sem fazer qualquer menção, sem qualquer discurso político ou panfletário, simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas!
Mas quem são esses novos heróis de uma Canudos revisitada? O Brasil que emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se tornaram sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural, ribeirinho, periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária cangaceira trans, encarnada por Silvero Pereira.
Uma Canudos remixada que traz também personagens de uma dor extrema, como a mãe diante do filho executado no escuro, com o uniforme do colégio, uma cena arrepiante que vai entrar para a história do cinema brasileiro. E toda a comoção da cidade diante das mortes seriais.
Os personagens de Bacurau trazem nos corpos, nos cabelos, na cor da pele, um Brasil que emergiu e ganhou visibilidade. Homens e mulheres, negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos originários. Magníficas as cenas de um devir índio dos personagens que andam e vivem nus nas suas casas de barro, falando com as plantas, vivendo em uma temporalidade estendida, donos de poderes mágicos e de uma cosmovisão.
Impossível não ver neste faroeste caboclo sideral os banhos de sangue, as Marielles assassinadas, a potência das mulheres, todo um novo cangaço das lutas de maiorias, minorias e transgêneros.
Hiper realismo alucinatório
Não há nada de fantasioso em Bacurau, o filme é de uma clareza e brutalidade alucinantes, uma espécie de documentário sobre o imaginário em que estamos. O que poderia ser traumático, o jorro de sangue, a violência gore, todos os corpos dilacerados, cabeças decepadas, os requintes de crueldade e o gozo e erotismo diante da morte se tornam elementos catárticos e redentores ao final do filme.
Diante do trauma político em que estamos. Diante da percepção cotidiana de que “estamos sendo atacados” em nossos valores, em nossos impulsos vitais, em nossas vidas, em nossas sexualidades, Kleber Mendonça apresenta uma guerrilha de bolso. Um laboratório na cidadezinha do interior de Pernambuco. Bacurau é meio Dogville de Lars Von Trier.
Bacurau é Dogville, Alphaville, Canudos, um território separado geográfica e temporalmente do resto do país. O Brasil, São Paulo, são ficções distantes. Como a República era uma ficção para o arraial sertanejo. Como em Os sertões de Euclides da Cunha, Kleber Mendonça nos apresenta a Terra, o Homem e a Luta.
E que emoção ver o cinema glauberiano e o imaginário euclidiano vivos, reinventados em um presente urgente que atualiza personagens como Antônio das Mortes, Corisco, Lampião, a mística política presente em um mesmo filme sem fim que estamos fazendo, uma brasiliana contemporânea.
Bacurau traz uma linguagem impactante. Um remix de Glauber com Tarantino e Godard, e ainda revisita o tropicalismo cinematográfico de filmes como Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr .,que proclamava em 1969 que “aqui é o fim do mundo” .
Uma ficção científica apocalíptica que é um retrato do Brasil em 2019. Não identificado, a música de Caetano cantada por Gal Costa, que abre o filme, vem diretamente deste espaço sideral, anos 60/70, nossos “negros verdes anos”, de ditadura militar e do auge de invenções na cultura, uma explosão criativa de cinemanovismo, tropicalismo etc. Kleber Mendonça revisita o lado B do tropicalismo solar: distopia, anarquia, um tropicalismo underground e sombrio que não chegou na cultura de massas.
Bárbara Colen as Teresa _ Victor Jucá
Bárbara Colen como Teresa em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (Foto: Victor Jucá/Divulgação)
Efeitos colaterais
Bacurau produz efeitos colaterais e sensoriais imediatos. Seja um estupor melancólico frente ao cenário político que estrebucha na tela, seja o efeito catártico. Ouvi pessoas que gritam e aplaudem, urram diante das mortes horríveis, cabeças decepadas e castigos infligidos aos vilões. Outras despertam eufóricas com as imagens, a montagem, como se fosse um soco ou um pegar pelos ombros que nos sacode por inteiro. Ou ainda um choro, uma comoção, não se sabe bem por que, mas que o filme desata, como esses nós que se desfazem sozinhos depois que já ferimos os dedos da mão tentando abrí-los.
São muitas as referências ao cangaço, ao sertanejo, aos jagunços, aos beatos, aos pré-revolucionários de Glauber, os condenados da terra de Frantz Fanon, os resistentes de um Brasil que luta pela terra, pela água, pela comunidade, pela Amazônia, pela vida.
Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica Domingas, o professor, as lideranças espirituais. Muitas cabeças e um só corpo.
Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa diversidade, esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o militarismo corporativo, o capitalismo miliciano, o empreendedorismo gore. Vai faltar caixões?
As comunidades, os enclaves, os indígenas, a juventude periférica, as esquerdas, os estudantes universitários, os negros e negras, até o momento desconsideraram o discurso radical, de pegar em armas, usar a força física, se armar para fazer a disputa política. Mas o que esperar diante de um Estado que age extra judicialmente e fora da lei?
Quando um governante diz que tem “que mirar bem na cabecinha” e matar seus “inimigos” como em um filme hollywoodiano ruim, ou chega de helicóptero sobre um corpo abatido pela polícia e comemora como um gol, esse imaginário e esse desejo de justiçamento não produzem um imaginário sem controle e perverso?
Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos em um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e ataques? Uma ficção política plausível e aterradora que mostra como se produz Marighellas, Conselheiros e Zumbis, mas também Mitos, Witzels, ultra-extremistas de todos os matizes.
Diante de um humanismo que fracassou, Bacurau sintetiza o Brasil brutal, distópico em que a partilha da violência e a posse de armas e de justiçamento passa a ser feita não apenas pelo “cidadão de bem” conservador, mas surge, como na década de 70 – com as guerrilhas urbanas e ligas camponesas – como uma saída possível, uma reação coletiva, diante de uma democracia e de um Estado colapsados.
Kleber Mendonça Filho não faz uma leitura piedosa de tudo o que está ai. Faz um manifesto cinematográfico, com uma linguagem sofisticada, um apuro estético, uma destreza em conduzir a narrativa. Deixa uma pergunta. Qual a saída diante da necropolítica? O necroemponderamento? A resistência vital? A violência como uma linguagem e um poder de transformação?
Mas também uma saída mágica, uma mística política. Porque “precisamos de todos os santos e orixás, amém” para atravessar o deserto e esse imaginário adoecido. Precisamos acreditar na política e no cinema, na cultura e na arte, na educação, nas resistências cotidianas, nos enclaves e motins.
Afinal o que é um cinema disruptivo? E aqui volto a Glauber e a toda a radicalidade da arte em tempos de barbárie, “deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”.
Podemos também invocar outro grito de guerra das lutas contemporâneas, uma guerrilha rural e urbana que se alastra: “As putas as bi, as travas e as sapatão tão tudo preparadas pra fazer revolução”.
Nesse sentido, Bacurau também tem um forte protagonismo feminino. Lia de Itamaracá como a liderança política e mística da comunidade e Sonia Braga, uma médica de pés no barro. Bacurau despe Sonia Braga de todo um imaginário de glamour construído nos filmes brasileiros e estrangeiros ao mostrá-la com todas as marcas da idade, cabelos brancos, um corpo nu, uma mulher na sua maturidade, quase uma “médica cubana” na sua abnegação e cola comunitária, uma atriz excepcional que se reposiciona desde Aquarius e, em Bacurau, transcende e se reinventa. Fazer “desaparecer” uma atriz como Sonia em uma comunidade de atores incríveis e pouco conhecidos é um feito.
Os invasores
Afinal quem são os invasores de Bacurau? “Estamos sob ataque”, percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de gringos predadores da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas também na dupla de brasileiros sulistas (em oposição aos moradores nordestinos) que se identifica com esses grupos ultra conservadores. São os primeiros a serem sacrificados. Os que se acham “brancos”, superiores à comunidade local, os que se identificam com seu próprio opressor. Esses são os descartáveis. A classe média de extrema-direita é a primeira a ser sacrificada pelos ultraconservadores. Ousem questionar e virem os inimigos também. Trágico e sarcástico, mas a cena dessa revelação no filme vale por todo um tratado sociológico. O cinema faz ver!
IVANA BENTES é ensaísta, professora Titular da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFRJ e da Pro Reitoria de Extensão da UFRJ. Autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolítica (Sulina), entre outros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

domingo, 1 de setembro de 2019

Michel Zaidan Filho: Neoliberalismo e Estado.

 
 

Recebi o honroso convite dos meus amigos, professores do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, para abrir a semana de ciências sociais, com uma palestra sobre "Neoliberalismo e Estado". Logo me vieram à cabeça as  longas discussões dos anos 90 da época de Fernando Henrique Cardoso, do Consenso de Washington, do social liberalismo, da globalização e, inevitavelmente,do Estado regulatório ou gerente.Naquela não tão distante época, recebi de uma organização não-governamental a incumbência de redigir um texto  sobre a "Globalização e o Estado", analisando as implicações da primeira sobre a soberania nacional dos Estado-nação. O fio condutor da argumentação era que a globalização dos mercados financeiros destruía a capacidade regulatória dos governos nacionais em controlar os fluxos de capital especulativo, reduzindo muito a margem de manobra do Estado em fazer política monetária, cambial, industrial, de emprego e trabalho etc. E que a desregulamentação financeira era um pressuposto importante para a chamada "integração competitiva" nos mercados globais. 

A isto, chamava-se "Consenso de Washington". Cabia aos governos, neste então, abrir a economia, flexibilizar o mercado de trabalho e desregulamentar o mercado financeiro, sob pena de afastar as empresas e investidores estrangeiros do país. Esta foi a época também da "crise fiscal" e do esgotamento das políticas de demandas típicas do keynesianismo e o Estado de bem-estar social, com repercussão direta sobre o nível de emprego, crescimento econômico, arrecadação etc. O papel dos governos passou a ser "a criação de um ambiente saudável para os negócios", através da renúncia fiscal, da privatização das empresas estatais e a entrega das políticas sociais ao mercado altruístico: ONGs, fundações empresariais e instituições filantrópicas.Não precisamos dizer  quanto o fosso social aumentou, com a assistencialização privada dos direitos sociais. A par da concentração de rendas no país. O que produziu uma espécie de ressentimento da democracia nos mais pobres, como se fosse culpa do regime democrático o aumento da pobreza e da miséria no Brasil.
Hoje a temática do neoliberalismo voltou com força em razão da situação internacional e seus reflexos entre nós. A primeira constatação é que a agente da política norte-americana de "guerra ao terror" triunfou em toda linha trazendo muita força para a direita e extrema-direita  europeia e norte-americana. Todo esforço internacional para se livrar da hegemonia política e militar dos E.U.A. do norte foram baldados, com a derrota de governos socialistas ou socialdemocratas e o enfraquecimento do multilateralismo nas relações internacionais e de seus fóruns e órgãos de integração regional:  o Mercosul, os Brics etc. Assistimos, depois da queda do muro, uma segunda onda de desconstrução de direitos no mundo todo, com sintomas de xenofobia, barreiras contra os imigrantes, preconceito racial, religioso, de gênero e orientação sexual. Talvez o melhor exemplo seja o muro que Donald Trump quis levantar na fronteira com o México, para estancar a imigração dos "chicanos" para os E.U.A.. Na Europa, os partidos de direita ganharam os governos. E na América Latina, voltou o período dos tratados bilaterais de governos liberais com o presidente americano. No Brasil, instaurou-se uma contrarrevolução perigosa, apoiada numa coalizão de militares com a igreja neopentecostal, a serviço  do capital internacional e com a conivência dos aparelho judiciário.
A volta do neoliberalismo e do fundamentalismo cristão de mercado passou  a ter uma nova conceitualização na obra de um pensador francês chamado  Pierre Dardot e Cristian Laval, intitulada: A Nova Razão do Mundo. Segundo os autores, o neoliberalismo não é uma mera continuação do  liberalismo clássico de Adam Smith, John Stuart Mill e Jeremy Bentham. O liberalismo clássico foi revolucionário na política ( contra o Estado absolutista e a sociedade de ordens) e na economia (contra as restrições ao livre movimento dos bens econômicos). Como diria Norberto Bobbio, o neoliberalismo é uma forma de liberalismo: aberto para a economia, fechado para a política. Segundo os franceses, o neoliberalismo tem de ser pensado como uma nova forma de governabilidade para o capitalismo de nossos tempos. Uma forma de governabilidade que instaura a competição em todos os níveis da vida social e destrói  todas as motivações para a ação coletiva. 

Os sindicatos, os movimentos sociais, as igrejas todos perdem seus móveis para uma forma de política coletiva,ao se instalar uma competição de todos contra todos. É uma espécie de retomada do darwinismo social, a lei do mais forte, ou a seleção natural. Se cada um for entregue a própria sorte, só restarão os mais capazes. Lembra Nietzsche, na" Genealogia da Moral", as relações de força governam a natureza e a sociedade. É lógico que o mais forte domine o mais fraco. Não se compreende que não o faça. É contra a natureza do mais forte. Por isto a figura de Cristo é incompreensível. Quem já se viu um Deus que se deixa escravizar e morrer na cruz. Deus dos escravos, diz ele, dos resignados e conformados. A lembrança do nome do Nietzsche não é a toa. É a fonte de inspiração do mais influente filósofo contemporâneo da crítica à modernidade: Michel Foucault e seu conceito de bio política. A política do neoliberalismo é uma bio política. Não se faz pela força, pela persuasão ou mesmo pela argumentação racional. Faz-se pela escolha de quem deve viver e quem deve morrer. Política bem exemplificada na saúde, na educação, na seguridade social. A decisão soberana sobre a vida das pessoas não são tomadas pelos parlamentos ou legisladores. Não. Ela é fielmente executada na seleção cotidiana dos que sobreviverão a essa destruição da rede de proteção social, legada pelo Estado de Bem-estar social. A bio política é uma espécie de darwinismo social que decide, comanda, escolhe e determina que vai viver, quem vai morrer.
Naturalmente, os pobres, os velhos, os deficientes, as etnias residuais, os desempregados não terão mais lugar no mundo, são populações supérfluas, podem e devem ser eliminadas. Estamos diante daquilo que o professor Luciano Oliveira, louvando-se na obra de Hannah Arendt, chamou de "neo-fascismo e neo-miséria". Os novos miseráveis desse capitalismo selvagem não servem nem para exército de reserva da mão-de-obra. São repugnantes  e amedrontadores. Devem ser excluídos. Pior é a mentalidade exterminadora que vai se formando entre "os excluídos sociais". Eles compartilham também desse pensamento  antissocial, agora  reforçado pelo credo de algumas igrejas evangélicas que de cristã não tem nada. Forjou-se uma nova teologia, no lugar da teologia profética da libertação. É a teologia da prosperidade: quanto mais você dá a Igreja, receberá em dobro. A prosperidade material do crente é um presente de Deus, como dizem os irmãos sorridentes da Igreja Universal.
A questão que fica é se é possível contar o exército cada vez mais crescente desses trabalhadores de aplicativo, uberizados, precários, autônomos, desempregados para a organização de um novo movimento social?-  Marx nunca alimentou esperanças que viesse dessa turma alguma resistência. Achava mais fácil se arregimentado por algum salvador da pátria ou um messias, sem trocadilho. Mas no   século 20, as coisas mudaram. Marcuse e Benjamin foram os primeiros a dizer que só em nome dos desesperançados, se podiam ainda alimentar esperanças. E os autores sociais contemporâneos apostam que a metamorfose desse corpo fabril  deve impor uma nova tipologia de organização. Não é fácil organizar pessoas em condições tão desiguais. O movimento sindical só cresceu e tomou corpo  a  partir da generalização da condição fabril (igual) dos trabalhadores. 

A heterogeneidade de base de novo exército se constitui uma enorme dificuldade para qualquer esforço organizatório. Mais difícil ainda é o diálogo dos sindicatos dos trabalhadores formais com esses setores ou com os novos movimentos sociais e suas demandas identitárias (gênero, etnia, orientação sexual, meio-ambiente etc,) O movimento sindical é um movimento redistributivo clássico, cego às diferenças. Sua prioridade é o que é igual. O debate com os novos movimentos é penoso e cheio de desconfiança. Mas deve ser feito. Se me pedissem um formato organizativo desses movimentos diria que o Fórum Social Mundial e as jornadas globalização de Seattle e Davos poderiam servir de aproximação. Mas tem de reconhecer que o fórum é plural, não tem uma única linha de ação, não tem um único móvel e bandeira. Nem chefe nem centralização. Sua estrutura flexível e frouxa é condição de sua existência.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE