pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : outubro 2019
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quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Olga Tokarczuk e o Nobel tardio

Ganhadora do Nobel de Literatura, escritora polonesa traz personagens excêntricas em um mundo onde matar e causar dor é algo normal
Camila von Holdefer 23out2019 19h15
 
A escritora polonesa Olga Tokarczuk Friso Gentsch/picture alliance via Getty Images
Tokarczuk, Olga Sobre os ossos dos mortos
TRAD. Olga Bagińska-Shinzato
Todavia • 256 pp • R$ 59,90
Conflitos internos da Academia Sueca fizeram com que o Nobel de Literatura dado a Olga Tokarczuk, correspondente ao ano de 2018, só fosse anunciado em 2019. Tida como uma das favoritas ao prêmio, a polonesa nascida em 1962 foi saudada pela “imaginação narrativa” — incluindo aí o “cruzamento de fronteiras como uma forma de vida”.
Há várias maneiras de interpretar a última afirmação do comitê. Sobre os ossos dos mortos, publicado originalmente em 2009 e lançado agora no Brasil pela Todavia, talvez seja o melhor exemplo do modo como demarcações territoriais são constantemente questionadas na obra de Tokarczuk.
Embora seja uma espécie de romance policial, a singularidade da narradora, de seus pontos de vista e de seus interesses sugere uma mistura peculiar de gêneros. Janina Dusheiko é uma mulher idosa que só bebe chá preto e vive sozinha em um vilarejo isolado na fronteira com a República Tcheca. Seus dias se dividem entre as caminhadas pelo lugar, a tradução de poemas de William Blake e as aulas de inglês para crianças.
Dusheiko não apenas detesta o próprio nome, que considera um equívoco, como se refere às outras criaturas da maneira que lhe parece mais conveniente ou apropriada — é o caso de Pé Grande, o vizinho, encontrado morto ainda nas primeiras páginas do livro. A ele se seguirão outros homens.
Para a senhora Dusheiko, “chamar as coisas pelo nome” inclui não só rebatizar os seres conforme a essência de cada um, mas usar o adjetivo “diabólico” para descrever os postos de caça espalhados estrategicamente pela região em que vive. Ela enfrenta “um luto interminável por cada animal morto”. É a uma vingança dos animais contra a crueldade humana que a senhora Dusheiko atribui as mortes em sequência. Condene os outros ao inferno, diz, e “o mundo todo se transforma num inferno”.
“Essa grande matança cruel, insensível, mecânica, sem nenhum remorso, sem nenhuma pausa para pensar [...]. Que mundo é esse onde matar e causar dor é tido como algo normal?”, quer saber a senhora Dusheiko. Os ataques mais devastadores daquilo que ela chama de suas “moléstias”, e que incluem uma lista extensa de dores e achaques, são os de lágrimas vertidas sem qualquer controle. As lágrimas limpam, garante, e são o motivo pelo qual ela enxerga melhor do que todos os outros.

Outras frequências

É quase como se Janina Dusheiko fosse uma Elizabeth Costello (a famosa personagem de J. M. Coetzee) menos pretensiosa. O tom, no entanto, é muito semelhante. “Assim seria o mundo”, diz a narradora de Tokarczuk ao denunciar o tratamento dado aos animais, “se os campos de concentração se tornassem algo normal.”
O movimento das duas personagens é bem parecido: ambas tentam se colocar no lugar daqueles outros, por mais difícil que o exercício possa parecer. Se a intelectual Costello segue um conhecido texto de filosofia da mente ao questionar como é ser um morcego, há, talvez, algo de espontâneo na indagação idêntica da senhora Dusheiko. “Como todos parecemos aqui embaixo quando somos vistos por seus sentidos?”, pergunta. “Essencialmente”, ela acredita ter “muito em comum” com os morcegos, já que também enxerga “o mundo em outras frequências, às avessas”.

Para essa narradora, não podemos ter certeza de nada. Ela acha que a mente é um objeto ‘tênue’ demais

O pulsar em outra frequência e a visão do mundo por uma espécie de lado avesso são comuns aos personagens de Olga Tokarczuk. É a essa representação nada inédita — o excêntrico que aparentemente detém o bom senso que falta ao senso comum — que Tokarczuk fornece contornos originais, eliminando a ingenuidade. Um sem-número de detalhes curiosos se combinam para formar uma voz estranha e fascinante. A senhora Dusheiko diz enxergar tudo como “anormal, horrível e perigoso” e pressentir “apenas catástrofes”. É provável que venham daí as suas pequenas batalhas diárias — contra as árvores cortadas, contra os ralis de carros barulhentos e poluentes— que pareceriam tão banais à maioria.
Tokarczuk venceu o Man Booker Prize em 2018 com a tradução de Bieguni, de 2007, que virou Flights. Uma das primeiras personagens que a narradora viajante de Bieguni encontra é Aleksandra, que também luta pelos direitos dos animais. “O verdadeiro Deus”, diz Aleksandra, “é um animal.”
Diferentemente da senhora Dusheiko, a narradora de Bieguni (que será relançado no Brasil pela Todavia como Viagens) não consegue ficar muito tempo no mesmo lugar. Sua energia, garante ela, vem do movimento. Em passagens que variam de poucas linhas a algumas páginas e que vão do século 16 ao presente, ela tece um encantador catálogo de histórias e indivíduos, tanto reais quanto imaginários. Se Sobre os ossos dos mortos questiona as fronteiras que nos separam de outros seres vivos, Viagens questiona todo tipo de fronteira — a começar pelas clássicas do tempo e do espaço.
Lá está, no olhar da narradora de Viagens, a visão pelo avesso que marca a senhora Dusheiko. O que a faz viajar é a necessidade de seguir o que chama de “erros” e “enganos” do mundo. Seu olhar repara no que é desviante, no que é grande ou pequeno demais, no que não se encaixa. Os gabinetes de curiosidades, os Wunderkammer, algo a que o produto final do livro acaba por se assemelhar, lhe interessam desde sempre. Esses gabinetes contêm, afinal, “as coisas que existem nas sombras da consciência”.
Para essa narradora — uma mulher que gosta de tricotar quando viaja —, não podemos ter certeza de nada. O mundo não é para ela “inerte e morto, [nem] governado por leis relativamente simples”, que podem vir à tona através de experimentos. Ela, que assim como Tokarczuk estudou psicologia, acha que a mente humana é um objeto de estudo “tênue” demais.
Já a senhora Dusheiko confia cegamente na astrologia. Seus mapas astrais são feitos em um computador instalado na mesa da cozinha. Entre a genética e o movimento dos astros, ela acha que a diferença reside apenas na escala. A lente da astrologia também acaba definindo uma característica da própria escrita de Tokarczuk: é quando a senhora Dusheiko diz que “o mundo é uma grande rede, um todo único, e não existe nada que esteja isolado”. Mesmo em um livrofragmentado como Viagens há uma uniformidade difícil de ignorar. Hásentido na aleatoriedade; há algo que transcende e destrói certas divisas.
Talvez os livros de Olga Tokarczuk ecoem, ainda, outra observação da mesma estranha senhora: “Que grande e cheio de vida é o mundo”. 

Michel Zaidan Filho: A responsabilidade civil e penal pelos crimes ambientais

Brasil: o laboratório interseccional do neoliberalismo

  

Brasil: o laboratório interseccional do neoliberalismo

o outro lado da lógica interseccional dirigida contra as minorias está a celebração do homem branco (Foto: Arte Revista Cult)

O Brasil de Bolsonaro não é uma exceção no cenário mundial, assim, não deve ser reduzido a uma aberração cultural. Pelo contrário, o Brasil de Bolsonaro é exemplar: ilustra uma deriva populista que afeta outros países em outras partes do mundo como a Turquia de Erdoğan, a Hungria de Orban ou as Filipinas de Duterte. Ecoando Vladimir Safatle, podemos falar de um “laboratório global onde as novas configurações do neoliberalismo autoritário são testadas, no qual a democracia liberal é reduzida a uma mera aparência”. Podemos fazer um paralelo com o Chile de Pinochet que, após o golpe de Estado de 1973, serviu de laboratório para o neoliberalismo. Em ambos os casos, o chileno e o brasileiro, se tratou de excluir um partido de esquerda apoiado pelas classes populares do processo eleitoral (como foi o caso das eleições brasileiras de 2018, o que pode ser constatado nas pesquisas de intenção de voto). De fato, as classes populares se beneficiaram de políticas inclusivas colocadas em curso. Segundo o Banco Mundial, entre 2004 e 2014, o Bolsa Família tirou 28 milhões de brasileiros da pobreza.  Paralelamente a isso, tanto no Chile do passado quanto no Brasil recente, tratou-se também de se dar lugar aos “Chicago Boys”. No caso brasileiro, a virada neoliberal tardia de Jair Bolsonaro, pode ser resumida na escolha de Paulo Guedes, anunciada ainda durante a campanha, para gerir a pasta da Economia, decisão anunciada já durante a campanha presidencial, o que eu vejo como umas das condições que possibilitou sua chegada ao poder.
Forma e estilo políticos
É importante, porém, marcar as diferenças significativas entre a ditadura neoliberal de Pinochet e o regime de Bolsonaro. Este último se inscreve no que eu chamei de “o momento neofascista do neoliberalismo”. Em primeiro lugar eles se atém a diferenças na forma e o estilo da política em cada caso. No caso brasileiro, tirar o Partido dos Trabalhadores do poder exigiu um duplo golpe: primeiro um golpe parlamentar, com o impeachment de Dilma em 2016, e depois um golpe judicial, proibindo Lula, o favorito da pesquisa, de concorrer às eleições presidenciais de 2018. Contudo, tudo isso é muito diferente dos golpes militares que vimos no Chile em 1973, ou no Brasil em 1964. Agora não vemos mais tanques nas ruas. Como quando assistimos à crise econômica na Grécia, momento no qual a hashtag #ThisIsACoup denunciou a imposição dos valores da Europa financeira ao governo de Syriza, numa fórmula que se pautou pela lógica: “bancos sim, tanques não”. O mesmo, penso, valeu para o Brasil – mesmo que Bolsonaro, capitão do exército, reivindique fortemente o legado da ditadura militar, incluindo tortura e assassinatos, como bem salientou a historiadora francesa Maud Chirio. De minha parte resumi essa manobra na fórmula: “Voto sim, coturnos não” (ver artigo Un coup d’État démocratique. Du 49-3 à Nuit Debout).  Dois anos depois, em 2018, nas ações contra Lula, foram juízes e não mais os carrascos de outros tempos aqueles que o tiraram do páreo. Propus chamar esse duplo golpe de Estado institucional (que matou dois coelhos com uma cajadada), de um “golpe de Estado democrático”. Um golpe contra a democracia, dentro do jogo democrático. 
Dar uma aparência democrática ao golpe foi importante: por um lado, foi possível enganar os observadores, como evidenciado por um editorial constrangedor no Le Monde em 2016: “Brasil: isto não é um golpe de Estado”. Por outro lado, essa aparência democrática, permitiu que os neofascistas de hoje invertessem antigas estratégias retóricas apropriando-se, como se passou na França, do léxico da Resistência, como na França ocupada durante a II Guerra, transformando em “colaboradores”, aqueles e aquelas que procuram assegurar direitos às minorias políticas, de modo que agora já só denunciam a democracia, mas reivindicam-na em nome do povo.
Em segundo lugar, ainda me referindo à forma e ao estilo político, os ditadores dos anos 1970 eram sérios, até sombrios. A sua gravidade obscura parecia anunciar esquadrões da morte… hoje, o que domina é a figura do bufão. Parece que o bobo da corte e o rei são agora a mesma coisa.  Como num espelho deformado da dignidade de Dilma ou Lula, o estilo grotesco de Bolsonaro lembra Donald Trump, Matteo Salvini ou Boris Johnson. Esse novo estilo populista deixa transparecer um desprezo pelo povo: é como se eles, o povo, estivesse fadado à vulgaridade. Mas esse estilo é, sobretudo, um gesto político. Por um lado, temos uma política de repugnância: o Presidente do Brasil não hesitou em tweetar, condenando o carnaval, imagens que mostravam um homem urinando sobre outro. Por outro lado, o que esse estilo mostra é uma recusa à política democrática. O citado vídeo lembrou uma gravação na qual Trump é acusado de ter pago prostitutas para fazer “chuva dourada” na cama onde Barack Obama e sua esposa dormiriam em Moscou…
A política da repugnância e a política como repugnante se confundem. Pensemos no ensaio sobre o “ridículo político” publicado em 2017 por Marcia Tiburi. A filósofa analisa a “berlusconização” do discurso político, ou para retomar seu neologismo, a “ridicularização”: pois não se trata apenas de mentir (fake news) mas também não ter pudor de proferir disparates (mais do que dizer “besteira”, é dizer “bullshit”, nas palavras do filósofo americano Harry Frankfurt ou, em bom português: “falar merda”). As derivas escatológicas de um Trump ou de um Bolsonaro são a confirmação literal disso que estou tentando argumentar. Nessa (escato)lógica, o presidente dos Estados Unidos descreve países africanos e o Haiti, fontes de emigração, como “países de merda”, enquanto o presidente brasileiro, ao apelar a um, não menos racista, “controle de natalidade”, propõe, como medida ecológica, “fazer cocô a cada dois dias”… As duas lógicas convergem, usa-se uma linguagem do nojo para tornar nojenta a linguagem. Juntas, significam um ódio à política democrática, que também se manifesta no disfarce democrático dos atuais golpes de Estado.
Ressentimento político
As diferenças entre o laboratório brasileiro e o chileno, entre nosso momento neofascista e as ditaduras dos anos 1970, não param na forma e no estilo. Eles vão mais fundo, quer dizer, envolvem também o conteúdo do discurso e as políticas que acompanham esses discursos. É claro que as questões de classe permanecem fundamentais: a deriva autoritária é uma reação contra as mobilizações políticas das classes trabalhadoras e as transformações sociais que estas provocam. No caso do Brasil, isso fica claro em 2013, quando a Emenda Constitucional 72, mais conhecida como PEC das Domésticas, estendeu a legislação trabalhista vigente às empregadas domésticas, limitando as horas de trabalho e garantindo que elas recebessem horas extras e adicional noturno. As classes médias, que encararam esse progresso social como uma espécie de perda de “direitos”, tiveram um papel decisivo nos protestos contra o Partido dos Trabalhadores. O mesmo se deu em relação às viagens aéreas que já não eram uma exclusividade da burguesia, e que passaram a ser acessíveis também às classes populares. A democratização foi vista como uma ameaça aos privilégios de classe. Isto tudo lembra a indignação causada pelas medidas sociais de Salvador Allende no Chile: é como se as medidas a favor das classes populares fossem o mesmo que prejudicar as classes médias.
No meu ensaio “Populismo e o ressentimento em tempos neoliberais”, tentei analisar esse tipo de política, baseadas no medo da perda de privilégios. Pois, como analiso, não se trata apenas de um anti-elitismo, como é o caso dos populistas de esquerda (povo x elite). Como salienta John B. Judis, com razão, “os populistas de direita defendem o povo contra uma elite a qual acusam de de proteger um terceiro grupo constituído por imigrantes, muçulmanos e militantes negros. O populismo de esquerda é binário. O populismo de direita é ternário. Esse populismo ternário olha para cima, mas também para baixo, mas também na direção de grupos de excluídos”.  Essas duas formas raivosas levam a efeitos diferentes. É importante distinguir entre os efeitos mobilizados com sucesso pela extrema direita e aqueles que a esquerda espera poder suscitar – como indignação generosa que a injustiça desperta. O ressentimento é uma “paixão triste”, como disse Espinoza. A verdadeira força motriz da indignação é “a ideia de que existem outros que estão gozando em meu lugar; se eu não gozo, se eu não desfruto, é por causa deles”. E essa raiva frustrante se transforma ele mesma em gozo”. Em outras palavras, é uma reação, não às desigualdades, mas ao avanço da igualdade. É aqui que entra o ressentimento, não dos “perdedores” da globalização, como a gente gosta de acreditar, mas daqueles que, independentemente de seu sucesso ou fracasso, culpam o fato de que outros, que não merecem, estarem se dando melhor. É assim que podemos entender a raiva contra as minorias, contra as mulheres, mas também contra os “necessitados”. O que o populismo de direita detesta mais que a “gentalha”, quer dizer, aqueles pobres que só merecem o pouco que têm, ou melhor, que não merecem nada – são “burgueses intelectualizados”, a “esquerda caviar”, aqueles que têm além de diplomas universitários, a arrogância de não perceber que o capital cultural que compõe seu patrimônio, só tem valor para eles, ou seja, aqueles que podem perder a pose, mas não perdem a soberba. “(Populismo: o grande ressentimento, 2017, citações pp. 76 e 70). Apostar na miséria popular não é só reduzir, indevidamente, as classes populares ao voto populista e, simetricamente, o voto populista às classes populares. Significa ainda recusar a reconhecer as classes populares como compostas por verdadeiros sujeitos políticos – para o bem ou para o mal. Considerar as classes populares como meras vítimas é negar-lhes qualquer capacidade de agência (agency).
Assassinato de Marielle Franco é um trágico símbolo do neofascismo que coloca em prática a interseccionalidade (Foto Bárbara Dias/Fotoguerrilha)
Valores neoliberais
O ressentimento neoliberal hoje em dia não concerne exclusivamente às relações de classe, ele toca na política de identidade. No Brasil, como em muitos outros países, dos Estados Unidos à Rússia, da Hungria à Itália, vimos, na década de 2010,  o crescimento não apenas dos movimentos sociais reacionários, como na França; assistimos ainda o surgimento da cruzada lançada pelo Vaticano e de verdadeiras campanhas de políticas anti-gênero em nível governamental e, portanto, de políticas de Estado, na Europa, mas também na América Latina e mundo a fora. Em contrapartida, vimos “populistas de direita”, aos quais eu prefiro chamar neofascistas, fazerem campanha sexistas e homofóbicas. Trump, por exemplo, não tinha revelado seu sexismos, em seu aspecto mais chocante, até à divulgação da gravação em que ele se gaba de “pegar mulheres pela xana” (pussy grabbing). Longe de enfraquecer o apoio a ele, esse tipo de declaração reforçou esse apoio, como? Da mesma forma, Bolsonaro não sofreu com as declarações sexistas e homofóbicas que fez. Ao invés disso elas mobilizam ainda mais seu eleitorado, justamente porque elas conseguiram chocar a odiada “esquerda caviar”. A campanha de rumores totalmente descabidos sobre a distribuição do suposto “kit gay” nas escolas, ecoa campanhas semelhantes que ocorreram na França entre 2010 e 2014, o que mostra que este é um tipo de estratégia política deliberada.
O que isso tudo tem a ver com o neoliberalismo? Podemos supor que o anti-intelectualismo que incentiva ataques contra a (suposta) “teoria de gênero” e promove a defesa do “senso comum” (este é também o nome de um movimento católico que lutou contra a abertura do casamento para casais do mesmo sexo na França), assume seu pleno significado em um mundo neoliberal. Podemos pensar, por exemplo, nos ataques violentos contra a filósofa Judith Butler enquanto sua esfinge era queimada em São Paulo, em 2017. De fato, este anti-intelectualismo é o que torna possível dirigir o ódio populista das elites somente para as elites culturais – como se o verdadeiro privilégio, longe de ser econômico, fosse sobretudo cultural. Em outras palavras, no exato momento em que o capital cultural está perdendo sua importância relativa em relação ao capital econômico, é a retórica que permite substituir o primeiro pelo segundo. As ameaças à liberdade acadêmica hoje, sobretudo à filosofia e às ciências sociais, confirmam que o neoliberalismo está muito bem adaptado ao anti-intelectualismo que ataca o pensamento crítico.
Podemos mesmo ir mais longe: a reação sexual desempenha agora um papel crucial no sistema neoliberal. O fato de Paulo Guedes ter visto a necessidade de redobrar os insultos sexistas de Jair Bolsonaro contra Brigitte Macron nos dá uma indicação precisa disso: a política sexual e a política econômica andam, hoje em dia, de mãos dadas. Esta é a tese central do livro de Melinda Cooper sobre a relação entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo moral: “valores familiares” (para usar o título) são tão econômicos quanto culturais. Pensar no capitalismo neoliberal, portanto, nos convida a ir além da distinção entre políticas redistributivas e políticas de reconhecimento (para usar o vocabulário de Nancy Fraser). Longe de se oporem, como a esquerda muitas vezes acreditou, a moralidade e o mercado andam de mãos dadas nesse novo sistema político. Se lança mão de uma forma de privatizar a ordem social, forma esta que se baseia cada vez mais, na responsabilidade individual e familiar, e não no Estado. Este livro que acabo de citar, inspirou a cientista política Wendy Brown a pensar na “ascensão das políticas antidemocráticas no Ocidente”, numa revisão de suas análises anteriores sobre o “pesadelo americano”, ou seja, a levou a repensar a aliança antinatural entre os partidários do neoliberalismo e os defensores da reação moral: não estaríamos, pelo contrário, na origem mesmo do projeto revisionista capitalista, como atesta a obra de Friedrich Hayek?
A fúria do homem branco
No Brasil, podemos, portanto, falar de um laboratório sexual do neoliberalismo. Vale dizer que se trata também de um laboratório racial. O racismo teve um papel decisivo na carreira de Trump: foi desafiando a nacionalidade de Barack Obama, o primeiro presidente negro cuja certidão de nascimento ele exigiu ver, que Trump se tornou uma figura política. Esta posição foi então confirmada pelos seus ataques ao comparar mexicanos a estupradores, pelo “Muslim ban” que fecha a porta aos refugiados dos países muçulmanos e pelo seu apoio declarado aos supremacistas brancos. O mesmo se aplica a Bolsonaro. Basta citar apenas uma única frase extraída de suas entrevistas: “o racismo é uma coisa rara no Brasil”. Frase que nega de forma radical a existência de discriminação racial no Brasil além de não reconhecer as desigualdades econômicas que dela resultam, nem a violência racista, particularmente da polícia militar contra a população negra, não é preciso citar as outras para deixar claro sua posição nesse debate. E ele ainda acrescenta: “Dizem que sou homofóbico, racista, fascista, xenófobo, mas mesmo assim eu ganhei a eleição”. De fato, como mostra o mapa eleitoral, o voto bolsonarista foi mais forte no Sul e mais fraco no Nordeste: o primeiro é majoritariamente branco, enquanto o segundo não. Bem, isso para não mencionar o tratamento dos povos indígenas da Amazônia…
Classe, gênero e raça: o laboratório neoliberal é, claramente falando, interseccional. Isto fica evidente nos muitos populistas autoritários, começando por Trump e Bolsonaro. De fato, o assassinato de Marielle Franco, uma mulher negra, ativista lésbica, da favela e comprometida com a luta contra a discriminação e a desigualdade, que apareceu retrospectivamente como o prenúncio da eleição que ocorreu seis meses depois, é um trágico símbolo: o neofascismo põe em prática a interseccionalidade – invertendo, de forma perversa, o seu objetivo emancipatório. Cabe aos seus adversários aprender com isso… pois o outro lado desta lógica interseccional dirigida contra as minorias está o seu contrário: a celebração do homem branco. Mais uma vez, de Trump a Bolsonaro (mas isto se aplica também à família Le Pen na França, e a tantos outros “populistas de direita”), o que vemos, de fato, é uma política de ressentimento. 
Tudo acontece como se efetivamente essas políticas neofascistas fizessem da figura do homem branco de classe média, os chamados “cidadãos de bem”, a verdadeira vítima, ao invés daqueles e daquelas que “se fazem de vítimas”, ou seja, as minorias políticas.  Tem-se promovido o sentimento de que outros gozam indevidamente deste “vantajoso” estatuto de vítima, seja sob o pretexto de sua pobreza, mas também por sofrerem racismo, sexismo ou homofobia. Em suma, através da magia do ressentimento, reverte-se a hierarquia do privilégio: os dominantes são vistos como dominados, e os primeiros podem acreditar que são os últimos… 
Compreendemos assim a eficácia desta política neofascista que movimenta valores morais, culturais e identitários, colocando-os coração do atual sistema neoliberal: para se mobilizarem contra a igualdade, numa era de desigualdade, eles põem em jogo os efeitos inscritos nos corpos a partir de um discurso que fala não só de classe, mas também de gênero e raça. A sua força reside no fato de nutrir o ressentimento populista, alimentando em todas as classes, populares ou não, o medo de perder pequenos ou grandes privilégios para outros, seja o proletariado ou as minorias políticas, que já não aceitam mais permanecer em lugar forçosamente inferior. TRADUÇÃO LARISSA PELÚCIO

ÉRIC FASSIN é professor do Laboratório de Estudos de gênero e Sexualidade – Universidade Paris 8. Lança, em novembro, o livro Populismo e ressentimento em tempos neoliberais, pela editora da Uerj

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Considerações de Luciano Oliveira a respeito da resenha do livro: O Aquário e o Samurai



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 Sociólogo Luciano Oliveira



meu 'livrinho sobre Michel Foucault '(0 aquário e o Samurai)  é apenas "uma leitura", como anuncio no subtítulo da obra
E, como toda leitura, pessoal e, claro, parcial - porque uma leitura total não existe, já que todo leitor é também um sujeito parcial...

Aproveito também para agradecer idênticas afeição e atenção que você sempre dispensou aos meus escritos, Michel. Sua atitude generosa não é moeda corrente no nosso meio.


            Mas voltando à sua leitura do meu livrinho, sim, é verdade que privilegio a fase genealógica, por razões que você detecta muito bem ao se referir a uma "falsificação" popperiana a que a submeto. 

No caso, a partir de uma experiência de vida sob o regime militar, um período em que os direitos humanos eram espezinhados da maneira mais torpe nos porões do regime.

Desde que li "Vigiar e Punir" pela primeira vez (foi Joaquim Falcão que, em 1980, pôs o livro na minha mão, veja só!), Foucault é um autor que leio com admiração e um pé atrás.

O mínimo que se pode dizer é que ele, enquanto "sujeito epistemológico", não dá muito valor ao chamado estado de direito.

Mas o danado é que, enquanto "sujeito empírico", dava.

Como todos nós, aliás...

O chamado estado de direito não é tudo a que pessoas como eu e você aspiram, mas sem ele... 

Lembro, incidentalmente, que no presente momento infeliz que estamos vivendo é tal estado que, pelo menos ainda, nos protege dos piores delírios dessa tralha que chegou ao poder no Brasil em 28 de outubro de 2018, uma data que ficará para a nossa história.


Sim, é verdade, não dou maior importância às conexões possíveis entre a noção de biopoder e o darwinismo social do neoliberalismo.

Até porque, lembro (e isso digo no meu livrinho) que o Foucault posterior à teorização sobre o biopoder (o Foucault de "A Vontade de Saber", publicado logo depois de "Vigiar e Punir") vai paulatinamente se afastando dessas questões sombrias e se direcionando para a hermenêutica do sujeito, ou, como preferem outros (inclusive eu), para a estilística da existência, período terminal da sua vida em que ele faz as pazes com a melhor herança do iluminismo e, por incrível que pareça, com... Sócrates!



               Sinto-me  perdido nesse mundo.

                Nele, se a questão do trabalho é cada vez mais dramática, não sei mais como reconhecer os novos sujeitos dessa nova luta de classes (só desinformados ou pessoas de má-fé acham que ela acabou) em que não há mais "classes"...

É um mundo de "redes", "tribos", "identidades", o diabo a quatro.

Eu, que fui formado (acho que como você...) lendo autores como Erich Fromm (nunca me esqueci da leitura de "Meu Encontro com Marx e Freud"), acho um mundo feio, feio, feio, sobre o qual tenho a impressão de que não tenho mais nada de relevante a dizer.


Abração afetuoso,

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Michel Zaidan Filho: O Aquário e o Samurai

  •  Foto 1 - O Aquário e o Samurai – 2017


    Li, com muito gosto e interesse, o novo livro do prof. Luciano Oliveira: "O Aquário e o Samurai", sobre a trajetória pessoal, intelectual e política de Michel Foucault - também conhecido como "o Nietzsche calvo de saint German de pré". A obra é um esforço notável (em suas 154 páginas) de divulgação crítica da caminhada empírica e epistemológica de uma dos pensadores franceses mais influentes no século XX, dentro e fora da França. Foucault tem no Brasil uma verdadeira legião de adoradores, uma espécie de "tribo foucauldina" na academia e nos movimentos sociais. Sorvi-o quase de um só gole, como aliás fiz com outros  livros de Oliveira: Os Direitos Humanos, Do Eterno Retorno ao Nunca Mais, A Vergonha do Carrasco, O Enigma da Democracia, A Esquerda e os Direitos Humanos etc. Seu estilo literário se compara ao do ensaísta Leandro Konder, na divulgação de autores e obras difíceis. Sendo  superior pela rica e variada intertextualidade ou intersemiose com outras  linguagens  (musica, cinema, literatura). O seu humor e ironia tornam a prosa mais leve se divertida. E sua irreverência intelectual diante dos ídolos, é extremamente salutar. Parece um nietzschiano ou um voltariano diante da ciência ou da filosofia. Ou um cética metodológico. Em se tratando de um pensador tão influente como Michel Foucault, esta atitude tende a ser muito importante.
    Oliveira divide a obra do autor em três fases: a fase epistemica-arqueológica, a fase genealógica e a fase  tardia da hermenêutica do sujeito. Ele faz remontar o início da segunda  ainda à primeira, com o famoso livro livro A História da Loucura, na época clássica. E não considera a biopolítica e o biopoder, como uma nova fase depois da sociedade disciplinar. Talvez, como fase extensiva ou complementar a esta última, já que ela aparece mencionada na Microfísica do Poder e no primeiro volume da História da Sexualidade. A fase genealógica é a que merece mais sua atenção.
    Gostaria de fazer aqui algumas observações. A influência reconhecida por ele de Nietzsche sobre seu pensamento. E a última fase, que - para alguns - não seria a hermenêutica do sujeito. Mas a biopolítica e o biopoder. Sobre Nietzsche, a pouca atenção dada à herança retórica, neonominalista e relativista do filósofo alemão, presente sobretudo em seu conceito de "discurso", como uma espécie de infra-estrutura substutiva (algo já presente nas famosas "epistemes" de As Palavras e As Coisas. De modo semelhante, a influência darwinista na biologização das relações de poder, tal como aparece no livro: A Genealogia da Moral. Creio que ambos os aspectos guardam ou trazem sérias implicações para a compreensão da política, da moral e do conhecimento humanos.
    Segundo, a não conexão atual e contemporânea entre o conceito (nietzschiano) de biopoder e o neoliberalismo triunfante, como forma de governabilidade social. A tese aparece com destaque nos últimos trabalhos de Foucault e foi usada por dois autores franceses, no livro: A Nova Razão do Mundo.  Os livros do autor estudado chegam a ser citados por Luciano, mas  não estudados nessa perspectiva teórica e política. Senti falta, também, de um maior aprofundamento na hermenêutica do sujeito ou estilística da existência, mais ainda do uso canhestro que é feito pela historiografia brasileira desse conceito na história da escravidão africana no Brasil, por autores como: Silvia Lara e Bob Slenes na UNICAMP. Considero uma "forçação de barra", como ele criticou apropriadamente em seu livro, tratando-se outras transposições inadequadas da obra de Foucault para o contexto brasileiro. Os nossos foucaudianos tupiniquins não aceitam essa fase da estilística da existência. Ficam só com as outras duas: a fase arqueológica e , sobretudo, a genealógica.

    É perfeitamente compreensível a ênfase de Oliveira na fase genealógica (Vigiar e Punir, O Nascimento da Clínica,  Vontade de Saber), mais historicizada e sujeita ao critério empírico da prova ou dos fatos. E portanto sujeita oa critério popperiano da falsificação. Mas é em razão de seus estudos sobre a violência e os direitos humanos que talvez a obra de Foucault  passou ser importante para ele.

    Mas é igualmente importantever as implicações macrohistóricas, éticas e políticas extraida da obra do autor frances pela esquerda libertária ultra-gauchista. Isto porque elas aõ muit sérias e merecem igual atenção. Acredito que sua interessante distinção entre o sujeito empírico e o sujeito epistemológica (a propósito do aparente paradoxo entre o niilista e o militante dos direitos humanos) não é suficiente para dar conta das implicações problemáticas de certas passagens da obra, por mais benevolentes e simpáticas que sejam as críticas de Luciano Oliveira a Michel Foucault.

    É digna de elogio a postura crítica do livro, incluindo vastas passagens da bibliografia de analistase biógrafos de filósofo frances, mas eu teria dado bem mais realce a hermeneutica do sujeito e suas consequencias éticas e políticas  para o uso contemporaneo de sua obra no mundo e no Brasil. Faz muito tempo que Foucault deixou de ser visto como um dos pensadores estruturalistas frances.


    Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Há um tempo não publico esses editoriais. Não queiram os nossos diletos leitores conhecerem as verdadeiras motivações pelas quais esse editor se sentiu desmotivado a continuá-los publicando com a regularidade que sempre caracterizou esse blog. Mas adianto, porém, que gosto de jogar limpo. Não sei jogar sujo, fora de parâmetros éticos e republicanos. O contraditório é uma premissa com a qual sempre lidei muito bem, assim como me contrapus a argumento com novos argumentos, nunca enredando com ofensas, mentiras ou ao destrato dos adversários. Infelizmente, nesses momentos políticos turvos que o país atravessa, a recíproca, quase sempre, não se aplica. Não há mais adversários, mas inimigos, que devem ser combatidos através das fake news, que disseminam suas calúnias, injúrias e difamações pela sua rede de robôs, hoje tornado público pelos próprios operadores. Não faço uso desses expedientes. Meu combate sempre se deu dentro de regras claras, orientado por princípios inalienáveis. Que nos perdoe o Max Weber, mas a ética das conveniências não se aplica ao editor desse blog.

Charge! Hubert via Folha de São Paulo

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terça-feira, 22 de outubro de 2019

Corrupção: aparência e realidade

  Além da lei

Corrupção: aparência e realidade
(Arte Revista Cult)

Conhecer é distinguir entre aparência e realidade. Quem olha para o céu estrelado e não conhece o cosmos terá a plena convicção de que as estrelas são menores do que a lua e nem estão muito distantes dela. Poderá até mesmo medir a distância entre os astros pelo tamanho do seu dedo. Em um dia de sol terá também a absoluta convicção de que o sol se movimenta e a terra não.
O que significa conhecimento foi sintetizado por Marx em uma frase lapidar: se aparência e realidade coincidissem toda ciência seria inútil. Séculos antes desconfiar da aparência foi o que moveu Heráclito e Parmênides na gênese da aventura humano do conhecimento. O primeiro para negar o ser porque tudo fluiria incessantemente; o segundo para dizer, ao contrário, que o ser é e o não ser não é. O monumento filosófico do platonismo se ergue sobre a desconfiança da aparência. Nas ciências da natureza suspeitar da aparência nos trouxe a este patamar de conhecimento, de desenvolvimento da ciência, de tecnologia, de compreensão do universo.
Mas o conhecimento do ser social está aprisionado nas sombras da aparência, na caverna platônica, na pré-história do conhecimento. Emancipar a humanidade pelo conhecimento do ser social foi a tarefa a que se propôs Marx. Conhecer liberta. Conhecer o ser social, o seu movimento, a sua essência, é a condição necessária para a consciência, para saber-se explorado, para saber-se injustiçado, para a vontade e a necessidade de transformar. Aí então a relação entre sujeito e objeto ganha outra natureza porque o sujeito social para agir precisa conhecer, ao agir transforma o ser social, o seu objeto, e o ser social é novamente captado pelo entendimento do sujeito que o transformou. Nenhum deles jamais será o mesmo e o processo continuará até o momento em que conhecimento e emancipação se encontrem e se pacifiquem.
Podemos tomar a estrutura capitalista. O capital, ou a propriedade, seria o fruto do trabalho de empreendedores. A aparência mostra um darwinismo social: os mais capazes, os mais hábeis, o que se adaptam melhor ao ambiente social, são ricos, detém capital e propriedade porque têm méritos. O que essa aparência oculta é que a maior parte da riqueza mundial em mãos de poucos tem sua gênese na acumulação primitiva do capital, descrita no Livro I do Capital, de Marx: a expropriação violenta dos meios de produção, da terra de camponeses, e o tráfico de escravos. O capitalismo só foi possível graças ao roubo e ao comércio de seres humanos. A massa despojada de bens e de meios de vida veio a formar o proletariado. Mas vagavam também pelos campos e cidades delinquindo, e, como até hoje, é o Direito Penal que cumpria o papel de controlar os despojados.
Hoje, no mundo da aparência e sombras do ser social existe um terrível Espírito Maligno, um demônio que é responsável pela desgraça social, que leva as massas ao furor, ao ódio, à indignação, que enche as ruas com milhões de pessoas: a corrupção. No senso comum, corrupto é quem ilicitamente se apropria do que pertence ao público, à sociedade. É um conceito basicamente jurídico.
Mas, se deslocarmos o eixo da questão do jurídico para o ético, se deslocarmos da sociologia vulgar do senso comum e da aparência ideologizada para o verdadeiro campo do conhecimento do ser social, podemos, trabalhando com esse mesmo singelo conceito – apropriação privada dos recursos que deveriam ser públicos ou de toda sociedade – sair da caverna e ver a realidade.
O que é real? A desigualdade é uma forma de apropriação do público e como tal, uma forma de corrupção. Os recursos são finitos e limitados, obviamente. A riqueza que é gerada por toda sociedade, pela massa trabalhadora, escorre para os bolsos dos que estão no topo da pirâmide, para os bolsos do 1%. No entanto, como o senso comum e as formas ideologizadas de conhecimento não abrem a porta e olham o real pelo buraco da fechadura, no imaginário social corrupto é apenas o funcionário que recebe propina ou o empresário espertalhão que paga a propina, cujo custo, ao incorporar ao preço final, joga para a sociedade. Somente eles estariam se apropriando de recursos públicos ou coletivos.
Pesquisa do IBGE mostrou que em 2018 o rendimento médio dos 50% mais pobres era R$ 820,00. O rendimento médio do 1% mais rico era de R$ 27.744,00, ou seja, 33,8 vezes maior. Essa diferença é a maior desde o início da série, em 2012. Em relação ao ano anterior, 2017, o ganho dos 10% mais pobres caiu 3,2%. O do 1% mais rico aumentou 8,4%. Certamente terá sido apenas coincidência que isto se deu justamente no período pós-golpe, cujo mote foi o combate à corrupção e que, agora, vai mostrando sua cara e a que interesses serviu. Mas isto não está no Código Penal.
A fórmula de Thomas Piketty para a desigualdade tem o grande mérito de mostrar como opera e como é pérfida a acumulação, a apropriação privada da renda social, com a clareza da matemática. É r>g, em que r significa o retorno do capital e g o crescimento econômico. O capital gera um retorno maior que o crescimento, o que somente pode conduzir à concentração da riqueza e à pauperização da massa, o que estamos vendo empiricamente no Brasil com os dados do IBGE.
Os desdobramentos do golpe vão acelerar esse processo. Precarização do trabalho, transferência de renda para as grandes instituições financeiras pela destruição da previdência pública, transferência de renda pelo mecanismo da dívida pública. Os bens públicos geridos pelo Estado tornam-se a nova forma de retorno do capital, o grande negócio das privatizações.
Refletindo sobre isso, é uma comédia trágica assistir a um julgamento do STF que vai ser decisivo para combater o grande mal do Brasil, a corrupção… sim, é preciso colocar na cadeia os que se locupletam com o dinheiro público, os que vivem nababescamente às custas do trabalho, dos impostos pagos pelos trabalhadores. O STF, para combater a corrupção, corrompeu a Constituição, abrindo caminho para outra grande corrupção, esta que espolia a massa de brasileiros pobres. Quem são os corruptos mesmo?
Tudo isto tem sentido nenhum. Ao fim e ao cabo o capitalismo é assim: você não pode roubar o banco, mas você pode roubar por meio do banco.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Foi procurador-geral do Estado de São Paulo
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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domingo, 20 de outubro de 2019

Michel Houellebecq está morto

 


Os livros do escritor francês, um dos melhores do nosso tempo, esbarram na figura desajustada e por vezes repugnante do autor
Ricardo Lísias 01out2019 01h47
 

O escritor francês Michel Houllebecq Philippe Matsas/Flammarion
Houellebecq, Michel Serotonina
TRAD. Paulina Wacht e Ari Roitman
Alfaguara/Grupo Companhia das Letras • 408 pp • R$ 59,90 / R$ 39,90
Além de serem obras estéticas notáveis, os livros assinados com o nome Michel Houellebecq oferecem ótima oportunidade de reflexão sobre o estado das discussões literárias contemporâneas. Submissão, lançado em 2015, gerou uma enormidade de debates, que levaram inclusive a uma declaração do próprio presidente da República francês de então, Manuel de Vals, de que “a França não é Michel Houellebecq, não é a intolerância, o ódio e o medo”.
Uma das forças estéticas da obra de Houellebecq é justamente esse poder de mobilização — que chega, inclusive, a tocar as maiores tragédias do nosso tempo: quando o jornal Charlie Hebdo foi atacado, em janeiro de 2015, era justamente sua imagem que estava na capa da edição que circularia naquele dia. Além disso, coincidiu com a data de lançamento de Submissão. Um dos melhores amigos de Houellebecq estava entre as vítimas. Por segurança, o escritor desapareceu por algumas semanas.
Publicado no início do ano na França e agora no Brasil, Serotonina provocou também bastante debate. No que foi visto por alguns como mero lance de sorte, mas que na verdade é um sinal da clarividência do autor, o movimento dos coletes amarelos aparece no livro praticamente ao mesmo tempo que tomava força no interior francês. Vale destacar que o texto se coloca, sem nenhuma ambiguidade, ao lado dos manifestantes.   
O enredo é, como sempre no caso de Houellebecq, muito simples. Um homem maduro assiste a mais um de seus relacionamentos se romper, o que o leva a uma crise depressiva cada vez mais forte. Ele então tenta, primeiro, isolar-se em um hotel de Paris, procurando apagar todos os sinais de sua existência (emprego, conta bancária, endereço físico etc.), até que resolve, como é típico em sua condição psicológica, empreender uma viagem que o levará a reencontrar diversas pessoas que fizeram parte de seu passado.
Os coletes amarelos aparecem na visita que faz a um antigo amigo de faculdade, agora um proprietário rural em decadência. Hospedado no hotel improvisado que o amigo construíra para, sem sucesso, equilibrar as contas, o narrador acompanha os protestos até testemunhar o suicídio do companheiro, no meio de um protesto, o que causa uma pequena convulsão social. Antes, ele já havia testemunhado um episódio de pedofilia em um chalé ao lado do seu.

Sem horizonte

Depois do suicídio do amigo, uma espécie de epifania política do romance, o narrador resolve ir atrás de uma antiga esposa, mergulhando ainda mais em sua longa jornada depressão adentro. Quando a encontra, não consegue se aproximar e acaba passando um longo tempo observando-a com o filho, de longe. Aqui o principal procedimento formal do livro se esclarece: só aparece o que está ao alcance dos olhos do narrador. O mundo diminui, portanto, conforme seu ensimesmamento doentio aumenta. No final, o que sobra é a total ausência de horizonte, que parece coadunar com a questão política colocada no livro: se a gente tratar só o que estiver à nossa vista, e não o outro distante, vamos desaparecer.
Há ainda outros detalhes formais que merecem atenção, justamente por colocar Houellebecq entre os melhores escritores do nosso tempo. Valeria também uma comparação, com distâncias e aproximações, com a obra assinada por Samuel Beckett. Por razões de espaço, porém, vou me concentrar em um detalhe lateral, mas que me parece decisivo para a recepção de sua obra: o papel da pessoa que tem o mesmo nome social dos livros assinados por Michel Houellebecq. Trata-se do autor, portanto.
Houellebecq costuma dar entrevistas contraditórias, muitas vezes agressivas e horripilantes, com opiniões para lá de inaceitáveis. Algumas são muito divertidas e outras, abjetas. Ele deve ser hoje o principal exemplo da morte do autor: suas opiniões são muito diferentes da ideologia que sai dos livros que seu nome assina. 

Houellebecq costuma dar entrevistas contraditórias, muitas vezes agressivas e horripilantes, com opiniões para lá de inaceitáveis

O narrador de Serotonina, por exemplo, é muitas vezes uma pessoa repugnante. Uma leitura que desconsidera aspectos estéticos iria logo de cara considerar o livro machista. É preciso notar que a figura que, às vezes, diz absurdos inaceitáveis é um desajustado, um ser completamente fora de razão, que está afundando. Ou seja: o esquerdomacho do livro se deu mal...
Aqui consigo expressar um dos meus constrangimentos quanto à recepção da literatura contemporânea. Todo o mundo conhece, ensina e aplaude os célebres e certeiros textos de Michel Foucault e Roland Barthes sobre a morte do autor. Por que tanta gente, então, na hora em que interpreta uma obra, insiste em adotar critérios e terminologias tão atrasadas e, pior ainda, continuar prestando atenção em cadáveres como o “autor”? 
Caso o leitor queira ter essa experiência, procure a resenha que o cientista político Mark Lilla (nenhum desavisado, portanto) publicou sobre Submissão em 2015 na The New York Review of Books. A forma literária quase não é analisada, em detrimento das entrevistas bestas de Houellebecq, que aparecem em profusão. Se a França não é Houellebecq, seus livros também não são. Eles são brilhantes.

(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

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terça-feira, 15 de outubro de 2019

Michel Zaidan Filho: Persona non grata

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                          Foi anunciada a presença do senador do MDB, Fernando Bezerra Coelho,  na cerimônia de posse do novo reitor da UFPE, como representante do Governo Federal. Para quem não conhece a figura, trata-se de um legítimo espécime camaleônica ligado umbilicalmente a uma das oligarquias mais antigas da cidade de Petrolina, a da família Coelho, fundada pelo coronel Quelé. A história desse clã oriundo do sertão de Pernambuco já foi contada e recontando pelo historiador e cientista político Ruyter Bezerra, doutor em Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em seus dois importantes livros sobre a família Coelho; o que lhe custou- aliás- muitos dissabores na vida.
                 A trajetória política do senhor Fernando Bezerra é aquela marcada pela  contínua e permanente troca de legenda partidária, quando lhe convém, num quadro, diga-se de passagem, em que não escapam nem os políticos que se dizem de "esquerda" em nosso estado. Ele já passeou pelas diversas agremiações políticas, de forma a acomodar as diversas facções políticas de sua própria família (há os da direita declarada, os de centro e até os que se apresentam como "esquerda"). Esteve no palanque do finado Eduardo Campos e foi seu secretário de indústria e comércio, chegando a administrar o porto de Suape. Depois, passou para a oposição, quando o PSB passou a fazer críticas a Temer e a Bolsonaro. Agora, virou líder do governo no Senado, e é nesta qualidade que pretende estar na posse do novo reitor.
                 Curiosamente, a sua biografia foi recentemente enriquecida com a denúncia do recebimento de propinas, durante a última campanha eleitoral. A isso, some-se aquela outra, documentada em vídeo, da recepção de recursos, juntamente com outros políticos de Pernambuco, oriundos da transposição do rio São Francisco. O que fazer com um político tradicional, conservador, fisiológico, como esse? Deixá-lo manchar a imagem da UFPE, numa empreitada - sabidamente - politiqueira, como querendo marcar presença na cena política pernambucana, às vésperas de outro pleito eleitoral? - Conta-se, entre outras façanhas, que ele teria bancado o nome de Antonio de Campos, para a presidência da FUNDAJ. Desejará o senador petrolinense se apresentar como benemérito ou patrocinador das causas educacionais em nosso estado? - Nada mais falso e ridículo.
                 Na minha modesta opinião de ex-professor titular (aposentado) da instituição universitária, a comunidade acadêmica - com a representação de seus três segmentos - não deveria permitir essa desonrosa e incômoda visita. É muito importante que as entidades coletivas de professores, alunos e funcionários se reúnam no dia da posse e protestem em alto e bom som que o senhor Fernando Bezerra Coelho é uma "persona non grata" na Universidade Federal de Pernambuco. Que ele não conspurque ou ofenda a  dignidade desta instituição pública de ensino superior. Mais ainda representando um governo hostil, inimigo da cultura, do ensino, da pesquisa e da extensão universitária. Que ele vá procurar as escolas particulares (como fêz mendoncinha) para pontificar como beneplácito da educação superior.

    Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE


Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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sábado, 12 de outubro de 2019

Conhecer pode ser destruir

  

Conhecer pode ser destruir
O artista Cildo Meirelles em junho de 2016 (Foto: Matías Rossi/MACBA, 2016)

O título acima nomeia uma das cento e cinquenta obras de Cildo Meireles em Entrevendo, exposição que está no Sesc Pompeia e cuja bela curadoria foi realizada por Diego Matos e Júlia Rebouças. Mas aqui o título revela também um modo possível de movimento em direção à monumentalidade da obra desse prodigioso artista. Aproximar-me destruindo será minha tentativa de explorar o enorme conjunto de produções, sem que antes de fazê-lo sucumba frente à árdua tarefa. Conhecer destruindo implica certos cortes abruptos no material examinado, escolhas aparentemente arbitrárias por um ou outro elemento da coleção e infidelidade à concatenação que supostamente alinhava uma peça à outra.
Um único critério passa a orientar, então, as irregulares inclinações por algumas obras em detrimento de outras: a vibração de meus afetos. Ou seja, trata-se de dar vazão ao que dali fez pulsar meu corpo, convocou pensamento e memória, clamou por maior elaboração reflexiva. São esses os ingredientes que permitirão alguns mergulhos na enorme densidade e na vasta pluralidade de meios, materiais, artifícios, problemas, referências e intenções evocados pelo artista. Destruir para conhecer é aqui uma saída singela, já que seria impossível abarcar a totalidade do que está em exibição no Sesc Pompeia até dia 02/02/2020.
Por esse critério, Sal sem carne foi a primeira obra a atingir meus sentidos. Partamos, pois, do título da obra. O termo salário é oriundo da porção de sal dada como pagamento aos soldados na Roma Antiga. Para os romanos, o sal era divino, dádiva de Salus, deusa da saúde. Cicatrizava feridas, conservava a carne e era tempero para o alimento. Na antiguidade, servos cultivavam a terra dos nobres em troca de proteção e subsistência. Servos não eram propriedade do senhor feudal. Eram homens ligados ao solo, parte do lote de terra negociada entre senhores feudais. Só as corporações de ofício introduziram a prática de um trabalho livre, cujos produtos podiam ser vendidos no mercado. A venda do tempo de trabalho em troca de salário surge apenas no século 14, com o declínio do poder feudal. Somente no capitalismo o trabalhador passa a vender sua mão-de-obra e seu tempo de atividade como produtos no mercado.
Os índios, porém, não estão em nenhum desses registros de trabalho da história do Ocidente. Pertencem ao que Cildo Meireles compreende por gueto, isto é, “lugar de invisibilidade territorial, política e cultural que conforma uma situação segregatória” (Matos e Rebouças). Habitam “zonas invisíveis” e são pontos cegos na lógica capitalista. Corpos estranhos sem quaisquer contornos simbólicos ou sagrados compartilhados por tal lógica. Opacos às categorizações e articulações socioculturais ocidentais, a carne do índio está sempre exposta, sem o sal que conserva a vida. Carnes feridas, sem condições de cicatrização desde a colonização de nossas terras. Destituída da película salgada que a integraria como parte da humanidade, essa carne é abatida sem dó nem piedade pelos interesses fundiários e mineradores.
Sal sem carne resgata o massacre dos índios craós, ocorrido em 1940 na cidade de Trindade-GO. Convoca o espectador ao paradoxal esforço de construir uma memória. Apela por uma espécie de registro das marcas do que ainda persiste invisível. Súplica que, porém, não é estridente. Sua força reside na delicadeza poética. Composta por um singelo cabide amarelo de madeira repleto de monóculos azuis e vermelhos, além de um vinil no qual estão gravadas vozes e palavras sobrepostas, a obra nos convida a alongar a vista para a recepção de imagens e a aguçar os ouvidos para a escuta de sonoridades híbridas. Que do empenho, porém, não se espere alcance automático à clareza. Cada imagem visada traz uma infinidade de incertezas, dúvidas, perguntas sem respostas. Os hiatos entre os monóculos e, por conseguinte, entre as diferentes imagens expostas pedem composições narrativas. O caráter diminuto e a distância das fotos em relação ao olho impedem a satisfatória sensação de domínio e compreensão dos objetos. O aspecto difuso das imagens torna-se, assim, espécie de isca estratégica para que o receptor da obra trabalhe para além delas.
Os sons sobrepostos não destoam da oferta de imagens. Vozes de índios mesclam-se com depoimentos e músicas caipiras, além de outros murmúrios indecifráveis: “o que é índio?”, “é uns homi selvagem que comi raiz”, índio “só fica assim, pelas conta do mato”, “índio é gente”, “Brasília”. Soltas, essas palavras e falas tocam as entranhas do Brasil que alguns insistem em apagar, soterrar, aniquilar.
O vinil e as imagens colocam lado a lado figuras que bem poderiam ser tidas como díspares: o louco e o índio. Como mostra Foucault, a loucura é construção moderna. O índio, por outro lado, aparece aos olhos ocidentais numa fisionomia anacrônica, pertencente a um tempo que destoa da modernidade. Sal sem carne reúne a ambos como índices do não-lugar. Ao massacre dos índios craós em Trindade junta-se a instituição católica destinada aos loucos Vila São José Bento Cottolengo. Tradições cristãs estabelecem fronteiras entre bem e mal, ímpio e devoto, justo e injusto, servidor e traidor de Deus, e concedem as balizas políticas, econômicas e sociais da cidade. Numa linha indefinida entre esses conceitos, no que só pode ser entrevisto pelas brechas, estão os índios e os loucos. Estremecem nossas verdades, sacodem nossas teorias, abalam nossas certezas. Tornam-se alvos pela presença de seus corpos que afirmam o direito de existência na incerteza de um espaço volátil.
É evidente a afinidade entre Sal sem carne e Missão/Missões (como construir catedrais). Montada pela primeira vez num formato circular, a obra conjuga elementos materiais e simbólicos numa contundente exposição da violência praticada pelos jesuítas europeus no processo de colonização das Américas. Dois mil ossos compõem o teto da instalação e ligam-se por uma frágil coluna de hóstias ao chão. Neste, seiscentas mil moedas aparecem dispostas, indicando a base sobre a qual se sustenta o extermínio dos índios. Se por um lado Sal sem carne e Missão/Missões se aproximam, de outro se afastam. O forte impacto causado pela instalação suprime reflexões, devaneios, dúvidas e palavras. Obra que fala por si e torna-se monumento de uma história composta por massacres, opressões e violações. Ao invés da profusão de perguntas suscitadas em Sal sem carne, o visitante emudece diante de Missão/Missões.
Ao lado de Missão/Missões está exposta Amerikkka, outra obra que sobrepõe ao potente efeito dilacerante uma fina camada poética. Os três Ks presentes no título são uma clara referência ao grupo racista Ku Klux Klan. A parte superior da instalação é composta de 70 mil projéteis de dois calibres. Balas que expõem a tática da supremacia branca de extermínio à população negra americana. No chão estão enfileirados ovos de madeira sobre os quais o visitante pode pisar. No catálogo, Diego Matos e Júlia Rebouças sugerem uma irônica alusão do artista à metáfora proverbial do ovo de Colombo – a façanha dizimadora do explorador europeu. Numa outra linha de fuga, é possível pensar que os ovos apontam para a força da resistência. Vistos à distância, esses ovos brancos parecem reais. Duvida-se da viabilidade de sobre eles caminhar. Frágeis, não suportariam nem o primeiro passo. Assim que neles se coloca os pés, contudo, torna-se impossível dar mais de dois passos. Os ovos são duros e pontudos e provocam uma dor insuportável nas palmas dos pés. O poder das balas encontra matéria difícil de ser perfurada e destruída. Numa vertente simbólica, o ovo representa vida e aqui ela não é tão indefesa quanto parece ao primeiro lance de olhos.
Espaços virtuais: cantos, Espaços virtuais: paredes e Cantos são a edificação dos projetos desenhados e expostos na primeira sala. Decisão inteligente dos curadores que, ao separar os projetos da obra de sua versão concreta, não entregam o ouro facilmente ao visitante. Nos desenhos somos confrontados com a complexidade do pensamento de Cildo Meireles e com a precisão técnica que assumem suas intenções. Observá-los demanda trabalho concentrado. Tão logo se ingressa na ala onde estão as peças erguidas, a sobriedade dos desenhos dá lugar à fantasia e à brincadeira.
Entrever cantos e curvas onde nosso repertório imaginário precipita-se em antever apenas a monotonia das paredes subverte a noção convencional da espacialidade e abre uma racionalidade inusitada. Se os guetos são lugares aos quais os marginalizados são relegados, Cildo Meireles faz ver que espaços que escapam da lógica prescrita como sistema têm graça, inteligência, colorido, alegria, gozo e jogo. Explorar inesperados e inusitados cantos e curvas de afetos, reflexões e raciocínios é o convite que o conjunto das obras do artista faz a todos nós.


ALESSANDRA PARENTE é psicanalista, Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Recentemente fez seu pós-doc na FFLCH-USP com estágio na Birkbeck, University of London

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)