quinta-feira, 28 de maio de 2020
quarta-feira, 20 de maio de 2020
Aílton Krenak e a busca da totalidade cósmica
Em Ideias para adiar o fim do mundo,
ele argumenta: Ocidente gerou uma sociedade de ausências.
Desconectou-nos da memória ancestral, da Natureza e das experiências em
comunidade. Evitar catástrofes requer descolonizar a vida
Não é de hoje que as reflexões de Ailton Krenak provocam intensas
discussões e provocações aos pensadores convencionais. Líder
indígena, pensador herdeiro dos saberes tradicionais e defensor dos
direitos de seu povo, Ailton fala de um lugar onde os saberes ainda
não foram colonizados e nem se renderam a materialidade
eurocêntrica. Seu discurso transcrito carrega os potenciais da
oralidade e estimula a reflexão para além das regras formais da
escrita convencional e acadêmica. Tudo isso encontramos em seu
pequeno e profundo livro intitulado As ideias para adiar o fim do
mundo (2019) e na mais recente publicação intitulada O
amanhã não está à venda (2020), ambos pela editora Companhia
das Letras.
Ailton possui uma interpretação universal para todo tema que propõe analisar. Fala do universo na sua totalidade, considerando a importância de todos os organismos e geografia da terra como seres atuantes para prover a vida no planeta. Estranha quem não reconheça que haja vida nas árvores, nos rios, nas montanhas, nos ventos. Possui uma visão de totalidade cósmica, porém sem se render a um misticismo vulgar. A natureza é sábia e Ailton sabe disso!
Seu trabalho evidencia a importância do saber milenar das culturas tradicionais e seu potencial para realizar a crítica da sociedade moderna, seja através dos costumes, seja na maneira de produzir conhecimento. Os saberes ocidentais segmentados dificultam a compreensão de um organismo terra em sua totalidade, essa segmentação faz com que um geógrafo não tenha nenhuma dúvida da importância de uma montanha e da mata para a formação das correntes atmosférica e umidade do ar, porém um economista convencional desconhece completamente essa informação, vendo naquela mata uma potencial área de plantio que sua ciência será muito eficiente em aproveitar os recursos produzidos naquele solo. Para Ailton, a montanha, a mata e o solo são todos integrantes do mesmo organismo e sabidamente equilibrados, a terra nos provem a vida se soubermos respeitar o seu equilíbrio natural. O pensamento ocidental se considera avançado por não ter a menor compreensão da totalidade que há por “de fora da caverna”. A ciência ocidental possui um enorme saber e produziu importantes contribuições que devem ser defendidos em tempos de negacionismo, porém, conhece ainda muito pouco perto do todo existente no universo.
Ailton questiona o antropocentrismo e o saber ocidental imposto pela chegada dos europeus, afirma categoricamente que a terra não precisa do ser humano para existir, ao contrário de nós que não vivemos sem ela – quem seria o vírus destruidor do planeta? A “civilização” moderna fez com que a humanidade abandonasse a pluralidade das vidas nesse planeta. O homem não é o centro do universo. É tempo de conhecimento universal!
O
autor relata o quanto abandonamos os vínculos profundos com a nossa
memória ancestral de tal forma que perdemos a referência e o
significado de nossa identidade. A “civilização” moderna
produziu um distanciamento do homem da natureza, da terra, das
experiências em comunidade. Abandonamos a importância da memória
coletiva, das heranças culturais, das danças, das festas e das
vivências sociais. Criamos uma sociedade de ausências, insensíveis
para as experiencias humanas afetivas, do canto, do brincar, da
alegria. Isso se evidencia nos índices de insatisfação humana
mesmo com tanto acesso a recursos materiais, nos elevados índices de
transtornos psicológicos, suicídios e a busca inatingível por
prazeres efêmeros, relacionados a esfera material, de consumos
vazios de experimentações afetivas. Estamos cheios de vazios!
A sociedade moderna, capitalista, transformou homens em consumidores, uma sociedade que produz mercadorias sem respeitar os limites físicos do planeta. Vivemos em um período do Antropoceno enquanto resultado inconsequente das ações humanas, ainda que sob a crença de que temos capacidade de conhecer e controlar os desequilíbrios ambientais. O individualismo potencializado pela sociedade capitalista fez surgir um modelo de “civilização” doentia que só pensa em si, excludente, que destrói todas as demais formas de vida no universo. O narcisismo na sua forma social, se é que podemos definir assim.
Nossa sociedade transformou a natureza em recursos e distanciou o homem da natureza levando ao limite o processo de coisificação humana. Fizemos da criatividade humana uma ferramenta a serviço da técnica, subjugados, transformamos o saber em coisa a serviço da produção de coisas, de mercadorias. Não há alternativa a não ser for recuperar a importância humana do universo em sua totalidade. Recuperar o prazer nos prazeres, naquilo que naturalmente desperta nossos sentidos, nossos afetos e emoções, que estimula nosso imaginário, que valoriza a nossa inocência hoje subjugada.
Esse modelo de sociedade se mostra insustentável e se quisermos adiar o fim necessitamos iluminar o início! Pra ir adiante é preciso retomar a memória da estrada. Sentir o nosso povo, nossa tradição, nossa identidade. Dar voz a nossa memória, reencontrar com o Ser que habita o nosso imaginário coletivo tão ofuscado pelos tempos de modernidade individualista, neoliberal, principalmente em um momento de avanço do obscurantismo e da negação dos saberes ancestrais e científicos. É preciso retornar para dentro de nós, cruzar o deserto de vazios, ampliar os horizontes da existência. Essa a caminhada deve ser ultrapassada coletivamente. É preciso ouvir o cerrado, experimentar o sabor do chão, o sal da terra, o pó que sedimenta as estruturas do nosso Ser tão humano. O sertão de Guimarães. Provar o pó, os pães, as diferentes opiniães!
A cultura nos une! A arte está nos mantendo vivos!
(Publicado originalmente no site Outras Palavras)
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Ailton possui uma interpretação universal para todo tema que propõe analisar. Fala do universo na sua totalidade, considerando a importância de todos os organismos e geografia da terra como seres atuantes para prover a vida no planeta. Estranha quem não reconheça que haja vida nas árvores, nos rios, nas montanhas, nos ventos. Possui uma visão de totalidade cósmica, porém sem se render a um misticismo vulgar. A natureza é sábia e Ailton sabe disso!
Seu trabalho evidencia a importância do saber milenar das culturas tradicionais e seu potencial para realizar a crítica da sociedade moderna, seja através dos costumes, seja na maneira de produzir conhecimento. Os saberes ocidentais segmentados dificultam a compreensão de um organismo terra em sua totalidade, essa segmentação faz com que um geógrafo não tenha nenhuma dúvida da importância de uma montanha e da mata para a formação das correntes atmosférica e umidade do ar, porém um economista convencional desconhece completamente essa informação, vendo naquela mata uma potencial área de plantio que sua ciência será muito eficiente em aproveitar os recursos produzidos naquele solo. Para Ailton, a montanha, a mata e o solo são todos integrantes do mesmo organismo e sabidamente equilibrados, a terra nos provem a vida se soubermos respeitar o seu equilíbrio natural. O pensamento ocidental se considera avançado por não ter a menor compreensão da totalidade que há por “de fora da caverna”. A ciência ocidental possui um enorme saber e produziu importantes contribuições que devem ser defendidos em tempos de negacionismo, porém, conhece ainda muito pouco perto do todo existente no universo.
Ailton questiona o antropocentrismo e o saber ocidental imposto pela chegada dos europeus, afirma categoricamente que a terra não precisa do ser humano para existir, ao contrário de nós que não vivemos sem ela – quem seria o vírus destruidor do planeta? A “civilização” moderna fez com que a humanidade abandonasse a pluralidade das vidas nesse planeta. O homem não é o centro do universo. É tempo de conhecimento universal!
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sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir
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A sociedade moderna, capitalista, transformou homens em consumidores, uma sociedade que produz mercadorias sem respeitar os limites físicos do planeta. Vivemos em um período do Antropoceno enquanto resultado inconsequente das ações humanas, ainda que sob a crença de que temos capacidade de conhecer e controlar os desequilíbrios ambientais. O individualismo potencializado pela sociedade capitalista fez surgir um modelo de “civilização” doentia que só pensa em si, excludente, que destrói todas as demais formas de vida no universo. O narcisismo na sua forma social, se é que podemos definir assim.
Nossa sociedade transformou a natureza em recursos e distanciou o homem da natureza levando ao limite o processo de coisificação humana. Fizemos da criatividade humana uma ferramenta a serviço da técnica, subjugados, transformamos o saber em coisa a serviço da produção de coisas, de mercadorias. Não há alternativa a não ser for recuperar a importância humana do universo em sua totalidade. Recuperar o prazer nos prazeres, naquilo que naturalmente desperta nossos sentidos, nossos afetos e emoções, que estimula nosso imaginário, que valoriza a nossa inocência hoje subjugada.
Esse modelo de sociedade se mostra insustentável e se quisermos adiar o fim necessitamos iluminar o início! Pra ir adiante é preciso retomar a memória da estrada. Sentir o nosso povo, nossa tradição, nossa identidade. Dar voz a nossa memória, reencontrar com o Ser que habita o nosso imaginário coletivo tão ofuscado pelos tempos de modernidade individualista, neoliberal, principalmente em um momento de avanço do obscurantismo e da negação dos saberes ancestrais e científicos. É preciso retornar para dentro de nós, cruzar o deserto de vazios, ampliar os horizontes da existência. Essa a caminhada deve ser ultrapassada coletivamente. É preciso ouvir o cerrado, experimentar o sabor do chão, o sal da terra, o pó que sedimenta as estruturas do nosso Ser tão humano. O sertão de Guimarães. Provar o pó, os pães, as diferentes opiniães!
A cultura nos une! A arte está nos mantendo vivos!
(Publicado originalmente no site Outras Palavras)
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Anacronismo e outros erros
(Reprodução)
“Surge então a pergunta: se a fantasia
funciona como realidade; se não conseguimos agir senão mutilando o
nosso eu; se o que há de mais profundo em nós é no fim das contas a
opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece
realmente mais valioso, qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e
o injusto, o certo e o errado? Machado de Assis passou a vida
ilustrando esta pergunta (…).”
Antonio Candido, Esquema de Machado de Assis
Uma das lições dessa quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus
é que o medo e o tédio podem nos habitar quase ao mesmo tempo. Às vezes
a alternância entre o pavor da morte e o marasmo do confinamento se
passa no ritmo dos segundos. O noticiário de televisão intensifica essas
emoções. Não apenas devido ao constante aumento do número de cadáveres
que vemos nas estatísticas, mas sobretudo pelas explicações
apresentadas: “não há leitos de UTI no Rio de Janeiro”, “os respiradores
comprados pelo governo não funcionam”, “não existem equipamentos para
os profissionais de saúde em Manaus”, “as pessoas não estão obedecendo
ao distanciamento social”. As frases estão mais vazias do que as ruas.
Mesmo aquelas que trocamos com os amigos mais queridos num chat qualquer
pois nos falta um rosto em que se possa tocar. Faltam os olhos nos
olhos e permanece o desejo de algo que nos roube, ainda que por alguns
instantes, da sucessões do medo e do tédio.Antonio Candido, Esquema de Machado de Assis
Essa dificuldade tem levado várias pessoas a curtir a nova onda das lives. A experiência da simultaneidade, seja com artistas famosos, amigos, parentes e namorados abafa um pouco da solidão num mundo que já consegue chamar de “eu” o perfil no Facebook ou no Instagram. Outra alternativa para relaxar são as plataformas de filmes. O capital tem sido generoso com aqueles que possuem internet de banda larga, realiza promoções de diversos tipos e faculta acessos gratuitos hoje, mirando os futuros pagantes de amanhã. Por outro lado, sempre existe aquele livro que permaneceu intocado por anos mas agora encontrou a sua chance em meio a peste.
No meu caso, a coleção das obras completas de Machado de Assis eram os volumes mais atraentes da estante. Difícil era saber por qual deles começar. Romances e contos, mesmo na prosa dos grandes escritores, podem descambar em alguma forma de marasmo. Uma narrativa longa tem sempre um capítulo mais complicado para se seguir adiante e, por vezes, uma estória, mesmo curta, nos faz emperrar nesta ou naquela frase. A solução foi o volume quatro dedicado às crônicas. Uma leitura em que as ansiedades dessa quarentena podiam se diluir na imaginação perdida nas atualidades de outros tempos. Os últimos acontecimentos vinham da peça A história de uma moça rica, o concerto musical Mosqueteiros da rainha e fatos inusitados como o aparecimento de uma baleia nas praias de Copacabana, então uma região de pescadores. Mesmo coisas tristes como a morte prematura do poeta Casimiro de Abreu não eram doloridas pois toda gente de hoje sabe que o passado, se foi também um futuro incerto aos homens e mulheres de outrora, agora é parte indelével de seu destino.
Talvez tenha sido essa constatação que logo na terceira manhã de leituras, precisamente nos Comentários da Semana de 1º de Novembro de 1861, destruiu toda a minha esperança de alienação do presente. De certa maneira, meio sibilina, Machado havia me alertado para o problema no dia anterior quando informou: “falei de esperanças abertas em flor; falarei de esperanças mortas também em flor”. Mas poucos suspeitam da verdade quando esta lhes é desagradável e ainda nas primeiras linhas começou a surgir, frase depois de frase, a descrição do Brasil de nossos dias. Não falo do “Brasil contemporâneo”, no sentido abrangente que encontramos em Caio Prado Jr., mas do Brasil atual, o país da semana passada, com pandemia e tudo:
O que há de política? É a pergunta que naturalmente ocorre a todos, e a que me fará o meu leitor, se não é ministro. O silêncio é a resposta. Não há nada, absolutamente nada. (…) O que dá razão a este marasmo? Causas Gerais e causas especiais. Foi sempre princípio do nosso governo aquele fatalismo que entrega os povos orientais de mãos atadas com o destino. O que há de vir, há de vir, dizem muitos ministros, que, além de acharem o sistema cômodo, por amor da indolência própria, querem pôr culpa dos maus acontecimentos nas costas da entidade invisível e misteriosa, a que atribuem a tudo.O princípio fatalista de nossos governos… palavras nas quais se lê sobre o atual presidente, no último sábado, em um jet ski, explicando aos apoiadores, gente do setor de aviação chateada com a baixa no movimento: “é uma neurose (as medidas de distanciamento social), 70% vai pegar o vírus, não tem como…”. Por “vírus” entenda-se “a entidade invisível e misteriosa” a que se atribui a causa de todos os maus acontecimentos. “Não há política” e os brasileiros estão desamparados das instituições competentes em meio a maior crise mundial da saúde pública. Pena mesmo é serem frouxos os laços que, segundo Machado, nos prendem a sina dos povos orientais, posto que fazem muita falta os respiradores da China.
De qualquer maneira, voltemos às últimas notas da semana passada, expostas pelo autor. Não houve maior prova de “amor à indolência própria” que aquela dada por Regina Duarte, ministra da cultura, quando interrogada sobre as consequências da ditadura para cultura brasileira e a ausência de auxílios governamentais aos artistas sem emprego devido ao avanço da Covid-19. Primeiro ela dançou e cantou: “pra frente Brasil, salve a seleção, não era bom quando a gente podia cantar essa música”. Sobre as pessoas que morreram nos porões do DOPS afirmou: “na humanidade não para de morrer [pessoas], se você fala vida, do lado tem morte (…) tortura, sempre houve tortura (…) Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas”. Gente assim, narra o cronista, “dorme à noite com a paz na consciência, uma vez que de manhã tenha assinado o ponto na secretaria”. E meditando sobre esse sono dos justos realizou uma grande descoberta:
Está dada a razão por que [este governo] subiu no meio das antífonas e das orações dos amigos, apesar do travão de fel com que alguns quiseram fazer-lhe amargar a taça do poder. Diziam estes: “É um Ministério medíocre”; mas, por Deus, por isso mesmo é que é sublime! Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão; para os que tem a fortuna de não se alarem além de uma esfera comum é que nos fornos do Estado se coze e tosta o apetitoso pão de ló, que é depois repartido por eles, para a glória de Deus e da pátria.“Brasil acima de tudo, Deus acima todos”. A mediocridade é um brasão. A vulgaridade é um título. Mas brasões e títulos de verdade sem que haja razão em amargar com fel a taça do poder. Explico melhor este grande achado do cronista: se você mora em um país onde o secretário da pesca vem lhe explicar que os peixes são inteligentes e escapam por si próprios dos acidentes ambientais, como fez o senhor Jorge Seif Junior, é porque a vulgaridade trocou de sinais. Não pertence mais ao pólo negativo dos valores. É boa, bela e verdadeira. Parte inseparável da própria realidade. É como um hospital de referência com leitos de UTI vazios em plena pandemia. Justo o que se passa na zona norte do Rio de Janeiro, no Hospital Federal de Bonsucesso. Daí que nosso autor, sempre realista, flagre nessa transvaloração brasileira dos valores a existência de “um sentimento de caridade, ou direi mesmo, um princípio de equidade e justiça. Por toda parte cabem as regalias às inteligências que se aferem por um padrão superior; é bem que os que não se acham neste caso tenham o seu quinhão em qualquer ponto da terra”.
No dia seguinte àquela leitura perturbadora o país havia enterrado mais de 11 mil vítimas da Covid-19 e voltei uma vez mais para a fatídica crônica. No trecho final, que escapou a minha atenção na manhã anterior, julguei adivinhar novos comentários sobre os dirigentes da nação: “esse povo, que vive no requinte dos prazeres materiais, só entende o que lhe fala aos sentidos, e considera bem-aventurados os que morreram, que já gozam ou estão perto de gozar os prazeres prometidos pelo profeta”. Todavia, neste ponto, Machado de Assis não se referia ao Brasil, mas aos costumes religiosos dos povos orientais na Turquia.
Matheus Gato é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Membro do Núcleo Afro/CEBRAP. Autor do livro O Massacre do Libertos: sobre raça e república no Brasil.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Editorial: O dia depois do coronavírus: O mundo do trabalho II
Há, naturalmente, uma grande apreensão mundial em torno da pandemia provocada pelo coronavírus. No Brasil, esta pandemia avança exponencialmente, sem que tenhamos, até o momento, soluções concretas para o seu enfrentamento, exceto, talvez, pelas medidas restritivas de contato social, aplicadas com o propósito de impedir a propagação do vírus. Mesmo assim, enquanto no resto do mundo existe uma crise econômica e de saúde publica, aqui enfrentamos um outro problema, que apenas se agrava, como se a pandemia já não fosse suficiente para direcionar todas as ações de governo: uma crise política que, em última análise, sabota as possíveis ações mais consequentes para o enfrentamento do problema.
Em meio a esse turbilhão, no entanto, vão surgindo reflexões em torno de como seria o dia depois do coronavírus ou, em outras palavras, como seria a volta à normalidade. "Normalidade" sempre entre aspas, uma vez que foi exatamente essa "normalidade" que nos conduziu a tudo isso que estamos enfrentando. O bordão mais invocado é o nada será como antes. Será? Conforme havíamos prometido aos nossos leitores, estamos dando continuidade a série de editoriais com o objetivo de discutir a sociedade do pós-coronavírus em seus diversos aspectos, entre os quais os novos padrões de relação entre capital e trabalho, partindo de alguns pressupostos anteriores até mesmo a chegada do coronavírus, onde estava em curso bastante avançado um processo de consolidação de um capitalismo ultraliberal, onde o Estado tornou-se apenas um instrumento dessa lógica acumulativa do capital, com consequências nefastas para os trabalhadores e trabalhadoras.
A lógica perversa pode ser resumida no axioma do lucro sem ônus, ou seja a situação ideal para o capitalismo, onde o trabalho represente lucro efetivo e que os trabalhadores não tenha alguma garantia e possam ser descartados sem ônus, sempre que a perspectiva acumulativa do capital esteja ameaçada. Não é preciso ser nenhum especialista em relações de trabalho para compreender ou dimensionar as perdas gigantescas dos direitos e garantias dos trabalhadores ao longo desses últimos anos, principalmente em países de economia periférica como o Brasil, com uma elite econômica forjada no imaginário escravocrata.
Conforme havíamos prometido no editorial anterior, com base num texto de João Marques Albuquerque, publicado no site Outras Palavras, vamos abordar a questão dos trabalhadores essenciais, um tema muito em voga, como consequência dos problemas surgidos com a pandemia do coronavírus, que contingenciou alguns profissionais ao trabalho através do sistema de home office, a partir do seu próprio lar, como o nome sugere, enquanto outras categorias tiveram que se submeter à labuta diária, em razão da especificidade de suas atividades. Lá fora, no front, expostos aos vírus, por diversos motivos, estão aqueles trabalhadores ditos essenciais, como os trabalhadores que se dedicam as atividades nas áreas de segurança, transporte, entregadores de empresas de aplicativos, trabalhadores de supermercados, entre outros.
A narrativa discursiva dominante - sobretudo em determinados grupos sociais - diria que, estes últimos são, de fato, os ditos trabalhadores essenciais e não aqueles que tiveram o privilégio de ficar em seus lares, trabalhando remotamente e acompanhando suas séries preferidas na Netflix, numa frequência acima do habitual. Trazendo algumas variáveis intervenientes a essa debate, João Marques Albuquerque - num texto que gostaríamos de externar nossos elogios - remonta ao conceito histórico-filosófico de essencialidade, a partir de filósofos clássicos e contemporâneos, para problematizar, à luz das subjetividades do capital, quem seria, de fato, esses trabalhadores essenciais, se você que ficou protegido em sua redoma ou aqueles que se expuseram ao vírus cotidianamente, os corpos descartáveis. Observa João Marques que, curiosamente, o primeiro caso registrado de morte pelo coronavírus no Estado do Rio de Janeiro foi o de uma empregada doméstica que contraiu o vírus de sua patroa, recém chegada de uma viagem à Itália. Embora um fato isolado, não deixa de ser emblemático, como sugere o autor. O autor não envereda por essa seara, mas, nesses tempos de pandemia, as reflexões do filósofo francês, Michel Foucault, notadamente sobre a Bio-política e o Bio-poder voltam com muito fôlego às mesas de discussões. Ou teorias mais recentes, mas que beberam nessa fonte, como a necropolítica.
terça-feira, 5 de maio de 2020
Michel Zaidan Filho: Herança Sarda
- No dia 27 de abril de 1937, morria um dos pensadores mais originais da rica e diversificada cultura política marxista , Antonio Gramsci. Oriundo da Sardenha (Itália), Gramsci tornou-se cidadão brasileiro nos 70 e 80 pelas mãos do ensaísta e tradutor baiano Carlos Nelson Coutinho, tradutor e introdutor de sua obra no Brasil (os "cadernos de Cárcere"). Como Walter Benjamin, foi mais uma vítima do nazi-fascismo e escreveu em condições adversas, preso nos cárceres de Mussolini , de onde só sairia para morrer de tuberculose. Este grande pensador italiano foi um dos fundadores do partido Comunista de seu país, membro do Comité Executivo da internacional Comunista e Deputado no Parlamento italiano. Contudo, nada disso se iguala à originalidade de seu pensamento político. Chamado de "o Lenine europeu" , Gramsci inovou - como ninguém - a estratégia revolucionária para a conquista do socialismo no Ocidente, ao propor uma inversão da chamada "guerra de movimento" pela "guerra de posição" e colocou em primeiro plano- a luta pelo hegemonia.
Houve muita controvérsia sobre a influencia leninista (e até mesmo marxiana) sobre o pensamento gramsciano. Ele era ou não leninista! - Discussão sectária e dogmática que ignorou o rico legado de uma trajetória de muitas fases . Como, ailás, a própria carreira de Lenine, ora apontado como conselheirista ora como homem de partido . O fato é que Antonio Gramsci foi, ao lado de Rosa Luxemburgo e os austro marxistas, um adepto da republica dos conselhos, da organização de base dos operários, e um crítico do determinismo econômico que ele via em sua primeira leitura de O Capital. A primeira fase da carreira política de Gramsci é caracterizada pela veemente defesa dos "conselhos de fábrica" de Turim: e a fase do jornal turinense "L ordine nuevo" . Existe aí a manifestação de um voluntarismo político muito grande, que corre a par de seu otimismo com a revolta dos operários turineses. Com a derrota e o refluxo desse movimento, surge a reflexão sobre a indispensável aliança com os camponeses do "Mezzogiorno", a Itália rural e atrasada. A mesma lição aprendida a duras penas pelos "comunards" parisienses le em Turim: sozinhos e isolados, não se faz revolução.
Esse aprendizado o levou a descobrir o "príncipe moderno" - o partido de novo tipo. Bom, aí estamos no domínio do leninismo propriamente dito, como antes parecia que a influencia anarquista (Amadeu Bordiga) orientava o jovem Gramsci. A teorização do partido, como intelectual coletivo, dotado de um centralismo orgânico e capaz de elaborar uma "cultura nacional-popular" e levá-la às massas caracterizou essa nova fase do pensamento de Gramsci. O partido passou a ser o mediador, por excelência, daquilo que ele intitulou "a catarse" revolucionária do pensamento dos simples numa visão de mundo coerente e sistemática. Sob este aspecto, o teórico sardo pode ser chamado de "leninista". Sua valorização da mediação partidária faz de s i um partidário daquele "jacobinismo aferrado à disciplina do partido", criticada por Rosa Luxemburgo, em sua discussão com Lenine. E Gramsci foi um intelectual partidário. Primeiro no PSI, depois como um dos fundadores do PCI.
Mas a descoberta do "novo príncipe" não estaria completa sem a nova estratégia revolucionária para a conquista do socialismo nas sociedades ocidentais. Aqui, entramos no coração da originalidade gramsciana,:a noção de Hegemonia (resumidamente descrita como a soma de coerção + persuasão), força e consentimento, estado e sociedade civil. A noção de "hegemonia" não era nova no marxismo-leninismo da 3a Internacional Comunista. Lenine a tomara de empréstimo de Clausenvitz, na sua "Arte da Guerra". A palavra sempre teve forte acepção militar. Mas Gramsci lhe confere um novo conteúdo: consentimento ativo dos dirigidos à liderança de um chefe.Claro, esta operação não teria sido possível sem a rica contribuição da cultura política e filosófica italiana: o paradigma da história ético-política, de Benedito Crocce. A idéia do bloco histórico, dos intelectuais como funcionários da superestrutura etcetera.
Essa inovação teórica e revolucionária conduziu Gramsci a reconhecer o valor da indigitada "sociedade civil" e seus "aparelhos privados de hegemonia" (a escola, a igreja, as academias científicas, os jornais) como elementos fundamentais para a conquista do socialismo em sociedades de massa, como as ocidentais. E que antes da conquista do poder político, era necessário conquistar a hegemonia: o coração e as mentes das pessoas. É preciso advertir que para ele "hegemonia" nunca foi sinônimo de "dominação". Embora ajudasse a consolidar um projeto de poder por um longo tempo.
E aqui, gostaria de puxar a conversa para o Brasil. Como disse no início, Antonio Gramsci tornou-se cidadão brasileiro através de seu tradutor, Carlos Nelson Coutinho, no bojo de uma luta interna no Partido Comunista Brasileiro, defendendo uma estratégia democrática radical para o fim da ditadura militar e a luta pela conquista do socialismo. No entanto, seu pensamento foi logo apropriado pela academia universitária no sentido de se estudar a chamada "cultura popular", Como um teórico da superestrutura, Gramsci trata da cultura dos simples, sua ideologia, suas formas de pensamento (materialismo histórico e a filosofia de Benedito Crocce).
Nesta obra, ele estuda o senso comum, o bom senso, a religião e as visões de mundo tradicionais. O teórico italiano manifesta uma particular forma de valorização do senso comum e da visão de mundo das classes subalternas, mas sublinha que esta visão é produto de um amalgama de variados traços - vindos de fora - que se imprimem no imaginário dessas classes, produzindo uma ideologia acrítica, eclética e assistemática. Sendo, portanto, o papel dos intelectuais progressistas e do partido político fazer a necessária depuração dessa mixagem ideológica, ajudando as pessoas a sistematizarem e darem coerência ao seu pensamento. A essa nova forma de pensar, ele dá o nome de "cultura nacional-popular" e ela varia de conteúdo, no âmbito das inúmeras revoluções burguesa s e populares ao longo da História.
Sobre este aspecto, nos interessa sobretudo a ideia de usar os conceitos gramscianos para o estudo da cultura popular no Brasil, E, neste particular, tanto poderiam ser as religiões populares, como os folguedos e brincadeiras carnavalescas, como os Maracatus. Que dizer dessa apropriação dos conceitos gramscianos! Em primeiro lugar, que hegemonia não é sinônimo de dominação, dominação ideológica, do tipo que a indústria cultural moderna opera com o imaginário das pessoas. Segundo, os potenciais críticos, subversivos ou utópicos presentes nessas manifestações precisam ser submetidos a" uma hermenêutica da suspeição", ou seja, eles aparecem mesclados com elementos da tradição e precisam passar por um processo de decantação ideológica, para que sejam devidamente aproveitados na construção de uma nova visão de mundo. Aí, o trabalho dos intelectuais "orgânicos" (não necessariamente acadêmicos), aqueles ligados aos movimentos de massa, é muito importante. Gramsci , como leninista de novo tipo, evita prescrever uma postura autoritária, diretiva e autossuficiente para essa pedagogia política. Acredita num movimento de reciprocidade e revezamento entre as bases e a direção do partido ou do movimento ("centralismo orgânico"). De todo maneira, seria conveniente não taxar de saída o pensamento dos simples como retrgrado ou atrasado. Ou cortejar simplesmente essa forma de pensamento como sábia r revolucionária. Acho que Antonio Gramsci fica a meio termo.
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sábado, 2 de maio de 2020
sexta-feira, 1 de maio de 2020
Editorial: O dia depois do coronavírus - O mundo do trabalho I
Conforme havíamos prometido aos nossos leitores e leitoras, com este primeiro editorial estamos dando início a uma série que objetiva discutir a sociedade do pós-coronavírus, no tocante ao seus fundamentos políticos, econômicos, sociais, educacionais e culturais. O consenso entre os analistas é que, para o bem ou para o mal, depois da pandemia jamais seremos os mesmos. Neste primeiro momento, vamos discutir a questão do trabalho nos pós-corinavírus, tomando sempre como referência as especificidades brasileiras, e antecipando que se trata de um assunto complexo que, certamente, demanda mais de um editorial para tratá-lo. Nada melhor do que iniciar essa discussão neste dia primeiro de Maio, dedicado aos trabalhadores e trabalhadoras de todo o mundo.
Como observou o professor Tarso de Melo, em artigo publicado aqui no blog, a pandemia, no Brasil, pegou os trabalhadores de uma maneira bastante precarizada ou desprotegida. Um contingente de 50 milhões na informalidade ou " uberizados" e 50 milhões sob o jugo das reformas trabalhista dos últimos governos, que corroeu sintomaticamente seus direitos conquistados nas últimas décadas do século passado como a CLT, que era uma espécie de Constituição dos Trabalhadores, algo concebido ainda na Era Vargas. Soma-se a esse contingente, um expressivo números de invisíveis - números nada desprezíveis, posto que estimados em 46 milhões - que somente agora, diante da concessão dos benefícios do Governo Federal neste período de quarentena, foram identificados. Analfabetos ou semianalfabetos, sem CPF, um aparelho celular que permita receber um código, sem acesso à internet. São esses que estão expostos cotidianamente nas agências das Caixa Econômica em plena pandemia, numa escolha desumana: o vírus ou a fome.
O apetite pelo corte de direitos preconizado pela cartilha das políticas ultraliberais foi aplicado sem a menor compaixão aqui no Brasil. Por outro lado, acrescento, as dificuldades na condução da política econômica, ampliando o desemprego e alcançando baixas taxas de crescimento do PIB. Ou seja, uma economia em espiral negativa, apontando os equívocos ou ineficácia do remédio liberal. Se essas observações se aplicam àqueles que estão na dita "formalidade" , vocês podem imaginar, então, a situação daqueles que se encontram na informalidade ou gerenciando seus negócios através de empresa de aplicativos, como Uber, Ifood, 99, Zé Delivery entre outras. Não tenho dúvida de que o capital sofreu uma refrega nesta última crise do coronavírus. Várias reflexões estão sendo produzidas sobre o assunto, inclusive colocando em xeque essa política deliberada de precarizar o trabalho, como a adoção do receituário ultraliberal, sobretudo aqui na América Latina, inclusive com alguns componentes fascista e autoritários. Diante da crise social e econômica provocada pelo coronavírus, o Estado foi "emparedado", sendo chamado a assumir responsabilidades que já haviam negligenciadas.
A chamada "crise do capital" - se podemos assim tratá-la - no contexto da pandemia do coronavírus apresenta vários aspectos. A crise é de uma dimensão tal que levou o filósofo Esloveno, Slavoj Zizek, a produzir um trabalho recente acerca do assunto, tratando sobre como está crise estaria repercutindo sobre o próprio conceito de Estado, reinventado um "novo comunismo", o que levou nossas autoridades diplomáticas a fazerem chacota com o assunto, sugerindo que o coronavírus era um vírus comunista. O filósofo Mário Sérgio Cortella, em entrevista recente, observa mudanças até mesmo no conceito de riqueza, uma vez que muitos bens tornaram desnecessários ou passaram a perder sua utilidade neste momento. Arrematava ele, filosoficamente, de que de nada adiantaria você, no deserto, com uma sacola cheia de diamantes, quando, na realidade é de água que você está precisando. Numa alusão também às reflexões do sociólogo catalão, Manuel Castells, que faz uma pergunta bastante pertinente: Do que precisamos mesmo? Talvez uns comes e bebes com os amigos na varanda.
É como se perguntássemos aos nossos leitores e leitoras: qual o bem mais importante hoje? Certamente muitos de vocês responderiam: um respirador e um leito de UTI, caso fôssemos acometidos pelo vírus. Mas, o maior desejo de tod@s, hoje, é escapar da contaminação pelo Covid-19, que, no Brasil, vem contaminando e matando numa velocidade assustadora, superando situações como a da própria China, onde, supostamente, tudo começou, avançando sobre as periferias empobrecidas, onde seguir as normas do afastamento social é um procedimento ainda mais difícil de ser observado pelo população.
Mas, como antecipamos, esses editoriais integram uma série, onde o financiamento da saúde pública, certamente, terá o seu espaço. No próximo editorial, ainda sobre essa temática do mundo do trabalho no pós-coronavírus, voltaremos a esse debate, ancorados teoricamente nas reflexões do antropólogo David Graeber, com sua famosa tese sobre os "trabalhos de merda", e, naturalmente, tecendo algumas considerações sobre os chamados "trabalhadores essenciais." Quem, de fato, são esses trabalhadores? Aqueles que podem ficar em casa, trabalhando através do sistema de home office ou aqueles que estão na linda de frente de exposição aos vírus, como garis, entregadores, médicos, enfermeiros, policiais?
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