segunda-feira, 22 de junho de 2020
quarta-feira, 17 de junho de 2020
Michel Zaidan Filho: Vocação de professora (resenha do livro Reforma Agrária no Papel)
Tem gente que nasceu para ganhar dinheiro. Outros nasceram para a Ciência e a Pesquisa. Mais os que são valiosos são que nasceram para o magistério e enorme capacidade de ajudar as pessoas a se instruírem e formarem uma opinião crítica sobre as coisas do mundo. Estes são os melhores. A professora Roseana Borges de Medeiros, docente do DLCH, da Universidade Rural de Pernambuco, vem mostrar através de seu ultimo livro – Reforma Agrária no Papel, a sua inegável vocação pedagógica, aliada à sua missão clínica e terapêutica junto a seus alunos e alunas.
Segunda a mestra, o livro foi elaborado para o seu magistério na disciplina Direito Agrário. Como inexistia na época uma publicação que abordasse de uma perspectiva jurídica e histórica a questão da regularização legal da terra no Brasil, desde o período colonial até a Nova República, ela tomou a si a tarefa de produzir esse livro, numa versão eminentemente didática. E conseguiu. Valendo-se de uma ampla pesquisa histórica da formação de Portugal, passando pela colonização lusitana do Brasil e chegando até a República, Roseana nos legou um estudo sistemático e lógico da questão agrária em nosso país, para além da hermenêutica jurídica e suas controvérsias entre os advogados e constitucionalistas. Diz ela que Portugal, uma das primeiras nações modernas da Europa, nunca teve originalmente um feudalismo, em razão da ocupação muçulmana na península ibérica. Os árabes nunca cuidaram de agricultura e sempre se dedicaram ao comércio e a conquista. Situação que provocou entre os portugueses uma crise crônica no cultivo dos campos, e sua gradual dependência da Inglaterra para o abastecimento de sua gente. Os lusitanos se entregaram sofregamente ao comercio e as grandes navegações. Dessa forma, a agricultura foi delegada a outros. Como nunca houve um feudalismo digno desse novo, falar de revolução burguesa na Lusitânia seria uma força de expressão, apesar do arremedo de uma frágil burguesia comercial associada à “revolução” de Avis, dando início á época das grandes navegações. Neste contexto, foi elaborada a lei das Sesmarias, como forma de regularização da posse da terra. O mérito dessa lei é que ela impedia a concentração fundiária, em tese. A lei das Sesmarias foi o texto legal que vigiu durante todo o período colonial e parte do Império brasileiro. Apesar das intenções, não impediu a concentração e privatização da terra no Brasil. Já que grandes proprietários e senhores de terra foram agraciados com as sesmarias.
Nesta altura, a autora introduz a questão da ausência de feudalismo na colônia brasileira. Discutindo com os autores marxistas, a mestra reafirma a inexistência desse modo de produção e diz que a história agrária brasileira foi desde o início a do latifúndio e da grande propriedade territorial. Confirmada pela agroindústria sucro-alcooleira e a mão-de-obra escrava.
O próximo passo seria o fim da escravidão, a crise da lavoura açucareira e a criação da Lei de Terras, de 1850. A abolição do trabalho escravo, sob pressão militar da Inglaterra, levou a uma reorientação da política agrária, no sentido de impedir que os ex-escravos e homens livres pudessem se beneficiar das terras devolutas e improdutivas e difundir o regime da pequena propriedade no Brasil. Antecipando a isso, os senhores de terra do oeste paulista e Rio de Janeiro, apressaram-se em aprovar uma lei que restringia a posse da terra, através da obrigação da venda e da compra. Mais uma vez, vinha o reforço da concentração fundiária, a serviço das fazendas de café e do trabalho livre dos imigrantes europeus. Esta lei perdurou em nosso país até o advento do Estatuto da Terra, aplicado já no regime militar. O Estatuto da Terra, coroava uma série de lutas, conflitos, reivindicações dos trabalhadores rurais, meeiros e parceiros que trabalhavam no campo, sem nenhum direito ou garantia. Esta lei, considerada a mais avançada nas circunstâncias brasileiras, previa expressamente a “função social da propriedade fundiária” e punia o latifúndio improdutivo. Na letra, seria um arremedo da revolução agrária que o Brasil nunca teve. Infelizmente, sob o tacão da ditadura militar, ele favoreceu aos grandes proprietários de terra, com a expulsão de muitos trabalhadores e camponeses de suas terras.
Roseana conclui sua pesquisa com uma análise muito crítica do Primeiro Plano nacional da Reforma Agrária, quando era vivo ainda o ministro Marcos Freire. Valendo-se das análises de José Graziano, ela menciona a expressão “modernização conservadora” ou “modernização dolorosa”, como o resultado prático desse Plano: a expansão do capitalismo moderno ao campo, através de grandes empresas nacionais e internacionais, com ajuda de incentivos fiscais, grandes obras de infra-estrutura e, sobretudo, “a militarização da questão agrária” no fronteira agrícola da Amazônia e no norte do país. Houve uma enorme concentração de terras, com a expulsão de imigrantes nordestinos, índios, camponeses, em benefício dos grandes proprietários e empresários rurais ligados ao agronegócio. Muita terra adquirida foi transformada em mera “reserva do valor”.
O livro confirma – através de uma boa pesquisa histórica – a tese arqueconhecida da concentração fundiária no país, através de uma dialética perversa da simbiose do novo com o velho, que faz do Brasil uma nação dotada de uma estrutura agrária arcaica, privada, concentrada e voltada para o exterior. A reforma agrária tantas vezes anunciada permaneceu no papel o tempo todo. E hoje é motivo de muita preocupação, em razão das opções macroeconomicas do atual governo.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD/UFPE.
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