Reflexões de Ailton Krenak produzidas durante a pandemia convidam a repensar o nosso modo de vida e a recordar as vítimas da Covid-19
Aparecida Vilaça
01set2020 01h00 (02set2020 17h55)
O escritor Ailton Krenak Neto Gonçalves/Divulgação
Krenak, Ailton
A vida não é útil
Companhia das Letras •
128 pp •
R$ 29,90
A vida não é útil
Mais uma vez o filósofo e líder indígena Ailton Krenak encontra as palavras certas e as ideias precisas para definir aquilo por que passamos hoje, analisando as causas de nossa crise ambiental e sanitária e oferecendo caminhos para transformarmos a pandemia em uma experiência renovadora.
A vida não é útil dá seguimento às discussões do sucesso editorial Ideias para adiar o fim do mundo, que começa a ser traduzido em outros países. Os cinco capítulos que o constituem são amálgamas de palestras, entrevistas e lives de Krenak, brilhantemente organizadas por Rita Carelli, que as transformou em um texto fluido, claro, e que consegue, mesmo assim, manter a vivacidade do discurso oral. A impressão que se tem na leitura é que já nasceu como livro, naquela exata sequência de capítulos, o que revela um trabalho editorial de altíssima qualidade, que não deve ser colocado em segundo plano, e que nos faz lembrar o de Bruce Albert na organização das falas do xamã yanomami Davi Kopenawa em A queda do céu.
Em sua maioria, as falas que estão na origem do livro foram proferidas em diferentes momentos da pandemia, de abril a junho, a partir da casa do autor na aldeia Krenak, no vale do rio Doce, onde ele faz quarentena junto com o seu povo. A situação, evidentemente, exacerbou a preocupação com os destinos da humanidade e do planeta, que constituem o tema central de Ideias para adiar o fim do mundo. No presente contexto de medo e morte, a fala anterior soa premonitória, e o presente livro faz o seu discurso ainda mais relevante e repleto de sentido.
O livro se inicia por uma crítica à nossa visão restrita de humanidade, que deixa de fora outros seres e entidades que povoam o mundo e exila em suas bordas povos minoritários, dentre eles os “caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes”. Esse etnocentrismo é justamente o que nos conduz às ações que vêm levando à destruição progressiva da Terra, que teimamos em acelerar, com “a ilusão de que vamos continuar existindo”, acreditando que saberemos transformar “a crise em oportunidade”. A pandemia seria um aviso, um grito da Terra nos dizendo que “não estamos com nada” e nos mostrando que “essa tal de humanidade” pode se extinguir “com a mesma facilidade que os mosquitos de uma sala depois de aplicado um aerossol”.
Civilização viral
“Somos a praga do planeta, uma espécie de ameba gigante”, “muito piores do que esse vírus que está sendo demonizado como a praga que veio para comer o mundo. Somos nós a praga que veio devorar o mundo.” As conclusões de Ailton ressoam aquelas do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, em suas reflexões sobre o modo de ser da chamada “civilização ocidental”, caracterizada como uma “civilização viral”, alertando para um aspecto do vírus que me parece central, e que diz respeito à especificidade do potencial destruidor de que fala Ailton.
Trata-se justamente do modo de ação muito peculiar desse invasor: incapaz de se autorreproduzir, o vírus impõe a sua fórmula aos hospedeiros, forçando-os a produzirem réplicas dele, na contramão de seu próprio código genético. Como os vírus, a nossa civilização atua impondo às outras civilizações os seus códigos, destruindo os seus suportes materiais e as suas bases culturais, forçando-as a se tornarem iguais a ela.
Até o momento, pelo menos, o nosso movimento em meio à crise não tem sido a revisão drástica de nossa forma de estar no mundo, com a atenção aos povos indígenas que nos ensinam como se deve habitá-lo, mas vem sendo dominado por uma ânsia pelo retorno à “normalidade”, que se alia a propostas delirantes de colonizar novos planetas. Será que não se dão conta de que “a possibilidade de sobrevivermos com esse corpo em Marte [...] vai depender de um aparato tão complexo que será mais fácil arrumarmos máscaras e respiradores e continuarmos aqui?”, pergunta Ailton. Isso mostra que a porção doente da humanidade, que infelizmente vem ditando o seu caminho e carregando junto os que não compactuam com suas escolhas, não aprendeu “nada com a experiência aqui na Terra. Eu me pergunto quantas Terras a gente precisa consumir até entender que está no caminho errado”.
Ailton nos deixa o seu recado claro: quem quiser ir embora, já vai tarde. “Vão logo, esqueçam a gente aqui! Deveríamos dar um passe livre para eles, para os donos da Tesla, da Amazon. Podem deixar o endereço que depois a gente manda os suprimentos.” Que permaneçam aqueles capazes de fazer pontes entre a cidade e a floresta, o povo da agroecologia e da permacultura, os que fazem buracos no asfalto para plantar as suas hortas urbanas, os que contam histórias, os que levam a sério os sonhos.
Para Ailton, os sonhos seriam uma espécie de “instituição que prepara as pessoas para se relacionarem com o cotidiano”. Entre diversos povos, dentre eles os Guarani Mbya, todos os dias, de manhã bem cedo, a família reúne-se em torno do fogo e de uma cuia de mate, para contarem os seus sonhos uns aos outros e, só a partir daí, decidirem as suas atividades e os melhores caminhos a percorrer. Como lembra Ailton, a partilha dos sonhos é ocasião de troca de afetos, sentimentos e impressões, do exercício da capacidade de ouvir, permitindo assim “trazer conexões do mundo dos sonhos para o amanhecer”. Isso tem implicações diretas para o bem viver e para a extensão da vida, a “duração da pessoa”, como nos mostrou a antropóloga Elizabeth Pissolato para os Mbya.
Como os sonhos, os mitos indígenas, narrados geralmente no anoitecer, por pais e avós aos seus netos e a quem mais queira ouvir, são igualmente repletos de fios de conexão, que tornam possível a comunicação das pessoas entre si e dos povos uns com os outros, pois os mitos circulam entre eles. Conectam ainda os humanos aos outros seres, animais, espíritos e ancestrais, que povoam os mitos e que, por meio da narrativa, se tornam acessíveis no mundo presente. “São histórias de antes de esse mundo existir [...]. A proximidade com essas narrativas expande muito o nosso modo de ser, nos tira o medo e também o preconceito contra os outros seres. Os outros seres são junto conosco, e a recriação do mundo é um evento possível o tempo inteiro.”
Donna Haraway, filósofa norte-americana, em seu livro Staying With The Trouble (2016), esforço criativo para pensar a crise ambiental e propor soluções, também menciona as histórias contadas, especialmente as mais longas, que parecem não ter fim. Cheias de pontas, conectam uma infinidade de pessoas e de seres, revelando-os como “holoentes”, seres complexos, formados por um aglomerado de espécies, como o são os recifes de coral. Somente ao entendermos que estamos todos ligados feito nós em uma cama-de-gato, em que a mudança da posição de um ponto qualquer implica a reordenação de todo o sistema, poderemos estabelecer outro tipo de relação com aqueles com os quais compartilhamos o planeta. “Ainda há ilhas no planeta que se lembram do que estão fazendo aqui”, escreve Krenak. “Estão protegidas por essa memória de outras perspectivas de mundo. Essa gente é a cura para a febre do planeta, e acredito que pode nos contagiar positivamente com uma percepção diferente da vida. Ou você ouve a voz de todos os outros seres que habitam o planeta junto com você, ou faz guerra contra a vida na Terra.”
Covid-19
Impressionam-me a paciência e a persistência de
Ailton — assim como a de Davi Kopenawa, de Raoni Metuktire e de tantos
outros — em nos ensinar, em permanecer ao nosso lado mesmo sabendo que
vimos traçando caminhos opostos ao seu e de seus parentes indígenas,
suprimindo as bases de sua existência, desrespeitando-os de todos os
modos possíveis ao longo de cinco séculos.
Enquanto escrevo, há 26 mil indígenas contaminados pela Covid-19,
pertencentes a 150 povos diferentes. Setecentos dentre eles morreram,
sendo a maioria pessoas maduras e idosas, que constituíam repositórios
das tradições e da memória de seus povos. É como se bibliotecas tivessem
sido queimadas, daquelas repletas de manuscritos que não podem ser
repostos.
Esses anciãos guardavam conhecimentos científicos sobre plantas, animais, remédios, eram mestres em filosofias complexas e narradores respeitados das histórias de conexão. Esses conhecimentos, longe de constituírem uma lista enciclopédica a ser recuperada, eram indissociáveis de seus corpos, revelando-se em seus gestos, seu jeito de falar, narrar e andar. Diante de tal complexidade, a sua transmissão aos mais jovens requer um longo processo, baseado em intensa convivência e observação atenta, até que se sintam prontos para tomar a sua posição. Para muitos dos povos afetados, esse caminho foi abruptamente interrompido.
“Para o meu povo, perder uma pessoa mais velha é perder a memória da nossa existência enquanto povo. É como o Museu Nacional pegando fogo. Tem sido um desespero muito grande para nós, mais jovens. De um dia para outro, uma parte significativa do nosso conhecimento, das nossas vidas, se vai de uma forma violenta”, escreveu Angela Kaxuyana.
Abandonados pelo governo, sofrendo invasões de garimpeiros, madeireiros, grileiros e missionários em seus territórios, vetores dessa e de outras doenças, e longe de locais onde possam receber tratamentos adequados, vêm sofrendo mortes dolorosas, precedidas de longas esperas em filas de todos os tipos e da separação abrupta de seus parentes.
Abandonados pelo governo, os indígenas vêm sofrendo mortes dolorosas
O líder e ativista Amâncio Ikõ Munduruku foi levado doente para Itaituba, cidade mais próxima de sua comunidade, onde os únicos quatro leitos de uti disponíveis estavam ocupados. Dias se passaram até que conseguisse ser transportado para Belém, onde morreu. Outros indígenas não quiseram nem mesmo lutar pela internação, cientes do destino trágico que os esperava, e optaram por morrer em suas aldeias, entre os seus.
Com Amâncio partiram Feliciano Lana, do povo Desana, autor e artista plástico mundialmente conhecido; o líder e ativista Kayapó Bep’kororoti, conhecido como Paulo Payakã, que, como Ailton, teve importante papel nas negociações dos direitos indígenas da Constituição de 1988; o renomado chefe xinguano Aritana Yawalapiti; os professores e sabedores indígenas Higino Pimentel Tenório, do povo Tuyuka, Fausto Silva Mandulão, do povo Macuxi, Otávio dos Santos, do povo Sateré-Mawé; dentre muitos de uma longa lista que não tenho como reproduzir aqui.
“Faz algum tempo que nós da aldeia Krenak já estávamos de luto pelo nosso rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro luto.”
Nós aqui também estamos de luto com você, Ailton.
(Publicado originalmente no site da Revista dos Livros Quatro Cinco Um)