domingo, 31 de janeiro de 2021
sábado, 30 de janeiro de 2021
Nem hétero, nem homo: cansamos
Helena Vieira e Yuri Fraccaroli
Love, Joy Hester, 1949 (Foto: Reprodução)
Entre os últimos lampejos de 2020 e o começo deste ano, parte das redes sociais acompanhou com atenção o debate iniciado por Vladimir Safatle com o artigo “Não há heterossexuais”, prosseguido da réplica “Há homossexuais”, de Eduardo Leal Cunha e, finalmente, pela tréplica de Safatle, “Sobre a vivência concreta do sexual”, todos publicados pela Cult.
Antes de qualquer afirmação, é preciso enunciar que não pretendemos responder ou ingressar neste debate. Afinal, em briga de lacaniano, é melhor faltar. Tampouco sabemos se uma resposta seria possível em razão das gramáticas utilizadas, as posicionalidades envolvidas e os espaços historicamente construídos para aqueles que ousaram desafiar o lugar que lhes foi concedido na chamada “diferença sexual”. Escrevemos aqui desde a dissidência, posição essa que recusa o esquema réplica-tréplica, movendo-se, em contrário, para fora, para onde essa oposição nem sentido tem.
A curiosa ausência de autoras, autores, performances e movimentos sociais tão importantes para o desenvolvimento político e teórico das questões evocadas pelos textos, que, dentre eles, alguns até mesmo ascenderam ao status daquela que Foucault certa vez entendeu como a forma cultural mais legitimada no Ocidente, a filosofia, nos fez pensar sobre qual desejo e quais práticas mobilizam a escolha da primazia de autores como Freud e Lacan e, consequentemente, o espaço da clínica.
Contudo, dada a relevância do tema, sensivelmente implicado com questões como sexualidade, raça e (forçosamente) gênero; dada a peremptoriedade de certas afirmações, a definição de caminhos, as demandas por supostas novas gramáticas revolucionárias e um desacordo entre tantas (problemáticas) concordâncias, decidimos tratar desses assuntos a partir de outros lugares; dizer desde outras perspectivas, que até o momento não foram mobilizadas neste espaço. Acreditamos assim aportar argumentos mais próximos do que alguns dos sujeitos forçosamente interpelados por uma ideia de diferença sexual têm refletido sobre si mesmos.
Falemos, portanto, dos desejos e das autoras que mobilizam esta escrita de uma travesti e uma bicha, com nossas línguas de serpente e de fogo, como nos ensina Gloria Anzaldúa. Tal demarcação, não supérflua e nem demasiado identitária, é necessária para que não pensem que estamos loucas, afinal, falamos com gramáticas que podem lhes soar animalescas. Talvez possamos também soar estranhas, equivocadas ou incompreensíveis, já que por vezes podemos utilizar até mesmo as palavras e ideias de vossos pais-fundadores em sentidos cabalmente distintos aos que originalmente foram formulados.
Paul B. Preciado, em texto da comunicação que foi interrompida durante a 49º Jornada da Escola da Causa Freudiana, na França, em 2019, faz alusão a um conto de Kafka no qual o macaco Pedro Vermelho, uma vez capturado e transportado para a Europa, relata a necessidade de esquecimento de sua vida enquanto macaco, e a tentativa de dominar a língua humana para que pudesse se tornar um homem. Entretanto, como ressalta Preciado, esse processo não supõe qualquer ideia de emancipação ou libertação. Seria, pelo contrário, uma alegoria crítica ao humanismo colonial europeu. E aqui opera a identificação de Preciado com o macaco Pedro Vermelho: “Eu, como um corpo trans, como um corpo não binário, ao qual nem a medicina, nem a lei, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar com conhecimento especializado sobre minha própria condição, nem a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento sobre mim mesmo, aprendi, como Pedro Vermelho, a língua de Freud e Lacan, a língua do patriarcado colonial, a sua língua, e estou aqui para falar com vocês”.
Ao escutarmos Pedro Vermelho e/ou Preciado, entendemos que parte daquilo que pode ser compreendido como uma opressão heterossexual, longe de dizer respeito a questões de convivência ou tolerância, diz respeito à impossibilidade de comunicar-se senão nos termos da heterossexualidade, aspecto destacado por Monique Wittig. Nesse sentido, não há possibilidade de falar sobre sexualidade senão heterossexualmente. No que tange a presente discussão, isso significa dizer, ainda na esteira de Wittig, que esses discursos totalizantes, tais como “não existem heterossexuais” ou “existem homossexuais”, só podem ser enunciados desde o interior do regime heterossexual. A existência da heterossexualidade é a condição da possibilidade de quaisquer tentativas de negá-la – logo, são sempre frustradas, inócuas e contraditórias.
Portanto, não se trata de atestar a existência da heterossexualidade, nem da homossexualidade, ou seja, não se trata de uma questão de ordem ontológica, mas tecnológica. Em outros termos, algo que diz respeito ao funcionamento daquilo que em dado momento do tempo e da história convencionou-se chamar de heterossexualidade e, para além disso, dos efeitos dessas tecnologias na constituição do real, do mundo e dos sujeitos.
Partimos aqui da apropriação de esquema proposto por Gregory Bateson acerca dos problemas filosóficos. De acordo com o antropólogo, existiriam duas grandes ordens de problemas e questões para a filosofia: a primeira seria pautada pela busca da definição do que são as coisas, ou seja, tratar de suas realidades e existências (ontologia); a segunda versaria sobre como podemos conhecer o que as coisas são (epistemologia). Inspiradas por Gilles Deleuze e também por Donna Haraway, gostaríamos de acrescentar uma categoria à esquematização de Bateson, propondo que existe ainda outra categoria de problemas que se refere a como as coisas funcionam.
Nesse sentido, então, deslocamos a problemática do debate para como funciona a heterossexualidade, o que significa pensar a partir de quais práticas, discursos e técnicas esta se constitui, e também quais seus efeitos sobre os modos de vida e de viver e das relações de poder. Para isso, é preciso, em um grande esforço ficcional, retornarmos ao momento de criação dessa mitologia encarnada – ou, nas palavras de Jonathan Ned Katz, a estreia do heterossexual. A partir de registros e notas do doutor Richard von Krafft-Ebing, e também apostando nesse mesmo desafio ficcional, Katz trata de demonstrar a genealogia dos termos heterossexual e homossexual, e os efeitos que produzem tanto do ponto de vista do erotismo quanto da normalização de determinadas práticas e condutas.
É no interior da clínica médica que a heterossexualidade transforma-se em “sexualidade normal” e desenvolve um conjunto de práticas e prescrições que, em sua repetição, conformarão o sujeito heterossexual. Nesse sentido, vale destacar que antes do uso proposto por Krafft-Ebing, o termo heterossexual, como aquele utilizado pelo médico americano James Kiernan, tinha outra conotação, configurando um desvio do homossexual:
Aqueles heterossexuais eram associados a uma condição mental, hermafroditismo psíquico. Essa síndrome presumia que os sentimentos tinham um sexo biológico. Os heterossexuais sentiam a chamada atração física masculina por mulheres e a chamada atração física feminina por homens. Ou seja, aqueles heterossexuais periodicamente tinham inclinações para ambos os sexos. O hetero neles se referia não ao seu interesse por um sexo diferente, mas ao seu desejo por dois sexos”, escreveu Jonathan Ned Katz em 1996.
James Kiernam tratava tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade como desvios, e a ideia de uma sexualidade normal não era nomeada: tratava-se de instinto sexual, que tinha a finalidade deliberada da reprodução. A operação fundamental de Krafft-Ebing, na conformação do heterossexual como o normal, consiste em afirmar que o instinto sexual não precisa mais ser deliberadamente reprodutivo, a reprodução seria sua consequência. O instinto sexual buscaria algo como o prazer, sendo apenas virtualmente reprodutivo. Percebe-se explicitamente essa operação no relato de caso do sr. R., paciente do doutor Krafft-Ebing cuja “cura” passou pelo incentivo ao prazer sexual com mulheres. Nos processos clínicos de Krafft-Ebing não havia um apelo direto à reprodução, apesar disso, como ironicamente afirma Katz, seus tratamentos culminavam quase sempre em casamentos ou na descrição de sonhos com mulheres. Parece haver aqui a inauguração de um mundo subjetivo do desejo a ser corrigido e moldado até mesmo pelo próprio médico: “Eu considero o instinto heterossexual do paciente a criação artificial do seu excelente médico”.
Sobre esse aspecto é que Katz compreende o texto de Kraftt-Ebing como uma transição entre o espaço vitoriano e o moderno, tornando tal “diferença entre o sexos e os eros as características distintivas básicas de uma nova ordem social, linguística e conceitual do mundo”, oferecendo dois erotismos de sexo diferenciado, o ideal e o anormal.
Se a leitura de Katz traz a historicidade desses termos, acreditamos ser relevante destacar um aspecto não ressaltado pelo teórico americano, mas que aparece em basicamente todos os relatos de pacientes do Dr. Krafft-Ebing utilizados: a heterossexualidade não se restringiria ao desejo, mas também a um conjunto de atos sociais que produziriam um corpo adequado para esta forma sexual. Assim, a heterossexualidade comporia o universo das práticas de gênero.
É muito interessante considerarmos isso porque o discurso heterossexual emerge no século 19 junto com uma miríade de outros discursos de poder, na constituição daquilo que Foucault nomeou de dispositivo da sexualidade. Entre esses discursos, está a ascensão do modelo dimorfista. Ora, não é então a heterossexualidade que pressupõe uma natureza corporal binária preexistente, em que o acoplamento pênis x vagina seria como a máxima do desejo humano? Não existe nenhuma possibilidade de se pensar a heterossexualidade sem que a diferença sexual e a própria noção de sexo e gênero sejam evocadas, porque a heterossexualidade é tomada como natural, e não como escolha mainstream que estabiliza a naturalidade das posições homem x mulher.
Portanto, o desejo ou a ideia de uma sexualidade só é possível na matriz heteronormativa, como há trinta anos discutiu Judith Butler, pois a ideia mesma de sexualidade é forjada na invocação performativa de uma anterioridade natural do desejo, da reprodução e do próprio sexo: a ficção pré-discursiva. Nesse sentido, mobilizando a noção de performatividade de Butler, não se trata de identificar um sujeito heterossexual anterior que tomará parte em práticas que são exclusivamente heterossexuais, mas de um campo de disputa das práticas em que aquelas que são socialmente significadas como práticas heterossexuais produzem a existência mesma do sujeito heterossexual. É praticando a heterossexualidade que se torna heterossexual. O sujeito heterossexual é, portanto, uma ficção, mas uma daquelas que existem, como o Estado, o Poder ou o Povo. Sempre que discutimos tal tema, um amigo, o antropólogo Vitor Grunvald, lembra-nos do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:
O poeta é um fingidorFinge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente.
Assim como o poeta, que já não sabe mais o que é a dor que sente, a que finge e aquela que finge ao sentir – porque de tanto performar dores múltiplas, os limites entre aquilo que é original e o que é falso deixam de existir -, o sujeito heterossexual, em meio às tensões entre a interpelação do sistema sexo-gênero, sua limitada agência e as formas de sujeição que lhe possibilitam sua condição de sujeito, já não tem mais como enumerar o que lhe pertence ou não porque agora tudo existe, tudo produz efeitos no mundo e nos modos de subjetivação.
Como propõe Monique Wittig, a heterossexualidade é um regime político cujo alcance não diz respeito somente ao desejo ou mesmo à reprodução, ela ordena o funcionamento das instituições ao conceber, por exemplo, o Estado como Pai e a família nuclear como instituição mínima de nossas sociedades. Não apenas a heterossexualidade existe, como são os heterossexuais aqueles investidos de seu poder, como oficiais de justiça. Para além disso é importante considerar que a heterossexualidade como regime político é parte das forças que operam a colonização dos povos do Sul global, cujos corpos, desejos e formas de se relacionar são enquadrados. Indicamos para esta discussão, visto que não poderemos aprofundar o tema, a leitura de Gênero e colonialidade, da socióloga María Lugones.
Ainda em relação a tal concepção política da heterossexualidade, Preciado propõe que esta não seria apenas um regime de governo, mas também uma própria política do desejo. Ao indagar sobre as práticas que constituem este regime de governo, Preciado indica que seus modos de regulação não se dariam na forma da lei, mas por meio de regulação interna, sendo aqui o locus da mencionada política do desejo: “Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres”.
Gostaríamos ainda de insistir criticamente sobre a ideia de uma “vivência concreta do sexual” a despeito do quão vaga tal expressão possa nos ter parecido, assim propondo algo mais próximo a um exercício de tradução. Pensamos que o caráter concreto da experiência heterossexual se realiza, ou melhor, se explicita, na inumerável parafernália sexual de incitação à heterossexualidade, da representação pornográfica à telenovela, passando pela literatura, pela clínica psicanalítica, pelo romantismo, pelas representações da masculinidade (carros, barba, música, futebol) e da feminilidade (estética, esmalte, unhas pintadas e batom), ideais da heterossexualidade. Pensamos, portanto, que se não é possível apontar heterossexuais na rua é porque, como o azul do céu, eles constituem a paisagem e, desse modo, não é que lhes falte existência, é que eles simplesmente existem demais.
Não nos parece haver nada de subversivo em enunciar a inexistência do heterossexual; isso já foi feito pela medicina anterior a Krafft-Ebing, quando a sexualidade normal não carregava nome algum. É certo que nomear a norma é uma operação identitária, e que a noção mesma de identidade é violenta e obstaculiza a constituição de alianças. Entretanto, conforme a discussão de Butler em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, é este o paradoxo da sujeição: se a identidade nos limita, é preciso construir práticas que partam dela, algo que pode ser um excelente começo, mas um péssimo fim. Quando Preciado em “Carta de um homem trans ao antigo regime sexual” nos convida à desidentificação, isso não significa trocar de nomes ou desnomear, mas trocar de práticas. Desidentificar-se da heterossexualidade não significa rejeitar a alcunha heterossexual, mas engajar-se em práticas sexuais não-heterossexuais, não-reprodutivas, porque são as práticas que constituem os sujeitos, e não os nomes.
Tampouco entendemos que isso signifique teleologicamente demandar um processo político por “outras gramáticas” com base em um horizonte de indiferenciação no qual possamos encontrar “uma forma melhor e mais bela de falar de sexo”. Temos certos incômodos com essa posição, seja pela promessa do belo ou pelo apagamento de experiências e até mesmo pelas produções identitárias e linguísticas que constituíram e constituem outras gramáticas para além do vocabulário médico-jurídico, como há tempos já tratou o antropólogo Peter Fry ou como recentemente demonstrou o pesquisador Luiz Morando em Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte.
Mais uma vez evocando Preciado – não por predileção, mas talvez pela similaridade entre suas discussões no contexto francês e o que parece ser uma importação destas para o campo brasileiro -, é preciso afirmar: “Minha vida fora do regime da diferença sexual é mais bela do que qualquer coisa que vocês poderiam ter me prometido como recompensa por consentimento à norma.”
HELENA VIEIRA é escritora e pesquisadora do Núcleo de Políticas de Gênero da Unilab
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
Tijolaço: Tarcísio, o senhor Livro 7, morre de Covid 19
Hoje é um dia triste para os recifenses e pernambucanos. Amanhecemos com o anúncio da morte do senhor Tarcísio Pereira, da antiga Livro 7, a maior livraria do Brasil, que tanta alegrias e orgulho proporcionou aos brasileiros. Na Sete de Setembro, a Livro 7 era uma parada obrigatória para esse escriba, mesmo que fosse apenas para apreciar suas estantes, repletar de livros de todas as especialidades. A Livro 7 era de um tempo em que o chique era lanchar na Karblen, comprar o disco de vinil de Chico Buarque na Modinha, tomar uma cerveja com os amigos no Calabouço e, claro, comprar um livro na Livro 7, embalado, no início, num papel em branco, com a marca da livraria em cor preta. O grande Tarcísio morreu de complicações provocadas por esta maldita Covid-19. Nossos sentimento à família, em particular a sua irmã Suely, que manteve a chama acesa até o ultimo instante, consolando seus admiradores e admiradoras pelas redes sociais, sempre com uma mensagem de otimismo.
Num determinado momento, creio que ali pelas décadas de 70\80 parece que todas as outras instituições culturais do Recife convergiam para a livro 7. Faço essa conjectura para não cometer alguma injustiça com algumas delas. Eu, particularmente, fui conduzido àquele espaço através dos estudos no Centro de Artes e Comunicação da UFPE, onde convivi com professores, escritotes e poetas que para ali se dirigiam, principalmente aos sábados, atraídos por boas conversas, os últimos lançamentos de sua área de interesse, e, principalmente, pela famosa batida de maracujá, servida gratuitamente, segundo dizem, preparada pelo próprio Tarcísio.
Ali, mantive longas conversas com Gilvan Lemos, o pardal de São Bento do Una, assídio frequentador daquele espaço, sempre atendendo os pedidos dos estudantes que o procuravam para falar de sua obra. Arredio, morava sozinho, não gostava de dar entrevistas, mas não resistia a um pedido recomendado por mim, então um jovem estudante de letras, aluno aplicado do poeta Marcus Accioly, que ministrava Teoria da Literatura na UFPE. Confesso a vocês que não sei por quanto tempo ainda teremos que suportar os sofrimentos infringidos por essa doença, que retira do nosso convívio os parentes, os amigos, limita o convívio social e impõe-nos um momento de treva, atribulado, de muito medo. Um medo de tornar-se a próxima vítima. Que momento difícil, leitores.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2021
domingo, 24 de janeiro de 2021
A costura das coisas esquecidas: "Carta a Felini", de Valência Xavier
Quando O mez da grippe (Arte & Letra) foi publicado em meados de julho último, houve quem dissesse que a reedição do romance, original de 1998, era impulsionado pela pandemia de covid-19, que despontou com força no país em março. Apesar do editor Thiago Tizzot afirmar em entrevistas se tratar de uma “coincidência mesmo”, o fato é que a primeira edição depois de sua reimpressão em 2002 possivelmente será lembrada como aquela publicada num dos piores anos do resto de nossas vidas. Mesmo em cenário tão ruim, não me parece exagerado pensar a reedição como uma espécie de celebração de um dos mais instigantes autores contemporâneos brasileiros, Valêncio Xavier (1933–2008). É também um chamado para recolocar seu nome em jogo, dobrando o interesse pelos seus livros. A verdade é que ele não foi lido até hoje nem perto do que a sua obra merece. E aqui a palavra “obra”, aliás, merece ser entendida como expansiva, não apenas porque as teorias pós-estruturalistas assim sugerem, mas porque o autor em questão foi tudo, menos um escritor tradicional: utilizou um arsenal composto por literatura, fotografia, publicidade e cinema entre outros materiais. E é aqui que começa a minha proposição. Há pouco mais de 40 anos era lançado um dos trabalhos mais estranhos e originais de Valêncio Xavier, o filme Carta a Fellini: Caro signore Fellini (1979) feito por encomenda do então prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. Trata-se de uma espécie de vídeo promocional da capital do Paraná, endereçado a ninguém menos que o próprio cineasta italiano Federico Fellini, por razões que mais à frente serão abordadas. E aqui fico na dúvida se sugiro ao leitor que suspenda essa leitura e já veja com os próprios olhos do que eu quero falar (o filme está disponível no Youtube) ou aceite ser atravessado pela leitura que faço do curta-metragem.
Com sua literatura sempre caracterizada pela montagem, fragmentação e bricolagem e associada a temas como violência, morte e suspense, Valêncio Xavier, esse “artista-etc” nos termos do artista e crítico Ricardo Basbaum, também trafegou por outros gêneros sem contudo demonstrar preocupação em diferenciar procedimentos, como se de alguma maneira as manobras utilizadas fossem as mesmas e suas plasticidades só fossem notadas devido às mudanças dos aportes de produção escolhidos (cinema, fotografia, jornalismo, publicidade) — o que já acontece à revelia de qualquer produtor.
Além da efeméride refrescada mais de um ano depois, penso que não é forçado pegar carona também nos burburinhos iniciais em torno das comemorações dos cem anos do nosso Modernismo. Explico: parte da crítica não descarta que tenhamos ficado “presos” a certa ideia de Modernismo como se tudo o que veio depois, inclusive da geração de 1945, tivesse de ser devedor do movimento. Atados ou não a essa pecha não superada, e que deve sim ser analisada nos próximos anos com afinco, não é rara a afirmação de que autores contemporâneos (não poucos) herdaram um temperamento modernista. A propósito disso, o cineasta e crítico de cinema Eduardo Escorel, durante o seminário Releituras do Modernismo: O legado de 22 na cultura brasileira (em outubro de 2020), classificou Valêncio Xavier, “sem qualquer dúvida, como um modernista”. Escorel e Xavier foram amigos por longa data.
A partir das questões até aqui relatadas, a retomada do nome de Valêncio Xavier a partir da reedição de O mez da grippe, e das reflexões sobre o deslizamento do Modernismo para autores contemporâneos e, talvez mais que isso, sobre nossa própria modernidade, analiso Carta a Fellini como um empreendimento de profanação do país em plena virada dos anos 1970 para 1980. Digo isso considerando o olhar do presente também, porque, ao que parece, em 2021 não teríamos a menor chance de que um filme como aquele fosse usado como cartão de visitas ou filme-carta para conhecer Curitiba. Afinal, o que a película mostra é uma cidade muito distante da “República de Curitiba” que ocupa mídia e imaginário nos últimos anos, notadamente a partir da Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo, os problemas que aparecem há 40 anos, e que tinham destaque na órbita gravitacional do Modernismo de partida — a questão do nacional, do que é o Brasil, o subdesenvolvimento — e depois na geração dos anos 1980, aparecem agora de modo estranho (um nacional desfigurado, um retorno ao subdesenvolvimento em outra escala, estampado na cara das pessoas que circulam pelo filme).
Na contramão do que seria um filme institucional, Carta a Fellini problematiza o país a partir de Curitiba, focalizando o diálogo entre o popular e o erudito, fazendo o trânsito entre o coletivo e o anônimo e dialogando, é claro, com o cinema de Federico Fellini, inspiração que arrebata paranaenses até hoje. Sem fazer uso de teorias de cinema, mas relendo a crítica à obra do autor e atenta às questões de representação, minha leitura caminha para propor o filme de Xavier não apenas como uma provocação estética, um filme de arte para outros usos, mas um exemplar de uma espécie de paródia da nossa não superação. O filme é um alerta do que temos ao alcance das mãos, mas que, enquanto projeto de nação, nos interessa esquecer: certos tipos sociais, algumas expressões da nossa cultura. É na matéria de descarte que o curta-metragem cresce e incomoda o espectador. É “a costura de coisas esquecidas”, expressão surrupiada de um texto do jornalista e editor Cassiano Elek Machado, a matéria de Valêncio Xavier neste filme, nos seus livros, e podemos dizer na sua obra como um todo.
Em se tratando da forma, Carta a Fellini também poderia ser um dos livros-álbuns do escritor, seja pelo procedimento adotado, seja pelo modo como o autor-cineasta trabalha a linguagem. No ensaio Ficção 80, a crítica Flora Süssekind situa Valêncio Xavier entre os exemplos pós-literatura parajornalística praticada durante a ditadura militar. Lembramos que 1978 é o ano em que os censores deixam as redações dos jornais e, a partir daí, a imitação da reportagem sai de cena, cedendo lugar ao romance policial. Mas o que importa na reflexão de Süssekind e que ainda funciona para ler e assistir Valêncio Xavier nos dias de hoje são algumas características que marcaram uma tomada de posição pela autoria dos anos 1980. Parte dela está pactuada com a teatralização da linguagem do espetáculo e tem a “superexposição da vitrine” como mola propulsora. Isso significa dizer que em vez de ficções que focalizam a prosa do eu e o memorialismo, o que teremos em vista é o anonimato na vitrine. Um anonimato em primeiro plano — mas, como adverte a crítica, com forte interferência da mídia. Valêncio Xavier exemplifica como ninguém esse comportamento ao fazer do curta-metragem “promocional” um anúncio envidraçado de tipos populares, personagens anônimas, elementos da cultura do Paraná: a araucária, a Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe e o teatro de bonecos, por exemplo.
Estante: Fred Coelho, Laura Erber, Edith Södergran
O escritor, pesquisador e professor Frederico Coelho, que lança biografia de Jards Macalé pela Numa Editora (Foto: Divulgação)
Toda semana, uma
seleção de lançamentos
curados pela Cult
[Jards Macalé: eu só faço o que quero, Fred Coelho]
“O nome Jards Macalé deve nos remeter à melhor tradição do compositor popular: aquele que, ao invés das sombras, sempre esteve no palco cantando”. Neste ensaio biográfico, o escritor, pesquisador e professor Fred Coelho busca “ampliar uma historiografia que faz dessa obra riquíssima uma pálida presença”. O autor mostra a vida, a obra e o tempo de Macalé para além dos rótulos que sempre o acompanharam – maldito, marginal, anárquico, rebelde – com o desejo de que os leitores o vejam como um dos artistas fundamentais da canção brasileira.
Numa, 500 páginas, R$83
[O artista improdutivo, Laura Erber]
Nesta coletânea de treze ensaios escritos entre 2015 e 2020, a escritora e artista visual Laura Erber observa a relação entre arte e política a partir de biografias de artistas como Tunga, Rosana Paulino e Anna Bella Geiger, e de discussões como monumentos e pixações no espaço urbano. O último ensaio, que dá nome à obra, discute o lugar do trabalho na sociedade, na arte e no mercado artístico contemporâneo ao passear por temas como o ócio, o produtivismo e a mercantilização do imaterial. Erber é autora também dos livros Os corpos e os dias (De Cultura), Ghérasim Luca ( EdUERJ) e Esquilos de Pavlov (Alfaguara).
Ãyiné, 180 páginas, R$89
[Racismo, Douglas Rodrigues Barros]
Por que ainda há pessoas que creem não haver racismo no Brasil? O escritor e doutor em Ética e Filosofia política pela Unifesp Douglas Rodrigues Barros desmistifica lugares comuns sobre a questão racial no Brasil, como a ideia de que, por aqui, se tenha alcançado a miscigenação pacífica entre as raças. “A repetição acrítica dessa noção oculta o processo radical de violência da miscigenação e do Estado policialesco no Brasil que dizima anualmente milhares de negros e indígenas”, escreve. Barros é também autor dos livros Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial (Hedra).
Fibra, 130 páginas, R$55.
[Atenções esparsas, Edith Södergran]
Lançado originalmente em 1919, logo após a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, o livro reúne aforismos de Edith Södergran, uma das maiores poetas nórdicas e precursora do modernismo nessa literatura. Nos textos, a autora se depara tanto com o horror quanto com a possibilidade de um mundo novo. A edição brasileira traz ainda o que é considerado o primeiro manifesto modernista da literatura nórdica, escrito por Södergan e enviado para um jornal em formato de carta.
Usina, 86 páginas, R$40,00. Tradução de Cecília Schuback.
[Menino de ouro, Claire Adam]
Na zona rural de Trinidad e Tobago, os gêmeos de 13 anos Paul e Peter vão todo dia à capital, Port of Spain, para estudar. Peter é o “gênio” da família, e Paul é visto como esquisito. Sob ameaças de que se não se comportasse seria enviado a um hospício, Paul um dia desaparece depois da escola – e a busca do pai para encontrá-lo o leva por um caminho de escolhas impossíveis. O romance de Adam, nascida em Trinidad e Tobago, entrou na lista da BBC como um dos cem romances mais influentes de 2019.
Todavia, 272 páginas, R$67. Tradução de André Czarnobai.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)