Como já afirmamos em outras ocasiões, uma das coisas que mais nos felicitam neste blog é o contato com os leitores. Outro dia recebemos através do formulário de contato uma mensagem muito interessante de uma senhora que nos pedia alguns esclarecimentos sobre um determinado texto, este publicado no site de pesquisa escolar que mantemos. De fato, percebia-se claramente a sua grande dificuldade de compreensão do que havia sido escrito, possivelmente em razão de uma pouca instrução.Enviei dezenas de e-mails para ela, até ao ponto onde nos pareceu que a cidadã havia, de fato, compreendido bem o texto. Uma das nossas maiores frustrações, reconheço, são a ausência de comentários aos textos, hoje cada vez mais raros. Pelo que conseguimos apurar, salvo algumas exceções, parece ser uma tendência. Com o nosso blog, está ocorrendo um fenômeno curioso. É cada vez maior o acesso de leitores estrangeiros. Durante aqueles dias sombrios para a nossa democracia - quando se urdia um golpe contra a presidente Dilma Rousseff - era a Rússia quem mais nos prestigiava, possivelmente leitores atentos a uma leitura que se contrapusesse à farsa da mídia apoiadora daquela engrenagem que moía contra o Estado Democrático de Direito. Assim que o processo concretizou-se, os EUA passaram a ser hegemônicos no acesso ao blog. Não fico triste, pois sei que as recentes derrotas infligidas às sandices do presidente Donald Trump é um indicador de que há gente de muito equilíbrio por ali. Isso fica bem claro pelas postagens acessadas, todas tratando do golpe institucional recentemente materializado no país. Mas não são apenas os americanos que nos brindam com as suas visitas. Nos últimos dias, os leitores poloneses passaram a nos prestigiar, além dos suecos, conforme dados de rastreamento da plataforma blogger. Sejam muito bem-vindos! Até as 18:00 horas, eram estes os números. Um bom final de semana a todos.
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Não demora e eles assumem a dianteira! Estatísticas do dia 18/02/2017
Quando o “muro do Berlim” ruiu, talvez apressadamente
demais, houve uma onda de euforia neoliberal que pretendeu retificar a história
contemporânea, extirpando dela as páginas dedicadas à experiência socialista.
Numa leitura canhestra – influenciada por Alexandre Kojeve- da filosofia da
História de Hegel, apareceu um profeta nissei
chamado Francis Fukuyama que prognosticou o fim da História, com isso
querendo dizer que a democracia liberal
e a economia de mercado eram o ponto final da evolução política e social da
humanidade. Como disse então Eric Hobsbawn, aquela era uma profecia de vida
muita curta, logo depois veio a guerra do Golfo e a roda da História continuou
a girar.
Agora, apareceu no Brasil um estadista de Belo Jardim cuja
primeira medida é o fim da História, outra vez. O que tem certos políticos
para acertar logo a História, quando
detém um pouco de poder nas mãos? – Numa leitura freudiana, o gesto poderia ser
interpretado como o assassinato simbólico dos professores de História do atual
ministro. Lembre-se que ele manteve uma polêmica azeda com seus mestres, na
época da Escola Parque do Recife,
chamando-os de “subversivos”. É como se vingasse deles, agora, retirando a
disciplina do currículo do ensino médio. Mas essa seria uma interpretação rasa,
superficial.
A retirada da obrigatoriedade do ensino de História, no
ensino médio, faz parte de um plano arquitetado pelo lobby dos empresários do
ensino, interessados no aligeiramento do perfil do alunado. Para esses
“educadores pragmáticos” a História não tem a menor serventia para a formação
de uma força-de-trabalho barata e dócil, destinada a um mercado de locação de
serviços desregulamentado. Como, aliás, a Filosofia, a Sociologia e as Artes.
Para que tanta coisa (a formação humanística), quando se trata de produzir
“massa de manobra” para a exploração desse capitalismo (rentista) selvagem? –
Deixa para os filhos da burguesia, da alta classe média, dos herdeiros dos
grandes impérios industriais, que precisam sim de uma formação integral,
ampliada, de perfil crítico, inventivo. E que podem pagar – caro – por isso. É
o reforço da divisão social entre quem manda e quem obedece. Quem tem e quem não
tem capital social, capital simbólico, capital intelectual.
A história já foi prisioneira de inúmeras práticas discursivas.
A mais conhecida é a história genealógica, de Nietzsche e Foucault. A história,
como mera racionalização de uma vontade de poder ou de potencia. Mas ela não só
serve para isso. A história é vida e não um cadáver embalsamado para
contemplação de eruditos. A história é o domínio dos possíveis, da
virtualidade, daquilo que ainda não é, mas pode vir a ser. É essa a concepção
de História que precisamos. Não a história antiquária, ou a da erudição balofa
e vazia. Não a história como racionalização da epopeia do vencedor. A história
que está viva é a história das nossas utopias, dos nossos sonhos, dos projetos
de alteridade social. Essa história nenhum avicultor poderá matar ou suprimir.
Pode reescrever ao sabor de suas conveniências políticas. Mas ela sempre
viverá, como ideia reguladora, a guiar o ideal de
justiça, de beleza, de verdade dos homens e mulheres de boa vontade.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE. Texto produzido em co-autoria com Moisés Peixoto, mestre em História e docente da Rede de Ensino de Roraima.
Rubens R. R. Casara é Juiz de Direito do TJRJ, doutor em direito, mestre em Ciências Penais, professor universitário, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo Freudiano. Autor de Mitologia Processual Penal (Saraiva, 2015) e de Processo Penal do Espetáculo – Ensaios sobre o poder pena, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira (Empório do Direito, 2015).
Ao se falar em Estado Democrático de Direito, por evidente, se evoca, em termos weberianos, um “tipo ideal” de Estado que tem como principal característica a existência de limites legais ao exercício do poder. Na realidade, o Estado concreto, para além dos idealismos, mesmo que aposte na lei e no direito para evitar abusos, convive sempre com uma margem de ilegalidade produzida por particulares e, principalmente, pelo próprio Estado. Isso porque, ao contrário do que muitos sustentam, é o poder político que estabelece e condiciona o direito. Condicionado, o direito acaba afastado sempre que necessário à realização do poder, de qualquer poder. Há manifestações de poder que escapam da legalidade, porque ao longo da história, e Marx já havia percebido isso, a legalidade esteve (quase) sempre a serviço do poder e sua função se limitava a legitimar “a lei do mais forte”.
O que há de novo não é a violação dos limites ao exercício do poder. Em razão da mercantilização do mundo, da sociedade do espetáculo, do despotismo do mercado, do narcisismo extremo, da reaproximação entre o poder político e o poder econômico, do crescimento do pensamento autoritário, se perdeu qualquer pretensão de fazer valer esses limites, que hoje existem apenas como um simulacro, como um totem que faz lembrar conquistas civilizatórias que já existiram, mas que hoje não passam de lembranças que confortam. Mais do que a violação de limites, o que caracteriza a chamada pós-modernidade é a total desconsideração, ou mesmo a ausência, dos limites, que um dia foram pensados, ao poder.
Notes to Basquiat, Gordon Bennett, 2001.
Por “pós-democrático”, a falta de um nome melhor que no futuro servirá para designar o atual modelo de Estado, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. O ganho democrático que se deu com o Estado moderno, nascido da separação entre o poder político e o poder econômico, desaparece na pós-democracia e, nesse particular, pode-se falar em uma espécie de regressão pré-moderna. Está em vigência uma espécie de absolutismo de mercado.
Pós-democrático, para dar nome à hipótese de que o Estado Democrático de Direito foi superado por um Estado sem limites ao exercício do poder, vai ao encontro da afirmação de Pierre Dardot e Christian Laval de que “o neoliberalismo está levando à era pós-democrática”. De fato, o “pós-democrático” é o Estado compatível com o neoliberalismo, com a transformação de tudo em mercadoria. Um Estado que para atender ao ultraliberalismo econômico necessita assumir a feição de um Estado Penal, de um Estado cada vez mais forte e voltado à consecução dos fins desejados pelos detentores do poder econômico. Fins que levam à exclusão social de grande parcela da sociedade, o aumento da violência (não só da violência física, que cresce de forma avassaladora, como também da violência estrutural, produzida pelo próprio funcionamento “normal” do Estado pós-democrático), a inviabilidade da agricultura familiar, a destruição da natureza e o caos urbano, mas que necessitam do Estado para serem defendidos e legitimados.
Não há, ao contrário do que sustentam os discursos de viés liberal dos que estão satisfeitos com o Estado Pós-Democrático, a diminuição da intervenção estatal na vida da sociedade. Ao contrário, o Estado Pós-Democrático revela-se um Estado forte e, possivelmente, o Estado menos sujeito a controle desde a criação do Estado Moderno.
Na pós-democracia, o político torna-se, como desejava Carl Schmitt em 1932, o mero espaço da dicotomia amigo e inimigo. Essa diferenciação política entre amigo e inimigo tem a função de caracterizar o extremo grau de intensidade da adesão e funcionalidade à razão neoliberal. No Estado Pós-Democrático, a diferenciação exclusivamente política, já que desaparecem as funções que constituíam o “braço esquerdo” do Estado (tais como as políticas inclusivas e de redução da desigualdade), é a diferenciação entre “amigo” do mercado e “inimigo” do mercado, este último será o individuo indesejável sobre o qual recairá o poder penal.
Notes to Basquiat, Gordon Bennett, 2001.
Em apertada síntese, pode-se afirmar que o estado capitalista para sobreviver exigiu em diferentes quadras históricas o Estado Liberal de Direito, o Estado Social de Direito, o Estado Fascista, o Estado Democrático de Direito e, agora, o Estado Pós-Democrático. Para tornar-se hegemônico e superar definitivamente o Estado Absolutista, o projeto capitalista exigiu um Estado regulado por leis, em que prevalecia a ideia de separação entre o Estado e a sociedade civil (a sociedade civil, locus da atividade mercantil, espaço vedado para o Estado), no qual a propriedade e a liberdade (entendida como liberdade para adquirir e possuir sem entraves, liberdade originária de onde derivariam todas as outras liberdades) eram compreendidos como os dois principais direitos fundamentais do indivíduo e no qual o significante “democrático” aparecia para frisar a oposição em relação ao princípio monárquico do Estado absolutista. Com o agravamento da situação econômica de grande parcela da população, o aprofundamento dos conflitos sociais e a ameaça corporificada nas experiências socialistas, somados à perda da confiança no funcionamento concreto da “mão invisível” e das “leis naturais” do mercado, o Estado de Direito Liberal foi gradualmente substituído por um Estado Social de Direito que nasce como uma solução de compromisso entre os defensores do status quo e os que lutavam por transformações sociais (têm razão os que apontam o efeito mistificador e ideológico do Estado Social, que se revelou capaz de frear os ímpetos dos movimentos revolucionários e os protestos das classes não capitalistas). Como afirma Avelãs Nunes, tratou-se da primeira tentativa de substituir a “mão invisível” da economia pela mão invisível do direito. No modelo do Estado Social de Direito, em que se percebe uma certa prevalência do político sobre o econômico, o Estado assume a função de realizar a “justiça social”, assegurar o pleno desenvolvimento de cada um e concretizar o projeto de vida digna para todos (princípio da dignidade da pessoa humana). Porém, em um quadro de crise econômica profunda, no qual a debilidade da economia nos países capitalistas não permitia minimamente a realização das promessas do Estado Social, com os detentores do poder econômico sedentos por aumentar os seus lucros, o projeto capitalista teve que assumir a forma de um Estado Fascista, anti-democrático e anti-socialista, que apostava em resposta de força para manter a ordem e resolver os mais variados problemas sociais, na medida em que incentivava a ausência de reflexão. O Estado Fascista era um estado de direito, mas o direito fascista não representava um limite ao arbítrio e à opressão. Com a derrota política e militar dos Estados Fascistas, o projeto capitalista retoma a aposta em um modelo de Estado marcado pela existência de limites ao exercício do poder, dentre os quais destacam-se os direitos fundamentais. A aposta, porém, revelou-se equivocada, na medida em que os direitos fundamentais passaram a constituir obstáculos inclusive ao poder econômico. Com isso, a razão neoliberal, nova forma de governabilidade das economias e das sociedades baseada na generalização do mercado e na liberdade irrestrita do capital, levou ao Estado Pós-Democrático de Direito.
O Estado Pós-Democrático assume-se como corporativo e monetarista, com protagonismo das grandes corporações (com destaque para as corporações financeiras) na tomada das decisões de governo. Como apontou Vandana Shiva, uma “democracia” das grandes corporações, pelas grandes corporações, para as grandes corporações. Um governo que se põe abertamente a serviço do mercado, da geração de lucro e dos interesses dos detentores do poder econômico, o que faz com que desapareça a perspectiva de reduzir a desigualdade, enquanto que a “liberdade” passa a ser entendida como a liberdade para ampliar as condições de acumulação do capital e a geração de lucros. Na pós-democracia, a liberdade intocável é apenas a que garante a propriedade privada, a manutenção de “próteses de pensamento” (Marcia Tiburi) capazes de substituir cidadãos por consumidores acríticos (televisores, smartphones, etc.), a acumulação de bens, os interesses das grandes corporações e a circulação do capital financeiro.
Na pós-democracia o significante “democracia” não desaparece, mas perde seu conteúdo. A democracia persiste como uma farsa, uma desculpa para o arbítrio, como uma senha que autoriza o afastamento de direitos. Em nome da “democracia”, na pós-democracia rompe-se com os princípios democráticos. A democracia torna-se vazia de significado, o que guarda relação com o “vazio do pensamento” inerente aos modelos em que o autoritarismo acaba naturalizado. Não por acaso, tal como o fascismo clássico (que ainda tinha preocupações sociais), o neoliberalismo, a racionalidade neoliberal, que permitiu o surgimento do Estado Pós-Democrático, também pode ser apresentado como um “capitalismo sem luvas”, um “estágio do capitalismo mais puro” (Mandel), sem direitos democráticos e nem resistência, próprio de uma época em que as forças empresariais e financeiras, maiores e mais agressivas do que em qualquer outra época, normatizaram seu poder político em todas as frentes possíveis, tanto em razão da crença no uso da força que se materializa a partir do poder econômico quanto da ausência de reflexão, que permite a dominação a partir de mensagens passadas pelos meios de comunicação de massa, pela “indústria das relações públicas” (Chomsky), pelos intelectuais orgânicos a serviço do capital e por outras instâncias que fabricam as ilusões necessárias para que o neoliberalismo e o Estado pós-democrático pareçam desejáveis, racionais e necessários.
Outra característica marcante do Estado Pós-Democrático é o esvaziamento da democracia participativa, que se faz tanto pela demonização da política e do comum quanto pelo investimento na crença de que não há alternativa para o status quo. Mas, esse esvaziamento não se dá apenas com a construção de uma subjetividade avessa à política. Na pós-democracia, as eleições são uma fraude, um jogo de cartas marcadas, no qual os detentores do poder econômico não só “compram” representantes (doações eleitorais que significam verdadeiros investimentos) como ainda guardam um trunfo para situações excepcionais, tais como, por exemplo, um resultado indesejado no processo eleitoral: a derrubada de governos legitimamente eleitos. Isso se deu no Chile em 1973, laboratório das políticas neoliberais, em que se produziu a desestabilização e derrubada do governo eleito em nome da estabilidade (leia-se: o atendimento dos interesses dos detentores do poder econômico, em especial das grandes empresas estrangeiras). Não há mais, portanto, um modelo de Estado no qual exista efetiva participação popular na tomada das decisões políticas, isso diante do risco sempre presente de que a vontade popular não atenda à razão neoliberal. Aliás, a participação popular na tomada de decisões torna-se acidental, como demonstram os processos políticos que levaram à queda de Lugo no Paraguai e de Rousseff no Brasil.
Notes to Basquiat, Gordon Bennett, 2001.
O próprio consentimento dos governados revela-se um embuste, um fenômeno fabricado e artificial, na medida em que o eleitor não dispõe de informações para decidir e ainda acaba submetido a mecanismos que produzem o direcionamento do voto a partir do “controle da opinião pública”, tais como as milionárias campanhas de marketing político e o “jornalismo” partidário e corporativo, sem compromisso com a verdade.
Mas, não é só. Também desaparece qualquer esforço dos agentes estatais no sentido da concretização dos direitos e garantias fundamentais. A “dimensão material da democracia” (Ferrajoli) deixa de ser uma preocupação do Estado, em especial porque o respeito aos direitos e garantias fundamentais, o que exigiria inações e ações do Estado nas mais diferentes áreas (trabalho, meio ambiente, educação, etc.), não raro, se choca com os interesses dos detentores do poder econômico.
Com o esvaziamento da democracia participativa e o abandono do projeto de concretização dos direitos fundamentais (típico do Estado Democrático de Direito), coroa-se o “processo de desdemocratização” (Dardot e Laval), no qual a substância da democracia desaparece, sem que se dê a sua extinção formal. Essa casca, esse verniz democrático, persiste, apenas por ser funcional ao projeto político que levou à superação do Estado Democrático de Direito. Na “pós-democracia” o que resta da “democracia” é um significante que serve de álibi às ações necessárias à repressão das pessoas indesejadas, ao aumento dos lucros e à acumulação.
A pós-democracia une os dois otimismos imbecilizantes que serviram à domesticação das populações do campo capitalista, capitaneado pelos Estados Unidos da América (EUA), e do campo do chamado “socialismo real”, protagonizado pela antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O otimismo da “ideologia do êxito”, em especial na sua versão que prega a meritocracia (que poderia ser resumida na ideia-chave “fique tranquilo, se você fizer por merecer, alcançara o êxito e teus sonhos) e o otimismo da “ideologia do Estado total” (que se encontra na ideia-chave “fique tranquilo que o Estado, justamente por ser Total, sabe o que é melhor para você e, mesmo que para isso seja necessários restringir os teus direitos e teus sonhos, buscará o teu bem”). Esse otimismo “qualificado”, que mistura o pior que há nas ideologias que sustentaram a guerra-fria, é o que está a justificar que o mesmo Estado se apresente omisso no jogo predatório econômico (ultraliberalismo) e agigante-se no controle social, em especial na repressão, sempre seletiva e politicamente direcionada, da população (Estado Penal).
O Brasil, por exemplo, em que o “liberalismo” conviveu com a “escravidão”, por vários anos, hoje apresenta uma nova variação de Estado liberal-autoritário: um Estado Pós-Democrático, isso porque sem qualquer compromisso com a concretização de direitos fundamentais, com o resultado de eleições, com os limites ao exercício do poder ou com a participação popular na tomada de decisões. Como no início do século XIX, em que o liberalismo se instaurou no Brasil adaptando-se sem dificuldade a uma realidade marcada pela escravidão, pela mediação do “favor” e pela pessoalidade, o neoliberalismo e a pós-democracia convivem sem constrangimento, em todo mundo, com a coerção e a restrição a direitos em nome do mercado e das corporações.
A pós-democracia, então, caracteriza-se pela transformação de toda prática humana em mercadoria, pela mutação simbólica através da qual todos os valores perdem importância e passam a ser tratados como mercadorias, portanto disponíveis para uso e gozo seletivo, em um grande mercado que se apresenta como uma democracia de fachada. Se o liberalismo clássico buscou legitimidade através do discurso que pregava a necessidade de limitar o poder dos reis, o neoliberalismo aponta para a necessidade de acabar com todos os limites ao exercício do poder econômico. Com o desaparecimento de limites efetivos ao exercício do poder, em nome da lógica do mercado, instaura-se a pós-democracia.
Mercadoria, por definição, é um bem, mas nem todo bem é (ou era, antes da pós-democracia) uma mercadoria. As mercadorias são bens com valor de troca, bens produzidos para serem negociados e, assim, gerarem lucro. Não por acaso Marx, escolhe a mercadoria como ponto de partida para sua principal obra. Para ele, nas sociedades em que vigora o modo de produção capitalista, a riqueza das sociedades “aparece como uma enorme coleção de mercadorias”. A mercadoria tem um valor de uso e um valor de troca. Ela sempre se volta à satisfação de uma necessidade ou de um desejo, por isso as pessoas dão algo em troca da mercadoria, isto é, todas as mercadorias são comensuráveis na troca. Todos, independentemente da raça, crença, gênero ou classe, relacionam-se com mercadorias. Nas palavras de David Harvey, a “forma-mercadoria é uma presença universal no interior do modo de produção capitalista” e, o ato de comprar uma mercadoria pode ser tido como o ato fundador da sociedade capitalista.
Com a ascensão da razão neoliberal e o estabelecimento do Estado Pós-Democrático, o mercado sempre importante na sociedade capitalista foi elevado à principal regulador do mundo-da-vida. O mercado tornou-se o eixo orientador de todas as ações, uma vez que seria o núcleo fundamental responsável por preservar a liberdade econômica e política. Os bens, as pessoas, os princípios e as regras passaram a ser valorizados apenas enquanto mercadorias, isto é, passaram a receber o tratamento conferido às mercadorias a partir de seu valor de uso e de troca. Deu-se a máxima desumanização inerente à lógica do capital, que se fundamenta na competição, no individualismo e na busca do lucro sem limites.
No discurso neoliberal, o problema da liberdade se coloca e se resolve através do mercado, no reino da economia. Para Friedman, por exemplo, só existem dois modos de organização social (e coordenação das atividades econômicas): o mercado e o Estado. O mercado, entendido como a forma não coercitiva de organização social baseada em transações bilaterais e voluntárias, que se dão entre pessoas igualmente informadas e incapazes de controlar os preços dos bens e serviços envolvidos, seria o “berço da liberdade”, enquanto o Estado seria tendencialmente autoritário, com potencial de sufocar as liberdades individuais, o “berço da opressão”.
Porém, para além do mercado idealizado (idealismo fantástico) das teorias de Friedman, Hayek, Mises, Eucken, dentre outros, existe o mercado real, aquele que realmente condiciona o mundo-da-vida nas sociedades capitalistas. Nesse “mercado” existem várias formas de coerção e os negócios se dão em detrimento dos direitos fundamentais. O mercado real revela-se baseado em transações nem sempre voluntárias envolvendo pessoas desinformadas e desiguais, algumas capazes de manipular o sistema de preços (que funcionaria, na teorização liberal, como o nervo cibernético do mercado, com a função, no plano ideal, de impedir injustiças, incentivar empresários e trabalhadores, dispersar o poder econômico, etc), incapaz de impedir a concentração do poder econômico. Assim, ao invés da propalada dinâmica libertária, o neoliberalismo levou a mais uma espécie de despotismo, uma ditadura do mercado, em que se dá a imposição coercitiva – e o Sistema de Justiça Criminal serve a essa coerção – das leis de mercado.
Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder: os direitos e garantias fundamentais também são vistos como mercadorias que alguns consumidores decidem como usar ou descartar. Da mesma maneira que judeus se converteram ao cristianismo para escapar da inquisição (os “cristão-novos”), direitos e garantias foram transformados em mercadoria (“mercadorias-novas”) em nome do neoliberalismo, um fundamentalismo que só não pode ser tratado como “religião” porque nele não há espaço para o perdão e a expiação, posto que a fé neoliberal só reconhece a existência de dívidas e culpas. Como já se viu, e exemplos históricos não faltam, a própria representação política, base da concepção formal de democracia, não precisa ser respeitada, isso em razão do desaparecimento dos limites éticos e legais para o afastamento dos governantes e parlamentares eleitos através do voto popular.
Se na vida econômica há o reforço de tendências à desigualdade (e certas diferenças são autorizadas e cultivadas em razão do seu potencial mercadológico) e ao desequilíbrio, no campo das liberdades públicas, as inviolabilidades tornam-se também cada vez mais seletivas. Apenas o domicílio de alguns é inviolável, como demonstram os mandados de busca e apreensão “coletivos” – que, em contrariedade à lei, não individualizam os imóveis ou as pessoas que acabam por se tornar objetos da ação estatal – expedidos para serem cumpridos em favelas ou em ocupações de trabalhadores rurais sem terra; apenas a liberdade de alguns é inviolável, como revelam prisões desnecessárias ou conduções coercitivas em desconformidades com os requisitos legais; apenas a intimidade de alguns é inviolável, como se percebe dos vazamentos seletivos de interceptações telefônicas; apenas a integridade física de alguns é inviolável, como mostram as agressões aos manifestantes que defendem posições contrárias aos dos detentores do poder econômico; apenas a liberdade de expressão de alguns é inviolável, como sabem aqueles que são perseguidos por motivação ideológica e processados pelo que dizem; etc.
O Poder Judiciário na pós-democracia deixa de ser o garantidor dos direitos fundamentais (função que deveria exercer mesmo que para isso fosse necessário decidir contra maiorias de ocasião), para assumir a função política de regulador das expectativas dos consumidores. O direito, por sua vez, deixa de ser um regulador social para acabar transformado em mais um instrumento para o mercado, ele mesmo transformado em mercadoria, o cidadão em consumidor, a alteridade e, em consequência, o diálogo (o verdadeiro diálogo, que nada se parece com os “acordos” extorquidos a partir da instrumentalização da liberdade ou com os falsos consensos produzidos em “delações premiadas” e demais institutos da chamada “justiça consensual”) são negados, enquanto a diferença e os conflitos capazes de gerar lucros são incentivados.
Notes to Basquiat, Gordon Bennett, 2001.
Por um lado, a pós-democracia induz à produção massificada de decisões judiciais, a partir do uso de modelos padronizados, chavões argumentativos e discursos de fundamentação prévia (fundamentações que já existem antes mesmo da decisão e que se revelam distanciadas da facticidade inerente ao caso concreto), tudo como forma de aumentar a produtividade, agradar parcela dos consumidores, estabilizar o mercado (leia-se: proteger os lucros dos detentores do poder político), exercer o controle social da população e facilitar a acumulação. Essa lógica eficientista, que atende a critérios contábeis e financeiros, na qual a busca de efeitos adequados à razão neoliberal afasta qualquer pretensão da atividade jurídica voltar-se à realização dos direitos e garantias fundamentais (efetividade constitucional), acaba incorporada pelos atores jurídicos, não só por questões ideológicas, mas também como fórmula para assegurar vantagens nas respectivas carreiras. Atores jurídicos que não seguem a lógica do mercado e nem atuam a partir de uma subjetivação contábil e financeira, não raro, enfrentam perseguições ideológicas através de processos nas corregedorias e dificuldades para promoções.
De outro, o Poder Judiciário passa a gerir/dirigir julgamentos que passam a seguir a lógica própria aos espetáculos, voltados à satisfação dos espectadores (também consumidores) do sistema de justiça. No espetáculo, como mercadoria, não há espaço para nada a não ser agradar ao consumidor.
Tanto na hipótese da produção massificada (em que não há espaço para controles finos acerca da justeza das decisões) quanto na dos processos-espetáculos (em que o importante é agradar aos espectadores), os direitos fundamentais (que, antes, serviam como gramática positivada dos direitos humanos e estratégia de realização da dignidade da pessoa humana) tornam-se descartáveis, tais como qualquer outra mercadoria. Em espetáculos para audiências autoritárias (e a sociedade brasileira está inserida em uma tradição autoritária), os direitos fundamentais passam a ser demonizados (isso, em grande parte, com o auxílio dos meios de comunicação de massa que constroem a imagem da “boa justiça” associada à repressão e uso da força em detrimento do conhecimento e das práticas restaurativas) enquanto que os discursos e práticas autoritárias tornam-se mercadorias atrativas.
Com o desaparecimento do valor “justiça”, a palavra retorna para nomear algo que não passa de um produto, de uma mercadoria sem forma ou conteúdo estável, sem conexão com projeto constitucional de vida digna para todos. Uma mercadoria oferecida por mercadores especializados, que moldam a “justiça” ao gosto da opinião pública (a opinião do auditório em que se encontram os consumidores, com suas necessidades reais e artificiais), mesmo que para isso seja necessário suprimir direitos ou reforçar preconceitos e perversões.
Não se pode descartar a hipótese de que países periféricos (o caso do Chile é exemplar, mas poder-se-ia citar igualmente o exemplo do Brasil) foram utilizados como laboratórios para a posterior instauração do modelo pós-democrático de Estado nos EUA e na Europa, em especial no que se refere à gestão da população diante da restrição e da violação de direitos. Ao se apontar os países periféricos e de capitalismo tardio, países em que muitos direitos previstos nos textos legais sequer chegaram a ser concretizados, como “laboratórios” da pós-democracia, não se está a afirmar que necessariamente existiu um plano deliberado ou uma conspiração de dominadores e estrategistas maquiavélicos. Nem tudo pode ser explicado por “teorias conspiratórias” (embora, não raro, as conspirações, de fato, existam). Aqui, o que se afirma é que a passividade da população desses países periféricos diante das restrições, das violações e da falta de efetividade de direitos constitui um dado que provavelmente foi levado em consideração nas opções políticas (porque o Estado Pós-Democrático resulta de uma opção de natureza política) tomadas em meio às lutas envolvendo agentes e Instituições diversas, a partir de variados interesses materiais e simbólicos, que levaram à pós-democracia.
No dia que se completam 110 anos do nascimento de Caio Prado Jr., estudiosos analisam a trajetória do intelectual que não aceitou separar a vida de sua obra
Historiador, geógrafo, filósofo, escritor, político, militante e editor. Entre as diversas funções assumidas por Caio Prado Júnior ao longo de sua vida, um traço de sua personalidade fica bem delineado: a conciliação da teoria com a prática em seu desejo de entender (e mudar) o Brasil. Nascido em 11 de fevereiro de 1907 em São Paulo, filho da família Silvia Prado, uma das mais poderosas da cidade, Caio iniciou seus estudos com uma formação em direito pela USP, em 1928.
Logo em seguida, com seu ingresso no Partido Comunista Brasileiro, em 1932, e a subsequente publicação de seu primeiro livro, Evolução política do Brasil (1933), Caio Prado iniciou, ainda aos 26 anos, uma trajetória como um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Professor de história da Universidade Federal de Goiás (UFG), João Alberto da Costa Pinto relata que, ao conversar com alguns parentes de Caio Prado percebeu como ele havia sido hostilizado pela família e pelos amigos ao ingressar no Partido Comunista Brasieliro, o que não representaria, na visão de Costa Pinto, uma ruptura de classe, como se convencionou classificar o episódio.
Para o professor de ciência política da FFLCH-USP Bernardo Ricupero, “a recepção de Evolução política do Brasil, num momento de renovação do país e de seu pensamento, acentua a inovação representada pela utilização do marxismo para entender o Brasil”. No entanto, é com seu próximo livro, Formação do Brasil contemporâneo (1942), que Caio Prado consolida-se como um dos grandes intérpretes do Brasil, ao mesmo tempo em que se distanciava do PCB pelas teses que defendia.
Apesar de nunca ter saído do partido ou criado cisões com seus integrantes, e ser um de seus importantes financiadores, Caio Prado Jr. nunca ocupou cargos importantes no PCB devido a dissonâncias teóricas. “O PCB defendia determinadas teses que eram encampadas principalmente pelo Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré, pensando em intelectuais da época. Agora, as teses que Caio defendia são muito diferentes”, aponta o professor de história da FFLCH-USP Luiz Bernardo Pericás, autor de Caio Prado Júnior: uma biografia política (2016).
O historiador paulista, que morreu aos 83 anos em 23 de novembro de 1990, destoava do PCB principalmente em dois pontos: refutou a ideia de que existiam reminiscências feudais no Brasil e negou a hipótese de uma revolução burguesa, principalmente após observar o papel submisso desse grupo durante e depois da ditadura militar, como afirma Luiz Bernardo Pericás.
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Um marxista nos trópicos
Apesar de no PCB, fundado em 1922, já existirem alguns intelectuais tentando utilizar o marxismo para analisar o Brasil, essas interpretações, no geral, aplicavam de forma mecânica as formulações da Internacional Comunista (IC), na opinião de Ricupero. “Caio Prado Jr., em contraste, entende o marxismo como um método de interpretação e transformação da realidade. Dessa maneira, destaca tanto a singularidade da história brasileira com sua ligação com o capitalismo internacional. Mantém muitos dos temas e até a linguagem comunista, mas indica, a partir do método marxista, uma interpretação do Brasil original e diferente da do PCB”, explica.
Devido a essas diferenças, as obra de Caio Prado não eram publicadas pelo partido, o que o fazia recorrer aos seus próprios recursos. Dono de uma gráfica, ele fundou em 1942, juntamente com Monteiro Lobato e Arthur Neves, a Editora Brasiliense, que publicaria entre 1956 e 1964 a Revista Brasiliense, importante canal para a veiculação de textos de comunistas que não tinham tanto destaque dentro do PCB naquele momento.
“Ele podia, então, difundir as ideias dele independente da máquina do partido, mas sempre que o fazia era visto como defensor de teses nacionalistas, como um burguês, um aristocrata, ou um elemento das elites, que ele realmente era em termos de origem de classe”, diz Pericás.
O historiador paulista foi uma importante figura política de sua época. Foi presidente, em 1935, da Aliança Nacional Libertadora (ANL) de São Paulo; deputado estadual, em 1945, pelo PCB; deputado da Assembleia Nacional Constituinte em 1948; participou ativamente do movimento de solidariedade a Cuba e à Revolução Cubana; foi presidente da Comitiva Brasileira em Cuba, em viagem que fez no final de 1961. E foi, devido ao seu posicionamento político indissociável de sua teoria, diversas vezes preso e perseguido.
Segundo Luiz Bernardo Pericás, para quem Caio Prado Jr. talvez seja o maior historiador brasileiro do século 20, ele foi pioneiro e inovador ao retornar às raízes da colonização brasileira para entender as relações, processos, estruturas sociais, econômicas e políticas que vão operar na composição e na transformação da sociedade brasileira.
“Ele vai ver o Brasil como um local que, desde os primórdios, está inserido em uma lógica do mercado internacional. E depois inserido na lógica do imperialismo, na qual os desígnios externos são vinculados a elementos de poder político e econômico interno. Elementos que vão permitir a subsistência de uma dinâmica que vai se reproduzir historicamente e que, apesar de todas as recorrentes mudanças, rupturas e expansões, vai deixar inalterada, em boa medida, os traços básicos dessas relações sociais”, explica Pericás.
A subordinação dos setores menos privilegiados da sociedade brasileira, por exemplo, é um elemento resultante desse processo que Caio Prado critica e tenta mudar. Ao criticar diversos traços constituintes do Brasil, como a concentração de terras, a livre iniciativa privada e o autoritarismo, o intelectual procurava superar o passado colonial da nação. Única forma, em sua perspectiva, do país abandonar sua condição periférica no concerto mundial.
Ao analisar a evolução do país como cíclica, permeada por fases sucessivas de progresso seguidas de decadência, Caio Prado também percebe essa subordinação a qual o Brasil estaria submetido. Suas perspectivas de luta são, como analisa o professor Pericás, “a constituição de uma estrutura politica democrática e popular, modificação das leis trabalhistas, principalmente no campo e rompimento com o imperialismo. Teses que vão gerar embates dentro do partido e com outros intelectuais, em relação a esse tipo de estrutura agrária, política e jurídica”.
No entanto, para o professor da UFG João Alberto da Costa Pinto, Caio Prado Jr. é o intelectual que teve menos alcance público ao longo das conjunturas de sua trajetória político-institucional. “O suposto marxismo do autor reiterava um projeto político para o país expressivamente nacional-corporativista. Ele consagrou-se pela posição dissidente no interior do PCB e como empresário no ramo editorial, mas, efetivamente, no debate público dos problemas políticos do seu tempo a sua obra e as suas repostas políticas tiveram pouco alcance, ao contrário das complexas e contraditórias trajetórias de Nelson Werneck Sodré e Gilberto Freyre”.
O professor de Goiânia, contrariando as análises historiográficas recorrentes, acredita ainda que nenhum livro de Caio Prado Jr. demonstre uma interpretação historiográfica ou filosófica sustentada na obra de Karl Marx. “Suas obras são um solene mal-entendido com o marxismo. Caio Prado Jr. apresenta ali [em Dialética do conhecimento (1953) e Notas introdutórias à lógica dialética (1959)], uma apologia do stalinismo como termo histórico de uma evolução complexa do marxismo”, afirma.
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“Uma viagem pelo Brasil é, muitas vezes, uma incursão pela história de um século e meio para trás”
A frase acima, do autor de Formação do Brasil contemporâneo (1942), mostra bem, na opinião do professor Bernardo Ricupero, a triste atualidade do pensamento pradiano. A importância do agribusiness no país, a grande exploração agrária e as péssimas condições de trabalho que os caracterizam são alguns elementos atuais elencados por Ricupero sobre os quais Caio Prado já debatia. “Mesmo um aspecto da obra de Caio que foi muito criticado, a pouca importância que atribui à industrialização, adquire hoje surpreendente atualidade”.
Partindo de uma perspectiva contrária, João Alberto da Costa acredita que, apesar de ser clássico e fundamental, Caio Prado Jr. não pode ser visto acriticamente como um clássico do marxismo brasileiro, pois se trata de um dos últimos pensadores autoritários do país. “Nesse sentido, ainda é atual para se entender o Brasil, mas sob uma perspectiva contrária ao que diz o senso comum historiográfico: é um autor racista e autoritário”, afirma.
Para Ricupero, no entanto, o maior legado de Caio Prado foi ter “procurado fazer com que teoria e prática se encontrassem. Dessa maneira, elaborou uma interpretação do Brasil que procurou abrir caminho para a ação dos ‘de baixo’ e levou à frente diversas iniciativas ‘práticas’ que não descuidaram da dimensão ‘teórica’”. O professor de ciência política da USP acredita que essa é uma das principais características de Prado, “alguém que não aceitou separar a vida da obra”, o que marcou, ao longo de toda sua trajetória, a busca por uma ‘teoria prática’.
Já para Bernardo Pericás, a atualidade é uma marca de todos os clássicos intérpretes do Brasil no geral. “Para entender quem nós somos, para que possamos identificar todos esses gargalos que nós temos, os nós górdios que temos que desatar, nós precisamos entender nossa realidade, nossa história. E nada melhor que esses clássicos. Hoje se faz no máximo análise conjuntural. Antes os intelectuais, para entender o momento que eles viviam, iam até a colônia, faziam uma análise muito mais profunda das raízes do nosso problema”, afirma.
Os passos de Caio Prado Júnior, marcados pelo vacilar constante ora entre a academia, ora entre a militância política, não são características, atualmente, da intelectualidade brasileira, na opinião de Pericás. “Hoje em dia você tem uma intelectualidade acadêmica brasileira que está muito fechada dentro das próprias paredes da universidade, então você acaba tendo debates academicistas muitas vezes que não transbordam para os debates populares, para os debates políticos mais amplos”, argumenta o historiador.
Foi o alemão e criador da
Psicanalise, Sigmund Freud, quem cunhou a famosa expressão “O mal-estar na
Civilização” para designar uma patologia social grave que antecedeu e preparou
o advento do Nazi-fascismo e a Segunda Guerra Mundial. Como médico, Freud diagnosticou
a presença de uma neurose coletiva, na Alemanha, produzida pelos mecanismos
civilizatórios. O trabalho, a família, a Igreja- numa sociedade luterana como a
alemã - não oferecia na época contrapartida alguma à repressão da energia
libidinal dos cidadãos e cidadãs alemãs. O resultado, como se sabe, foi a
guerra. Os alemães, pelo menos, sempre foram introspectivos e dotados de
grandes qualidades intelectuais. Produziram gênios para o bem, e gênios para a
destruição da humanidade. A Alemanha reconstruída pelos aliados (e o dólar
americano) depois da guerra é outro país: menos filosófico e cultural e mais
econômico e pragmático.
O
nosso País não foi influenciado pelo puritanismo luterano dos alemães. Pelo
contrário. O imaginário da colonização portuguesa apresentava a terra brasilis como um paraíso,
onde não havia pecado. Ou seja, tudo era permitido. Pelo menos até a
chegada da Inquisição. A lenda é que já
nascemos como uma sociedade de bandidos, malfeitores, criaturas sem fé e sem
lei. Lugar da aventura, não do trabalho, segundo Sérgio Buarque de Holanda. Uma
sociedade do desfrute, não da acumulação ou do sacrifício. O negócio que aqui
se fez foi à base da escravidão africana, não da ética puritana do trabalho.
Aqui, sempre se pensou mais no fruto ou no lucro, do que no sacrifício e na
renúncia para se conseguir os frutos. Há muitas imagens consagradas pela
Antropologia cultural sobre o povo brasileiro: Macunaíma, Jeca Tatu, Gerson
etc. O único herói positivo que se tentou vender ao País foi a imagem de Airton
Senna, depois de sua morte, num momento crucial de consolidação do Plano Real.
A imagem ocidentalizada de uma pujante “sociedade civil” regeneradora dos nossos
costumes não sobreviveu à chamada “Nova República”, com os seus malandros
oficiais.
O
ciclo da política de centro-esquerda e suas políticas redistributivas – com a
inversão de prioridades do gasto público – nos deu alguma esperança. Mas a
herança maldita de um velho sistema político carcomido pelo fisiologismo, o
troca-troca e a corrupção dissipou prematuramente a nossa ilusão. Voltou a cena
o que Freud chamava de o “retorno do reprimido”. Aquilo que julgávamos morto ou
amortecido voltou com força e tende a se
espalhar como uma perigosa metástase
sobre um corpo enfermo e sem cuidados.
Como
é possível, que no meio de uma violência generalizada, um “presidente” da
república citado 40 vezes nas investigações da Operação Lava-Jato tem o
despudor de nomear um ministro do Supremo Tribunal Federal, que será o revisor
do relatório apresentado sobre a mesma operação no STF? - Como é possível que
um delegado de polícia, responsável pela matança generalizada de pessoas em São Paulo, seja investido do
cargo de Ministro da Justiça e nomeado Ministro do STF, onde irá investigar
exatamente as denúncias contra o seu superior
hierárquico e nomeador? – Como foi que o ministro Fachin adivinhou que
seria sorteado relator da Operação Lava-a-Jato,
se candidatando ao cargo e mudando de
turma, para concorrer a ele? – Já a nomeação, ora sob judice, de Moreira Franco –a chamada
“eminência parda” do governo – para o recém-criado ministério das parcerias
obedece a uma operação cruzada cuja inteligibilidade está na apoio que o genro
de Moreira Franco dará a Temer, reeleito
Presidente da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia) e em troca o sogro ganha foro
privilegiado para se defender das acusações da Operação-Lava-a-Jato. É dando que se recebe, segundo a oração de
São Francisco....
E para finalizar, a nota tragicômica: quem tem o direito a prisão
especial, na República dos ladrões?
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE