pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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domingo, 19 de novembro de 2017

Durval Muniz: Somos um povo afrodescendente

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Amanhã, dia 20 de novembro, se celebra o Dia Nacional da Consciência Negra, num momento em que somos dirigidos por um governo de brancos racistas, que vem atacando duramente as poucas conquistas realizadas pela população de origem africana nas últimas décadas. A paralisação da demarcação das terras historicamente ocupadas por remanescentes de quilombos, como moeda de troca para ter o apoio da bancada ruralista no Congresso Nacional, a imediata extinção da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, assim que tomou posse, o fechamento de várias embaixadas brasileiras na África, são apenas alguns exemplos que deixam claro que estamos sendo governados, mais uma vez, por mestiços e pardos que se consideram brancos, por brancos racistas e insensíveis as causas sociais da maioria da população.
Somos um país negro e afrodescendente. Temos a maior população de origem africana fora da África. Cerca de 86 milhões de pessoas são descendentes das sucessivas levas de negros e africanos que para cá foram trazidos e aqui transformados em escravos domésticos ou do eito, ao longo de quatro séculos desse comércio ignóbil, fundamental para o surgimento do capitalismo. Mesmo no século XIX, quando oficialmente o tráfico negreiro estava proibido, desde 1831, essa entrada de africanos, para serem aqui escravizados, conheceu até um crescimento. Nossas elites sempre gostaram de editar leis para inglês ver (vem daí essa expressão, já que os ingleses pressionavam pelo fim da escravidão para eles dominarem a África e instalarem o trabalho assalariado que traria mercado consumidor para seus produtos industriais), para as descumprir cotidianamente.
Os europeus chegaram à África, ainda no século XV, mas demoraram a efetivamente ocupá-la colonialmente. Durante mais de três séculos se limitaram a saquear as riquezas africanas e drenar grande parte de sua população para atender a demanda por escravos, organizando para isso meros entrepostos comerciais, as chamadas feitorias, nas costas africanas, protegidos por fortalezas e por acordos políticos e comerciais com chefes locais. Sim, é verdade, a escravidão já era praticada na África antes da chegada dos europeus, em pequena escala, como fruto das guerras e rivalidades que separavam as nações e povos africanos, em maior escala a partir da expansão islâmica sobre o norte do continente, a partir do século VII, quando um comércio de escravos se estabeleceu através do mar Mediterrâneo e do Oceano Índico. Mas nada comparado com a enorme sangria humana sofrida pelo continente com o comércio atlântico de escravos. Usar o argumento da existência da escravidão na África, antes da chegada dos europeus, para responsabilizar os africanos pelo comércio negreiro e isentar os europeus, é uma hipocrisia, já que, mesmo após a pretensa extinção do tráfico negreiro em todo mundo, a escravidão continuou a ser praticada na África, agora sob o domínio das potências europeias, em alguns lugares, até os anos trinta do século XX.
Sim, é verdade, lideranças africanas colaboraram com o tráfico de escravos, assim como libertos e ex-escravos, inclusive muitos brasileiros, retornaram a África e se tornaram traficantes de escravos (os serem humanos tendem a agir conforme a ordem social em que estão inseridos, assimilam os valores de seu tempo, naturalizam o que não é natural, mas criação social e cultural, tendem a tirar proveito das vantagens que as situações em que está imerso lhe oferece). Ainda hoje, existem em países como a Nigéria, o Togo e Angola, descendentes de ex-escravos que retornaram a África após conseguirem a alforria ou comprar sua liberdade no Brasil. Eles são conhecidos por “brasileiros” e introduziram, naquele continente, costumes, tradições culturais e arquitetónicas, crenças e maneiras de falar e agir que aprenderam em sua estada no Brasil como escravos.
Foi, no entanto, no século XIX, que as potências europeias resolveram ocupar definitivamente a África. Com a independência das colônias americanas, com o crescimento exponencial da produção de mercadorias após a chamada Revolução Industrial, com a crescente acumulação de capitais requerendo lugares e atividades para investimento, iniciou-se o que se chamou de corrida imperialista em direção a África. Nela, países que há muito tempo estavam ali precariamente estabelecidos, como Portugal, que mantinha contatos seculares com os africanos, se veem na iminência de perder suas possessões no continente. Em 1898, a Inglaterra dá um ultimato a Portugal e ocupa todas as terras que ficavam entre Angola e Moçambique e figuravam nos mapas portugueses como sendo suas possessões, criando aí as chamadas Rodésia do Norte e Rodésia do Sul, nomes dados em homenagem a um dos principais exploradores e colonizadores britânicos da África, Cecil John Rodhes, fundador da companhia De Beers, que hoje monopoliza mais de 40% da produção de diamantes no mundo. Exploradores como Rhodes, empresários e comerciantes ambiciosos, viajantes, missionários e cientistas tiveram uma enorme importância na exploração da África, antes mesmo que os europeus, de forma arrogante, dividissem o continente entre si, na Conferência de Berlim, em 1884, traçando o que, em grande medida, é, ainda hoje, a geografia política africana (as divisões de território levaram em conta apenas os interesses e rivalidades entre as potências europeias, desconhecendo a realidade africana, separando povos, reunindo povos rivais, segmentando ou aglutinando antigos reinos e nações). Eles foram responsáveis por revelar as riquezas guardadas pelo grande e misterioso continente, aumentando a cobiça de seus Estados nacionais e os ajudando na tarefa da conquista, e, ao mesmo tempo, por construírem visões preconceituosas, estereotipadas e racistas a seu respeito e de seus povos. Mitologias que continuam a se propagar até mesmo, mesmo na mídia e nas escolas.
O continente onde surgiu a espécie humana, onde comprovadamente apareceram os primeiros hominídeos, passou a ser considerado um continente selvagem, desabitado, entregue às florestas e aos animais ou um puro deserto escaldante. Chegou-se, nos primeiros contatos, a se duvidar da humanidade dos povos negros. O continente, berço das primeiras grandes civilizações como: a egípcia, a núbia, a cartaginesa, a abissínia, foi visto como bárbaro, atrasado, seus povos como incapazes de por si só se civilizarem, sem a ajuda europeia. De maneira racista passou a se chamar a África subsaariana de “África negra”, para apartar as grandes civilizações que se desenvolveram em torno do mar Mediterrâneo, onde populações consideradas brancas predominavam, da história do restante do continente, associando negritude e atraso, fazendo da raça um marcador de inferioridade natural. Um continente que viu nascer e perdurar, por séculos, grandes reinos como o do Daomé, atual Benin, que surgiu no século XVII e só caiu em mãos francesas, com a ajuda de tropas senegalesas, em 1904, ou o Império de Oió, que corresponde, hoje, ao sudoeste da Nigéria e do Benin, que perdurou do ano de 1.400 até 1835, quando caiu em mãos inglesas, foi visto como caótico do ponto de vista político, como não conhecendo a ideia de nação, com todos os povos vivendo em estágio tribal. As religiões africanas foram permanentemente acusadas de diabolismo (ainda hoje sofrem enorme preconceito), classificadas como animistas ou fetichistas, tidas como um estágio anterior e atrasado no processo de evolução da ideia de sagrado e de religioso. A sofisticada e poética religião dos orixás e voduns dos povos iorubás, que no Brasil deu origem ao que conhecemos como candomblé, que celebra o espírito dos ancestrais, as forças da natureza, foi sistematicamente perseguida e estigmatizada pelos missionários católicos e protestantes.
Somos, queiram ou não os racistas, um povo afrodescendente nos corpos, nos gestos, no pensamento, nas maneiras de ser e estar, na cultura e nas artes, nas sociabilidades e sensibilidades. Somos um povo da ginga, do drible, da malemolência, das maneirices, das faceirices. Corpos de todos os matizes de cores: do negro ao cravo-e-canela, do pardo ao sarará, do bronzeado ao azul. Corpos de ancas e seios fartos, de lábios carnudos, de dentes branquíssimos, de pantorrilhas fortes e tornozelos grossos, de narizes de todos os formatos, de bundas majestosas e gelatinosas (a palavra também é uma das mais deliciosas contribuições africanas à nossa língua, por falta dela os portugueses vivem prometendo pontapés no cu), de todas as estaturas (altos, esguios, longilíneos, baixos, atarracados, quase sem pescoço). Sim, os africanos estão no nosso sangue, na nossa hereditariedade, nos traços fenotípicos que nos tornam um povo mestiço e mestiçado. Mas eles nos trouxeram mais do que suas carnes (embora fossem elas que inicialmente interessassem aos europeus), de que seus braços, de que seus ventres onde, com violência ou não, muitos dos brasileiros foram gerados, de que seus seios (onde muito branco foi alimentado). Os africanos não foram sempre escravos, o que a forma como eles normalmente são tratados em nosso ensino de história faz pensar. Os africanos trouxeram contribuições inestimáveis para a nossa língua. Como diz Gilberto Freyre, eles amoleceram o velho português, trouxeram boa parte do vocabulário que nos deu um português próprio, capaz de permitir a construção de uma literatura e de uma poesia brasileiras. Eles nos trouxeram formas de narrar, de contar histórias, trouxeram todo um rico imaginário religioso e laico. Eles nos trouxeram até maneiras de falar, de gesticular, de estar, de sentar, de andar, de correr, de trabalhar.
Eles nos trouxeram uma rica culinária, que se utilizava de produtos que de lá vieram, que foram, inclusive, itens do intenso comércio que uniu o Brasil à chamada Costa do Ouro, ao Golfo da Guiné, na atual Gana, à cidade de Lagos, na atual Nigéria, à Luanda, Cabinda, Benguela, na atual Angola, só interrompido quando, a pretexto de combater o tráfico negreiro, a Inglaterra se apossou desses entrepostos, diretamente ou através de um protetorado aos domínios de Portugal, e monopolizou o comércio, retirando os comerciantes brasileiros do comércio transatlântico, gerando um afastamento económico, político e diplomático do Brasil em relação a África, só superado nas últimas décadas (esforço que parece estar sendo novamente malbaratado). De lá nos vieram o azeite de dendê, a pimenta malagueta, o inhame, que aqui se misturaram à farinha de mandioca, ao coco, ao peixe, para nos proporcionar pratos deliciosos. As “comidas de santo” enriqueceram a nossa gastronomia, uma das mais festejadas e variadas do mundo. Foram os africanos que nos trouxeram os conhecimentos de metalurgia, pois há muito se lidava com metais no continente africano. Eles foram fundamentais na exploração das minas, pois dominavam a tecnologia de extração de ouro e diamantes, que já faziam em seus reinos na África. O lidar secular com os rebanhos, inclusive em condições climáticas adversas, fizeram dos africanos indispensáveis colaboradores da implantação da pecuária no sertão (embora a historiografia tenha teimado em afirmar a ausência de negros na região sertaneja).
Os negros escravizados ou libertos utilizaram de distintas estratégias cotidianas para resistir a enorme desgraça que sobre eles havia se abatido. Expatriados, retirados de suas terras e culturas, tangidos como gado, acorrentados, humilhados, maltratados, faziam a travessia em navios chamados de tumbeiros, dada a alta mortalidade que a aí se verificava, por doenças, fome, torturas e até por suicídios (primeira reação desesperada), eles tratavam de, ao chegar, construir redes de relações com os escravos que aqui já se encontravam, muitas vezes, refazendo ligações que existiam na própria África, já que muitos escravos das mesmas nações terminavam por trabalharem e viverem juntos nas senzalas, fazendas ou cidades. Essas redes serviam de proteção e introduziam mais facilmente o escravo na nova realidade que devia dominar para poder melhor nela viver, encontrando brechas e formas de melhor sabotá-la, deixando de ser um “boçal”, para se tornar um escravo “ladino”. Nessas redes, algumas vezes, encontravam antigos chefes, reis, rainhas, muslins (líder religioso muçulmano – muitos negros escravizados professavam essa crença), a quem continuavam a prestar obediência e homenagem, além de oferecer-lhes proteção, inclusive trabalhando e fazendo pecúlio para comprar a liberdade desses seus superiores africanos. Reis, rainhas, muslins, chefes, vendidos como escravos, muitas vezes por seus inimigos políticos em África, estão na origem de manifestações culturais populares de matriz africana como os congos, os reisados e os maracatus, que podem ter sido desfiles rituais de homenagem a autoridades africanas, consideradas muitas delas divindades, disfarçando-as de brincadeiras e festas, para despistarem os senhores. Essas autoridades africanas foram, inclusive, reconhecidas algumas vezes pelos próprios senhores e colonos, pelo Estado português e pelo próprio imperador Pedro II, como foi o caso de Cândido da Fonseca Galvão, o chamado Dom Obá II D’África, filho de Obá I, imperador de Oió, que viveu no Rio de Janeiro, e frequentava com assiduidade a cerimônia de beija-mão do monarca brasileiro. Elas também representavam as comunidades negras e os escravos, reivindicavam melhorias junto às autoridades, solicitavam punições para senhores violentos, intermediava na justiça causas de dados escravos e libertos, sendo importantes lideranças de várias das revoltas e dos levantes de escravos. A tradição oral atribui à uma rainha africana, deportada por seus inimigos políticos, a criação da Casa das Minas, ou Querebendã de Zamadonu, em São Luís do Maranhão, seria Nã Agotimé, viúva do rei Agonglô e mãe do rei Ghezo, do Daomé, que teria adotado o nome de Maria Jesuína (ou seria essa uma de suas primeiras filhas de santo) e criado a Casa onde se adoram três linhagens de voduns. Por exigência do culto, na Casa há vários ambientes com terra batida: o comé ou quarto de todos os voduns; o pátio ou gume; a varanda de dança ou guma; a cozinha onde se preparam os alimentos dos rituais em caldeirões de ferro sobre tempre, feito com fogo a lenha no chão. No quintal, como um pedaço da floresta sagrada africana, há árvores consideradas sagradas e plantas locais com efeitos medicinais utilizadas nos cultos. As pedras de assentamento da Casa, que recebem a força de voduns e representam divindades, também chamadas de fundamento, foram trazidas da África por suas fundadoras. Estão assentadas em várias partes da casa e acredita-se que lá reside a força mágica das divindades e é por onde chega primeiro a força do vodun, antes de ir para as filhas.
Os negros foram totalmente abandonados no pós-abolição. Após resistir, por quase um século, contra a extinção da escravidão, a classe senhorial sabotou todas as propostas abolicionistas que propunham a distribuição de terras para os ex-escravos, visando criar um proletariado negro. Favorecidos pela saída em massa de brancos pobres dos países da Europa, tangidos pela miséria, nossas elites apostaram no branqueamento da população e num processo civilizador que passava pela “regeneração da raça nacional” com infusão de sangue ariano, além de uma economia baseada no trabalho imigrante. Nesse cenário, inviabilizadas as propostas mais extremadas e delirantes, que propunham a devolução dos negros à África, como estavam fazendo iniciativas norte-americanas na Libéria, os negros foram deixados à sua própria sorte, sem qualquer política de inserção social ou de reparação pelos danos físicos, econômicos, emocionais, psicológicos e culturais trazidos pela escravidão. Logo após a abolição, muitos tiveram que continuar trabalhando para seus antigos senhores, submetidos a trabalhos compulsórios, como única forma de sobreviver. Muitos aproveitaram a liberdade para confluírem para as cidades, onde vão constituir nos cortiços, nos ajuntamentos de construções precárias, um proletariado e um sub-proletariado, que será submetido a trabalhos pesados, degradantes e mal remunerados. Mas será aí que suas tradições culturais e cultuais serão realimentadas, reutilizadas, recriadas para com elas recriarem suas identidades, recuperarem sua dignidade, afirmarem sua humanidade e sua criatividade. Será em lugares como a “pequena África”, na cidade do Rio de Janeiro, que a capoeira e o samba servirão de instrumentos de defesa e de sociabilidade para essa massa de negros jogados na absoluta miséria pela abolição, tal como foi feita. Nas fazendas, o jongo, o lundu, o maracatu rural, ajudarão os negros a resistir, nos dando beleza como resposta a mais feia pobreza e exploração, produzindo lideranças, conferindo dignidade, destaque, felicidade.
Hoje, ainda é a população negra que integra majoritariamente os estratos menos abastados de nossa sociedade. No Brasil a pobreza tem cor, há uma relação direta, que tem haver com nossa história, entre a desigualdade social e a racial. Dois, em cada três negros, vivem na linha da pobreza, ganham salários inferiores aos brancos, eles são 74‰ dos dez por cento mais pobres do país e 69% dos indigentes. Os negros representam mais de 60% de nossa população carcerária, a quarta maior do mundo; a possibilidade de um adolescente negro morrer antes de chegar a idade adulta é 2,5 vezes maior do que um adolescente branco, isso se tiver sobrevivido a infância onde a probabilidade de vir a morrer por desnutrição ou doenças ligadas a falta de saneamento básico é duas vezes maior do que as de outra etnia. Oito em cada dez pessoas que integram o 1% dos mais ricos do país são brancos, apesar da melhoria expressiva da situação social dos negros na última década, que fez com que a participação dos negros nessa elite privilegiada saltasse de 11% da população, para 17% (um dos motivos que levaram ao golpe, era preciso colocar os negros de volta ao seu lugar, o que rapidamente está se dando). Os negros que representam 54‰ da população do país, eram apenas 5,5% dos estudantes do ensino superior, antes da adoção da política reparatória das cotas (política odiada pelos setores mais conservadores e um dos motivos do golpe), desde lá até 2015 essa participação dobrou, alcançando 12,8, sendo, no entanto, ainda bastante baixa. No entanto, há quem diga que no Brasil não tem racismo e que adotar políticas reparatórias é privilegiar os negros em detrimento da meritocracia (só brancos parecem ter mérito para essa gente).
Portanto, amanhã, mais do que um dia de comemoração, deve ser um dia de denuncia das condições da população negra no país; de luta contra o desmonte das políticas públicas de inclusão racial e de combate ao racismo, implementadas nos últimos anos, pelo governo golpista e racista; de defesa das conquistas feitas pela cidadania negra, através da longa resistência. Resistência e luta que não deixou de ser feita através da beleza, da solidariedade, da dignidade, da fé, da criatividade, da capacidade de adaptação e tradução a realidades tão cruéis e mortais. Acima de tudo, com muita alegria. Essa grande contribuição dos afrodescendentes para o nosso país e a nossa cultura: a alegria, que a guinada à direita, que os fascismos militantes vêm tentando destruir. Que mais uma vez os negros nos ajudem a afirmar a alegria diante da brutalidade e da ignorância daqueles que se dizem e se acham brancos!

Durval Muniz é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

(Publicado originalmente no site do portal Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

Jean Galvão

sábado, 18 de novembro de 2017

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Intensificam-se as articulações de olho em 2018.

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José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político


Como disse em editorial publicado aqui no blog, a decisão do ministro Bruno Araújo(PSDB) em deixar o Governo Michel Temer foi marcada por muitas polêmicas. Mais até do que deveria, uma vez que já se esperava o desembarque dos tucanos do Governo, algo advogado por aves emplumadas do ninho, como é o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador paulista, Geraldo Alckmin(PSDB), que deseja entrar na disputa pelo Palácio do Planalto em 2018. O pernambucano resolveu pular fora antes mesmo do barco afundar de uma vez, se é possível algum baixar mais ainda em popularidade do que os pífios 3%.  A hipótese é dúbia, uma vez que, aqui na província, o tucano está montando um palanque, com o objetivo de disputar as eleições estaduais de 2018, com aliados da primeira linha do presidente, como o ministro Mendonça Filho(DEM) e o senador Fernando Bezerra Coelho, do PMDB. Ou será que eles não vão defender o "legado" do Governo Temer? Romero Jucá já disse que, se não houver alguém para defender esse legado, o partido exibirá suas candidaturas próprias. A princípio, no Estado, esse papel será desempenhado por algum integrante da família Coelho.

Hoje fui informado que já teria começado a romaria de prefeitos ao Palácio do Campo das Princesas, para conversar com o governador e o seu staff político. São as "pendências" e 'arestas" que precisam serem aparadas até as eleições de 2018. É natural que isso ocorra, sobretudo para se manter o "rebanho" sob controle, uma vez que as ovelhas estão sendo assediadas pelos adversários. Se aqui na província as conversas se intensificaram, no plano nacional, de olho nas eleições presidenciais que ocorrem no mesmo ano, os atores políticos que pleiteiam aquele cargo também intensificaram as movimentações, como é o caso do tucano Geraldo Alckmin(PSDB), que manteve um encontro com o Deputado Federal, Jarbas Vasconcelos(PMDB). Na realidade, Alckmin gostaria de conversar com o governador Paulo Câmara(PSB), mas este está em viagem oficial nos Estados Unidos. No plano nacional, existe até uma possibilidade de aliança entre os dois grêmios políticos, embora aqui no Estado, a possibilidade de um diálogo entre as duas legendas esteja praticamente descartada.

O ministro da Educação, Mendonça Filho(DEM), concedeu uma entrevista ao cientista político Antônio Lavareda, num programa televisivo local. Lavareda integra um grupo de lideranças nacionais que foram convidados para um jantar oferecido pelo governador Geraldo Alckmin(PSDB). Gustavo Krause e José Jorge também integram o grupo. Durante a entrevista, o ministro teceu alguns comentários acerca do fraco desempenho dos alunos brasileiros no exame internacional do Pisa. Voltaremos a tratar deste assunto numa outra oportunidade. No tocante à política, ele foi bastante discreto ao se referir ao conjunto de forças que formam uma espécie de Frente de Oposição ao governador Paulo Câmara(PSB), denominada aqui pelo blog como Conspiração Macambirense. Segundo alguns fontes, está agendada para dezembro um encontro oficial do grupo. Especula-se bastante como esse grupo irá se arranjar em termos da composição da chapa, já que muitos são os chamados e poucos os escolhidos, conforme ensina as sagradas escrituras. Primeiro, um projeto para o Estado. Depois, a discussão sobre os nomes, observa Mendonça Filho.

Política tem alguns lances curiosos. Enquanto o ministro assegura que os investimentos em educação aqui na região podem ser creditadas na conta das políticas de Estado - como o apoio  à ampliação das escolas de tempo integral, por exemplo - a propaganda institucional do Governo Paulo Câmara, apresenta justamente a educação como o seu maior trunfo para a disputa de 2018, uma vez que os números da segurança pública continuam apavorantes. Ali é dito que Pernambuco possui a melhor educação do país, conclusão possivelmente tirada a partir do desempenho dos alunos no IDEB. Como disse em momentos anteriores, tenho alguns dúvidas sobre esses indicadores, mas a iniciativa do Governo do Estado no sentido de conceder bolsas de estudos universitários a alunos carentes da rede pública, assim como reeditar aqui uma espécie do extinto Sem Fronteiras, foram bem recebidas pela população.

P.S.: Do Contexto Político: Resta saber quem irá auferir os resultados eleitorais dos investimentos em educação no Estado. Se o grupo de oposição, ligado ao ministro Mendonça Filho, ou se o governador do Estado, Paulo Câmara, que deseja continuar como inquilino do Palácio do Campo das Princesas.  

Charge! Renato Aroeira

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Charge! Miguel via Jornal do Commércio

Charge do dia 18/11/2017

Drops político para reflexão: As sutilezas nada sutis do autoritarismo.


"É esta percepção mais aguçada e articulada que nos permitem dimensionar o tamanho da encrenca institucional em que estamos metidos, depois do golpe de 2016. Por aqui pelo Nordeste, caro Rodrigo Lentz, vejo alguns movimentos que nos permitem suspeitar, por exemplo, de uma reedição da Aliança para o Progresso da década de 60, quando agentes da CIA chegavam ao país disfarçados de bons samaritanos para prepararem o terreno do que se sucederia em 1964. O desmonte das instituições federais na região reservam alguns componentes políticos nada sutis, em razão de sua possível identidade com as forças de contraposição ao establishment. Estamos estudando o assunto. Claro que as "quarteladas" das décadas de 50/60 ficaram no passado. Tudo hoje é mais sutil e sofisticado. Para apear uma presidente eleita e legítima do poder, foi utilizado um instrumento previsto pela própria democracia representativa: o impeachment. No Uruguai este mesmo expediente foi utilizado 24 vezes contra o ex-presidente Fernando Lugo, até que um deles foi aprovado. Nessas novas "conformações autoritárias" os instrumentos jurídicos ganharam uma força maior do que as baionetas. O exemplo mais emblemático é a prevalência do judiciário corporativo, quando os crimes cometidos por militares contra civis, em serviço de policiamento urbano, passam a ser de competência de tribunas militares. Pelo andar da carruagem política, não nos surpreenderia se até a "Maria da Penha" dos militares  tornar-se competência dos tribunais castrenses." 

(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)

A competência de William Waack e o racismo como "deslize"




Ruben Berta


Num mundo cada vez mais radicalizado e polarizado das redes sociais, o excesso de opinião cansa. Concordo. Por isso, sempre penso duas vezes antes de entrar na melhor polêmica dos últimos tempos da última semana. Desta vez, achei que tinha algo importante a dizer. Resolvi arriscar.
Na última quarta (8), como todos já sabem, um vídeo com comentários RACISTAS (perdoem o clichê da caixa alta) do então apresentador do “Jornal da Globo”, William Waack, gravado no ano passado durante a cobertura da campanha eleitoral americana, foi publicado na internet. Ainda bem, as reações foram imediatamente negativas. E levaram a própria emissora a suspender o jornalista.
Em seguida, a polêmica chegou na página 2. Veio a turma do “deixa disso”:
Coluna de Augusto Nunes
Post de Rachel Sherazade
Pois bem, é aí que eu quero entrar. Os que vestiram a camisa de Waack empunham a bandeira do “brilhantismo” de um profissional consagrado por anos e anos de profissão na maior emissora de TV do país. Ponto para ele. Mas e o caráter, não conta? Ok, não o conheço pessoalmente, nunca trabalhei com ele, mas não venham me convencer de que alguém que faz comentários RACISTAS cometeu só um deslize, diante de sua vasta história de sucesso.
Não sei se Waack já praticou outros atos semelhantes ao que foi gravado. Mas o caso traz uma importante discussão para todas as profissões e, especialmente, para o jornalismo, que abracei há 18 anos. Se for competente, o resto não importa?
Desses meus 18 anos de profissão, passei 17 na redação de um grande jornal, antes de chegar a The Intercept Brasil. Convivi com uma imensa maioria de colegas que conseguem juntar a competência e o caráter. Mas, como acredito que aconteça em quase todo lugar, isso não é uma regra absoluta.
Não está gravado, mas existem sim os competentes que acham que quando uma morte acontece fora da Zona Sul do Rio ou dos Jardins em São Paulo, ela não tem assim tanto valor. Há os brilhantes que pensam que uma favela só deve ser notícia se os tiros estão chegando ao asfalto ou se “a empregada disse que a situação está difícil”. Há os fantásticos que acreditam que assediar uma colega na redação é a coisa mais normal do mundo. E por aí vai.
Portanto, caráter e excelência não são necessariamente características que precisam caminhar juntas. Veja a política. Com tudo que pesa em suas costas, Aécio não é competente por estar onde está? E Temer, o odiado, também não? Os estragos que eles fazem na nossa vida estão claros e evidentes. O mesmo vale para jornalistas, ou qualquer outra profissão.
Aos que acham que Waack está sendo vítima de uma abominável execração pública, eu só tenho a dizer que sinto muito. Quantas e quantas vezes jornalistas, com pequenos poderes nas mãos, não praticaram atos semelhantes entre as quatro paredes das redações sem que nada fosse dito? Quem trabalha num veículo de comunicação precisa saber que a tal revolução digital não é só uma mudança de mercado. Ela pode e vai causar exposições indesejáveis, que, no passado, não aconteciam com quem possuía o monopólio da informação.
Não tenho dúvidas de que os “competentes” se unirão. Afinal, sabem que, a qualquer momento, também podem cometer um “deslize” que manche suas “brilhantes carreiras”.
Tweet de Gilmar Mendes

Le Monde: Por que racializar o discurso da esquerda?

Publicamos nesta edição o segundo texto da série “Racismo na mídia e na esquerda”, cujo objetivo é diagnosticar, problematizar e combater esse tipo de opressão presente nesses setores. A seguir, confira artigo da historiadora Suzane Jardim, que pesquisa a estereotipação do negro nas mídias e atua como educadora em periferias de São Paulo
A VOZ DA RAÇA
Em dezembro de 1933, A Voz da Raça, jornal da Frente Negra Brasileira – maior organização negra existente no país até então –, respondia a um boletim “lançado pela canalha anarquista-comunista-socialista”. O texto convocava os frentenegristas a se colocarem contra “a onda estrangeira”, apontando que tais ideologias haviam surgido graças a “imigrantes que a incompetência e cegueira dos nossos governos democráticos do passado […] importaram para esmagar os negros, que vão ficando completamente à margem da vida do trabalho, visto que, em quase toda parte, não se aceitam empregados de cor”. O autor convida os “intrusos” a se retirarem com suas ideologias para que, assim, fique mais fácil para os negros resolverem seus assuntos internos.1
O texto causa estranhamento, mas a realidade dos negros da época torna compreensível toda a negação expressa: se à população negra o trabalho era negado, se viviam no subemprego exercendo funções com forte ranço escravista, qual seria a identificação possível com o discurso daqueles que vieram ocupar seus cargos e clamavam por uma revolução proletária? Se estes viviam melhor do que a população negra, que direito tinham de dar lições para um povo que resistia sozinho havia anos? O que sabiam sobre os problemas e a história do negro no Brasil? Restava, então, a identificação com as ideologias da direita que prometiam renovações imediatas, moralização e valorização da pureza racial e da trajetória histórica de todo um povo.
Vistas como pautas que dividiam os trabalhadores e impediam o avanço da luta de classes, as demandas negras nacionais só passaram a dialogar mais efetivamente com a esquerda a partir das décadas de 1960 e 1970 – época de mudanças em todo o mundo. Foi o desmonte do mundo neocolonialista, período de revoluções e ditaduras na América Latina, de inauguração do campo dos estudos pós-coloniais e da explosão da luta por direitos civis nos Estados Unidos; a esquerda passou a discutir o problema do Terceiro Mundo; o radicalismo de Malcolm X e dos Panteras Negras chegou à militância nacional; e o negro já não podia mais ser ignorado. Entretanto, como aponta Muniz Sodré ao falar sobre o pensamento do francês Badiou: “Não basta, assim, afirmar a evidência da multiplicidade humana. A percepção da diversidade vai além do mero registro da variedade das aparências, pois o olhar, ao mesmo tempo que percebe, atribui um valor e, claro, determinada orientação de conduta” (Sodré, 1999, p.17).
E qual é o valor que a esquerda atribui à história e ao ponto de vista do negro atualmente?
É inegável que o tópico “racismo” está na mídia com um alcance talvez nunca antes visto em um país onde sempre foi mascarado e velado, porém as mídias de esquerda seguem com dificuldades de dialogar com a população negra, militante ou não. Prova desse fato é a própria existência desta série – sejamos sinceros: você estaria lendo este texto, escrito por uma mulher negra vinda de escolas públicas, caso esta revista não tivesse sido rechaçada após a publicação de uma capa racista? Esta série existiria espontaneamente se não fosse por pressão?

O que vemos é uma tendência da intelectualidade de esquerda, a mesma que produz publicações como esta, em desprezar outras linhas narrativas em suas análises, em priorizar o que julga relevante, insistindo em ignorar as diferenças históricas entre negros e brancos neste país. Esse comportamento nem sempre é consciente – é automático, um narcisismo que põe a branquitude como única protagonista possível. Acompanhar as mídias de esquerda críticas ao atual cenário político constitui um ótimo exercício que confirma essa tendência.
Ninguém que se identifique com os ideais da esquerda dirá, em sã consciência, que o atual governo do país é benéfico para qualquer estrato da população que não seja o formado por empresários e banqueiros. Entretanto, parte da narrativa do golpe usada para denunciar a questão ao povo traz em si contradições. Diz-se que vivemos novos tempos, uma nova “ditadura” posta por um governo que chegou ao poder de modo ilegítimo, invalidando eleições diretas com base em acusações descabidas. Para apontar os feitos desse novo regime, o discurso se inflama mediante conduções coercitivas, prisões arbitrárias e violência policial contra manifestantes no centro da cidade – elementos que, segundo o discurso, sinalizam o fim da democracia. Lembro-me de ouvir de uma professora da Universidade de São Paulo um discurso de alerta que trazia um paralelo entre 1964 e os tempos atuais: “Sem democracia, você não tem garantia à vida, você vive com medo. A polícia pode entrar na sua casa, te prender, te torturar e te espancar como na ditadura…”.
A afirmação tocou os demais estudantes, porém soa descabida quando notamos que todos os pontos indicados sempre fizeram parte da rotina de milhões de brasileiros que jamais entraram na USP a não ser para limpar privadas. Quando foi que a população negra viveu em paz na democracia? Quando o Estado brasileiro deu de fato garantia à vida para essa população? Prisões arbitrárias, falta de direitos básicos, empregos precários e sem direitos trabalhistas, chacinas, torturas, invasões e intimidações vindas da PM são rotina para quem vive nas áreas pobres das cidades e marcas na vida da população negra desde que a escravidão teve fim; logo, conclui-se que a segurança da democracia só é efetiva para uma parcela da população e que esse discurso fatalista é baseado em uma narrativa histórica não racializada.
Fazer ressalvas para mostrar que violência e repressão sempre fizeram parte da rotina da população negra periférica não é tirar o foco dos problemas do governo Temer, mas alertar para que não se deseje que esses problemas voltem a atingir apenas um grupo específico. É atentar para outras linhas históricas que precisam ser levadas em conta na hora da crítica, da análise e da aproximação visando à luta conjunta. Legar aos tempos atuais um Estado de exceção inédito invisibiliza todo um povo nascido e criado em lugares onde a ditadura nunca acabou. A mensagem que fica é de que a violência só é mobilizadora quando atinge vocês, brancos universitários ou membros de partidos políticos; caso contrário, é cotidiana e banalizada, parte da paisagem natural da pobreza – pobreza e negritude que só aparecem de modo instrumentalizado no discurso, como o que diz que o “golpe racista” piorará a situação do negro e do pobre ao mesmo tempo que os culpa pela situação.2 É aí que voltamos ao impasse histórico inicial: se os que fazem a mídia de esquerda vivem melhor do que a população negra, que direito têm eles de dar lições para um povo que resiste sozinho há anos? O que sabem sobre os problemas e a história do negro no Brasil? Aparentemente, muito pouco. Diante da falta de identificação, cresce o apego às pautas liberais que focam a solução de problemas imediatos no campo do consumo, maquiando os problemas estruturais do sistema racista em que vivemos. Enquanto a esquerda não questionar seriamente qual é o sujeito-base que protagoniza suas análises, continuará pregando para convertidos.

*Suzane Jardim é historiadora formada pela Universidade de São Paulo, pesquisa a estereotipação do negro nas mídias e atua como educadora em periferias de São Paulo.
{Le Monde Diplomatique Brasil – edição 115  – fevereiro de 2017}



(Publicado originalmente no Jornal Le Monde Diplomatique)

A ousadia de pensar o aborto: Uma questão bioética-política

                                          
Fabio A.G. Oliveira, Letícia Gonçalves e Maria Clara Dias disse:

A ousadia de pensar o aborto: Uma questão bioético-política (Arte Revista CULT)
 

Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada em 2016 e publicada em 2017, uma mulher por minuto pratica aborto no Brasil. Isso significa dizer que uma a cada cinco mulheres alfabetizadas entre 18 e 39 anos já fez um aborto. Ou seja: 4,7 milhões de mulheres já abortaram. Diante desses números, nos perguntamos: por qual razão pensar o aborto ainda gera tanto incômodo em uma parcela da população? E quais aspectos bioéticos e políticos precisamos destacar neste debate?
Antes de tudo, é preciso desmitificar a retórica acerca do estatuto moral do embrião que normalmente acompanha a disputa conceitual sobre a origem da vida. Tal retórica comumente revela uma suposta cisão entre aquelas que seriam (1) contrárias ao aborto e, consequentemente, a favor da vida, e (2) favoráveis ao aborto e, consequentemente, contrárias à vida. Quando apresentado nesses termos, o debate sobre o aborto torna-se uma falácia, pois encobre o debate público sobre sua descriminalização e todos os elementos que compõem o cenário de violência e precarização a qual essas mulheres são submetidas.
Ou seja, trata-se de um debate bioético iminentemente político, dado que visa a garantir o direito à liberdade de cada mulher endossar crenças e valores específicos sem que seja punida por isso. Sendo assim, a apresentação falaciosa do debate sobre o aborto impede justamente o ato de pensar o aborto e, consequentemente, perpetua o controle biopolítico que marca e tortura o corpo das mulheres historicamente.
PEC 181 e o aborto no Brasil
Pensar o aborto no Brasil parece ter se tornado um ato especialmente ousado nos últimos dias. A ameaçadora PEC 181/2015 (antiga PEC 181/2011), votada na última quarta (8), tem relevante potencial retrógrado de criminalização total das mulheres que abortam no Brasil. A Proposta de Emenda Constitucional foi criada por uma comissão especial, cuja formação revela um aspecto importante de toda a questão: são 28 deputados – 24 deles publicamente contrários à descriminalização do aborto – e apenas três mulheres.
Em 29 de novembro de 2016 a Primeira Turma do STF afastou a prisão preventiva de dois profissionais denunciados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pela suposta realização de aborto com o consentimento da mulher e formação de quadrilha (artigos 126 e 288 do Código Penal). O voto do ministro Luis Roberto Barroso, acompanhado pela maioria, incluiu a interpretação de que a criminalização do aborto, constante no Código Penal, deveria excluir aqueles praticados no primeiro trimestre da gestação.
O ministro acrescentou no voto que a criminalização viola direitos fundamentais das mulheres, como os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia, a integridade física e psíquica, e a igualdade em relação aos homens (cisgêneros), que não engravidam. A decisão, que se referia ao julgamento de um Habeas Corpus, rapidamente ganhou notoriedade midiática, o que fez com que os grupos organizados em torno da pauta pela criminalização total do aborto no país se manifestassem.
Dentre os vários posicionamentos contrários à decisão e também muitos favoráveis, na mesma data Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, criou uma comissão especial para incluir na Constituição a definição de que a vida começa na concepção. A comissão foi instalada para discutir a proposta sobre ampliação da licença-maternidade, mas desde o início manifestou centralidade na questão do aborto, especialmente em oposição à decisão pontual do STF.
Nas manifestações de envolvidos, algumas frases ditas à época assinalavam as questões supostamente de fundo: “Sempre que o Supremo legislar, nós vamos deliberar sobre o assunto”, disse Rodrigo Maia, do DEM-RJ. “Revogar o Código Penal, como foi feito, é verdade, num caso concreto, trata-se de um grande atentado ao Estado de direito. O aborto é um crime abominável porque ceifa a vida de um inocente”, disse Evandro Gussi, do PV-SP, e presidente da comissão especial. “Nós, que somos cristãos, nós que defendemos a família, nós que defendemos a vida, nós não concordamos com essa decisão”, disse Edmar Arruda, do PSD-PR.
Manifestação no Dia Internacional da Luta das Mulheres em São Paulo, 2015 (Foto: Roberto Parizotti)
Manifestação no Dia Internacional da Luta das Mulheres em São Paulo, 2015 (Foto: Roberto Parizotti)
Os posicionamentos, semelhantes aos apresentados no relatório do Deputado Jorge Tadeu Mudalen, já referente a PEC 181, tem como questão não só o embate entre os dois poderes, mas uma guerra masculinista sobre a soberania da deliberação sobre a questão do aborto, tendo o corpo e a vida das mulheres como campo de batalha.
A votação da PEC teve 18 votos favoráveis, todos de homens. A única mulher presente, Érika Kokay (PT-DF), representou o voto contrário. Ainda que contendo problemas quanto ao reforço da responsabilidade exclusiva das mulheres com o cuidado, a proposta original tinha como foco a ampliação de um direito trabalhista, a proteção das crianças e das mulheres.
A subversão do teor da proposta de emenda revelou a retirada das mulheres como foco de preocupação moral e a integral (e suposta) preocupação apenas com um núcleo de células embrionárias de um ser humano, forjando um dilema moral e igualando o embrião, desde a concepção, à qualidade de concernido moral equivalente as mulheres. A manobra política, ora evidente, se alinha a um fenômeno já conhecido no cenário brasileiro, de intervenção do campo religioso na política e a eleição de determinadas pautas como centrais, sobretudo as relacionadas aos direitos LGBTTIs e aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Em uma sociedade democrática, que respeita os princípios de laicidade e pluralismo moral, tal inserção não implica necessariamente um problema, entretanto resta compreender a eleição de tais agendas políticas como modo não só de apresentar um projeto de sociedade, mas de capitalizar, em uma espécie de economia da moral, discussões abstratas, que recusam a gravidade dos impactos concretos na vida de sujeitas e sujeitos interseccionalmente afetadas(os) por tais disputas.
Desde pelo menos os anos 1990, a pauta do aborto tem sido utilizada como moeda de troca política no Brasil, definindo alianças e mesmo resultados de eleições, como a presidencial de 2010, conforme evidencia a pesquisa “Religião e Política no Brasil – um estudo sobre a atuação de lideranças evangélicas no cenário político nacional”, da Fundação Heinrich Boll e ISER (Instituto de Estudos da Religião). A eleição do aborto como agenda central, hegemonicamente representada por homens, cisgêneros, brancos, heterossexuais, porta-vozes de elites nacionais e internacionais, surge historicamente como contra-mobilização aos movimentos feministas e como modo capitalizado de visibilidade, acesso e permanência no jogo político.
Questões para continuar pensando o aborto
Este arranjo justifica, ao menos em parte, toda a disputa envolvendo o tema do aborto, bem como sua recorrência no debate público, especialmente por um viés polemista e espetacularizado. Algumas outras questões se apresentam: estariam todos estes homens de fato interessados na defesa do embrião? A questão da inviolabilidade da vida desde a concepção pode ser tida como o centro de um debate notoriamente marcado por uma assimetria entre as partes? Quais mulheres estão tendo seus corpos sistematicamente instrumentalizados, suas demandas caladas, seu direito a autodeterminação violado e suas vidas colocadas em risco? Finalmente, como podemos justificar que o Estado imponha às mulheres uma gestação e uma maternidade indesejadas, em muitos casos, traumáticas, e, simultaneamente, se exima de sua responsabilidade quanto a garantia da qualidade de vida de seus filhos já nascidos e dos que por sua própria determinação virão a existir? Tais questões ousam ecoar.

FABIO A.G. OLIVEIRA é professor de Filosofia da UFF e membro do Núcleo de Ética Aplicada (NEA) da UFRJ
LETÍCIA GONÇALVES é doutoranda em Bioética da UFRJ e membro do Núcleo de Ética Aplicada (NEA) da UFRJ
MARIA CLARA DIAS é professora de Filosofia da UFRJ e membro do Núcleo de Ética Aplicada (NEA) da UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Nani

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

Machado

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Charge! Benett via Folha de São Paulo

Benett

Editorial: O novo xerife da Polícia Federal.


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Primeiro, vamos dar uma notícia boa. Em 2009, o jornal francês Le Monde Diplomatique, em meio às dificuldades que poderiam comprometer a sua circulação, pediu o apoio dos seus leitores. Nos anos que se passaram, esse apoio veio de forma efetiva, traduzida em assinaturas, doações, compra dos exemplares em banca, o que aumentou sensivelmente a circulação do jornal. Reconheça-se os bons resultados obtidos pelo Diplomatique, uma vez que essa tarefa de contar com o apoio decisivo dos leitores não é assim tão simples. Alguns blogs, revistas e sites brasileiros enfrentam enormes dificuldades de se manterem no ar, em razão do torniquete aplicado pelo governo implantado no país depois do golpe institucional  de 2016. São sites progressistas, vinculados aos movimentos de esquerda, críticos da ruptura democrática, que, naturalmente, não gozam da simpatia dos governos de turno, notadamente quando esses governos apresentam um perfil reacionário, conservador e ultraliberal.

Depois de silenciar alguns desses veículos, gradativamente, vão se ampliando os tentáculos autoritários na sociedade, conforme observa o cientista político Rodrigo Lentz, em artigo publicado na edição brasileira daquele jornal, neste mês de novembro. Neste momento, convém observar, com bastante cuidado, como as "coisas" vão se encaixando. Lentz observou, por exemplo, que os generais que passaram a ocupar funções públicas na gestão deste Governo são de uma mesma "escola", todos eles identificados com a Doutrina de Segurança Nacional. Todos eles passaram pela Escola Superior de Guerra. Possuem uma concepção expressa nos poderes militar, econômico, político, psicossocial e de ciência e tecnologia, tendo como missão proteger os Objetivos Nacionais Permanentes(ONP). Não menos importante, é observar as calorosas recepções ao militar da reserva, Jair Bolsonaro, em festividades militares de formatura de oficiais, observa o articulista. Numa sociedade onde, numa escala de propensão autoritária que vai de 0 a 10, ficamos com a nota 8 e as Forças Armadas é considerada a instituição mais respeitada do país, é de ficar com a orelha em pé.

É esta percepção mais aguçada e articulada que nos permitem dimensionar o tamanho da encrenca em que estamos metidos. Por aqui pelo Nordeste, caro Lentz, vejo alguns movimentos que nos permitem suspeitar, por exemplo, de uma reedição da Aliança para o Progresso da década de 60, quando agentes da CIA chegavam ao país disfarçados de bons samaritanos para prepararem o terreno do que se sucederia em 1964. Claro que as "quarteladas" das décadas de 50/60 ficaram no passado. Tudo hoje é mais sutil e sofisticado. Para apear uma presidente eleita e legítima do poder, foi utilizado um instrumento previsto pela própria democracia representativa: o impeachment. No Uruguai este mesmo expediente foi utilizado 24 vezes contra o ex-presidente Fernando Lugo, até que um deles foi aprovado. Nessas novas "conformações autoritárias" os instrumentos jurídicos ganharam uma força maior do que as baionetas. O exemplo mais emblemático é a prevalência do judiciário corporativo, quando os crimes cometidos por militares contra civis, em serviço de policiamento urbano, passam a ser de competência de tribunas militares. Logo, até a Maria da Penha dos militares será julgada por tribunais castrenses. 

Quando assumiu o Ministério da Justiça, o ministro Torquato Jardim teve muita dificuldade em mexer no comando da Polícia Federal, muito em razão dos holofotes da Operação Lava Jato. Deu-se um tempo e, mais recentemente, numa manobra que, dizem, urdida pelo presidente Michel Temer, o ministro Eliseu Padilha e o morubixaba maranhense José Sarney, eis que saiu a nomeação do Delegado Fernando Segóvia para o comando da PF. Um jornalista observou que, no dia de ontem, ele interrompeu uma entrevista sob o argumento de que iria ter um encontro com o ministro. Não se pode afastar o componente politico da indicação da superintendência daquele órgão, em nenhuma hipótese ou circunstância. O que preocupa neste último arranjo, no entanto, são as motivações desse grupo, todos, direta ou indiretamente, encrencados com os rolos da Lava Jato.

Charge! Duke via O Dia

domingo, 12 de novembro de 2017

Le Monde: Os senhores do mundo

A população assiste estarrecida ao desmonte do Estado, ao colapso das políticas públicas, à privatização deslavada do patrimônio de todos, à degradação dos salários e dos direitos trabalhistas, ao corte das políticas de assistência aos mais pobres.

Agora a grande imprensa, a TV e os partidos no governo tratam as movimentações de Temer comprando com o dinheiro público o voto de deputados para evitar sua cassação e prisão como algo normal, que faz parte da política. As emendas parlamentares, a nomeação de prepostos, a anistia de dívidas de empresas, o favorecimento do agronegócio, vale tudo para garantir a permanência no poder. Essas operações custam bilhões aos cofres públicos, dinheiro seu, meu, de todos os contribuintes. Não se fala mais que o uso do dinheiro público pelo presidente da República para salvar a própria pele é crime. Está longe o tempo em que as “pedaladas fiscais” davam motivo para a cassação da Presidência da República.
A cada dia aumenta mais nossa surpresa diante da ousadia e desfaçatez com que se faz corrupção à luz do dia. As malas de dinheiro filmadas pela polícia não são provas para levar nem Temer nem o senador Aécio Neves para a cadeia. Mas a questão da corrupção, ainda que importante de ser combatida, é apenas a fachada; é preciso ir além na compreensão do que se passa. O desastre é maior.
A população assiste estarrecida ao desmonte do Estado, ao colapso das políticas públicas, à privatização deslavada do patrimônio de todos, à degradação dos salários e dos direitos trabalhistas, ao corte das políticas de assistência aos mais pobres. O contingenciamento dos gastos pelo governo, assim como o teto estabelecido para o gasto público, impõe um rastro de destruição: hospitais e postos de saúde tendo de fechar as portas ou reduzir seu atendimento por falta de condições operacionais; universidades e escolas públicas sem recursos; pesquisa científica paralisada; professores sem receber regularmente seus salários; funcionários da saúde com o salário em atraso; obras públicas paradas…
A sanha privatista quer reduzir de tal forma a capacidade de o Estado intervir na economia (e eventualmente regular as atividades dos grandes conglomerados) que se propõe a acabar com as empresas estatais, privatizar bancos públicos, rodovias, portos, aeroportos, ferrovias, apequenar o BNDES, encolher as políticas públicas para dar lugar à iniciativa privada nas áreas principalmente de saúde, educação e previdência.
A crise financeira de 2008 permitiu uma ainda maior concentração bancária. De 2008 até agora, os quatro maiores bancos brasileiros – Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Itaú e Bradesco –, que detinham metade do mercado, passaram a deter três quartos.1
Os poderes que estão impulsionando essa destruição do que é público e transformando tudo em mercadoria são os fundos de investimentos e os grandes bancos privados. Se antes já determinavam o ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, sequestravam da política a gestão da macroeconomia e submetiam todo o país aos seus interesses particulares de maximizar os lucros, hoje impõem um novo padrão de espoliação, sem nenhuma consideração por suas consequências. O contrapeso da democracia como limite para a voracidade do lucro não existe mais, o Congresso foi comprado por eles. 
Como se estivessem numa ilha isolada e não fizessem parte deste Brasil, os grandes bancos anunciam os lucros de 2017. O Sistema Financeiro Nacional teve um lucro líquido de R$ 44 bilhões no primeiro semestre de 2017. Esse lucro foi de R$ 45 bilhões em 2016 e R$ 50 bilhões em 2015, nos mesmos períodos.2 Em plena crise econômica, eles não são afetados; ao contrário, crescem na crise. Ao lado dessa lucratividade, e por causa dela, aprofunda-se a pobreza para as grandes maiorias.
As consequências são notórias e nos amedrontam. Basta ver a situação do Rio de Janeiro, a violência que se generaliza pelo país, a crise das instituições públicas, as violações de direitos, a crise da democracia. Essa política dá num beco sem saída onde as grandes maiorias são espoliadas de seus direitos, os salários são reduzidos, as políticas sociais são cortadas e/ou precarizadas, e a tensão social e a violência aumentam.
As “políticas de austeridade”, como é chamado esse novo padrão de espoliação da sociedade, estão sendo impostas globalmente e, no caso da Grécia, implicaram um retrocesso de trinta anos na qualidade de vida da população. Em nosso caso, o desastre está se materializando agora; não sabemos os limites dessa espoliação.
É interessante observar, porém, que mesmo no mundo das organizações multilaterais começam a surgir alertas de que esse caminho leva a um beco sem saída, ao empobrecimento das maiorias, à barbárie na sociedade, à instabilidade política e a regimes cada vez mais autoritários.
O relatório deste ano publicado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) denuncia como responsáveis pela crise atual as políticas de ajuste, assim como a doutrina ultraneoliberal, e aponta a saída com políticas contrárias às atuais: um novo New Deal global, em que o Estado e o investimento público tenham papel central na recuperação da economia, dos salários e do consumo.3
A questão que desafia a todos é como os governos nacionais e os órgãos multilaterais terão capacidade para controlar esses poderosíssimos grupos financeiros que se tornaram senhores do mundo. A Unctad novamente nos alerta de que não há possibilidade de um país, isoladamente, tentar controlar esses poderes de fato. Terá de ser uma ação internacional, com o apoio de Estados nacionais. E o caminho é a radicalização da democracia, coisa que começa no plano da sociedade, em cada país, com a mobilização cidadã.
Silvio Caccia Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil

Michel Zaidan: Crime de lesa-pátria






Vendidas as reservas de Petróleo da camada do Pré-Sal, pela bagatela de 7.000.000.000 de reais (quando originalmente estava estimadas em 700.000.000.000 de reais, se consuma o crise de lesa-pátria cometido pela quadrilha que assaltou o poder, com o afastamento da Presidente eleita Dilma Rousseff. A dimensão verdadeiramente criminosa não está apenas no aviltamento do valor venal desse tesouro estratégico, mas no que a venda significa para a busca da autossuficiência de petróleo refinado no Brasil.

A modelagem original para a exploração da camada de pré-sal no Brasil previa uma forma de internalização da industrialização do petróleo, de modo a diminuir a nossa dependência da importação do óleo refinado. O petróleo cru, sem ser processado, é uma simples "commoditie", de pouco valor. É como um minério bruto, mera matéria prima a ser processada pela indústria, que lhe acrescenta o que os economistas chamam de "valor agregado".. Nosso país, desde a longínqua época colonial, sempre foi um simples fornecedor de insumos e matérias-primas para os países mais industrializados do mundo. A nossa luta foi sempre de romper com esse estatuto de colônia, neocolônia ou país dependente, que troca "commodities" por produtos de mais valor agregado. Hoje, com o fim dessa modelagem, que troca o óleo por dinheiro, e retira da Petrobras o status de empresa privilegiada nos contratos de exploração do pré-sal, regredimos à condição de mera plataforma de lançamento das empresas multinacionais, interessadas em explorar as vantagens locacionais oferecidas pelo governo "ilegítimo" do Brasil, e as facilidades alfandegárias do Mercosul.

A malta de bandidos que assaltou o país tinha como objetivo reconverter nosso país à condição de periferia, zona de exploração selvagem do capitalismo mundial. Está conseguindo,  graças à venalidade dos parlamentares da pior legislatura que tivemos nesses últimos anos, mercê da fragmentação partidária, da falta de lideranças e do corporativismo que tomou conta das casas legislativas. Agora vem a privatização da Eletrobrás, com a diminuição da participação acionária da União, Que vai deixar de ser majoritária para ser minoritária. Imagine o que vai acontecer com a geração de energia e o preço da conta de luz! - Um formidável apagão. As empresas privadas não investem nem na transmissão, quando mais na geração, que demanda mais recursos e um retorno lento do investimento. As consequências serão menos energia e mais carestia, num cenário de aumento de demanda pelos consumidores urbanos. É a destruição da infraestrutura do Brasil e o fim de qualquer projeto de independência econômica, social e política do país. E tudo com a participação decisiva de tucanos, democratas e peemedebistas.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

Editorial: O festival de besteiras que assola o país.



Domingo é bom dia para lembrar do escritor Sérgio Porto, que assinava como Stanislaw Ponte Preta. Febeapá - ou o Festival de Besteiras que Assola o País - é uma de suas obras mais conhecidas. Desde o dia de ontem que começo a observar algumas cenas inusitadas no cenário político, de certo, similares às abordagens dos textos do Sérgio Porto, de quem admiramos muito o estilo. O golpe institucional de 2016 tem produzido algumas reações estranhas nos brasileiros, algo próximo a uma histeria coletiva ou impulsos inconsequentes, como um fato observado pelo historiador Durval Muniz, em seu artigo de hoje, aqui publicado, como uma grande faixa estendida em artéria principal de Natal, entre dois dos seus principais shoppings, no Rio Grande do Norte, pedindo uma intervenção militar. O ato, segundo Durval, contou com a adesão de muitas pessoas, que buzinavam e aplaudiam a iniciativa. Na realidade, uma intervenção militar explícita, porque os militares continuam ativos nos subterrâneos desse arremedo de democracia representativa que experimentamos no país. No mesmo artigo, observa o historiador, uma outra manifestação pró-Jair Bolsonaro, reuniu 12 mil pessoas, todos imbuídos do mesmo propósito.
 
As pessoas que ainda conservam algum bom-senso sabem que Jair Bolsonaro é uma aventura inconsequente, de resultados imprevisíveis. Até bem pouco tempo, a banca financeira - aquela que esteve diretamente envolvida nas tessituras que culminaram com o afastamento da presidente Dilma Rousseff(PT) da Presidência da República - pensava assim. Talvez fosse realmente ariscado investir numa candidatura tão imprevisível, apoiada por uma trupe enfurecida, capaz de fazer apologia ao estupro, pregar o ódio aos homossexuais, e idolatrar torturadores do regime militar. Que medidas esse cidadão poderia tomar no comando do país? Até o insuspeito MBL não endossaria o apoio ao seu nome. Em princípio, outro candidato estaria sendo apoiado pelo grupo, com o propósito de concorrer à Presidência da República. O engomadinho paulista seria mais previsível. Para nossa surpresa, a Folha de São Paulo de hoje traz uma matéria indicando que o empresariado já estaria "assimilando" a candidatura do ex-militar, como uma espécie de se contrapor a uma eventual candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva.

Por seu turno, mesmo diante de uma candidatura ainda improvável, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estabelece a mesma estratégia da conciliação de classes que o conduziu ao poder no passado, aliando-se às velhas e tradicionais oligarquias nordestinas. Se voltar ao poder, será dentro daqueles "constrangimentos" bem conhecidos dos brasileiros, onde reformas importantes deixarão de ser feitas e, pior, as conduções temerárias do negócios públicos permanecerão, em nome da fatídica governabilidade, nos parâmetros do presidencialismo de coalizão. Ou seja, temos o diagnóstico da doença, mas ela não será tratada. É mais confortável jogar a radiografia na lata do lixo. Há quem aposte que, mesmo eleito, Lula seria logo em seguida apeado do poder por essas mesmas forças que agora o apoiariam. Não seria improvável, afinal, o PMDB esteve no epicentro das articulações em torno da derrubada da ex-presidente Dilma Rousseff.

E o festival de besteiras que assola o país continua, como esta discussão interna no PPS sobre as próximas eleições presidenciais, onde se apresentam como postulantes o apresentador Luciano Huck e o senador Cristovam Buarque. Já pensaram? Deve ser mesmo um páreo difícil essa escolha. Onde foi parar o nosso intelectual e acadêmico respeitado! Próceres lideres do PPS já teriam conversado com o apresentador. Até o ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, esteve com Luciano Huck, que manifestou o desejo de, se eleito, contar com ele no seu governo. O PSDB, por sua vez, insiste em conservar em formol um defunto político, cujo odor tem provocado forte dores estomacais naquelas aves emplumadas. Há seis meses que eles discutem o desembarque do governo Temer e não chegam a uma decisão. O dirigente partidário ao qual nos referimos, afirmou recentemente que o partido sairia pela porta da frente. Ah, não seria a porta dos fundos uma melhor saída?

P.S.:Contexto Político: Na realidade, apesar das brincadeiras, estamos vivendo no país um clima bastante pesado, que inclui alguns ingredientes perigosos. Corrupção e mediocridade no campo político; um retrocesso inimaginável nos direitos civis e constitucionais dos cidadãos brasileiros; o aumento sensível do quadro de insegurança e violência; nuvens negras no tocante às conquistas sociais, com uma agenda regressiva que cogitou até mesmo a volta do trabalho escravo; o afrouxamento das medidas que objetivavam preservar o meio-ambiente, permitindo a farra do agronegócio até mesmo em reservas indígenas; a venda, a preço de banana podre, do patrimônio nacional, uma medida que atenta frontalmente contra a nossa soberania e autossuficiência, como observou o professor Michel Zaidan Filho em artigo aqui publicado. 

Charge! Duke via O Dia

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

Jean Galvão

Durval Muniz: O desejo autoritário

 

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Na sexta-feira à tarde, uma faixa solicitando a intervenção militar no país, foi estendida na passarela entre o shopping Via Direta e o Natal shopping. Pedestres e carros, que por ali passavam, manifestavam seu apoio, com gritos, aplausos e acionamento de buzinas. Já em 2015, uma manifestação apoiando a intervenção militar e a candidatura de Jair Bolsonaro a presidência da República, reuniu, segundo o jornal Tribuna do Norte, cerca de 12 mil pessoas, que ocuparam uma faixa da Av. Salgado Filho, vestidos de verde e amarelo e portando faixas onde se podia ler: “SOS FAB e Exército Brasileiro”, “O Olavo tem razão”, “Menos Marx e mais mísseis”.
Sempre quando isso ocorre, ficamos nos perguntando perplexos, o que essas pessoas têm na cabeça? Ficamos nos indagando das razões que podem levar a alguém reivindicar a volta da ditadura? Sempre tentamos buscar razões para que alguém deseje ver na presidência da República alguém tão despreparado, incapaz de uma ideia original sobre qualquer assunto, alguém que apenas sabe repetir bordões cheios de preconceito e ódio, que apenas sabe repetir as frases de senso comum? Nos perguntamos, como alguém em sã consciência deseja um “país livre”, como dizia uma das faixas da manifestação, o entregando a alguém claramente autoritário, para quem a liberdade não tem o menor valor, muito menos a vida e a dignidade humanas, à medida que defende abertamente a ditadura militar e a prática da tortura, além de fazer apologia do estupro, ato pelo qual já foi condenado judicialmente, da homofobia e do racismo?
Talvez o grande equívoco disso tudo é achar que está na cabeça, na razão, na consciência a resposta para nossas perguntas, para nossa perplexidade. Quando das manifestações a favor do impeachment, era comum que repórteres dos vários meios de comunicação, notadamente dos blogs e sites alternativos, interrogassem as pessoas sobre os motivos de estarem ali. Diante das respostas, a nossa perplexidade aumentava ainda mais, pois muitas das explicações nos pareciam surreais. Defendia-se a volta dos militares dizendo que se vivia uma “ditadura petista”; reivindicava-se liberdade e, ao mesmo tempo, Bolsonaro e intervenção militar; gritava-se contra a corrupção e, ao mesmo tempo, agradeciam a Eduardo Cunha por encaminhar a destituição da presidente; viam o comunismo se espalhando por todo lado, o bolivarianismo em cada esquina. Discursos raivosos e inflamados desenhavam um país que ninguém conseguia ver. Até uma bandeira do Japão foi transformada no projeto de bandeira brasileira acalentada pelos petistas. A bandeira do Brasil ia ser pintada de vermelho, os médicos cubanos faziam parte de um plano de invasão comunista. A teratologia tomava conta do país. Onde estava a racionalidade, a consciência, a inteligência nisso tudo?
Vimos colegas da universidade, para quem se considera que o uso da razão é obrigatório, pessoas informadas, bem formadas, pretensamente conscientes, usarem os argumentos mais esdrúxulos para apoiarem o impeachment. Colegas que costumam escrever, dar aulas, proferir palestras em busca da conscientização da população sobre questões de direitos humanos, gênero, sexualidade, relações raciais, problemas educacionais se tornaram eleitores de Marina e Aécio Neves (no que tinham todo direito), mas brandindo um discurso que procurava negar todos os avanços pelos quais o país passara, nos últimos anos, inclusive fingindo não ver as profundas mudanças ocorridas no ensino superior, nas universidades, no campo da educação. Lideranças históricas dos movimentos sociais de minorias a fazer um discurso de ódio e preconceito contra a candidata a presidente da República, numa retórica muito próxima a da direita. Ao invés de vermos críticas bem fundadas aos vários erros das gestões petistas, com a apresentação de alternativas ou saídas à esquerda, vimos essas pessoas aderirem a candidaturas de direita, sabidamente conservadoras, reacionárias, elitistas, corruptas, que jamais foram vistas defendendo os mesmos valores e as mesmas pautas dessas pessoas. Como explicar essas atitudes só levando em conta a racionalidade?
Há uma dimensão do social, do humano, que sempre foi negligenciada pelas esquerdas na hora de analisar os eventos e os comportamentos individuais e de grupos: o desejo. O desejo não é uma ficção, não é uma invenção dos psicanalistas e psicólogos: o desejo existe e é a principal força a mover tudo o que fazemos. No entanto, o desejo está longe de ser algo interno a cada um de nós, algo escondido, misterioso, algo que se alojaria em algum lugar de nós que não sabemos qual é. O desejo está longe de ser apenas desejo sexual, de se reduzir à sexualidade, de se esconder entre nossas pernas, de se alojar num inconsciente escondido no interior de nosso corpo ou de nossa alma. O desejo é imediatamente social, coletivo, pois ele nasce do encontro de nossos corpos, de nossos sentidos com o mundo, com os outros, com os objetos, sejam eles quais forem. O desejo não está em mim, não está no outro, está entre nós, está no meio, no encontro entre corpos, sejam eles humanos ou não. O desejo nasce quando somos afetados por alguma outra coisa do mundo, nem que seja imaginária, simbólica, imaterial. O desejo nasce com o afeto, com o toque que algum signo do mundo faz em nossos sentidos. Eu posso desejar aquelas belas pernas humanas que acabaram de passar por mim e me afetaram, como posso desejar a mercadoria que pisca para mim na vitrine do shopping. Eu posso desejar aquela comida que, através da narina, do cheiro, aguçou meu apetite, como posso desejar aquele livro que eu vi na estante da livraria.
O desejo é fluxo constante, ele não para de devir, de fluir, de nos aguilhoar, de nos cutucar, por isso ele mete medo, ele nos causa desassossego, ele nos causa insegurança. O desejo, no entanto, busca sempre conexão, agenciamento, busca sempre expressão. Como ele nasce de encontros, para que as conexões ocorram é preciso que os encontros sejam felizes, que o desejo que nasceu em um, também tenha nascido no outro (no caso das relações humanas). Desse encontro bem-sucedido nasce o amor, a felicidade, a fraternidade, a amizade, o companheirismo, a solidariedade. Quando o desejo não é correspondido ou não pode ser atendido (a mercadoria desejada não pode ser comprada, a meta não pode ser alcançada), quando os encontros não são felizes ou não se dão os bons encontros, surgirá a frustração, com ela podendo nascer o ressentimento, a raiva, o ódio, o desejo de vingança, a inveja, etc. O desejo quando consegue se conectar, quando consegue agenciar o seu objeto, ele se transforma em território existencial, em um lugar para habitar (se o meu desejo por um parceiro é correspondido posso construir o casal, o casamento, a convivência a dois como território para viver). Construído o território, nada garante que ele permanecerá existindo, que é eterno, pois o desejo não deixa de maquinar, de trabalhar: um novo encontro poderá fazer aquele território desabar, desmoronar, se desgastar (casados podemos ser afetados por outra pessoa e com isso o território matrimonial desabar), por isso o desejo é visto como caos, como perigo. O medo do desejo produz atitudes reativas, reacionárias, conservadoras, paranoides, fascistas.
O desejo para se expressar lança mão daquilo que dispomos e aprendemos no processo de socialização: as linguagens que conhecemos. Ele se utiliza de gestos, comportamentos, ações, palavras, signos, sinais para se manifestar, se fazer presente e presença. Quando o fluxo do desejo é acolhido, quando ele passa, ele se expressa através de dados recursos culturais, socialmente aprendidos (se meu desejo é acolhido pelo outro, sei disso porque ele me sinalizou com gestos, expressões faciais, com comportamentos, com palavras e ele fez isso porque eu também expressei adequadamente o que sentia utilizando dos mesmos recursos). Aprendemos a fazer rostos, gestos, posturas corporais, sinais, a dizer palavras, frases quando queremos fazer o nosso desejo chegar até o outro ou manifestá-lo. Por isso o desejo é, de saída, social e cultural, pois só se materializa, se expressa usando recursos cultural e socialmente aprendidos. Isso não significa que não possamos disfarçar os nossos desejos ou, pior, não saibamos direito o que desejamos. Como mostrou toda a obra de Freud, o desejo pode utilizar, para se expressar, das mais diferentes máscaras, ele pode simular, fantasiar, se deslocar para longe do que ele efetivamente quer.
Creio que só compreenderemos muito do que estamos vivendo, atualmente, na sociedade brasileira, se levarmos em conta, além das dimensões racionais, estruturais, macro-históricas, as dimensões subjetivas, micro-sociais, micro-políticas, ligadas ao funcionamento social e cultural dos desejos. William Reich apontou, ainda nos anos trinta, que era impossível entender a adesão de grande parte da população alemã ao nazismo, sem levar em conta as dimensões subjetivas, o funcionamento do desejo, o modo de produção de subjetividades, naquela sociedade, naquele momento histórico. Vivemos um momento de crise mundial do capitalismo e como bem tratou os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, o capitalismo não é apenas um modo de produção de mercadorias, uma dada relação social de trabalho e exploração, mas um modo de produção de subjetividades, produzindo e capturando os desejos; oferecendo modelos de sujeitos para serem consumidos, notadamente através da propaganda e da mídia; oferecendo uma carta de valores; colocando o dinheiro e a mercadoria, a coisa, o objeto, como o equivalente geral, aquilo que substitui qualquer coisa, que vale por tudo (troco o amor pela mercadoria; o sagrado vira mercadoria; a felicidade se compra a prestações; consumir é a realização; ter coisas, acumular é objetivo de vida; ser rico, ostentar, se apropriar de tudo e de todos é objetivo máximo); aquilo que deve estar no centro da vida e da existência das pessoas, oferecendo territórios vistos como de felicidade e sucesso.
Somos uma sociedade que historicamente foi constituída por desejos autoritários, ou seja, do exercício do poder sem limites e peias. Somos uma sociedade estruturalmente atravessada por desejos de viver sem obedecer aos limites da lei, da norma, do costume, da tradição, do hábito. Ou melhor ainda, temos como herança de nossa construção como sociedade, o funcionamento coletivo do desejo pautado por tradições, costumes e hábitos autoritários. Nossa sociedade se formou a partir do desejo de conquista e de domínio, de saque e de enriquecimento rápido. O outro aqui encontrado (os indígenas) nunca foi efetivamente considerado como um igual e sempre foi tratado a partir do desejo de subjugação, subordinação, conversão, manipulação, escravização. A empresa colonial foi marcada pelo total desrespeito pelo outro, pelo diferente, pelo diverso. As relações dos colonizadores com os negros aqui aportados à força, tratados como gado, vendidos como bestas, utilizados como meros instrumentos de trabalho, não foi menos discricionária. Mesmo as relações mais amenas, de maior proximidade entre senhores e escravos, aquelas atravessadas pelo paternalismo, nunca deixaram de reafirmar a superioridade de uns sobre os outros, de reafirmar a quase inexistência do outro como humano e como ser de direito, sendo, em extremo, considerado um mero objeto de uso. Os desejos que aí nasciam traziam a marca da dominação, da subjugação, da posse, da propriedade sobre o corpo do outro. Gilberto Freyre vai falar de desejos sadomasoquistas para caracterizar dadas relações entre senhores e escravos, o que é um absurdo, dado que os escravos eram submetidos a um desejo discricionário e autoritário, eles viviam uma situação da qual não podiam se safar e que muito menos a tinham desejado ou escolhido.
Há, portanto, na própria configuração da sociedade brasileira a prevalência, notadamente no seio das elites dirigentes, de desejos autoritários, desejos de poder discricionário, de poder sem limites, de subordinação incondicional do outro a uma vontade, a um desejo sem peias, um desejo de prevalência em toda e qualquer situação (poderíamos chamar esse desejo, como faz a psicanalista Suely Rolnik, de coronel-em-nós, desejamos coronéis e desejamos ser coronéis, em todo país, não só no Nordeste). Somos uma sociedade que amamos o poder sem restrições, que somos capazes de gozar coletivamente com o arbítrio, que somos capazes de tirar prazer da humilhação do outro (os programas policiais fazem enorme sucesso humilhando publicamente pobres e pretos, o bandido, o meliante), que projetamos nossos desejos nas figuras que encarnam o que julgamos ser a autoridade sem limites (daí o desejo por Bolsonaro, Collor, etc). Estamos, por isso, muito pouco preparados para criar uma sociedade efetivamente democrática. Nossas ações políticas, como de qualquer outro povo, são movidas mais por paixões, emoções e desejos, de que por razões ou ideias. A política é, por excelência, o campo de atuação dos desejos, pois o desejar significa desde o início fazer escolhas, e fazer escolhas é tomar posições e tomar posições é essencialmente fazer política. Aqui, no Brasil, o campo da política, como em outros campos, é atravessado por desejos autoritários, pelo desejo da inexistência do diverso, do diferente, que pode chegar a ser desejo de morte, de eliminação do outro.
Recentemente houve um conflito entre grupos de direita e de esquerda no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pernambuco. Um professor identificado com as ideias de direita, resolveu exibir um filme-homenagem ao guru Olavo de Carvalho. Os grupos de direita, neonazistas, compareceram prontos para um conflito, até com soqueiras de metal nas mãos. Estudantes e militantes ligados a partidos e movimentos de esquerda resolveram fazer um evento paralelo, exibindo um filme sobre a Revolução Russa. Os neonazistas passaram a provocar, ocupando a parede onde seria exibido o filme. Após troca de empurrões os dois filmes foram finalmente projetados. No final, no entanto, houve um enfrentamento em que alguns saíram feridos. Os neonazistas trataram de se fazer de vítimas da intolerância comunista e conseguiram o que queriam: aparecer na mídia e ver seu discurso veiculado. Nos dias seguintes ao conflito, o prédio do CFCH se encheu de cartazes e em alguns banheiros foram feitas pichações que diziam: “Com nazi e fascistas só na porrada ou morte”, “Vamos esmagar os nazi-fascistas”. Fiquei a me perguntar quais dos dois lados seriam mais autoritários. Quem fez essas pichações e pendurou esses cartazes, embora se considerem de esquerda no plano racional, são movidos pelo mesmo desejo de morte, de vingança, de poder sem peia daqueles que combatem. São tão autoritários e fascistas em seus desejos quanto aqueles que, no plano da macropolítica, da racionalidade, da consciência se dizem de direita. A sociedade brasileira, sua democracia, sua cidadania, caminham muito mal quando a arte da política, da negociação, do diálogo, se vê substituída pela pura e simples eliminação do oponente, até com a morte.
Quando observamos as ações e reações políticas de dados colegas da universidade, sabemos que não são as motivações racionais, não são as razões que oferecem, não são as causas que dão a suas escolhas que efetivamente explicam o que fizeram e fazem. São motivações, muitas vezes consideradas, muito mais íntimas, privadas, individuais, muito mais pessoais que as levam e levaram a tomar dadas atitudes políticas. O ressentimento, nascido de desejos não realizados, nascido das frustrações de suas ambições, as simpatias e antipatias pessoais, os conflitos com colegas de Departamento, os maus encontros, os desejos bloqueados, que não passam, que não constituem territórios, a inveja, a raiva contra dadas pessoas e instituições, as vaidades feridas, os egos maltratados, dirigem muito mais as escolhas políticas do que qualquer racionalidade. O PT, Lula, Dilma se transformaram em bodes expiatórios de todas as frustrações individuais e coletivas, objetos de todos os ressentimentos, frustrações, desilusões, carências, desejos de poder e até de desejos de morte. O país que se dane, a coletividade que pague o pato, desde que seus desejos de vingança, de poder, de reação encontrem com quem se conectar. Fico pensando, agora que o governo golpista, fruto do golpe apoiado por essas pessoas, suspendeu os aumentos de salários dos docentes até 2020 e ameaça elevar a alíquota de desconto do INSS de 11 para 14%, ou seja, nos presenteando com uma inédita redução de salários, que argumentos estão maquinando para se explicar. Os eleitores de Aécio, que sabem agora (como já sabiam) quem ele é e o que ele pretendia, como sustentam racionalmente a sua opção.
A crise do capitalismo, aliada à grave crise política e de valores em que vivemos, amplia a sensação de insegurança, de medo do futuro. Nessas conjunturas, as mudanças, as transformações sociais tornam-se mais difíceis de suportar, de encarar. As pessoas amedrontadas tendem a desejar tudo aquilo ou aquele que pareça oferecer segurança certeza, manutenção do status quo. Nesses momentos, os desejos reativos, os desejos por territórios existenciais já conhecidos, por conservar o que se tem passam a prevalecer. Além dos desejos egoístas, aqueles que pretensamente protegem o ego, a pessoa, o sujeito, a subjetividade de qualquer processo de desterritorialização (ou seja, de perda do território existencial que habita), prevalecem os desejos autoritários, aqueles que querem barrar à força, nem que seja com o uso da força, qualquer transformação social ou pessoal que possa ocorrer (daí ressurgem o fantasma do comunismo, da revolução; ataca-se o que chamam de ideologia de gênero; o feminismo e o movimento homossexual se tornam inimigos; o status quo social e racial é defendido). Nessas circunstâncias, as pessoas facilmente aderem a soluções politicas e a líderes políticos que prometem combater na porrada ou na bala todos aqueles vistos como ameaças de dissolução da família, da sociedade, da nacionalidade, da fé, de qualquer território que elas consideram sagrado e seguro.
Quanto mais frágeis, desterritorializadas, perdidas, quanto mais fracassadas, frustradas, quanto mais feridas, traumatizadas, quanto mais carentes, inseguras, dependentes, estiverem as subjetividades, mais pavor sentirão do desejo e suas conexões infindas, sua abertura para o fora, para o devir, para possíveis incontroláveis, para o ilimitado, mais grudarão em territórios, identidades, imagens de si mesmo e dos outros reativos, conservadores, reacionários. Aquele que se deixa afetar pelo corpo semelhante, morrerá de medo desse desejo e se tornará homofóbico, aderirá ao discurso e práticas homofóbicas, a figuras homofóbicas, que também partilha desse mesmo pavor diante do desejo que o aguilhoa (poderá até matar com crueldade o outro que lhe infunde esse desejo para dele se livrar). Aquele que teme os devires femininos que lhe habita reagirão em pânico diante do feminismo, das mulheres. O desejo autoritário é um desejo que, se levado às últimas consequências, inviabiliza até mesmo a vida social, pois significa o desejo que o outro não exista como limite, como fronteira, como barreira a esse desejo de poder sem contestação e sem oposição. O desejo autoritário inviabiliza a cidadania pois rejeita o contraditório, a discussão, o debate, o direito do outro ser e fazer diferente. O desejo autoritário é no fundo celibatário, onanista, pois por sua violência põe a perder todo laço social, rompe qualquer conexão, fica falando sozinho, voltado e enrolado sobre si mesmo, fechado em seu próprio mundo azedo, amargo, ressentido, gozando com sua própria impotência. A pretexto de ter todo poder, de ter tudo, de se apropriar de tudo, reduz tudo e todos a nada, a ninguém e fica assim impotente. O desejo autoritário pode reduzir tudo a cinzas na busca de conter todo o fogo do desejo.
 
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)