Já perdi as contas sobre a oferta de disciplinas sobre o golpe institucional de 2016 que serão oferecidas
nas instituições públicas de ensino superior no Brasil. Depois da iniciativa do professor Luís Felipe Miguel, em oferecer a
disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, na grade do
curso de graduação em ciência política da UnB - criando uma grande polêmica com o ministro da Educação, Mendonça Filho(DEM) - diversos professores decidiram solidarizar-se com Luís Felipe, oferecendo uma disciplina congênere em unidades de ensino por todo o país. Aqueles atores que estiveram
diretamente envolvidos na engrenagem político-midiática-jurídica que culminou
com a deposição da ex-presidente Dilma Rousseff(PT) abominam essa expressão, mas
ela vai se consolidando entre os brasileiros, notadamente no meio acadêmico.
Aqui na Universidade Federal de Pernambuco há apenas esboços de
iniciativas do gênero, mas aconteceu algo até mais emblemático. Alunos do curso
de Geografia se recusaram a se matricular numa disciplina eletiva, oferecida
pelo professor Rodrigo Jungmann, polêmico, de perfil assumidamente conservador. Como se trata de uma disciplina eletiva - e não obrigatória - os alunos
teriam a prerrogativa de se matricularem ou não. O que está em jogo, no
entanto, é o ato de protesto, em razão de um histórico de animosidades entre
segmentos do alunado e o referido professor, que culminou em denúncias de pichações e depredações de salas, supostamente promovidas por esses alunos, no seus espaço de trabalho.
Como se sabe, Honduras, Uruguai e Brasil integram a tríade de países que
passaram por um golpe de um “novo" tipo, sem o protagonismo antes destinado aos
militares. Uma das características dos golpes do “novo” tipo é o envolvimento
institucional - utilizando-se até mesmo de expedientes previstos na própria
democracia representativa, como o impeachment - com o propósito de afastar
presidentes que não se coadunam com os interesses da “banca”. No Brasil,
parlamento, mídia e setores do judiciário agiram em conjunto com este objetivo. Até
então, os militares acompanharam todo o desenrolar dos fatos, assumindo,
certamente, um protagonismo maior nos últimos dias, depois de decretada a
intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Não bastasse o comando total
das operações está a cargo de um general do Exército, Braga Netto, o ministro da
Segurança Pública, Raul Jungmann(PPS), convidou assessores militares para auxiliá-lo
e o Ministério da Defesa voltou a ser comandado por um militar, o general Joaquim Silva e Luna, algo inusitado
desde o processo de redemocratização do país. P.S.: Contexto Político: Claro que o conceito de "golpe institucional" é bem mais complexo, sendo impossível descrevê-lo em apenas algumas linhas, como tentamos fazer acima. Para alguns analistas, a intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro é apenas a ponta do iceberg do recrudescimento do autoritarismo no país, uma intervenção que tende a se estender a outras praças, com índices de violência até superiores ao Rio. Ontem, em editorial, tentamos elencar algumas razões para colocarmos as barbas de molho no que concerne a essa possibilidade. No Uruguai, o parlamento fez 24 tentativas de impeachment contra o ex-presidente Fernando Lugo. Ou seja, os próprios operadores do golpe trataram de banalizar o processo ou, mais precisamente, desmoralizá-lo.
(Fotos: Alan Santos e Fabio Rodrigues Pozzebom/Arte Revista CULT)
As pessoas estão apavoradas com o crime violento. Não é de hoje que este pavor mantém a violência urbana como uma das três preocupações principais dos brasileiros, retroalimentado continuamente seja pelo fluxo de informação dos velhos e novos meios de comunicação seja pela própria experiência urbana. Em geral, os brasileiros acham que acima das deficiências dos serviços públicos de saúde e educação, da pobreza e até da tão propalada corrupção pública, o que mais degrada a qualidade da sua vida é o risco iminente de ser morto violentamente ou de ver alguém do seu círculo familiar ou de afeto ser assassinado, ferido, assaltado, estuprado.
A política sabe muito bem disso. Assim como sabe que as pessoas tomam decisões eleitorais, ou resolvem se apoiam ou não autoridades ou políticas públicas, em conformidade com as suas “preocupações principais”- algo que em Comunicação Política se chama agenda do público. A agenda pública costuma mudar entre uma eleição e outra, mas se mantém o fato de que quem identifica a preocupação principal do momento e oferece uma narrativa, um personagem para o papel e uma resposta em forma de discurso, plano ou providência tem grandes chances de ganhar a eleição. O atraso do Brasil, juntamente com o horror aos “privilegiados” do Setor Público (marajás) e o desprezo pela política, deu a maioria a Collor; o pavor da inflação elegeu Fernando Henrique Cardoso; Lula convenceu a maioria de que o grande problema nacional podia ser resumido na questão social e emplacou duas eleições.
Na eleição presidencial de 2015/2016 (tivemos uma, não foi?), as preocupações com a corrupção política e com a incapacidade administrativa de quem governava foi o que permitiu o enorme apoio popular à condenação política da presidente recém-eleita (eu ia escrever golpe, entre aspas, mas soube que agora só podemos nos referir aos acontecimentos de 2016 como “a Revolução vitoriosa para a restauração da moralidade pública e da democracia”). Neste período, a crise econômica e a corrupção constituíram o centro da agenda da sociedade e praticamente monopolizaram a atenção pública, o vocabulário e a discussão da política. O que quer dizer que quem não falasse desses temas, não fizesse julgamentos e interpretações dos fatos com base nesses assuntos ou não aparecesse com uma resposta a esses problemas não era visto nem notado.
À preocupação com a crise econômica se poderia responder de vários modos, naturalmente, mas o caminho preferido foi a combinação da narrativa da austeridade (cortes, demissões, diminuições de despesas, congelamento do gasto público) com a narrativa das “reformas necessárias”. Temer apostou todas as suas fichas nisto e manteve-se na crista da onda por um período consideravelmente extenso. Restava a narrativa da corrupção política, imperiosa no ciclo de 2014 a 2016. Sobre esta, contudo, o ilustre Michel Miguel Temer, a sua turma e os seus feitos não tinham nada a dizer, uma vez desde a origem do seu governo ficou claro que o presidente e os seus auxiliares eram parte do problema da corrupção política brasileira, não a solução. E quando se inaugura o Ano Janot, 2017, o que poderia restar de discurso moral de Temer foi completamente destruído na inundação de áudios, vídeos, depoimentos de testemunhas e acusações do Ministério Público Federal.
Foi então que Bolsonaro correu por fora e tomou a dianteira, com um truque verbal simples: transformou o tema da corrupção em um discurso moral sobre a degeneração dos políticos. A corrupção virou um tema de fundo, usado basicamente para alimentar o antipetismo de que ele precisa para mobilizar e motivar a militância digital, mas o centro da história era, agora, o discurso da autenticidade: Bolsonaro não é um político como os outros; Bolsonaro é grosso, tosco, sujo, feio e malvado, mas é verdadeiro e tem coragem.
Em 2016 e 2017, portanto, temos duas narrativas e dois atores para dois diferentes papeis: Temer com a preocupação em deixar um legado de homem da austeridade e do ajuste do Estado, doa a quem doer; Bolsonaro como o único político autêntico desta nação cujo sistema e instituições da política afundavam na lama. Nenhum dos atores era capaz de fazer o papel do outro: Michel Miguel era visto como um político corrupto, de forma que não se lhe concedia autoridade moral para falar contra o sistema ou a favor de medidas contra a corrupção; Bolsonaro, o bronco, não tinha o “physique du rôle”, a aparência para o papel, como se diz no teatro, para o papel de alguém que entendesse patavina de política econômica. Ambos serviam apenas para um papel e eram tolerados por aqueles que achavam que este papel resolvia a sua preocupação principal.
Mas Bolsonaro pelo menos se dava bem em um terceiro tema: o crime. Como me disse uma fonte esta semana: “Não é questão de ser contra ou a favor do Bolsonaro. O fato é que ele é o único que faz campanha para a redução da maioridade penal, fim da progressão penal, penas maiores para estupradores, é a favor do porte de armas, etc. Ninguém defende essas coisas dentro do Congresso”. “Ninguém” é um exagero, mas a solução casca grossa para o tema do crime (que é a representação preferida dos brasileiros) é o tema para o qual Bolsonaro tem resposta, discurso, imaginário e vocabulário. É onde se sente em casa e é o papel para o qual ele tem a aparência necessária.
Em 2017, como disse, as denúncias de Janot e do jornalismo sobre os costumes não republicanos da nova cúpula do governo destroçaram a credibilidade de Temer para o tema da corrupção. Além, disso, as narrativas da crise econômica e da corrupção perderam força, por conta da exaustão, talvez. Mas principalmente porque não foram apresentadas, pelos atores em cena, as respostas no volume e na intensidade necessárias para que se fizessem sentir os efeitos imediatos sobre a vida das pessoas. Por fim, as condições políticas não pareciam favorecer o impopular discurso da austeridade às vésperas das eleições de 2018. Temer ficou impossibilitado de manter-se na órbita da resposta à crise, mas também, naturalmente, não desejava encerrar precocemente, no início deste ano, o governo que lhe caiu ao colo pelo impeachment. “As reformas de que o Brasil precisa” eram o que mantinham em movimento a bicicleta em que o governo se equilibrava e era tolerado; sem elas, Temer não faria sentido. É assim que ele precisou exorbitar e avançar sobre o território temático e de representações do bolsonarismo. Ao que estamos assistindo nesses dias, é, justamente, dois atores disputando o mesmo personagem.
Se Bolsonaro tem uma posição consolidada sobre a solução casca grossa para o problema do crime urbano, Temer tem a caneta presidência e o conhecimento das brechas e de interpretações maneiras da Constituição para satisfazer os seus interesses. Temer é “constitucionalista”, isto é, um exímio conhecedor de atalhos constitucionais para driblar obstáculos legais. Bolsonaro pode ser militar, mas Temer será o cara que levou as Forças Armadas (o que significa, no imaginário popular, supremacia em armas e homens, capacidade de revidar à violência do crime) para a favela e para enfrentar, a tiros, o tráfico. O capitão pode ser o cara que defende porte de armas e castração química de estupradores, mas Michel Miguel foi quem, cansado de um mero Ministério da Defesa, criou um Ministério do Ataque, para “enfrentar a bandidagem”. Bolsonaro quer armar “homens de bem”, mas foi Temer quem criou o Ministério da Bala, tudo de que o Brasil precisava, segundo a solução simplória mais difundida no país, para acabar com os problemas de Segurança Pública.
O bolsonarismo entrou em desespero e subiu o tom. Carlos Bolsonaro publicou esta semana no Twitter: “Bolsonaro nem é presidente ainda e faz o vice do PT [Temer] tocar nos temas que tornam o capitão popular, mas não passa de um oportunismo frouxo e desesperado. Então surgem os lambe-botas da imprensa fazendo coro aos amigos amorais completando a escória que sempre nos desinformou!”. Agora é guerra: uma contra a bandidagem, outra para ver quem é o dono do tema. Para os bolsonaristas, o que está em disputa, no âmbito da solução “prendo e arrebento”, é a versão raiz, autêntica, de Bolsonaro, e a alternativa nutella, café com leite, oportunista e frouxa, de Temer. Que pode ser desqualificada, do ponto de vista “do capitão”, pelo fato de que o Exército terá as mãos atadas pelas frescuras legais e as firulas dos Estado de direito.
Elevando a tensão a este nível, o que parece ser um roque genial no xadrez político, incorre em um risco muito alto para Temer. Em Bolsonaro são só palavras e discursos, mas Temer implementou como política pública a sua compreensão de que a violência do crime se resolve com a violência legítima do Estado ou a exibição da capacidade estatal de ser violenta contra o crime. As incompatibilidades entre este desenho de Forças Armadas combatendo o crime e os direitos civis já começaram a aparecer. Inclusive no contraste entre a cultura do “vamos rebentar a bandidagem” e as Constituições liberais. Neste quadro, o Brasil, aparentemente, está decidido que ou se segue a Lei e respeitam-se direitos e garantias individuais ou se implementam políticas eficazes de segurança pública, que as duas coisas seriam incompatíveis. Naturalmente, restaria responder por que imposição da Lei e Estado de direito funcionam juntos em todo país civilizado do mundo, mas aqui não se compõem. Mas estas são perguntas indesejadas neste momento em que a violência urbana se tornou um problema tão emergente que chegamos a ter dois personagens centrais disputando o mesmo papel.
O conceito de reacionário surgiu na linguagem política no decurso da Revolução Francesa para nomear aqueles que se colocavam contrários ao processo revolucionário, que defendiam o retorno ao Antigo Regime e defendiam os privilégios e a ordem senhorial que estava sendo contestada. O conceito de reacionário fazia referência, portanto, desde o princípio, não só a uma posição política conservadora e reativa à transformação política em curso, como também nomeava posições filosóficas, morais e ideológicas que defendiam os valores que estavam sendo contestados, que tentavam preservar as relações e hierarquias sociais e os códigos e regras, sejam legais, sejam costumeiros que ordenavam a estrutura social. Um reacionário se define por sua posição diante da mudança, da transformação, da descontinuidade social, cultural e histórica. Ser partidário da reação ao processo revolucionário foi a origem do termo, adotado na gramática política para nomear, a partir daí, todo aquele que defende o status quo, que defende um certo imobilismo social, que defende privilégios e hierarquias, que tende a ver a ordem social presente como aquela que deve permanecer e se perpetuar. Um reacionário tende a temer a história, a passagem do tempo, pois, investe na necessidade de segurança que a continuidade de uma dada forma de organização social implicaria. O que um reacionário esquece é que toda forma que se enrijece e que não se renova, tende a rachar e perecer por falta de oxigenação, de renovação. O reacionário, como todos nós, possui uma dada imagem do humano, do que é ser humano, ou seja, ele possui uma dada antropologia. Podemos nomear a sua antropologia de antropologia negativa, pois ele tende a duvidar das capacidades humanas, notadamente das capacidades humanas de transformar o mundo, de inventar novos mundos. Ele tende a pensar que todo homem que busca a transformação, a mudança, nos promete a desordem e a catástrofe. Eles preferem um ser humano, como ele, conservador, com medo de qualquer transformação, como aquele que se conforma e apresenta a ordem social vigente como a única possível e cabível. Seu homem é um ser conformista e conformado diante das maiores iniquidades. Toda vez que um reacionário houve alguém falar ou sonhar com uma nova sociedade, ele apresentará uma experiência fracassada do passado para servir de espantalho a essa vontade de mudança. Se você critica o capitalismo ele logo achará que você quer a volta do bolchevismo ou que você almeja a ditadura comunista da Coreia do Norte, ou as fracassadas experiências socialistas em todo mundo. Ele aposta que com isso ele imobilizará tua vontade de mudança e te fará aderir à ordem vigente como a única possibilidade de organização do mundo social. Se você critica o golpe ocorrido em 2016 no Brasil, se você grita Fora Temer, ele logo diz que você quer é instaurar a falida experiência bolivariana da Venezuela, no Brasil. Porque um reacionário tem dificuldade de pensar que nós humanos nos definidos pela capacidade de criação e de invenção do mundo humano sempre de novas maneiras. Nós historiadores sabemos que os homens já fracassaram inúmeras vezes em seus sonhos, em suas tentativas de criar um mundo melhor, mas que eles sempre foram capazes de recuperar novamente a capacidade de sonhar, de agir no sentido de que o mundo seja diferente do que é. Se os homens não tivessem se levantado após suas inúmeras débâcles o mundo seria ainda pior do que já é. Foram necessárias milhares de rebeliões de escravos por todo mundo para que a escravidão acabasse, mas só um reacionário pode achar que essas revoltas, mesmo derrotadas e esmagadas no momento em que ocorreram, foram um fracasso a longo prazo, pois graças a elas a iniquidade da escravidão ganhou as consciências do maior número de homens. Não é porque caímos uma vez que deixaremos de nos erguer várias vezes. Só quem acredita em perfeições e paraísos, que os reacionários colocam no presente ou no passado (os reacionários nostálgicos, românticos, saudosistas), acha que as tentativas imperfeitas feitas pelos homens de construir outros mundos possíveis devem nos levar à desistir da mudança e se conformar com o que aí está. Quem não é capaz de ignorar esses espantalhos do passado, agitados como ameaça, não são capazes de continuar buscando a mudança. Devemos partir de uma outra imagem do humano, de uma outra antropologia. Pensar o humano como esse ser que se define, ao mesmo tempo, pela incompletude, pela imperfeição e, por isso mesmo, pela busca incessante de aperfeiçoamento e completude. Se a Revolução Russa foi um fracasso é porque foi uma revolução que traiu aqueles que a fizeram, que matou muitos do que a fizeram, e isso não invalida a ideia generosa que moveram aquelas multidões que naqueles dez dias abalaram o mundo ao se levantarem em defesa da construção de um mundo melhor. Assim como os iranianos que se jogaram de corpo e mãos nuas contra o exército do Xá não podem ser responsabilizados pelos crimes do regime a que deram origem. Foi graças ao trabalho paciente de formiguinha da resistência que o domínio nazista jamais teve sossego em qualquer lugar. Toda tirania, todo regime injusto, político e econômico merece a nossa resistência permanente, mesmo que não tenhamos uma fórmula salvadora para colocar no lugar. Estar vivo, ser humano é afirmar permanentemente a liberdade, e essa se afirma pela recusa de se conformar com a injustiça e o arbítrio. Só um reacionário, que sempre porta uma alta dose de cinismo, pode fazer de conta que nada há para se reclamar nessa sociedade burguesa e capitalista que condena dois terços do mundo à miséria e concentra na mão de 1% da população mundial 20% da riqueza. No Brasil, apenas cinco bilionários tem renda equivalente aos 50% dos pobres do país. Um escândalo que parece não fazer corar a impavidez cadavéricas dos reacionários. O historiador deve se apoiar numa antropologia positiva, ou seja, enfatizar a capacidade dos homens de inventar, de criar, de transformar, de mudar o mundo, mesmo que muitas vezes, para isso, erros terríveis sejam cometidos, dolorosas derrotas aconteçam. Foram necessários mais de 8.500 levantes derrotados e sangrentamente esmagados, ao longo de dois séculos, desde levantes camponeses e populares, até levantes aristocráticos, para que a Revolução Francesa fosse possível. Portanto, quando um reacionário vir te tentar convencer que tua fala de protesto, que tua aula crítica e de denúncia, que tuas ações de contestação ou rebeldia não adiantam nada, estão fadadas ao fracasso, são perda de tempo e dinheiro, lembra que a energia surda da revolta se transmite através dos tempos. Como dizia Walter Benjamin, há sempre alguém para recolher a brasa amortecida da esperança que jaz sepultada sob os escombros das derrotas e dos massacres. Aquela tua palavra, aquela tua aula será recolhida por alguém e germinará como uma semente de esperança no trabalho e na vida de outro alguém. Sim, os que lutam são muitas vezes derrotados e muitas vezes parecem definitivamente esmagados, mas deles fica uma herança, gestos, frases, feitos que permanecem, uma memória subterrânea da rebeldia não deixa nunca descansar os poderosos de plantão, sejam eles quem sejam. Muitas ideias generosas desandaram em formas de dominação e governo das mais terríveis e dantescas, mas isso não torna ultrapassada e desimportante a generosidade de quem lutou, de quem deu a vida para que aquilo existisse. Arrependimento deve ter aquele que não lutou, aquele que se agarrou a seu quinhão numa realidade e numa sociedade injusta e opressiva, aquele que apoiado na exploração investiu suas forças, suas palavras, sua inteligência em remar contra a mudança, em tentar desanimar e desestimular, em ameaçar e intimidar quem nela se engajou. O reacionário também tem uma visão muito particular da vida social, ele possui uma sociologia muito própria, a sociologia do semelhante. O reacionário reifica, naturaliza a ordem reinante. Para ele que, quase sempre tem privilégios sociais a defender, a formação social em que vive, por mais que possua defeito, é a melhor e não se deve querer aspirar a outra forma de organização social. É impactante como um reacionário defende a iniquidade, a miséria, a exploração, as injustiças sociais reinantes a pretexto de que qualquer tentativa de mudança só resultará em algo ainda pior. Com medo de perder o que tem, inseguro com qualquer transformação, ele chama de ideológico todo discurso que não for igual ao seu, enquanto o seu discurso tão ideológico como qualquer outro é apresentado como sendo a verdade e a única e melhor imagem da realidade. O reacionário abomina qualquer imagem do social que não seja aquela que ele possui, que não corresponda a sua versão da realidade. No fundo ele sabe que a ordem social é passível de mudança mas ele quer evitar ou controlar essa mudança para que ela reponha, se possível, as mesmas condições anteriores. Os reacionários adoram as revoluções que não mudam nada, que na verdade são contrarrevoluções e repõem o status quo; adoram os golpes que levam a sociedade a flertar com a volta aos tempos áureos de uma dada dominação. Eles se julgam superiores e espertos por estar do lado dos vencedores e dos dominadores do momento, lançam um olhar de desprezo ou de condescendência para aquele que se coloca contra a ordem, vendo-o como um perdedor, um habitante do mundo das ilusões. Ele se diz realista, ou seja, ele adere sem crítica à realidade que o cerca e chama o que não concorda com suas posições reativas de sonhador. Um reacionário tende a detestar toda a diferença, tudo aquilo que não seja a reprodução de seus próprios valores, de seus próprios costumes que ele finge não ser valores de uma dada classe, de um dado gênero, de uma dada etnia, de uma dada geração, de um dado tempo e lugar. Ele pretende que seus valores particulares e conservadores sejam vistos como universais, como aqueles que devem prevalecer universalmente, que não devem receber contestação. Qualquer crítica a seus valores é logo atribuído ao caráter comunista, esquerdopata ou petralha do discurso do outro. É superinteressante esse anticomunismo anacrônico dos reacionários. Eles são tão reacionários que ainda não se deram conta que a Guerra Fria acabou, que o muro de Berlim caiu, que a Rússia e a China hoje são países capitalistas, com relações de trabalho extramente iníquas, onde o capitalismo faz a sua atual acumulação primitiva do capital através de uma brutal exploração do trabalho e dos recursos naturais sustentada por governos autoritários e por uma brutal repressão contra as forças oposicionistas. Lutar contra os comunistas hoje é lutar contra os fantasmas que assustam seus próprios sonos reativos. O que eles não suportam é que as pessoas pensem e vivam diferentes deles, que contestem sua moral reativa e sua vidinha papai-mamãe. Como pensam o social como a reprodução do mesmo, eles acham que todos devem ser burgueses, empresários até de si mesmos, todos devem se entregar ao Deus mercado, como eles fazem. Um partidário da mudança social não se identifica com a China, mas com aquele estudante que sozinho parou uma coluna de tanques que vinha esmagar os protestos contra a ditadura chinesa. Um reacionário também pode ser identificado por uma visão particular da subjetividade humana, por uma dada psicologia, que eu chamaria de psicologia do medo. Ele se move por medo da mudança, de perder sua posição na ordem social, e tenta, a todo tempo, usar as armas do medo e da culpa para paralisar o desejo de transformação e transgressão. Ele tenta paralisar o desejo através do pânico e do terror. O reacionário ri de você quando você sonha, quando você tem desejos e vontades de construir um mundo diferente deste. Ele não só julga que se você propõe isso você está propondo o retorno de experiências falidas e derrotadas, mas que seria ingênuo ou perigoso sonhar. Ele ri de você, com ar de superioridade e condescendência, porque você sonha, porque você, segundo ele, possui ilusões, fantasias, ele te acusa de acreditar em mitos. Ou seja, o reacionário desconhece que o que define o humano é justamente a nossa capacidade de sonhar, de imaginar realidades possíveis e tentar materializá-las. Sem o sonho nada de novo realizamos, nos contentamos com esse mundo feio e injusto, desigual e desumano em que vivemos. Deixem que riam de seus sonhos, quem ri por último costuma rir melhor. Se o reacionário te mostra todos os sonhos falhados, mostre a ele quantos sonhos conquistados e realizados, ao longo da história: o capitalismo é o sonho da burguesia materializado, a democracia burguesa nasceu das aspirações revolucionárias da burguesia. Se ela hoje se tornou uma classe reacionária devemos mover contra ela o poder do sonho e da ilusão, como um dia ela fez contra a aristocracia. Se não queremos ser cúmplices do mundo que nasceu da revolução burguesa, mas que como quase todo mundo nascido da revolução se petrificou numa ordem injusta, devemos tomar das mãos da burguesia a tocha da revolução e novamente empunhá-la dando a essa ideia novos conteúdos que não tem de ser as desgastadas e falhadas fórmulas comunistas ou socialistas. Seria estranho um revolucionário olhar para o passado e não para o futuro. O reacionário te joga sempre os fracassos do passado em teu rosto por um vício do olhar, ele só sabe olhar para trás: olhemos para a frente. O reacionário, na verdade, teme e tem pavor da fantasia, do fantasma, do simulacro de outros possíveis reais. Ele quer matar de saída esses seres etéreos antes que eles se tornem realidade. Muitas fantasias foram levadas aos paredões ao longo da história, foram encarceradas em manicômios e prisões, mas elas teimam em povoar esse carnaval organizado que é a história, elas sempre escapam de qualquer aprisionamento e voltam a esvoaçar a nossa volta. Quando o reacionário apontar o dedo desqualificador para sua fantasia, faça ele olhar para a dele, como a dele é também fantasiosa e desbotada, como a fantasia do reacionário termina sempre servindo mal ao seu próprio corpinho. As fantasias neoliberais do Consenso de Washington provocam o desastre social e econômico em vários lugares do mundo. No Brasil as fantasias verde e amarelas dos patos do golpe reacionário vêm todas caindo por terra. Até o reaça fantasiado de Batman, que participava das manifestações coxinhas, deve estar de fantasia destroçada. O golpe que prometia o paraíso, passados menos de dois anos tenta conter a violência crescente provocada pela sociedade cada vez mais iníqua que temos com os tanques nas ruas. Temos 21 das 50 cidades mais violentas do mundo e a tendência é só piorar à medida que as forças que deram o golpe implantarem suas políticas neoliberais e de concentração de renda. O reacionário no fundo teme o desejo, a vontade, tudo o que impulsiona o homem ao inconformismo, à rebeldia, à rebelião, à transgressão, à revolta, à revolução. O desejo é a força que nos faz se erguer cada vez que caímos, cada vez que somos derrotados. O desejo, como notou Freud, só cessa com a morte. O reacionário ao temer a força do desejo sonha com a morte da potência que nos impulsiona a se rebelar. Ele deseja, porque o reacionário é também a expressão de uma forma de desejo: o desejo de morte, uma ordem social morta por repetição e reafirmação. o reacionário é a expressão de uma relação reativa com o desejo que o move, ele teme o desejo que o habita, que convoca novos encontros com o outro, que o arrasta para fora de si mesmo, isso o apavora e ele se fecha aos encontros transformadores. O desejo nasce do encontro com o outro e, nesse encontro, podemos ter uma atitude de reconhecimento e de abertura para o outro, que é sempre o diferente, ou podemos temer e por isso nos fechar às forças transformadoras dos encontros. O reacionário tende a confundir potência com poder, ele acha que os humanos só podem se relacionar com o outro numa posição de dominação ou de subordinação. Ele não pressupõe que se possa ter uma relação de reconhecimento da igualdade do outro, igualdade para ele é uma quimera de sonhadores e comunistas. Ele toma o outro como um limite a seu poder e por isso o teme e tenta o dominar. Ele não percebe o outro como aquele que amplia a nossa potência de existir e de criar. Todos os estudiosos das massas e das populações chegaram à conclusão que muitos corpos juntos são capazes de fazer coisas que um corpo isolado não seria. Muitos pensadores assustados com as massas fanatizadas por lideranças totalitárias, de esquerda ou de direita, trataram de depreciar e tomar como um monstro perigoso a massa mobilizada e rebelde. Mas o que podemos aprender com essas experiências é a potência criativa e transformadora do coletivo, tornadas perversas ao serem transmutadas em um poder que as dizia representar e guiar. O reacionário assumindo-se, sempre, como um representante da racionalidade e do bom senso, aliás eles sempre são inclusive bons moços, deplora o que seria nossa capacidade de acreditar em mitos. Se ele estudasse história saberia que os mitos foram fundamentais para mover multidões ao longo da história. A humanidade não teria construído o que construiu, não seria o que é, para o bem e para o mal, se não fossem os seus mitos. O reacionário acha que mito é coisa de gente irracional, passional, que não compartilha da racionalidade burguesa que ele encarna. A sociedade moderna e iluminista se pretendeu racionalista e não mítica. Mito era para os selvagens, crianças e mulheres, enquanto os meios de comunicação a que essa sociedade deu origem são fontes cotidianas de mitificação. O reacionário, entupido de mitos: o mito do mercado, do capitalismo, da democracia, da gestão, do fim da história, do comunismo comedor de criancinhas, vem nos dar lições de mitologia. Ora, o reacionário detesta dados mitos porque eles são ameaçadores à ordem que defendem. Ele abomina Che Guevara por ter se tornado mito, mas alguns cultuam Hitler, Olavo de Carvalho e outros bolsomitos. Ele vai dizer para você que seu sonho de que o mundo seja menos injusto, desigual, miserável, inseguro, poluente, machista, misógino, racista, homofóbico, xenófobo, violento é um mito, em nome da defesa de uma ordem social com todos esses problemas e, no entanto, por ele mitificada. O mais impressionante é a incapacidade do reacionário de acreditar que podemos ressignificar, inclusive, conceitos aparentemente já gastos. Como ele é reacionário então acha que se defendemos a construção de uma sociedade socialista, esse conceito só pode ter o mesmo sentido que tinha nos livros de Marx ou de algum stalinista. Ele não julga que sejamos capazes de darmos outro conteúdo a essa noção, de criarmos outros conceitos para nomear nossas utopias. Como ele quer bloquear a criatividade, ele próprio padece de falta de imaginação. Ora, nós historiadores sabemos que os conteúdos dos conceitos não param de mudar e que não necessariamente essa mudança significa um fim de mundo. O conceito de família já recobriu realidades e arranjos bem distintos e caminha, mais uma vez, para nomear algo completamente diferente do que já vimos. O comunismo não foi inventado por Marx como pensa a maioria dos reacionários, o conceito o antecede em muito tempo, ele forneceu um novo sentido para ele, sentido que podemos reformular completamente. Ele reformulou, com muita pretensão e, por vezes, autoritarismo e desrespeito, a noção de socialismo que também ele não inventou. Seria tão desejável que os reacionários tentassem admitir pelo menos mudanças profundas no próprio capitalismo, na própria concepção do que seja o mercado, a mercadoria, o trabalho, a propriedade privada, a democracia liberal, etc. Mas aí eles não seriam reacionários, eles estariam a favor da mudança e não podem alojar o seu desejo na mudança porque, no fundo, temem e tremem diante dela. Devemos, antes de tudo, ser alguém que aposta na potência humana de criar o novo, de inventar o mundo, de transformar fantasias, ilusões, mitos, sonhos em realidade, mesmo que isso resulte num cortejo de desastres e decepções. Mais do que acreditar na condição racional do homem é apostar em sua dimensão poética, sua capacidade de dar novos sentidos e significados para os conceitos e para as práticas, na capacidade de metaforizar e criar suplementos para o que o mundo nos oferece. O homem é um ser da carência e da incompletude, por isso ele é um ser da busca, da espera e da esperança. Como diz Georges Didi-Huberman, é a potência de se levantar, de se por de pé que nos faz humanos. A humanidade começou quando nos erguemos da terra, quando deixamos de rastejar, quando nos erguemos sobre nossos pés e liberamos nossas mãos para agir e criar um mundo à luz de nossos desejos. Nunca devemos deixar de se levantar contra a injustiça, a desigualdade, a miséria, o preconceito, a violência, a humilhação, a exploração, o desejo de morte. Como inúmeras vidas generosas fizeram ao longo do tempo, devemos nos levantar contra a opressão e o terror, seja que forma elas tenham, de direita ou de esquerda, de centro ou de periferia. O levante, até do ponto de vista erótico, o levante das fagulhas e do fogo do desejo em nossos corpos é que nos faz produzir novas vidas, é o que nos move na direção do outro para com ele construirmos algo novo. Nunca se abaixem ou se prostrem diante de nada ou ninguém, nunca se ponham de joelhos diante de nada, nenhum Deus ou ídolo merece que nos joguemos por terra. Que até mesmo a eles olhemos de frente. Que lutemos contra os reacionários que nos querem ver aterrados e aterrorizados, pois é de nossa queda que fazem a sua força.
(Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
No final da década de 80, por ocasião dos trabalhos da constituinte que iria dá os arremates finais na Constituição Cidadã de 1988, ocorreu um impasse entre o poder civil e o poder militar. Aliás, esses impasses são frequentes no país. Mas, vamos por parte. Segundo observou o professor e cientista político Jorge Zaverucha, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, os civis desejavam limpar a nova Carta de qualquer resíduo ou entulho autoritário que permitisse, por exemplo, uma intervenção militar, legalmente aceita e no contexto de uma normalidade democrática. À época, ainda de acordo com Zaverucha, o comandante do Exército era o general Leônidas Pires Gonçalves, que ameaçou "zerar" todo o processo casa não fosse mantido o artigo 142, que previa uma intervenção militar, em casos de graves distúrbios da ordem pública. Mais recentemente, com o aumento da temperatura na caserna, este referido artigo é sempre citado, posto que uma intervenção militar é prevista pela própria Constituição Cidadão de 1988, a rigor.
Na década de 70, num dos períodos mais duros da repressão do regime militar imposto ao país depois do golpe Civil-Militar de 1964, depois de "limpar o meio de campo" - na linguagem dos opositores que pegaram em armas contra a ditadura - os militares moderadas - que desejavam a abertura - resolveram enfrentar os militares da linha-dura, capitaneados pelo então ministro do Exército, general Sílvio Frota. O presidente do país era o então general Ernesto Geisel, que admitiu possíveis "excessos" e convidou Sílvio Frota para um encontro em Brasília, sem descer aos detalhes da "agenda". o General Sílvio Frota foi ao encontro sem jamais suspeitar das reais intenções de Geisel. De bate pronto, sem muitas delongas - como é comum entre militares - Geisel anunciou a sua destituição do cargo. Sílvio Frota ainda tentou esboçar alguma reação, mas era um feriado em Brasília e os soldados estavam desaquartelados, num churrasco em família. Sílvio Frota era um general sem tropa. Aquiesceu, voltou para casa e vestiu o pijama.
As articulações no estamento militar permitiram que um outro militar moderado, o general João Figueiredo, sucedesse o general Ernesto Geisel na Presidência da República. Há alguns folclores envolvendo o general João Figueiredo, como possíveis afirmações de que daria um tiro na cabeça se recebesse um salário mínimo ou que gostava mais de cavalos do que de gente. Nenhuma dessas expressões, porém, surtiria mais efeito do que uma de suas respostas a uma jornalista, quando indagado sobre a abertura política no país: É para abrir. Ou abre ou eu prendo e arrebento. Não sei se estou sendo fiel às suas palavras, mas foi mais ou menos isso o que ele afirmou à época. Sua contundência dizia respeito a uma reação direta às tentativas da linha-dura no sentido de sabotar o processo de abertura política em curso, como o famoso atentado no Rio-Centro. Apesar de algumas baixas - como a saída do general Golbery do Couto e Silva, que era o cérebro do regime - a abertura seguiu, ancorada num projeto de anistia ampla, geral e irrestrita, sobre o qual os militares jamais permitiram qualquer revisão.
Na realidade, mesmo depois da abertura política, no Brasil, o poder civil nunca conseguiu se impor ao poder militar, uma das prerrogativas essenciais de um regime democrático. Poderia aqui citar exemplos e mais exemplos dessa situação, mas vou poupar os nossos leitores , para se concentrar em fatos mais recentes. Chamem a isso o que quiserem, semidemocracia, democracia delegada, democracia tutelada. Outro dia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso(PSDB) confidenciou que o escalpo do presidente Itamar Franco quase foi servido, por ocasião do episódio em que ele apareceu de braços dados, com uma modelo sem calcinha, no Sambódromo. Faço essas observações para concluir que o futuro da "democracia" brasileira é um jogo a ser jogado não entre o poder civil e o poder militar, mas entre militares moderados e militares da linha-dura, ou seja, os intervencionistas, proponentes de uma militarização da política. Não somos muito otimista quanto ao funcionamento incipiente do nosso simulacro de democracia, em razão do protagonismo militar que voltou a ocorrer nos últimos meses. Vejamos alguns fatos que corroboram com esse pessimismo:
1.- O general Sérgio Etchegoyen exercia o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional no Governo Dilma Rousseff. Continuou no mesmo cargo no Governo Michel Temer(PMDB), num arranjo curioso, creio que muito em razão da impossibilidade do presidente em demovê-lo do cargo. Etchegoyen preside a ABIN, a Agência Brasileira de Informações, de onde pode-se concluir por uma articulação cada vez mais fortes entre os órgãos de informações do Estado e os militares, quiçá, próximo a uma reedição da famigerada "Comunidade de Informações". Reforça essa tese os recentes pronunciamento do Ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, propondo uma ação conjunta entre os diferentes aparatos de segurança do Estado, como as policiais estaduais civil e militar, por exemplo. Os 42 bilhões prometidos serão certamente liberados para os Estados, não sem antes, porém, de se firmarem alguns compromissos.
2.- O general Sérgio Etchegoyen, de acordo com os estudiosos das relações entre civis e militares no Brasil, é aluno da primeira fila da Escola Superior de Guerra, com nota 10 na doutrina de Segurança Nacional. Se enquadra, ainda segundo esses analistas, no figurino dos militares identificados com a militarização da política. Com a saída de Raul Jungmann do Ministério da Defesa, o cargo voltou a ser exercido por um militar, que era o seu adjunto. Nunca se soube muito bem o que um civil fazia por ali, mas agora também se perde o "simbolismo". Num dos seus últimos pronunciamentos, o novo Ministro da Segurança Pública afirmou se sentir incomodado com o fato de um presídio demorar até 05 anos para ser concluído, o que sugere pensar que ele se filia à lógica de encarceramento da sociedade brasileira, que já isola, em condições sub-humanos, uma população carcerária de mais de 700 mil detentos. A terceira do mundo, apenas abaixo da população carcerária da China e dos Estados Unidos. Nenhuma cresce tanto quanto a nossa, o que quer dizer que logo superaremos esses países, sobretudo quando se pensa em presídios e não em escolas, creches e políticas sociais de caráter inclusivo, que subverta nossas profundas desigualdades e o racismo estrutural.
3.- Somente depois de uma matéria da sucursal brasileira do jornal El País - acerca dos possíveis desdobramentos da intervenção militar no Estado do Rio de Janeiro - é que os brasileiros de, fato, parecem ter colocados as barbas de molho. Nas falas de atores relevantes do intervencionismo, a possibilidade de expansão dessa intervenção aparece muito claramente. Antes fosse, como pensada no início, apenas uma manobra para melhorar o desempenho de presidentes com baixa popularidade.
4.- Nos próximos meses, o general Eduardo Villas Bôas deve deixar o comando do Exército Brasileiro. É um general de linha moderada e, acredito, não intervencionista. As eleições presidenciais, diante desse quadro de instabilidade institucional, passaram a ser uma incógnita. Há quem assegure que elas não mais serão realizadas. Para o futuro, mesmo fragilizado do nosso simulacro de democracia, melhor seria ficar atento ao substituo do general Eduardo Villas Bôas. É aqui que o jogo será jogado, diante de um Executivo fraco, um Legislativo corrupto e um Judiciário politizado, para dizer o mínimo.
5.- Na semana passada, com todas as pompas e honras militares, o general Hamilton Mourão aposentou-se. Como se sabe, o general Hamilton Mourão é um dos principais atores militares identificados com uma intervenção militar, tendo sido punido por seus pronunciamentos a esse respeito. A imprensa noticiou que, em sua despedida, teria declarado que votaria no ex-militar Jair Bolsonaro(PSC) numa eventual eleição para a Presidência da República, o que reforça a identificação dessa candidatura com o estamento militar. Na mesma semana, surgiram pesquisas onde o ex-militar já desponta na frente de candidatos como Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin em colégio eleitoral importante como São Paulo.
6. A despeito do contingenciamento orçamentário, o aparato de informação e repressor do Estado será reforçado com a contração de 1.500 homens, distribuídos entre a ABIN, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal. Para os analistas de gestão pública, pode-se argumentar pela carência de servidores públicos nessas áreas. Para os cientista políticos, isso pode ter outras implicações.
Mário Magalhães Fez tanto calor em 27 de março de 1968 que muitos cariocas, sentindo-se como um sorvete do Morais derretendo, desconfiaram da temperatura máxima certificada pela meteorologia: 37,4 graus em Bangu. Parecia mais, e os 80 novos casos de desidratação contabilizados pelos hospitais do Rio lastreavam a suposição. O sufoco tinha data para acabar. Previa-se para a noite do dia 28 a chegada de uma frente fria. Março demorara um pouquinho mais para começar. Um dia, porque o ano era bissexto. E uma hora, porque a “hora de verão”, como se falava, expirara à meia-noite de 29 de fevereiro, quando os ponteiros voltaram sessenta minutos. O mês vindouro seria, no Brasil, o estopim das maiores conflagrações de 1968. A bomba, ou a tragédia, explodiria no então Estado da Guanabara. Cinquenta anos atrás, o mês começou no Rio com a costumeira crônica bipolar de promessa de vida e fim do caminho. O Maracanãzinho fervilhou no dia 1º, aniversário da cidade, com a apuração do desfile das escolas de samba, blocos, frevos, ranchos e sociedades. Revelou-se uma bicampeã, a Mangueira, seis pontos de vantagem sobre o vice, o Império Serrano. Dali a horas, as águas de março alagaram as ruas e castigaram sobretudo a Lapa e os bairros da Zona Norte. Um buraco abriu em Quintino, e um homem morreu afogado ao cair nele. Em Madureira, um carro despencou ao se chocar com outro, e a correnteza do rio Ninguém engoliu um passageiro. Os cariocas se debatiam com um surto de gripe e, em Copacabana, com os ataques de abelhas africanas inquilinas da abóbada do Cine Roxy. Perturbava-os outro perrengue, o arrocho promovido pelo governo. O poder aquisitivo no Rio despencara 40% em 1967, calculou a Fundação Getulio Vargas. Não à toa, periclitava na cidade-Estado a aprovação ao presidente da República, o ditador Arthur da Costa e Silva. Para 72% dos cidadãos, verificou pesquisa Marplan, o governo era péssimo, ruim ou regular. E olha que muita gente temia responder aos entrevistadores o que de fato pensava. Desde 1964 a ditadura asfixiava o Brasil. Em março, o governo renovou a proibição de várias peças de teatro e vetou outras. O marechal Costa e Silva se envaideceu por censurar “Santidade”, de José Vicente de Paula. Julgou-a “forte”. A Polícia Federal desautorizou a montagem de “Barrela”, de Plínio Marcos. O ministro da Justiça, Gama e Silva, barrou “Cordélia Brasil”, de Antônio Bivar. Em protesto, os artistas acamparam dia 18 nas escadarias do Teatro Municipal. Não fizeram forfait Norma Bengell, Hugo Carvana, Odete Lara, Cláudio Marzo, Tônia Carrero, Dias Gomes, Joana Fomm e Miriam Pérsia. Os estudantes davam o seu recado. Em janeiro, 14 haviam ido em cana ao se manifestar contra a gororoba do restaurante Calabouço, que servia refeições para jovens com grana curta. Dias depois, a garotada identificou um espião do Dops campanando-a e o botou para correr. Em São Paulo, Maceió, Rio e outras cidades, passeatas reivindicavam aumento de vagas nas universidades. Estudantes ocuparam a reitoria da USP. No dia 27, alunos da UNB entraram e ficaram num prédio de apartamentos da universidade. Buscavam um abrigo menos imundo e inóspito do que os cubículos do Centro Olímpico destinados a eles. Desde a deposição do presidente constitucional João Goulart os sindicatos, sob o controle ou não de pelegos, estavam mais vigiados e imobilizados do que gado confinado. Sindicalistas tinham sido afastados, cassados e presos. Entidades de trabalhadores anunciaram em março a intenção de sair às ruas em defesa dos salários. No que restava de política institucional, a altivez sobrevivia. No dia 8, os membros da CPI da Câmara sobre ensino superior expulsaram um agente da polícia política que tentava gravar o depoimento do estudante Honestino Guimarães (mais tarde, a ditadura mataria o militante estudantil e sumiria para sempre com seu corpo). Em 23 de março, arapongas paulistas estimaram em 3.500 os presentes num comício da Frente Ampla em São Caetano do Sul. Lideravam o movimento os ex-presidentes Juscelino Kubitschek, cassado, e João Goulart, cassado e exilado, e o ex-governador Carlos Lacerda. De arauto do golpe, Lacerda passara à oposição à ditadura. Único do trio dirigente no palanque de São Caetano, ele discursou: “Não precisamos temer, nem precisamos ser bicho-papão de ninguém. Não temos medo do Exército inteiro, e muito menos de meia dúzia de oficiais”. Àquela altura, 1968 já ardia mundo afora. Os vietcongs haviam lançado em janeiro a Ofensiva do Tet, contra as tropas dos Estados Unidos e seus aliados do Vietnã do Sul. Em 16 de março, soldados norte-americanos trucidaram centenas de civis vietnamitas, na infâmia que passou à história como Massacre de My Lay. Por igualdade e liberdade, estudantes lutavam contra governos de tons diversos, do Equador à França, do México à Polônia, da Espanha à Rodésia (atual Zimbábue). Na Tchecoslováquia, um novo chefe do Partido Comunista, Alexander Dubcek, empenhava-se em amalgamar socialismo e democracia. Florescia a Primavera de Praga. Chegara a hora do Brasil, no dia 28 de março.
“Polícia assassina!”
O estopim foi uma bala mortal disparada no peito do estudante Edson Luís de Lima Souto, logo depois do pôr do sol. Ele tinha 18 anos, era paraense e ganhava a vida faxinando restaurantes. Cursava o equivalente hoje ao ciclo do ensino fundamental que vai do 6º ao 9º ano. Comia no Calabouço, onde um choque da Polícia Militar atacou comensais que se manifestavam por melhorias na cozinha e nas instalações. O general Osvaldo Niemeyer, da Superintendência da Polícia Executiva da Guanabara, alegou, conforme registro do “Jornal do Brasil”: “A polícia estava inferiorizada em potência de fogo”. Um repórter indagou: “Potência de fogo? É arma?” Niemeyer: “É tudo aquilo que nos agride. Era pedra”. O general da Idade da Pedra viria a culpar pela morte o aspirante Aluísio Azevedo Raposo, que comandava o choque. O responsável fora o general, por ter insistido em reprimir os jovens, reagiria o aspirante. No país da impunidade, ninguém foi punido. O corpo de Edson Luís foi levado pelos estudantes até a Santa Casa, a centenas de metros do Calabouço. Confirmado o óbito, carregaram-no nos braços até a sede da Assembleia Legislativa, na Cinelândia, onde hoje funciona a Câmara Municipal. Gritavam “Polícia assassina!”. Universitários decretaram greve nacional. Na PUC do Rio, pela primeira vez aprovaram por unanimidade uma greve em todas as unidades.
Edson Luís, estudante assassinado pela ditadura em março de 1968, é velado por colegas; ele foi morto quando policiais militares atiraram contra jovens que participavam de protesto contra as condições do restaurante Calabouço, no Rio.
A notícia alcançou os teatros durante as sessões, encerradas no meio. Ao informar ao público o motivo, os artistas foram aplaudidos de pé. Diziam: “Mataram um estudante. Ele podia ser seu filho”. Naquela noite, no Teatro Toneleros, não houve chance para o bis do Quarteto em Cy: uma nova canção de Tom e Chico, “Retrato em branco e preto”. De peruca, disfarçado na plateia, estava o guerrilheiro Carlos Marighella. Oito meses depois, o governo o declararia inimigo público número um.
“Os velhos no poder, os jovens no caixão”.
No velório, os estudantes cobriram o corpo de Edson Luís com bandeiras dobradas do Calabouço e do Brasil. Seu peito ficou nu, expondo a perfuração. O rosto de menino lembrava o de Garrincha quando jovem. Deixaram junto ao cadáver uma folha em que se lia: “Esta é a justiça da ditadura. Pedimos comidas e eles atiram contra nós”. Dois funcionários do Instituto Médico Legal apareceram para transportar o morto para a autópsia, nos termos da lei. Os estudantes, em desobediência civil, não permitiram. Antes da meia-noite, a polícia arremessou duas bombas de gás contra a multidão na praça diante da Assembleia. Uma faixa chorou: “Um estudante foi assassinado. Ele poderia ser seu filho”. De 10 mil a 50 mil pessoas, a depender do chute, acompanharam o cortejo fúnebre na tarde do dia 29. O caixão foi carregado nos ombros de estudantes até o cemitério São João Batista. Ao surgir na porta da Assembleia, lenços brancos se agitaram. Um coro gigantesco cantou o Hino Nacional.
“O povo brasileiro é humilde e ordeiro, mas quando injustiçado – como no episódio da morte do estudante – tem todo o direito de reagir com violência”
Flores foram atiradas do alto dos prédios da Cinelândia. O Cine Império exibia “A noite dos generais”. Uma palavra de ordem frequente foi “O povo organizado derruba a ditadura!” (no meio do ano soaria mais forte “Só o povo armado derruba a ditadura!”). As vozes só não eram mais ruidosas porque as lágrimas as sabotavam. Três bandeiras dos EUA foram queimadas. No cemitério, a massa assoviou a “Valsa do adeus”. Abriram a faixa “Os velhos no poder, os jovens no caixão”. Na saída, viraram e botaram fogo em um Aero Willys a serviço da Aeronáutica. Em Belo Horizonte, um ato público mobilizou 10 mil pessoas. Em Brasília, a polícia, ensandecida, não poupou nem parlamentares. Mário Covas, líder da oposição na Câmara, e a deputada Julia Steinbruch levaram golpes de cassetete. Manifestantes destruíram os palanques instalados na capital para o festejo oficial dos quatro anos do golpe.
Um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado a cada 23 minutos. Lamento existe, embora não disseminado. Comoção? Rara ou nenhuma.
O general Jayme Portella de Mello, chefe do Gabinete Militar da Presidência, afiou os dentes: “Temos de ser duros. Não podemos deixar que eles tomem conta da situação”. O país se comoveu. Alceu Amoroso Lima, pensador católico conhecido como Tristão de Athayde, pregou: “O povo brasileiro é humilde e ordeiro, mas quando injustiçado – como no episódio da morte do estudante – tem todo o direito de reagir com violência”. Qual seria a reação do Brasil letárgico de 2018 a um assassinato covarde como o de Edson Luís? Difícil dizer, numa época em que a rebeldia em larga escala parece hibernar. Dois anos atrás, uma CPI do Senado concluiu que um jovem negro de 15 a 29 anos é assassinado a cada 23 minutos. Lamento existe, embora não disseminado. Comoção? Rara ou nenhuma. Antes de março de 1968, cozinhavam-se as tensões em banho-maria. No dia 28 daquele mês, a meteorologia acertou o tempo, não a metáfora. A frente fria atingiu o Rio, mas o clima esquentou na cidade e no Brasil. Março incendiou o ano. Em abril, a ditadura baniu a Frente Ampla e matou manifestantes. Os protestos engrossaram, e neles se viram muitos que em 1964 haviam marchado ao lado da família com Deus pela liberdade. Os metalúrgicos de Contagem, em Minas, entraram em greve. Em meados do mês, a organização guerrilheira encabeçada pelo ex-deputado Marighella e pelo jornalista Joaquim Câmara Ferreira estreou em assalto a banco, arrecadando fundos para combater a ditadura. O auge do movimento popular seria em junho, com a Passeata dos Cem Mil. Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, tocados pela desgraça de Edson Luís de Lima Souto, compuseram “Menino”. A canção reverencia o garoto morto e deplora os contemporâneos que calam:
Quem cala sobre teu corpo Consente na tua morte Talhada a ferro e fogo Nas profundezas do corte Que a bala riscou no peito Quem cala morre contigo Mais morto que estás agora Relógio no chão da praça Batendo, avisando a hora Que a raiva traçou No incêndio repetindo O brilho de teu cabelo Quem grita vive contigo.
* A principal fonte jornalística de informações desta coluna foi o “Jornal do Brasil”. Escolhi-o como um modo de desejar boa sorte ao “JB”, que acaba de voltar às bancas.
Foto em destaque: multidão acompanha enterro do secundarista Edson Luís, assassinado pela PM no dia 28 de março de 1968./Folhapress.
Sem alarmes e com expressivo protagonismo civil, as Forças Armadas assumem o governo da segurança pública do Rio de Janeiro enquanto avança a militarização da política brasileira
A quarta-feira de cinzas para a democracia foi de chumbo. Voltamos do Carnaval com uma intervenção federal no comando da segurança pública do Rio de Janeiro. Entregue ao General do Comando Militar do Leste, Walter Souza Braga Netto, as Forças Armadas assumem, de forma temporária, a segurança interna do estado com poder de governo. Basta um sopro de história recentíssima para dissipar a surpresa da medida. Desde 2010, rajadas de fumaça anunciam o fogo da exceção se alastrando pelos bosques de nossa frágil democracia. Agora, chegamos naquele momento histórico divisor de águas. Para onde vamos?
Seria prudente, ao menos, reconhecer que o poder político se debandou, a passos claros, para uma “democradura”[1] de novo tipo. Na história republicana, constam 66 intervenções federais em estados e municípios, segundo pesquisa legislativa na presidência da República. Em 88% elas ocorreram em ditaduras. Nas demais, os 12% de intervenção em democracias teve justificativa de natureza política-eleitoral, ocorrida nos governos Epitácio Pessoa/1920 (1), Arthur Bernardes/1923 (1), Juscelino Kubistchek/1957 (1); e de natureza setorial, nos governos Jânio/1961 (2) e Jango/1963 (2). Contudo, o decreto de 2018 é o único com natureza militar e exclusivamente para assumir o governo da segurança interna de uma das unidades da federação.[2]
Portanto, de dez intervenções federais, nove emergiram de ditaduras. Se podemos dizer que historicamente a intervenção federal é uma medida de governo autoritário, é bom saber que a grande maioria foi decretada por nossa última ditadura de segurança nacional, sob o comando das Forças Armadas. Note-se a história que vivemos: governo federal da segurança interna de um estado significa tomar a responsabilidade de aplicação, preventiva e ostensiva, do código penal e das contravenções penais. Engana-se quem está pensando no tráfico de drogas. A vida cotidiana das brasileiras e brasileiros – por enquanto, aqueles do Rio – está nas mãos das Forças Armadas. Essa é nossa nova ordem social, Caetano.
Há, no mínimo, dois furações de violência muito próximos. Primeiro, é institucional. As Forças Armadas negam que tenham governado o país por duas décadas à base de graves violações de direitos humanos. Negaram acesso de informações históricas à Comissão Nacional da Verdade, chamaram de “revanchismo” a prestação de contas, mantêm imunidade judicial civil e, na verdade, se orgulham de seus governos militares, a começar pela fundação da República. A outra é que a decisão política de coerção social será tomada por uma elite, conforme sua interpretação excepcional das leis e da vontade popular. Como pensam? Quais serão os próximos capítulos? Rio de Janeiro – Militares seguem operando na favela da Rocinha para combater confrontos entre facções de traficantes de drogas (Fernando Frazão/Agência Brasil) Uma intervenção civil militar de segurança nacional?
Da parte dos militares, há o papel estratégico do General do Exército Sérgio Etchegoyen. Depois da deposição de 2016, assumiu o comando da segurança institucional da presidência. Formando pela Escola Superior de Guerra em 1974, um ano antes da ESG consolidar a doutrina de segurança nacional, é um membro do alto escalão político dos militares que conhece muito bem a ideologia da ditadura.[3] E não parece ter se divorciado dela após a redemocratização.
A público, foi defender a honra familiar contra as conclusões da Comissão Nacional da Verdade. Curiosamente, seu pai, Leo Guedes Etchegoyen, também assumiu a segurança civil de unidade da federação (Rio Grande do Sul) após o golpe de 1964. Na prática, sendo responsável, conforme a CNV, “pela gestão de estruturas” onde ocorreram graves violações de direitos humanos. Chegou a receber Daniel Anthony Mitrione, notório especialista estadunidense em métodos de tortura contra presos políticos, para ministrar curso à Guarda Civil do Estado. Seu tio, Cyro Guedes Etchegoyen, foi chefe de contra informações do Comando de Inteligência do Exército e, segundo a CNV, comandou a “casa da morte” de Petrópolis (RJ). Antes, na ditadura de Vargas, o avô de Sérgio Etchegoyen, Alcido Etchegoyen, também assumiu como chefe da política de uma unidade da federação (Distrito Federal).[4]
Afora os exemplos familiares sobre as práticas de uma interdição federal, a formação de Etchegoyen pela doutrina da ESG tem seus efeitos. Primeiro, é o método de planejamento estratégico, baseado em informações de inteligência, análise de conjuntura, elaboração de cenários e linhas de ação. Embora desconheçamos o teor dessas informações estratégicas, o fato é que, desde 2010, ocorrem as operações de Garantia da Lei e da Ordem, de caráter subsidiário ao comando institucional do governo civil. Somente em 2017, a Lei 13.491 alterou o código de processo penal para transferir a competência dos crimes cometidos por militares em ação, inclusive os dolosos contra a vida (execução sumária, por exemplo), para a justiça militar. Nessa lei, uma das três hipóteses seria “os crimes praticados no contexto de atividade de natureza militar”. Ato contínuo, o parágrafo único do art. 2º, do decreto 9.288/2018, é taxativo: o cargo de interventor é de natureza militar. Quer dizer, a intervenção de hoje assegurou autonomia militar para “prestar contas” a si mesmo sobre eventuais graves violações de direitos humanos. Há um claro planejamento.
Estejamos preparados para o pior. Avizinha-se nos presídios e nas periferias o cheiro de morte e “pinhosol”. Comunidades, há décadas sufocadas por uma ordem militarizada (tráfico, milícia e polícia), serão jogadas de vez no teatro de operações. Sem falar nos jovens soldados, em sua maioria negros. “Não importa”, “guerra é guerra”, mas com algumas diferenças. Como Sotelo Fellipe falou, nela opera a inversão de Clausewitz: da guerra como extensão da política para a política como extensão da guerra. Trata-se da guerra contemporânea, da estratégia militar indireta que aderiu à tradução de Carl Schmit para o antagonismo político: é preciso neutralizar e eliminar o inimigo.[5] Eis a guerra há tempos em curso, aprimorada com o chamado Lawfare (guerra jurídica) e as operações psicológicas, como muito bem descreveu o jornalista argentino Santiago Gómez. Não sendo suficiente, é hora de intensificar o método tradicional militar, com uso combinado.
Se fosse pouco drama, a intervenção federal corresponde a uma escala de gravidade no planejamento estratégico. Depois dela, vem o estado de defesa e o estado de sítio. E depois vem…? A intervenção em novos estados? A extensão da intervenção por quatro anos, tempo para um governo militar reestruturar a segurança pública? O adiamento das eleições, por questão de segurança nacional? O Rio é um laboratório de uma intervenção em todo o país? Em 1958 e 1959, a Escola Superior de Guerra instruía a elite civil-militar sobre um segundo tipo de “governo militar”, indireto, que assume temporariamente os “assuntos civis”. O estudo, inspirado na experiência de outros países, era enfático: sua aplicação no caso brasileiro deverá sofrer as imposições geográficas e culturais.[6] Dois anos depois, quase assumiram o governo. Com o golpe de 1964, a doutrina ganhou a prática como laboratório. E agora?
A viga mestra da sociedade
Nenhum governo militar – da segurança, o que dirá das demais áreas – existe sem participação civil. Não por menos, presidente da República, governador do estado, presidente da Câmara, presidente do Senado, ministro da Justiça, ministro da Economia, ministro do Planejamento, todos eles civis, determinando a intervenção política, convocando os militares e lhes conferindo poderes de exceção. E o Congresso Nacional, fruto de eleição direta?
Quem acompanha o noticiário da Globo percebe sem maiores dificuldades uma cobertura de alarme, pânico, caos e deslegitimação do poder político local sobre a segurança pública. E de aprovação da intervenção. Após o decreto, a Globo defendeu a extensão do prazo da intervenção. E a Federação da Indústria (Firjan) fez anúncio em apoio. Apesar da instituição militar fazer parte do crime organizado, praticando os métodos da corrupção e do terrorismo de Estado, a sensação de desordem pública caminha para militarizar ainda mais. Por isso, não se trata de uma intervenção militar, mas de uma intervenção civil-militar.
Há muitos traços com a doutrina de segurança nacional. É imprescindível que a adesão civil confira legitimidade para a atuação militar. Uma intervenção dessas exige um significativo “poder psicossocial” nacional. Como disse o General Villas-Boas, não somente a carta branca dos “poderes constitucionais” (poder político nacional), mas a colaboração “das instituições e, eventualmente, da população” será fundamental. Todos os poderes nacionais passam a ser requisitados em fazer o necessário para o retorno da “ordem pública” que ameaça a segurança nacional. Para onde vamos?
No caso da segurança pública, a intervenção civil-militar é a expressão da falência da “coexistência pacífica” do Estado nacional com a pressão interna e externa que representa o crime organizado. O método da corrupção e do terrorismo de Estado está em crise, colocando em risco o poder vital do Estado que é a ordem pública, quer dizer, o domínio dos conflitos de distribuição de riqueza e do poder político, seja ele por consenso forjado ou pelo uso sistemático da violência estatal.
Porém, o avanço dos militares na política pode ser visto como um desdobramento da politização do judiciário, quer dizer, uma nova fase do “freio de arrumação” de Ayres Britto (ex-ministro do STF): a militarização da política. Não há nada de novo na estratégia, “apenas” a intensificação de novos métodos. Depois do impedimento de Dilma Rousseff, opera uma intervenção política das elites nacionais na direção de uma “reorganização” da ordem de dominação social. Representação política, mercados estratégicos, direitos sociais, monopólio da violência e poder político do pacto federativo estão em franca cirurgia. Como ocorreu em 1964 e em toda a vida republicana do país, o pacto autoritário entre civis e militares está em marcha. E a fratura do pacto constitucional pós-ditadura, exposta.
Sendo otimista, pode ser que a militarização da política tenda a incluir na disputa de poder o campo militar. Estabelecer um diálogo programático com os militares que apresente uma forte resistência democrática para conter um natural desejo crescente de poder, alimentando o cenário de um governo militar. Há militares e oficiais democráticos, outros que divergem da leitura de conjuntura, nas análises e nas linhas de ação.
Mas o cenário é adverso, especialmente no seio civil. Há uma opinião pública forjada a favor da intervenção civil-militar, apoiada na “natureza humana” de ordem e progresso e pela teoria do “mal necessário”. Na politização do judiciário, algumas querelas constitucionais poderão opor constrangimento. Primeiro, a inconstitucionalidade formal pela ausência da consulta ao Conselho da República (art. 90, inciso I, CF/88). Segundo, pela natureza militar da intervenção, como bem apontou a jurista Eloísa Machado de Almeida (FGV/SP). Terceiro, sobre o real termo da extensão da suspensão de emendas constitucionais (reforma da Previdência), se da simples tramitação à promulgação. Quarto, do desvio de finalidade caso seja burlado por um decreto da GLO. E a própria jurisdição militar, que ainda segue sem expressa admissão constitucional. É hora de juízes e do judiciário recuar ou se abraçar na intervenção civil militar, por isso precisam receber o peso da resistência democrática.
Por fim, parece inescapável que todas as forças democráticas tenham uma alta dose de realismo para ler a conjuntura, enxergar palmos a mais além do cálculo eleitoral. É até comovente ver militantes acreditarem que Lula estará na urna e, caso barrado, conseguirá alavancar um sucessor. É melhor sermos (alguma vez) surpreendidos pela frágil institucionalidade do que reiteradamente decepcionados com ela. Com olhos de lince, Luiz Eduardo Soares apontou para uma “bolsonarização” sem Bolsonaro, num franco lançamento de um governo de direita conversadora com base na ordem (intervenção de natureza militar) e progresso (reformas e abertura de capitais). Teremos eleição, ela foi necessária até na última ditadura para a legitimação da intervenção civil-militar. Porém, há um risco alto de transcorrerem em tempo e forma distinta. É bom lembrar que a concepção de democracia dessa elite interventora admite a eleição indireta, por exemplo. Assim como mudanças no calendário eleitoral por essa via.
Neste modesto ver, a saída passa pelo incipiente ensaio da frente programática dos partidos de centro-esquerda (Psol, PSB, PDT, PT). Sem um plano de poder democrático a curto prazo, com acordo sobre a competição interna, que enfrente a franca intervenção civil-militar, seremos tragados pela história. Rua, urna e gabinetes somente serão conquistados, com poder de resistência real, se tivermos bandeiras democráticas e propostas pragmáticas para ganhar a sociedade, nossa trincheira. Antes tarde, do que mais tarde ainda, se já não for.
*Rodrigo Lentz é advogado, ex-coordenador da Comissão de Anistia e doutorando em ciência política da Universidade de Brasília com a tese “As relações de poder entre civis e militares no Brasil: o pensamento político da Escola Superior de Guerra pós-88”. [1] Termo originalmente usado Guillermo O’Donnell e Philippe Schmitter. [2] No caso do Rio de Janeiro, é a segunda intervenção em períodos democráticos, sendo a primeira decretada por Arthur Bernardes, em 1923, com interventor civil. [3] BRASIL. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual Básico. Ano 1975, Rio de Janeiro. [4] Ver volume 1, p.861; p.868 [5] Ver o Manual Básico da ESG de 1975, p.279-294; [6] Ver: BRASIL. ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Governo militar. 1958/1959, Rio de Janeiro.
(Publicado originalmente no site do Jornal Le Monde Diplomatique Brasil)
Linguagem é poder. Antes de serem puros e simples atos de comunicação, todos os atos da linguagem são atos de poder.
Em um sentido puramente conceitual, poder é uma potencialidade dos corpos humanos. Poder é da ordem de algo que se exerce. Podemos dizer que ele é a ação de um corpo sobre um outro corpo que se transforma por meio dos atos que produz ou que sofre. A essa ação podemos dar o nome de linguagem.
Neste sentido inicial e primeiro, o poder existe pura e simplesmente porque somos seres de relação e todas as relações implicam forças de natureza física, justamente porque somos corpos presentes, ou seja, estamos todos em estado de presença nesse mundo. Essa presença é a materialidade bruta sem a qual não há linguagem. A linguagem é como que um esforço do corpo de ir além dele mesmo, e a esse esforço podemos dar o nome de desejo.
A presença se tornou algo tanto menos concreto quanto mais virtual, mas mesmo assim ainda implica os corpos e suas ações. A presença é o “estar”, mas é também o “aparecer”, ele mesmo um direito – o de estar em um lugar qualquer diante de outros, junto com outros, nas ruas, nas instituições, nos espaços públicos em geral. O direito de aparecer é um direito relacionado à liberdade individual que experimentamos em atos simples, tais como andar pela rua, sentar no banco de uma praça, ir ao cinema, entrar em uma igreja ou em um elevador. A questão da presença na internet também se relaciona a um direito de aparecer. Infelizmente, o que seria um simples direito em uma sociedade democrática torna-se apenas mercadoria em uma sociedade de mercado que apaga com a ideologia do econômico a função política da vida.
Ao mesmo tempo, o mundo que partilhamos hoje é povoado de imagens. Há imagens presentes (importante aqui pensar no que significa esse “estado de presença” dos corpos e das imagens no mundo) por todos os lados. E só por isso elas também exercem poder sobre os corpos que todos somos. Digo que somos corpos porque nosso corpo é nosso estar no mundo, não uma coisa, não um objeto que nós mesmos possuímos ou que é possuído por outrem.
Em nosso senso comum, esse conjunto de teorias populares que usamos no cotidiano, poder é um conceito reduzido à lógica binária maniqueísta, na qual ele é considerado algo bom ou mau. Em um sentido conceitual, poder não é nem uma coisa nem outra. A concentração ou a escassez, seu excesso ou sua falta é que tornam o poder problemático. Imaginemos uma relação entre alguém que não pode nada, ou alguém que tudo pode. Não é difícil imaginar que o simples poder pode, nessa relação desproporcional, transformar-se em violência. Jogos de poder
Podemos usar o nome de “sujeito” para definir aquele que age sobre algo, e de “objeto” para definir aquilo ou até mesmo aquele sobre o que ou sobre quem se age. A relação entre dois sujeitos que não são reduzidos a objetos, define o mais rico dos experimentos da linguagem, o diálogo. Ele só acontece no momento em que conseguimos sustentar a condição de sujeitos. Em contextos nos quais um reduz o outro a objeto, a condição de possibilidade do diálogo está aniquilada.
Reduzimos as pessoas a objetos todas as vezes em que as usamos como meios e não como fins.
Como algo próprio dos corpos que entram em relação uns com os outros, o poder é inerente às relações. E apenas por isso ele pode se organizar como uma espécie de “jogo” regido por regras. O jogo é algo que não se joga sozinho e implica a compreensão das regras. Mas também a possibilidade de usá-las seja em benefício próprio, seja do coletivo. Damos o nome de poder político àquele que se exerce sobre corpos ou entre corpos atravessados por instituições. Corpos são atravessados por instituições em muitos momentos, e é difícil descobrir um instante em que estejam livres do poder político e totalmente lançados em uma espécie de pura relação em que a linguagem ainda não se encontrou com os jogos de força. Uma espécie de vida primitiva da linguagem, ou pura vida da linguagem. Daí que toda linguagem seja, mais cedo ou mais tarde, a forma primitiva da política e necessariamente ligada ao poder. O jogo democrático e o estado de exceção atual
O poder político implica uma consciência das regras do jogo. Textos como a Constituição, por exemplo, são como que a regra básica de um jogo democrático. O estado de exceção no qual estamos vivendo no Brasil atual, por exemplo, implica que as regras anteriormente acordadas foram burladas ou alteradas por um grupo que resolveu romper com as regras do jogo democrático. Quando isso acontece, quando o poder político é usado em benefício próprio ele é conspurcado. O próprio jogo é aniquilado e ninguém mais pode jogar. A democracia, como um jogo possível com regras que envolvem a todos, é interrompida. Resta aos que “podem” o mando, e aos outros, a obediência.
O que se pode chamar de “jogo de poder” é estratégia de poder em seu sentido político. Todo jogo de poder é, na verdade, um jogo de linguagem. Há jogos de linguagem sem “jogos de poder”, mas não há jogo de poder sem linguagem.
A linguagem preferida do jogo de poder político em seu estado deturpado é a da dominação e da violência. O poder político – aquele que se exerce juntamente com outro, ou contra os outros com a consciência do seu efeito – é como uma engrenagem, como um dispositivo, é como um organismo que funciona para fazer sobreviver a si mesmo. Como as pessoas se relacionam com esse poder é uma pergunta que deve ser respondida por cada um.
Ninguém na sociedade humana, que é uma sociedade política – na qual mesmo quem não quer fazer política faz política, mesmo que a sua política seja uma espécie de antipolítica – , vive fora de relações de poder. Justamente porque não pode viver fora da linguagem. O poder político que não interessa a todos, a todos afeta e, na sua forma deturpada depende justamente desse desinteresse da maioria para manter-se como é.
A pergunta que nos toca, nesse momento é: podemos jogar esse jogo? Ou devemos simplesmente deixar que aqueles que se colocaram como os “donos” do poder sintam-se tranquilos sem mais adversários dispostos a jogar o jogo da democracia?
Fora do jogo da democracia, todo jogo de poder é um jogo sujo. Vamos aceitar?