No belíssimo filme “Rapsódia de Agosto”, onde os
sobreviventes da bomba (americana) jogada em Hiroshima e Nagasaki, no final da
segunda grande guerra mundial, cultuam seus antepassados mortos e desaparecidos
na hecatombe nuclear e marcam o encontro
com eles, num momento vindouro, é um traço forte da cultura nipônica de
louvar a ancestralidade, como fonte de respeito e admiração. Sentimento claro
presente no marcante filme “A balada de Naraiama”, onde o
sacrifício para salvar a comunidade recai voluntariamente nos mais velhos. Este tributo aos mais velhos
é uma característica das culturas orientais e contrasta vivamente com o culto
ao novo e a novidade das sociedades ocidentais, onde os idosos são concebidos
como fardos insuportáveis a serem custeados
pela Previdência Social.
Estas observações
vêm a propósito dessa fúria assassina contra os mais velhos, no atual governo
do Brasil, que, aliás, se arrogou no direito de decidir soberanamente que deve
viver e quem morrer, em consequência da pandemia do Coronavírus 19. O direito à
senectude é fruto do amadurecimento da consciência social da humanidade.
Resulta da criação de um micro código
chamado “Estatuto do idoso”, não é favor, privilégio, esmola ou outorga de
nenhum governante. Significa um aumento do patamar da dignidade humana, num
país como o nosso. As mudanças drásticas no financiamento da saúde, da
assistência social e da previdência pública, iniciadas no governo Temer (com a
aprovação da malfadada PEC da morte) expressaram claramente um retrocesso ou
uma triste mudança de prioridade da administração pública no Brasil. Os cortes
no orçamento da seguridade social se refletem de imediato na qualidade de vida
(ou sobrevida) da população mais idosa, ou que necessita de cuidados especiais.
De uma época de grande avanço nas políticas de ação afirmativa, destinadas a
amparar coletivos vulneráveis, passamos rapidamente a uma política darwinista
da “sobrevivência dos mais aptos”, através de uma seleção que não tem nada de
natural, mas de política e social.
O objetivo da
atual política econômica é claramente
sacrificar a vida dos mais frágeis e dependentes – em meio a uma grande crise
sanitária e social- em favor dos
interesses da banca, do mercado, das empresas, dos patrões. É como se a
pandemia do Coronavírus 19 viesse sabotar o plano adredemente preparado de
destruir as conquistas sociais da Constituição de 1988, em benéfico do capital
e da especulação financeira internacional. Depois da reforma trabalhista e da
reforma da previdência pública, parecia que o atual governo ia mesmo entregar
aos seus patrocinadores a mercadoria que
vendeu, na campanha eleitoral: a desregulamentação completa da economia
brasileira. Mas foi atropelado pela pandemia mundial, provocando um crescimento
negativo de 5% do PIB, um exército de 14 milhões de desempregados, um rombo
fiscal nas contas públicas que vai além do 125 bilhões de reais. Grande
frustração para o gerente do capitalismo internacional. O que fazer para
cumprir as promessas de campanha!
É com o sangue
da população mais velha e dos setores mais frágeis da população brasileira que
o governo que pagar a conta. Aquilo que já foi chamado de “população
excedente”, sem fins ou utilidade econômica. Peso morto no orçamento público da
nação. Gente que já não tem mais lugar no mundo (econômico, do capitalismo).
Para os gestores da economia, ela deve ser eliminada. E nada como os efeitos
mórbidos e letais de uma pandemia para realizar essa tarefa. É só corta o
investimento no combate ao vírus, reduzir o gasto com leitos hospitalares,
pessoal da área da saúde, e instar os idosos a irem para rua. Curioso o interesse
do Ministério da Defesa pelo número de covas disponíveis nos cemitérios
públicos. Fazem a complementação da visão dos evangélicos de que a praga ocorre
por um desígnio divino. Se as orações não evitarem as mortes, cuidemos de
enterrar as vítimas em covas rasas, ou valas comuns. Se fosse à Índia,
cremavam-se os cadáveres e se jogava as cinzas no rio Ganges. Aqui, acumulam-se corpos nos hospitais ou
se guardam em contêineres refrigerados.
Uns cuidam da alma pecaminosa dos condenados. Outros, dos corpos putrefatos.
Uma combinação macabra e tanto.
Não nos assustemos
muito. Só os que manifestam vocação para golpista ou ditador se arrogam o
direito de decidir soberanamente que deve viver ou deve morrer. E a massa
bolsonarista brada:” Cesar, os que vão morrer, te saúdam!"
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Com este vídeo, iniciamos um projeto de consolidação de mais um espaço do blog via abertura de um canal no Youtube, espaço que se propõe a complementar, com os nossos comentários, as matérias aqui divulgadas, proporcionando um outro momento de diálogo com os nossos leitores. Neste primeiro vídeo, a partir de um artigo de Anne Mathieu - originalmente publicado pelo jornal Le Monde Diplomatique - onde a autora discute a trajetória acadêmica e política do filósofo francês, identificando as teses com as quais ele acabou se indispondo com grupos de ultra-direita, conservadores e até mesmo colegas da academia francesa, chamo a atenção para a questão das responsabilidades históricas coletivas, momento que o autor de As Palavras critica a sociedade francesa, por sua parcimônia em relação à guerra de libertação da Argélia. Ele que era um anti-colonialista convicto. Leiam, comentem, inscrevam-se, assinem o canal, deixem suas impressões. Como disse antes, trata-se de mais um espaço de construção de um diálogo, num momento crítico de nossa sociedade, onde o afeto e a solidariedade parecem perder a batalha contra o egoísmo e a indiferença. A crise política, econômica e de saúde pública que ora enfrentamos, nos sugerem uma boa reflexão sobre o tema das responsabilidades históricas coletivas. Como chegamos a isso? O próximo vídeo, a partir da resenha de um artigo sobre a trajetória acadêmica do sociólogo Ricardo Antunes, da UNICAMP, aborda a questão das mudanças substantivas do mundo do trabalho nesses tempos de pandemia. Num momento de uma grave crise de saúde pública, o vírus pegou milhões de trabalhadores brasileiros literalmente desprotegidos, o que potencializou o problema da exclusão produtiva. Um forte abraço do editor.
Em 19 de abril de 1980, o enterro de Jean-Paul
Sartre mobilizou uma multidão, como o de Victor Hugo, pouco menos de cem
anos antes. Com a morte de Sartre, uma época de engajamentos e de
recusa da etiqueta burguesa parece ter terminado. O exibicionismo
midiático e o encastelamento universitário hoje em dia caracterizam os
dois polos do mundo intelectual, ambos distantes do modelo sartriano
Existe um “paradoxo Sartre”. Aquele que simboliza “o
intelectual total, presente em todas as frentes do pensamento (filósofo,
crítico, romancista, teatrólogo)”,1 mal encontra um lugar
póstumo, digno desse nome, em seu país. O paradoxo é acentuado pela
disseminação cada vez mais intensa do pensamento e dos escritos
sartrianos no estrangeiro. É que a França se ilumina agora com as
lanternas do conformismo consensual ao que os (pseudo)debates
televisivos e radiofônicos nem sequer chegam a dar a ilusão de um sopro
desestabilizador. O medíocre e o convencional ficavam bem longe daquele
que nunca deixou, após a Segunda Guerra Mundial, de fustigá-los, de se
lançar ao combate, de assumir riscos. Uma certa intelligentsia recusa a Sartre seu status de representante do intelectual engajado “à francesa”. Única obra a conseguir unanimidade: As palavras (1961).
Sobram elogios sobre “a obra-prima do escritor”, o que não é por acaso:
essa autobiografia na qual ele narra sua infância e juventude não
perturba ninguém. O pensamento único de direita, assim como o de
esquerda, soube identificar a obra que lhe permitia poupar
unilateralmente o intelectual e, ao mesmo tempo, relegá-lo à “loja de
acessórios” datados, ultrapassados.2
Ultrapassados e gastos até a medula do erro. Pois, como tantas vezes nos recordam, Sartre estaria errado o tempo todo3
– a menos que essa acusação não se volte contra os acusadores. Façamos
nossas as palavras revigorantes de Guy Hocquenghem alguns anos depois da
morte do autor de Caminhos da liberdade: “Almas avaras e
pobres, puritanas e teoristas, vocês quiseram cem vezes matar Sartre.
Mas, quanto mais o renegam, mais o reanimam. Quanto mais o empurram,
mais ele os abraça, mais os leva consigo na morte. O verdadeiro Sartre
escapa ao túmulo do respeito renegado e da traição onde vocês quiseram
encerrá-lo”.4
Desde sua morte em 1980, pouca coisa foi poupada àquele que muitos
temeriam enfrentar enquanto vivo. Sartre seria um filósofo que falou mal
da literatura… As carteiras dos estudantes pulularam durante muito
tempo com essas piadas de mau gosto – e chegaram até as salas de aula
dos universitários, disfarçadas de legitimidade científica. Justamente
em literatura é que Sartre continua pouco estudado. Mas convém reler seu
primeiro romance, A náusea (1938), sua coletânea de contos, O muro (1939), sua trilogia injustamente ignorada e subestimada, Os caminhos da liberdade (1945-1949).
Belos textos, variados estilística e narrativamente, que “falam” a todo
mundo, afetando para sempre a formação intelectual e pessoal: marca das
obras-primas. Seu teatro? Também ele diverso, inventivo e… atual. Além
de Entre quatro paredes (1944) e As mãos sujas (1948), suas peças mais conhecidas e mais montadas até hoje, a força de denúncia de Nekrassov (1955) e Sequestrados de Altona (1959)
continua intacta: no caso da primeira, a da mistificação da informação e
do aliciamento; no caso da segunda, a do fim e dos meios em períodos
violentos da história.
Há também, é claro, seus textos políticos. Pois é aí que está o problema: Sartre incomoda porque está “inserido”. Ele disse em Os tempos modernos (1945):
“O escritor está inserido em sua época: toda palavra repercute. Todo
silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela
repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha para
impedi-la. Não era da conta deles, dirão vocês. Mas o processo de Calas
era da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus era da conta de Zola? A
administração do Congo era da conta de Gide? Cada um desses autores, em
uma circunstância particular de sua vida, levou em consideração sua
responsabilidade de escritor”.5
Companheiro do Partido Comunista
A guerra estimularia o engajamento de Sartre. Mobilizado em setembro
de 1939 e aprisionado em junho de 1940, foi transferido para um stalag (campo de prisioneiros) em Trèves. Ali conheceu a camaradagem, a fraternidade; escreveu e encenou uma peça de Natal, Bariona ou o Filho do Trovão.
Libertado em março de 1941 fazendo-se passar por civil, Sartre voltou a
Paris decidido a agir. Fundou com Maurice Merleau-Ponty o grupo efêmero
“Socialismo e Liberdade”, imaginando organizar um movimento de
resistência com a ajuda de André Gide e André Malraux, na zona livre.
Sua peça As moscas fala em resistência na Paris ocupada. Em 1943-1944, colaborou nas Lettres Françaises, órgão do Comitê Nacional dos Escritores fundado na clandestinidade por Jacques Decour e Jean Paulhan.6
Mas isso foi tudo: Sartre não seria nem Georges Politzer nem Claude
Bourdet. Antes da Segunda Guerra Mundial, o que impressiona é a ausência
de qualquer horizonte político. Diga o que disser Simone de Beauvoir e
malgrado a novela O muro, ele permaneceu distanciado do que acontecia na Espanha.7
Quando lemos sua correspondência com Simone, o “Castor”, ficamos
estupefatos ao notar a primeira menção política apenas em julho de 1938,
dois meses antes de Munique. Além disso, os dois não sabiam muita coisa
da Frente Popular. Esse distanciamento político no entreguerras o levou
durante a vida inteira a caminhar lado a lado com o fantasma de Nizan,
seu amigo de juventude que, ele sim, se engajara totalmente desde o fim
dos anos 1920.
Sartre entrou em fevereiro de 1948 para o comitê diretor do
Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR) [União Democrática
Revolucionária], cujo projeto havia sido elaborado anteriormente por
jornalistas e intelectuais de esquerda e extrema esquerda, entre os
quais David Rousset. O RDR morreu com a saída de Sartre (outubro de
1949); e esse foi seu único engajamento em um partido político. De
meados de 1952 ao fim de 1956, ele flertou com o Partido Comunista
Francês (PCF), amplamente motivado pela repressão policial e judicial de
que este era então objeto, mas que se insurgira violentamente contra
ele até então. Com efeito, o presidente da União dos Escritores
Soviéticos o havia chamado em 1948 de “hiena datilógrafa”. Sartre rompeu
com o partido em novembro de 1956, quando a URSS esmagou o motim
húngaro. Como seria sempre o caso, seu ímpeto jornalístico se impregnou
da temática e do léxico dos companheiros que escolheu. São assim os
textos publicados no France-U.R.S.S. em 1955, que não devem
nada à fraseologia dos comunistas ortodoxos. Não obstante, os artigos
sartrianos desse período oferecem uma reflexão sempre atual sobre a
mistificação dos dirigentes e da imprensa: “Todos os nossos leitores
sabem que consideramos nefasta a política do governo e que desprezamos
os homens que a inspiram; mas nossa tarefa consiste em demonstrar isso
sem descanso. Somente demonstrando é que podemos esperar servir.
Insistiremos: se é proibido chamar Bidault de criminoso, nós o
chamaremos de grande culpado; se nos recusarem o direito de falar sobre o
sangue que ele tem nas mãos, falaremos das escamas que ele tem nos
olhos. Mera questão de terminologia”.8
Os últimos meses de flerte com o PCF coincidiram com a luta de Sartre contra a Guerra da Argélia. Essa foi sua grande batalha.9
E aqui está o que alguns nunca perdoarão: seu anticolonialismo
visceral, a insistência de seu discurso em colocar os franceses face a
face com suas responsabilidades históricas, intelectuais e morais.
“Falsa candura, fuga, má-fé, solidão, mutismo, cumplicidade recusada e
por fim aceita, eis o que chamávamos, em 1945, de responsabilidade
coletiva. Na época não aceitávamos que a população alemã fingisse ter
ignorado os campos de concentração. ‘Ora, vamos’, dizíamos. ‘Eles sabiam
de tudo!’ Tínhamos razão, eles sabiam de tudo, e somente hoje podemos
entender isso, pois nós também sabíamos. […] Ousaremos ainda
condená-los? Ousaremos ainda nos absolver?”10
Alguns, frequentemente os mesmos, não aceitam também sua amizade com o
psiquiatra e ensaísta martinicano Frantz Fanon, então quase no
ostracismo, e do qual prefaciou Os condenados da terra (1961),
ensaio que serviu de farol para o terceiro-mundismo. No prefácio, ele
vilipendia a mentira de uma nação orgulhosa que é apenas a sombra de si
mesma: “Quanta conversa fiada! Liberdade, igualdade, fraternidade, amor,
honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impediu ao mesmo tempo de
proferir discursos racistas: negro sujo, judeu sujo, rato sujo”.11
O radicalismo da subversão de Sartre se medeia à luz do ódio que
inspirava aos donos de lojas literárias e jornalísticas. Ninguém se
insurgiu assim nem sequer contra Céline, salvo por certa crítica que
admirava seu estilo. Pois, se não era antissemita, Sartre cometeu o
grande erro de confraternizar com aqueles que se revoltavam contra o
opressor francês. As calúnias se multiplicavam. Um desses valentões de
salão não temeu o ridículo ao acusar Sartre de “tentativa de assassinato
contra Camus”. Tudo isso, bem entendido, tendo por pano de fundo a
Guerra da Argélia e o elogio de Camus como “o filósofo que nunca se
enganou”.12 Em nome da complexidade da situação pessoal, justificava-se a posição equivocada do autor de O estrangeiro
perante os desafios do momento histórico. Desdenhava-se o combate
corajoso… e perigoso. A casa de Sartre foi alvo de um atentado com
explosivo plástico cometido pela extrema direita – em nome do direito
dos povos de disporem de si mesmos. As mídias não deixaram de zombar de
Sartre discursando em Billancourt sobre um tonel, na época de sua
camaradagem, em 1970, com os maoistas da esquerda proletária.
Há alguns meses, no Figaro, Jacques Julliard, membro da
Academia Francesa e encarnação perfeita do intelectual oficial,
institucional e consensual, emitiu seu veredicto sobre Sartre: “Mau
romancista, dramaturgo tedioso, filósofo prolixo, mas sem originalidade,
eis aí um amante da liberdade que sempre adulou todas as ditaduras, uma
grande alma que justificou todos os massacres desde que fossem
inspirados pelo socialismo […]. É um impostor de boa-fé que reservou sua
severidade, e às vezes seu ódio, aos regimes liberais e que viu na
ostentação da má consciência do escritor um álibi para sua tranquilidade
intelectual. Até hoje, foi só nessa área que ele aliciou discípulos”.13 Mas, com os diabos, por que tanta dimensão humana?
Foto: Domínio Público
Para empreender “uma defesa política de Sartre”14, o
melhor é considerar sua obra “inserida”, avaliar nela tanto os erros, os
exageros e as fraquezas quanto o brio, a pertinência e a atualidade.
Atualidade? Se esse modelo do intelectual engajado saiu de moda, não há
motivo nenhum para regozijo. Em 1983, três anos após a morte de Sartre,
Pierre Bourdieu explicou que “as condições conjunturais, mas também
estruturais, que […] tornavam possível [o intelectual por excelência]
estão hoje desaparecendo: as pressões da burocracia de Estado e as
seduções tanto da imprensa quanto do mercado de bens culturais, unidos
para reduzir a autonomia do campo intelectual e de suas instituições
próprias de reprodução e consagração, ameaçam o que havia, sem dúvida,
de mais raro e mais precioso no modelo sartriano do intelectual e que
mais contrariava de fato as disposições ‘burguesas’: a recusa dos
poderes e privilégios mundanos (o Prêmio Nobel, por exemplo) e a
afirmação do poder e do privilégio propriamente intelectuais de dizer
‘não’ a todos os poderes temporais”15.
A recusa de Sartre a que assistimos é o inverso da lógica da
homenagem. Má consciência dos intelectuais televisivos ou apadrinhados,
ele nos lembra (e a eles) que um intelectual se torna digno desse nome
por seu pensamento, sua atuação, sua obra, sua determinação, nunca por
suas aparições nas mídias ou por seus amigos poderosos. Aos praticantes
do pensamento pronto, sempre a repetir que os tempos mudaram, que as
lutas e as reivindicações só são admissíveis dentro de limites
estreitos, pode-se replicar que nenhuma mudança pelo bem comum ocorreu
quando se sussurrou “sim”, mas quando se bradou “não”. No início da luta
há sempre a recusa. Os intelectuais e jornalistas que rejeitaram Sartre
sabem disso muito bem, embora seus discursos digam o contrário.
Deformar e cobrir de opróbrio a palavra sartriana é sufocar a liberdade
de nos opormos à pressão das convenções e dos poderes. É induzir-nos a
crer que todas as palavras se equivalem e contribuir para degradá-las
num momento em que a responsabilidade do intelectual consiste às vezes
em recorrer, conforme dizia o próprio Sartre, a “revólveres carregados”.
*Anne Mathieu é mestre de conferência em Literatura e Jornalismo da Universidade de Lorraine, França, e diretora da revista Aden.
(Texto publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
1 Pierre Bourdieu, “Sartre, l’invention de l’intellectuel total” [Sartre, a invenção do intelectual total], Libération, 31 mar. 1983; reeditado em Agone, n.26-27, 2002.
2 Cf. Dossier Sartre, Europe, Paris, out. 2013.
3 Cf. Claude Imbert, “Sartre, la passion de l’erreur” [Sartre, a paixão do erro], Le Point, 14 jan. 2000.
4 Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary [Carta aberta àqueles que não usaram colarinho Mao no Rotary] (1986), Agone, Marselha, 2003.
5 Jean-Paul Sartre, “Présentation des Temps Modernes” [Apresentação de Os tempos modernos], Les Temps Modernes, 1º out. 1945 (reeditado em Situations II, Gallimard, Paris, 1948).
6 Cf. Michel Contat e Michel Rybalka, Les Écrits de Sartre [Os escritos de Sartre], Gallimard, 1970; cf. também Annie Cohen-Solal, Sartre, Gallimard, 1985.
7 Cf. Anne Mathieu, “Jean-Paul Sartre et l’Espagne: du ‘Mur’ à la préface au Procès de Burgos” [Jean-Paul Sartre e a Espanha: de O muro ao prefácio do Processo de Burgos], Roman 20-50, jun. 2007.
Primeiro dia de comércio fechado na cidade do Rio de Janeiro, em março (Foto: Agência Brasil)
Vejo muitos amigos preocupados, com razão, diante do apoio que Bolsonaro
ainda tem em parte significativa da população, não apenas porque
pesquisas atuais indicam algo na casa dos 30%, mas também pelo eco que
suas “ideias” ainda têm em redes sociais, parte da imprensa, grupos
religiosos, alguns políticos.
Entre o primeiro e o segundo turno de 2018, o fosso que se abriu entre quem dizia #elenão
e quem fazia arminhas com os dedos não apenas me parecia ser
definitivo, como sempre me pareceu que devia mesmo ser, porque a defesa
de Bolsonaro, ao menos pelos seus mais entusiasmados seguidores, com
camisetas e berros, revelava uma postura inconciliável com qualquer
patamar de civilidade, humanismo, tolerância, convivência, qualquer uma
dessas palavras e posturas que eles odeiam.
Boa parte desse cordão que se formou em torno de Bolsonaro, numa
observação empírica aqui pelas minha bandas, é formado por
ex-malufistas, gente que achava que os tucanos eram “muito de esquerda” e
sentiam falta de um representante “verdadeiramente de direita”,
querendo dizer, com isso, que precisávamos de um “líder” capaz de mandar
a polícia matar “bandido”; acabar com “privilégios” de trabalhadores,
sindicalistas, políticos, servidores públicos etc.; defender “a família”
e seus valores tradicionais contra a “balbúrdia” dos “comunistas”
(desculpem o abuso das aspas, mas eles nunca usam essas palavras num
sentido minimamente preciso).
A meu ver, não há vírus no mundo que os faça mudar de posição. Com
tudo que acontece neste momento, com a morte batendo à porta de todo
mundo, o que mais temem é que “a esquerda” aproveite para voltar ao
poder – e “a esquerda” inclui a Globo, o PSDB de Doria, Rodrigo Maia,
os ministros do STF e todo mundo que, por qualquer razão, diga que
Bolsonaro não tem condições de ocupar aquela cadeira. É uma insanidade,
uma obsessão, uma paranoia, e Bolsonaro sabe tirar proveito disso. Para
essa turma, até mesmo a cruzada da cloroquina contra o comunismo faz
sentido – e, infelizmente, acho que continuará assim.
Não é com eles, portanto, que devemos gastar nossa energia – tão
escassa, tão necessária – neste momento. A principal preocupação é de
luta por sobrevivência, em três sentidos pelo menos: o primeiro é sobreviver ao coronavírus;
o segundo é sobreviver à radicalização da crise econômica precipitada
pela pandemia; e o terceiro é sobreviver politicamente ao bolsonarismo,
o que pode unir todos aqueles que, no amplo espectro das posições
políticas democráticas, têm razões para se situar contra um governo que é
a ameaça das ameaças, um governo que aposta na morte, na desigualdade,
na ignorância e no autoritarismo.
É verdade que, para nosso pesadelo, Bolsonaro teve 57.797.847 votos
em 2018. Mas devemos lembrar que, do outro lado do ringue, somando os
votos de Haddad (47.040.906), brancos, nulos e abstenções, estavam
89.507.308 eleitores. Isso não é nada mecânico, eu sei, mas temos boas
razões para acreditar que, de lá para cá, nenhum desses 89.507.308
passou para o outro lado, assim como, diante do desempenho bisonho do
governo em tantos setores, podemos crer que parte daqueles 57.797.847 já
engrossa as fileiras do lado de cá.
Os bolsonaristas e seus robôs gritam muito (a começar pelo próprio
Jair, em rede nacional), então parece que eles estão por todos os lados e
são maioria, mas não são. O enfrentamento da pandemia, neste momento,
deve unir politicamente a maioria que se opõe às medidas de morte que
Bolsonaro defende e, daqui em diante, servir como um marco na luta por
direitos sociais num sentido amplo, com base no que a Constituição garante, como eixo principal para a reconstrução da vida neste país.
Os últimos anos foram de muitas derrotas, não apenas nas urnas.
Assistimos ao desfile de múltiplas ofensas escancaradas a direitos
conquistados duramente por gerações e gerações, que vão dos instrumentos
democráticos fundamentais à proteção social dos trabalhadores, passando
pelo SUS, pela Previdência e Assistência Sociais, pelas universidades
públicas, por tudo que mais importa à maioria da população, como se
tornou ainda mais evidente neste momento de pandemia, em que Estados em
todo o mundo, para socorrer a população mais atingida pela
“modernização” neoliberal, são obrigados a ressuscitar (sim!)
instrumentos bem conhecidos dentro do que, até pouco tempo, chamávamos
de Estado de Bem-Estar Social.
Por uma dessas ironias da História, os governos responsáveis por
essas medidas, não apenas no Brasil, são aqueles que haviam sido eleitos
para dar o golpe final nas estruturas da forma estatal distributiva e
intervencionista. São presidentes, ministros e parlamentares
ultraliberais que estão agora na encruzilhada, tendo que abrir para a
população, em parte, cofres que, de outra maneira, não se destinariam a
despesas tão estranhas aos propósitos do “Estado mínimo”, como o
financiamento de pesquisas e o socorro direto dos trabalhadores
informais e pequenas empresas, entre outras medidas que devem trazer
muito desgosto pessoal a figuras como Paulo Guedes.
Foi um vírus, enfim, que nos trouxe até aqui. Os poderosos de sempre,
no Brasil e no mundo, já perceberam que as cartas estão todas na mesa e
não perdem tempo para forjar, nessas condições, os instrumentos que
possam garantir ainda mais poder a eles daqui em diante. Em termos
políticos nacionais, nem todos esses poderosos são representados por
Bolsonaro, mas já perceberam que podem se aproveitar da incompetência e
truculência do governo para saírem mais fortes.
Contra eles, quero crer que somos 89.507.308 “eleitores” e podemos
ser muitos mais, agora que, do outro lado, temos um adversário que cada
vez mais se revela inimigo. Mas aí também está um problema: nossa força
não pode ser medida apenas na urna, que está longe se pensarmos nas
urgências que a pandemia agudizou, e, além disso, na eleição esse número
provavelmente vai se quebrar.
Insisto nesses números, entretanto, para lembrar que essa força
existe e que devemos pensar numa forma de organizá-la desde já, porque o
inimigo não faz quarentena. Esse momento excepcional de ressuscitação
do “Estado máximo”, capaz de prover sobrevivência à população, à
pesquisa científica, ao pequeno empresariado etc., e também de forçar
grandes empresas a manter empregos e salários, se depender da
mentalidade ultraliberal, não tenhamos dúvida de que será apenas o
“canto do cisne” de tudo que se opõe aos interesses das elites e do
grande capital.
É hora, portanto, de mostrar como essas medidas “emergenciais” podem e
devem ser permanentes (como a “renda básica de cidadania”, há tanto
tempo defendida por Eduardo Suplicy, ou o “salário mínimo” para o trabalhador uberizado),
atravessando essa fase de pandemia para, num futuro próximo, servir de
base para reivindicações mais amplas da população. É só uma brasa, mas
pode pegar fogo. Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.
Benito Mussolini, 40º primeiro-ministro da Itália, em 1922 Topical Press Agency/Wikimedia Commons
Scurati, AntonioM, o filho do século
TRAD. Marcello Lino
Intrínseca • 816 pp • R$ 79,90
Em 1981, o ensaísta e crítico literário George Steiner — que morreu em fevereiro deste ano — publicou o romance The portage to San Cristobal of A.H. (“O
transporte para San Cristobal de A.H.”). As iniciais do título
correspondem a Adolf Hitler — que teria sobrevivido à Segunda Guerra e,
localizado na América do Sul por caçadores de nazistas, é perseguido e
capturado na selva amazônica, sendo julgado ali mesmo devido a seu
estado de saúde precário. O romance causou furor e protestos, redobrados
quando, no ano seguinte, uma adaptação teatral deu corpo e voz ao Führer.
Há inúmeras obras ficcionais que encenam a vida de Hitler, na
literatura e no cinema. Mas a narrativa de Steiner, além de inserir
Hitler no mainstream artístico-intelectual, desafiava o
mandamento formulado por Emil Fackenheim, conhecido como “teólogo do
Holocausto”, de “não conceder a Hitler nenhuma vitória póstuma”, uma vez
que o livro de Steiner termina dando a última palavra ao ditador, no
discurso em que se defende diante do tribunal.
Agora, outro romance traz no título a inicial de um ditador sobre o qual pesam interditos éticos semelhantes: M, o filho do século,
de Antonio Scurati. O “M”, como fica claro de saída, refere-se a Benito
Mussolini, o líder fascista que ascendeu ao poder em 1922, aliou-se a
Hitler, levou a Itália à Segunda Guerra Mundial e, melancolicamente
destituído em 1943, ficou acuado na República de Salò (Estado fantoche
sob proteção nazista) até ser morto por membros da resistência em 28 de
abril de 1945. Vencedor do prêmio Strega de 2019 com o romance, Scurati
declarou, em entrevistas, que só foi possível escrever essa narrativa
por causa da queda de um tabu sobre o qual se fundou a República
italiana. Durante quase setenta anos, diz o escritor, qualquer discussão
ou ação política teria como premissa uma tomada de posição
antifascista.
Organizações inspiradas na extrema direita de
Mussolini nunca deixaram de existir, mesmo no imediato pós-guerra. E
vários partidos, a partir dos anos 1980 e 90, retomaram seus valores
sob a máscara do nacionalismo e de uma xenofobia “legitimadas” pela
globalização e por um sistema político que, em vários momentos, usou o
escudo do antifascismo como salvo-conduto para a corrupção.
Cinismo despudorado
Tudo isso é arquiconhecido e está na gênese de
partidos separatistas como a Liga Norte. O tabu a que se refere Scurati
diz respeito menos a questões políticas e institucionais do que a um
clima de cinismo despudorado. Um clima que hoje permite a Matteo Salvini
— político da Liga que alcançou o papel mais relevante no Executivo
entre 2018 e 2019 — fazer pronunciamentos em que parafraseia Mussolini.
Ou que o movimento estudantil seja dominado por extremistas de direita,
tendo como referência a CasaPound — agremiação social que se apropria de
métodos de esquerda e do éthos anarquista: nasceu com a ocupação ilegal de um imóvel em 2003, tem como presidente o líder da ZetaZeroAlfa, uma banda de rac (Rock against communism,
ou “Rock contra o comunismo”), e hoje se espalha por mais de cem sedes
com paredes cobertas por lemas e imagens do Duce (além, obviamente, de
portar um nome em homenagem a Ezra Pound, poeta norte-americano que
viveu no país e foi entusiasta do fascismo). Enfim, se no século passado
era tolerável se declarar nostálgico do fascismo, só na Itália deste
milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos
antifascistas.
Só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas
Paradoxalmente, foi esse ambiente que rima neofascismo com cultura pop, a calva de Mussolini com skinheads, que propiciou o surgimento de um livro claramente antifascista como M, o filho do século.
A nota introdutória diz: “Fatos e personagens deste romance documental
não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem,
diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente
documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte”. Ao
longo de mais de oitocentas páginas, temos uma sucessão de
momentos-chave da história da Itália sob Mussolini descritos por um
narrador que, a cada capítulo, se coloca do ponto de vista de uma
personagem, com indicação de data e localidade do episódio. Importante: o
volume começa em março de 1919, com a fundação dos Fasci di
Combattimento (grupos paramilitares que estão na origem do movimento
fascista), e termina em janeiro de 1925, com um discurso de Mussolini
como primeiro-ministro para o plenário do Montecitório (sede da Câmara
dos Deputados). Os períodos sucessivos serão abordados em outros dois
volumes já anunciados pela editora italiana Bompiani.
A imensa maioria dos capítulos, como era de se
esperar, é narrada do ponto de vista de Mussolini. Vários outros partem
da perspectiva de asseclas de expressão local ou de personagens
célebres, como o socialista Giacomo Matteotti e o poeta decadentista
Gabriele D’Annunzio — que, antes mesmo da ascensão do Duce, chegou a
liderar um delirante governo de feição fascista em Fiume (atual Rijeka),
cidade da Croácia então reivindicada pela Itália. E, reforçando o
caráter de “romance documental” de M, o filho do século,
Scurati insere, entre cada capítulo, a transcrição de trechos de
notícias de jornal, manifestos partidários, discursos e cartas.
O narrador de Scurati se coloca em cena com cada
personagem, mas nunca em seu lugar. E adota o presente do indicativo
como tempo verbal dominante — procedimento semelhante, por exemplo, ao
usado por Emmanuel Carrère em Limonov (livro que, aliás,
acompanha a trajetória de um ativista russo com muitas afinidades com o
“fascismo eterno” de que fala o célebre ensaio de Umberto Eco). Com
isso, a escrita ganha um sentido de imediatez teatral ou
cinematográfica.
Romances narrados retrospectivamente, nos quais
predominam verbos no pretérito, em geral conduzem o enredo para um fim
que nós, leitores, ignoramos, mas que o narrador parece dominar desde o
início. Aqui, a situação se inverte: todos, inclusive o autor, já sabem
onde a história vai dar, mas o narrador, imerso no tempo presentificado,
abdicando da plausível onisciência, se limita ao puro acontecimento,
dramaticamente encerrado em si mesmo.
Esse procedimento formal, mais do que simples opção
estilística, dá espessura linguística à incerteza permanente que
caracteriza o nascimento do fascismo e realça os momentos em que o
movimento parece liquidado, mas consegue se reerguer, no momento
seguinte, de modo tão inacreditável para seus protagonistas quanto para
os leitores. Dito isso, existe uma tese que atravessa a encenada falta
de onisciência do narrador: para Scurati, o fascismo nasce da aliança
entre a vontade de potência de Mussolini e as pulsões de morte de uma
legião mítica de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, os Arditi,
que durante o conflito puseram seu apetite pela violência a serviço do
Exército italiano — mas que, ao fim da guerra, voltaram a ser o que
sempre foram: delinquentes e assassinos.
É o caso de Ferruccio Vecchi: “A seu respeito,
circulam relatos inverossímeis e extraordinários: ferido mais de vinte
vezes, diz-se que tomou de assalto sozinho, lançando granadas, uma
trincheira austríaca, e trepou com a mulher do coronel enquanto ela
dormia ao lado do marido”. Ou de Albino Volpi, um dos “jacarés do Piave”
especializados em atravessar esse rio a nado para apunhalar sentinelas
na outra margem; mais tarde, ele seria responsável por jogar uma granada
sobre a multidão que comemorava o triunfo socialista após o fiasco na
primeira eleição disputada pelos fascistas, em 1919 (quando nomes
ilustres como o poeta futurista Marinetti e o maestro Toscanini foram
candidatos da extrema direita). Ou ainda Domenico Ghetti: “Anarquista,
exilado na Suíça com Mussolini durante a juventude, assassinou padres, é
desonesto, violento, conspirador, desvalido”.
Em um dos mais sinistros capítulos do romance, esses Arditi estão reunidos numa trattoria
com o futuro Duce, que tem de conter os impulsos homicidas de seus
recrutados quando, na sala ao lado, um grupo de trabalhadores do jornal
socialista Avanti! entoa o hino Bandiera rossa trionferà! (“A bandeira vermelha triunfará”) e chama Mussolini de traidor.
Ex-diretor do Avanti!, Mussolini fora expulso justamente por discordar da postura pacifista dos socialistas na Primeira Guerra Mundial e fundara o Il Popolo d’Italia,
periódico no qual, além de se mostrar “apóstolo sincero e apaixonado
pela intervenção bélica” (segundo relatório policial transcrito por
Scurati), conclama a “multidão de desajustados” dos Arditi, que vagam
pelas ruas como “minas errantes”, para formar os Fasci di Combattimento.
Mas as milícias fascistas só terão seu triunfo em
1922, quando, após incontáveis episódios de vandalismo e durante uma
crise na formação do gabinete de governo no sempre tumultuado sistema
político italiano, acontece a “marcha sobre Roma”. É o momento que
sintetiza o livro. Mussolini, com sua tática de “dosar, diluir, dilatar
e, por fim, negociar em uma posição de força”, prega em público uma
solução parlamentar para o impasse. Em surdina, porém, insufla o ímpeto
golpista dos Fasci di Combattimento, que haviam se transformado nas
temidas esquadras de camisas negras, disseminando o terror. Na iminência
da chegada dos socialistas ao poder por via institucional, eles
precipitam, em 27 de outubro de 1922, uma mobilização que, partindo de
Florença e Cremona, arrasta milicianos de outras cidades e atinge Roma
no dia seguinte.
Enquanto isso, Mussolini estava no teatro Manzoni, de Milão, assistindo ao drama O Cisne,
de Ferenc Molnár, com a amante Margherita Sarfatti — sofisticada
crítica de arte, judia da alta burguesia casada com um advogado
socialista, única mulher com quem Mussolini não manteve as tantas
relações sexualmente predatórias e misóginas descritas no livro. É só
quando a marcha sobre Roma se torna um putsch irreversível que
ele parte para a capital, onde o rei Vittorio Emanuele 3º, acuado pelos
camisas negras, lhe entrega o cargo de primeiro-ministro.
Mas ainda não é a ditadura. Em seu primeiro
pronunciamento diante da Câmara dos Deputados, em novembro de 1922,
Mussolini faz o célebre discorso del bivacco (“discurso do
acampamento”) diante de parlamentares apavorados: “Eu poderia ter obtido
uma vitória acachapante. Impus limites a mim mesmo. […] Com trezentos
mil jovens impecavelmente armados, prontos para tudo e esperando quase
misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que
difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste
plenário surdo e cinza um acampamento exíguo” — e aqui, infelizmente, a
ótima tradução de Marcello Lino põe a perder a força metafórica do
original, pois Mussolini ameaça fazer do plenário um “acampamento de
legionários” (bivacco di manipoli).
Chefe do crime
A ocasião não tardará. Em 1924, em represália a
acusações de corrupção e fraude eleitoral feitas pelo deputado
socialista Giacomo Matteotti, sicários fascistas o sequestram e
assassinam com conhecimento do primeiro-ministro. Em vez de assinalar o
fim do regime, a reação ao famigerado “Delitto Matteotti” leva o Duce a
desafiar o Parlamento a processá-lo: “Se o fascismo foi uma organização
criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”. Ninguém ousa
levantar a voz. Estava aberto o caminho para a ditadura plena, que
certamente será tema do próximo volume de Scurati.
Nesse primeiro volume da trilogia, o ex-socialista
Mussolini funda o fascismo menos como um projeto ideológico distinto e
inovador do que como pura e simples ideologia do poder: ele mesmo se
proclama “o homem do depois”, que reina sobre o caos que fomentou,
mobilizando primeiramente os instintos degenerados de criminosos de
guerra e, em seguida, a insatisfação de italianos “enjoados de si
mesmos”, fartos de “verem seus defeitos representados no Parlamento”.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na
semelhança com o que acontece hoje. De um lado, o populista que afirma
que os fascistas são um “antipartido” que faz “antipolítica” para salvar
a Itália do bolchevismo, mas negocia astuciosamente nos bastidores
enquanto mantém à espreita uma guarda pretoriana pronta para transformar
o Parlamento numa caserna. De outro, o capitão e deputado do baixo
clero que, em meio à salvaguarda para milicianos e um clã que ameaça
enviar um soldado e um cabo para fechar a Suprema Corte, se apresenta
como o messias antissistema que salvará o Brasil do comunismo.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje
Mussolini, entretanto, é uma personagem arquetípica —
tanto pela envergadura intelectual (inexistente em sua contrafação)
quanto pela capacidade de produzir o mal. Nesse sentido, só é mesmo
comparável a Hitler. Scurati correu o risco de incorrer na mesma
infração ética apontada por intérpretes do Holocausto e do ditador
alemão: inserir Mussolini na ordem natural das coisas, produzir alguma
forma de empatia pela compreensão do caráter patológico de sua obsessão
pelo poder. Mas sua minuciosa reconstituição de cada gesto do ditador
italiano, de cada brutalidade ou traição cometidas contra adversários,
aliados e mulheres pode ter outra conotação.
O teólogo Emil Fackenheim, citado no início deste
texto, dizia haver uma “desconexão radical entre a natureza humana e a
natureza de Hitler”. Com isso, talvez tenha nos obrigado,
involuntariamente, a colocar genocidas como Hitler e Mussolini não numa
espécie de santuário maligno, apartado do gênero humano, mas como núcleo
obscuro de nossa natureza. É, aliás, o que propôs o próprio Steiner em Linguagem e silêncio. E é o que faz Antonio Scurati nesse magnífico M, o filho do século.
(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)
O sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes (Foto: Unicamp/Divulgação)
As medidas econômicas necessárias para lidar com os efeitos da
pandemia, em qualquer país, não são simples. E há apenas uma certeza
quanto a elas: a sua eficiência, a sua chance de dar bons frutos –
salvar a vida da maioria da população não apenas do vírus, mas da fome –
vai depender profundamente do terreno com que se deparar. É o que
éramos até aqui que vai definir o que poderemos ser durante e depois da
pandemia.
Nos países em que a maior parte dos trabalhadores vivia ainda num
ambiente de formalidade, resguardado por direitos e contratos, tais
medidas serão mais eficientes, porque o socorro do Estado se dará dentro
de estruturas mais consolidadas. No entanto, quando o vírus se depara
com uma realidade em que metade dos trabalhadores se divide entre a
informalidade e o desemprego, seus efeitos certamente serão mais
devastadores e, consequentemente, as medidas contra a pandemia serão
mais difíceis.
É assim que o Brasil vai enfrentar o coronavírus:
com 50 milhões de pessoas que não estão protegidas por um contrato de
trabalho. E ainda mais: com uma outra parcela, provavelmente de igual
tamanho, de trabalhadores formais em condições absolutamente precárias,
porque o movimento das “reformas” nos últimos anos foi no sentido de
deixar o emprego formal cada vez mais parecido com a informalidade,
“flexibilizando” direitos e, assim, deixando os trabalhadores mais
vulneráveis às crises.
Portanto, para entender como os trabalhadores vão enfrentar a pandemia
e, mais ainda, como estarão ao final dessa jornada trágica, é muito
importante entender o que vinha sendo gestado, em termos de precarização
das condições de trabalho, nos últimos anos. Passa por aí, obviamente,
grande parte da angústia que tantos de nós sentimos neste momento,
diante do risco de demissão, do corte de salários, da impossibilidade de
buscar emprego, da paralisação das atividades informais e do sorriso
cretino dos piores patrões que aproveitam o momento para demitir
trabalhadores.
Poucos autores podem nos ajudar a entender o arco dessas questões, do
ponto de vista dos trabalhadores, como o sociólogo Ricardo Antunes,
professor da Unicamp. Sua obra, há quatro décadas, cumpre, com densidade
teórica e compromisso de classe, a função importantíssima de pensar a
nossa realidade à quente, no meio do furacão de transformações
que a classe trabalhadora, não apenas no Brasil, tem enfrentado nas
últimas décadas. Mobilizando em seus textos conhecimentos de diversas
áreas, Antunes atravessa os debates da economia política, da filosofia,
da sociologia, da história, do direito, da saúde, da política, na melhor
tradição marxista, para criticar e esclarecer as formas assumidas pelo
enfrentamento entre capital e trabalho.
Com livros como Classe operária, sindicatos e partidos no Brasil (1982), A rebeldia do trabalho (1988), Adeus ao trabalho? (1995), Os sentidos do trabalho (1999), A desertificação neoliberal do Brasil (2004), O caracol e sua concha (2005) e O continente do labor
(2011), entre diversos outros, individuais e coletivos, traduzidos para
outras línguas, frutos a um só tempo de atividade docente, pesquisa e
militância política, que têm influenciado diferentes gerações de
pesquisadores, a obra de Antunes é indispensável para entender como
chegamos a esse quadro de profunda vulnerabilidade dos trabalhadores
diante das decisões de um governo e das investidas de um vírus. Digo
isso para destacar, aqui, seu livro mais recente, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, lançado pela Boitempo em 2018, e também a série Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, coordenada por Antunes para a mesma editora, que teve seu quarto volume lançado recentemente.
O primeiro volume de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil
foi lançado em 2006, reunindo textos que logo se tornariam referência
para os debates sobre os rumos do mundo do trabalho entre nós. De nomes
como István Mészáros, Luciano Vasapollo e Márcio Pochmann aos de jovens
pesquisadores brasileiros, os autores reunidos por Ricardo Antunes se
empenham em municiar não apenas outros pesquisadores, mas os próprios
trabalhadores na luta contra o capital, explicando as transformações,
refletindo sobre suas consequências e também apontando os caminhos para a
resistência, inclusive com pesquisas específicas sobre determinadas
empresas e categorias. O segundo (de 2013) e o terceiro (de 2015)
volumes ampliaram essa rede, trazendo sempre mais contribuições densas,
precisas e combativas para a compreensão dos desafios de nossa época. No
conjunto, entre suas muitas qualidades, tais coletâneas cumprem a
tarefa de levar a um público mais amplo o resultado de pesquisas
acadêmicas, além de antecipar reflexões urgentes sobre os direitos e a
organização dos trabalhadores.
O quarto volume da série, lançado em 2019, seguindo essa trilha, é
dedicado à reflexão sobre as transformações que o “trabalho digital”
impõe aos trabalhadores, que agora, em grande parte, passam a compor uma
espécie de “infoproletariado” (ou “ciberproletariado”) em todo o mundo.
Os artigos exploram os mais diversos aspectos dessas transformações em
curso, passando por temas como a expropriação do tempo de trabalho e de
vida por empresas globais, a explosão do trabalho intermitente, as
relações de gênero e classe, as novas formas de adoecimento dos
trabalhadores, os desafios para a juventude que trabalha, o mito do
“empreendedorismo”, as greves e outras formas de luta da classe
trabalhadora. A cada novo volume (e a série deve continuar), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil se consolida como uma enciclopédia viva e indispensável dos embates entre capital e trabalho em nossa época. Confiram.
É também sobre o trabalho na era digital que escreve Ricardo Antunes em O privilégio da servidão.
Num momento tão negativo para a classe trabalhadora, é um grande alento
saber que esse livro, cuja segunda edição saiu da gráfica quando a
pandemia já se espalhava pelo Brasil, teve sua primeira edição e duas
reimpressões esgotadas em menos de dois anos, desde o lançamento em
2018. A meu ver, esses dados, além de confirmarem a importância do livro
e da obra de Ricardo Antunes para o debate sobre o trabalho entre nós, é
sinal da urgência de sua reflexão. O privilégio da servidão se divide em quatro partes, que,
juntas, cobrem os principais eixos da questão: começa pela investigação
do perfil assumido pelo proletariado na era digital; debate o impacto da
precarização, da terceirização e da crise do sindicalismo; a dinâmica
de conciliações, rebeliões e contrarrevoluções; e conclui questionando o
futuro dos sindicatos e do socialismo na América Latina. Em cada um
desses eixos, sem fugir do debate teórico de cada ponto, Antunes estuda
em detalhes a complexa teia de fatores que afetam – de modo novo, mas
igualmente destrutivo – os trabalhadores nessa época em que a servidão é um privilégio.
O título do livro remete justamente ao aspecto mais assustador do
trabalho em nossa época de “uberização”, de “contratos de zero hora”, de
“intermitência”, em que os trabalhadores são obrigados a oscilar “entre
o desemprego completo e, na melhor das hipóteses, a disponibilidade
para tentar obter o privilégio da servidão”, porque, nesse
quadro de absoluta desproteção, receber a notificação do aplicativo para
trabalhar por algumas horas converteu-se num privilégio, numa espécie
de sorte para o trabalhador que assume todos os riscos da atividade
econômica, mas nada decide sobre ela. Quando seus direitos são
derrubados quase por completo, é um privilegiado esse
trabalhador que consegue se encaixar nos padrões da “economia dos
bicos”, porque nem todos estão aptos a fazer tais “bicos”, seja em razão
da qualificação exigida ou da necessidade de ter um carro. (Recomendo,
aqui, o filme de Ken Loach, “Você não estava aqui”.)
É claro que ler o livro de Ricardo Antunes e pensar sobre essas
questões enquanto o noticiário fala das medidas que o governo está
apresentando para “salvar empregos e socorrer informais” durante a quarentena
– reduções de salário para uns, benefícios abaixo do salário mínimo
para outros – deixa tudo ainda mais dramático, porque os exemplos que
saltam à cabeça somam-se aos do livro (e o autor não podia prever que
ele circularia junto com o coronavírus!) para não deixar dúvida de que
estamos diante de um momento crítico para os trabalhadores e,
consequentemente, para toda a sociedade, porque as consequências da
precarização transcendem a relação de cada trabalhador com o
aplicativo-patrão. Num momento em que a economia do país é obrigada a
parar para salvar vidas, isso é ainda mais evidente, porque as
autoridades – em especial o presidente e seu ministro da Economia – não
escondem que a vida dos trabalhadores e suas famílias será garantida na
medida em que o capital permita!
Numa entrevista recente (a Helena Dias, do site Marco Zero),
Antunes chamou atenção para uma distinção importantíssima: “essa
tragédia [“os trabalhadores cheguem aos hospitais e não tenham
atendimento mesmo se contaminando com o coronavírus e contaminando seus
parentes”] não é causada pelo coronavírus, ela é amplificada
exponencialmente pela pandemia. Porque a tragédia antecede a atual
situação”. Sim, o coronavírus aqui se depara com uma situação que vinha
sendo gestada há muito tempo, e justamente por isso que as melhores
leituras desse momento serão aquelas capazes de entender os movimentos
que trouxeram os trabalhadores e toda a sociedade a esse nível de
vulnerabilidade. E serão as melhores não pelo que podem dizer a respeito
das raízes da nossa tragédia, mas porque é aí que encontraremos uma
saída para essa crise que interesse aos trabalhadores, imediatamente – e
também para o futuro.
Ninguém sabia que, em 2020, além do enfrentamento com o pior governo
da história deste país, teríamos ainda uma pandemia das mais violentas
no nosso caminho. Entretanto, de alguma maneira, quem sempre resistiu a
essas palavrinhas que prometiam a “modernização” tirando direitos dos
trabalhadores – flexibilização, terceirização, pejotização,
colaboradores, empreendedorismo etc. – sabia que a luta não seria fácil
para as próximas gerações. E nunca foi. Mas talvez venha dessa pandemia,
além de tanta tristeza, uma lição: se os trabalhadores não quiserem morrer de vírus ou de fome, devem se dedicar, como classe, em qualquer momento, ao desafio da emancipação e não aceitar nada menos que um novo modo de vida, em que o trabalho faça sentido dentro da vida, e não que a vida perca seu sentido dentro do trabalho.
Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.
Cena de "Temporada", de André Novais Oliveira (Foto: Divulgação)
“Você não vai fazer filme para agradar a minoria com dinheiro
público. Todos estão livres para se expressar, contanto que busquem seus
patrocínios na sociedade civil”. A frase foi proferida pela nova
Secretária da Cultura, Regina Duarte,
em entrevista a um canal de televisão. A ideia despertou repulsa ou
aplausos, dependendo do grupo social. Mesmo assim, está longe de
representar uma ideia única da ex-atriz global. Em 2017, Jair Bolsonaro
afirmou na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de
Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se
mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Ora, quem são,
afinal, as minorias e as maiorias no Brasil? De que maneira este
conceito pode ser aplicado ao cinema e à produção artística em geral? O
que indicam as falas da Secretária e do Presidente, no atual contexto?
A histeria vigente nos meios de comunicação tem criado tamanho ruído
na compreensão que talvez valha a pena dar um passo atrás e tentar
esmiuçar estes conceitos. Primeiro: quem são os grupos minoritários? Uma
resposta comum se encontra na análise quantitativa. As minorias seriam
aquelas existentes em menor quantidade, caso em que negros, mulheres e
pobres se converteriam em maioria, ao contrário dos homens brancos,
privilegiados, os empresários, os CEOs, os grandes diretores de cinema,
os produtores que controlam blockbusters. A noção numérica de
minoria costuma ser utilizada por grupos conservadores na tentativa de
desqualificar a luta pela representatividade. Afinal, se há mais
mulheres de acordo com os estudos demográficos, como ousam os levantes
femininos se considerarem desprivilegiados? Se há mais negros, por que
reivindicariam mais direitos? A sua própria existência em maior
quantidade constituiria uma prova darwinista de sobrevivência social,
certo?
O argumento pode ser facilmente desmontado pela noção de maioria
enquanto aquela detentora do poder – fator que, em qualquer sociedade
capitalista ou desigual, concentra-se na mão de poucos. Minorias seriam,
então, aquelas cujos direitos não são aplicados, sejam eles os direitos
à moradia, à cidadania, ao estudo, à segurança, à cultura e à arte.
Minoria seria todo grupo social fragilizado, perseguido por demais
grupos organizados, financeiramente estruturados e capazes de impor suas
vontades aos demais. Trata-se das mulheres, dos negros, dos indivíduos
LGBTQI+, dos indígenas, dos deficientes físicos e mentais etc., ou seja,
aqueles que raramente conquistam cargos públicos, cujas vozes não são
representadas pelas leis (ou cujas leis protegendo-os não são aplicadas
corretamente), cujos corpos não transitam livremente pelas ruas, e cujos
rostos não aparecem nos filmes. A minoria seria aquela que, mesmo em
grande quantidade, permanece invisível em meio à distribuição de
riquezas. Ao mesmo tempo, torna-se indispensável socialmente enquanto
minoria: sua força de trabalho, barata e vulnerável, serve a quem quiser
explorá-la.
Aplicadas ao cinema, estas noções transmitiriam primeiro a ideia de
que o filme minoritário corresponde ao produto de nicho, que agrada a
poucas pessoas. É sempre melhor agradar mais pessoas do que agradar
menos pessoas, certo? No entanto, este raciocínio constitui uma falácia
em si. Os motivos pelos quais um filme agrada mais do que outro dependem
tanto de suas qualidades intrínsecas quanto de circunstâncias externas à
obra, a exemplo do número de salas em que se encontra, o aparato de
marketing de que dispõe, a quantidade de semanas que permanece em
cartaz, o elenco, as críticas, a adequação aos temas do momento. O fato
de uma comédia popular atingir dois milhões de espectadores, por
exemplo, não significa que ela agrade à maioria, ao contrário de um
filme que conquistou dez mil pessoas. Esta quantia mede o número de
ingressos vendidos, não a taxa de satisfação pós-sessão.
A minoria poderia ser proporcional, de acordo com a média de
espectadores por sala: enquanto alguns filmes brasileiros adaptados de
programas de televisão estreiam em 400 salas, filmes ditos “de arte”
chegam a 20, 30 salas. Quando se observa a média de espectadores por
sala, ou seja, a ocupação em cada cinema – dados levantados por empresas
como Filme B e Rentrak – percebe-se com frequência uma lotação maior
nos cinemas de rua, aqueles que exibem as produções de mostras e
festivais de cinema. Além disso, o que se considerava consensualmente
como cinema de maiorias – produções leves estreladas por humoristas
famosos do star system televisivo – sofreram uma queda brutal nas bilheterias recentemente. Não se aceitam devoluções, comédia adaptada de uma fórmula de sucesso e estrelada por Leandro Hassum, registrou 300 mil espectadores, enquanto Bacurau
superou os 700 mil espectadores. Seria o filme de Kleber Mendonça Filho
e Juliano Dornelles, então, o real merecedor de dinheiro público,
segundo Regina Duarte?
Aplicada a noção de minoria enquanto detentora de poder, chegaríamos a
um cinema de (ou sobre) mulheres, negros, LGBTQI+, indígenas etc. De
acordo com as vozes conservadores, que pregam a submissão da mulher ao
homem, dos negros aos brancos, dos gays aos heterossexuais, o cinema
retratando estes grupos sociais seria “dispensável”, ou irrelevante em
tempos de austeridade fiscal. Regina Duarte, Jair Bolsonaro, Damares Alves
e Osmar Terra foram alguns dos nomes do governo a pregar um cinema
funcional, cuja responsabilidade seria transmitir valores cristãos e
ensinar as palavras da Bíblia aos espectadores. No entanto,
documentários de pouco alcance numérico, em festivais e, portanto, em
público e mensagem, como as produções de Josias Teófilo, são encorajados
por Olavo de Carvalho,
guru intelectual da direita. A produção independente do MBL visando
defender o golpe contra Dilma tampouco atingiu número expressivo de
pessoas, nem mesmo provocou debate fora de sua bolha. Produções bíblicas
independentes como O filho de Deus ou Barrabás
fracassaram em termos de público e crítica. Não seriam estes filmes uma
representação do cinema de nicho, alternativo – um cinema de minorias?
Ora, a lógica da minoria não se sustenta enquanto política devido à
sua permeabilidade e sua conveniente indefinição – como cabe a qualquer
discurso de fundo religioso. Minoria representa qualquer grupo diferente de mim. Minoria é o outro,
meu inimigo, aquele que não me apoia. Certo, militares, evangélicos e a
extrema-direita ocupam o poder hoje. No entanto, mesmo quando estavam
distantes dos maiores cargos do governo, não reivindicavam direitos por
constituírem uma minoria social, e sim por acreditarem que o Estado lhes
devia isso – vide a crescente isenção de impostos concedida a Igrejas.
Nada define melhor as classes privilegiadas do que a crença profunda no
direito de ocupar esta posição, afirmavam os sociólogos Monique
Pinçon-Charlot e Michel Pinçon. A maioria consiste, em primeiro lugar,
numa crença de superioridade moral. Acredita-se ser mais merecedor de
determinar como a sociedade deve ser, e que tipo de arte deve ser
produzida. Neste sentido, o filme bom (ou o filme pertinente, digno de
receber recursos públicos) não será aquele que agradar à maioria, nem o
preferido dos críticos. Ele será qualquer um julgado apropriado pelas
“instâncias legitimadoras do poder”, do blockbuster bíblico financiado
pela Igreja preferida do presidente ao menor documentário caseiro.
A formulação segundo a qual os filmes minoritários não serão
proibidos, cabendo a cada um buscar seus recursos na sociedade civil,
revela-se particularmente perversa. Sabendo que a proibição simples das
obras seria considerada censura – algo que o presidente já tentou
aplicar, tanto para performances envolvendo nudez quanto na produção de
séries de temática LGBTQI+ -, proíbe-se o financiamento público das
obras, de modo que não sejam realizadas por falta de recursos. Ao invés
de roubar o pão da boca, retira-se o dinheiro que permitiria comprar o
pão. O resultado, em ambos os casos, é a fome. Obviamente, como
ressaltou o pesquisador Marcelo Ikeda, especialista nos mecanismos de
financiamento do audiovisual brasileiro, havia cinema antes da Ancine, e
havia cinema antes da Lei Setorial do Audiovisual, e estes fatores
precisam ser levados em consideração. As obras ousadas, progressistas,
inovadoras, premiadas – aquelas selecionadas anualmente nos maiores
festivais do mundo, como Cannes, Berlim e Veneza, e premiadas no Oscar,
como Democracia em vertigem – continuarão a existir. Mas talvez
elas aconteçam em menor quantidade, em tempo mais espaçado, e precisem
se adequar à precariedade de condições.
O cinema brasileiro se encaminhava para um refinamento estético
ímpar, que se estrangula devido à ausência de recursos. Certo, durante a
ditadura militar, produziu-se obras excelentes que ou burlavam o
governo autoritário, ou foram proibidas inicialmente, para eventualmente
serem liberadas anos mais tarde. Muitos artistas se exilaram para
continuar produzindo. O cinema brasileiro não parou, mas em que
condições precisou se manter vivo? Não se pode romantizar a precariedade
da produção. Os mecanismos de financiamento coletivo que permitiram a
realização do Festival do Rio e do Anima Mundi em 2019, as doações
generosas de mecenas para a reconstrução do Museu Nacional
constituem atos isolados, com os quais não se podem contar para uma
produção contínua. Outros mecanismos de fomento poderiam ser
implementados no lugar daqueles existentes, mas este não parece ser o
caminho adotado pelo governo federal, que prefere a morte por inanição.
Além disso, a ideia de que o presidente e a secretária da Cultura
decidam por si próprios quais filmes merecem existir ou não – ou ainda,
quais merecem o dinheiro público, e quais precisarão se virar sozinhos –
constitui evidente ato de censura, além de filtro ideológico. Em nenhum
país democrático a autoridade máxima decide as obras que lhe convém.
Esta decisão caberia a organismos externos – papel desempenhado, até
recentemente, pela Ancine. Ao mesmo tempo, o discurso de que não haverá
financiamento público para certa forma de cinema corresponde à ideia de
que o repasse de recursos representava um favor, uma generosidade dos
governos anteriores, podendo ser suspenso em tempos de austeridade.
Entretanto, o governo tem por dever financiar a cultura, e isso ocorre
mesmo nas nações mais liberais e capitalistas, como os Estados Unidos,
que concedem isenções de impostos para facilitar a produção de obras
locais. O desprezo por certa forma de cinema constitui óbvia retaliação
àqueles que se impuseram, e ainda se impõem, às ordens dos autocratas. O
atual líder acredita que, sendo eleito pela maioria numérica, pode
governar apenas para esta maioria entendida como como aquela detentora
de uma superioridade moral. Ora, numa democracia representativa, o
processo eleitoral determina o escolhido pela maioria, sendo encarregado
então de governar para todos, aliados e opositores.
Na atual gestão cultural, opera-se como numa empresa extremamente
vertical, uma família patriarcal ou mesmo uma igreja – modelos
estruturais considerados exemplares pela (extrema-)direita, porém
incompatíveis com o governo de uma nação múltipla e democrática. Um
homem dá as ordens, e dele emana a verdade e a sabedoria. Cabe aos
demais seguirem, acatarem e se calarem, porque o
pai/marido/patrão/pastor sabe o que diz, e se hoje ocupa o alto cargo em
que se encontra, certamente o fez por merecer. Acredita-se nas
diretrizes adotadas pelo homem de poder – branco, heterossexual,
reacionário –, acatando com as diretrizes por uma questão de fé. O
presidente se reveste do manto simbólico de divindade, razão pela qual
qualquer questionamento se torna heresia para os seguidores mais fiéis.
É uma questão de crença, afinal, e não apenas a crença cristã,
bíblica, mas a crença na figura de uma pessoa salvadora, aquele que
precisa de torcida a favor, precisa que deixem fazer seu trabalho à
vontade, sem empecilhos de investigações, sem perguntas inquisidoras da
imprensa, sem gente gritando pelo direito de ver mulheres negras no
mercado de trabalho (e nas telas do cinema), povos indígenas em suas
terras (e nas telas do cinema), homens gays em segurança nas ruas (e nas
telas do cinema). A maioria sou eu, a minoria são vocês.
A eleição presidencial, por mais que tenha prendido o principal
candidato em processo bastante questionável, acrescenta certo verniz de
meritocracia. Sendo o presidente o homem conservador, o restaurador da
família e da moral, como não caberia a ele determinar que filmes podem
ou não podem ser feitos?
No entanto, a minoria não pretende se curvar, apesar dos golpes da
polícia, dos cortes no financiamento, das tentativas de censura. Será a
oposição que lutará pela realização das séries de temática LGBTQI+, pela
produção de uma série sobre Marielle Franco de autoria de diretoras
negras, pelos filmes indígenas, pelos documentários políticos capazes de
escancarar nossa política ao mundo. As vozes contrárias exigem e
exigirão que o atual presidente governe também para elas – que tenham
votado nele ou não. O papel da cidadania é cobrar de seu líder o
cumprimento das regras mínimas da democracia. O cinema pode ter mudado
das produções de Glauber Rocha aos filmes de André Novais Oliveira, do
cinema marginal de Carlos Reichenbach à poesia livre de Grace Passô.
Mudamos, mas continuamos sendo o outro, o diferente, os corpos que a
direita desprezava e a extrema-direita combate. O cinema da minoria se
torna aquele de difícil definição, porém de fácil reconhecimento. Basta
ver para onde estão apontadas as armas.
Bruno Carmelo é crítico de cinema, mestre em Teoria
de Cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III, membro da
Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE ), professor de
cursos sobre o audiovisual e editor do Papo de Cinema. Escreve às
segundas.