pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
Powered By Blogger

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Quem são os "trabalhadores essenciais"?

Se na filosofia termo representa a busca incorpórea por sujeito universal, na pandemia define os descartáveis — corpos negros e pobres, na maioria. Para-choques da imunidade alheia, camuflam aqueles que o Estado crê vitais: os ultraliberais

Assim como a pandemia, de supetão, surgem os essenciais. Surgem aqueles que não podem mudar sua forma de trabalhar, devido a sua condição de essencial. O que nos conduz a algumas perguntas: quem são os essenciais? São essenciais para o que, efetivamente? Quem diz o que é ou não essencial? À primeira vista, no senso comum, estas questões suscitam respostas rápidas e simples: são os trabalhadores da saúde, transporte, segurança e alimentação, sem os quais nossa sociedade não sobrevive. E então chegamos à questão central: quem o termo “nossa” denota, quem ele inclui e exclui, e que sociedade é esta, que necessita sobreviver?
Para tentar responder a todas essas questões, o ensaio a seguir foi dividido em duas partes. Na primeira, faço uma breve digressão na história da filosofia para abordar o conceito de essência, dando uma pincelada na tradição filosófica antiga via Platão, e na moderna via Descartes e Kant. Nesta primeira etapa, busco apresentar como a modernidade vinculou a ideia de essência à criação de um sujeito universal, fruto não só de uma virada epistemológica atribuída à filosofia da época, mas principalmente de eventos paradigmáticos do período: escravidão, colonialismo, caça às bruxas, nascimento do capitalismo. O objetivo é transparecer como esse sujeito universal vai se constituindo através do exato oposto pelo qual se presume, ou seja, não na base da inclusão (universalidade), mas da exclusão, culminando na ideia de um ser incorpóreo, em contraposição a corporalidade do outro. Na segunda parte, agora já cientes do caminho trilhado pelo conceito de essência ao longo da modernidade, vamos contrastá-la com a ideia de essência atribuída aos intitulados trabalhadores essenciais, usando este gancho para pensarmos mais a fundo as dinâmicas do capitalismo neoliberal em tempos de pandemia.
1 – O que é essencial na história da filosofia ocidental, acerca do conceito de essência, para nossa discussão sobre os trabalhadores essenciais.
O conceito de essência foi a pedra angular do pensamento ocidental por muito séculos. Para Platão, a essência era a verdade e se encontrava no mundo das ideias, conquanto o mundo material, o mundo do sensível – este mundo aqui da covid – é o mundo das aparências, do que é falso, acidental e particular. Logo, Platão traça uma divisão ontológica, ou seja, o ser está no mundo das ideias, não no mundo das aparências. Assim, cria uma hierarquia de valor. O homem se distingue por sua capacidade de pensar, e o máximo uso do pensar é aquele que, através da razão e da articulação racional, busca atingir as ideias – inatas, essenciais, matriz de toda realidade. Importante ressaltar que o mundo das ideias é transcendental, só conseguimos nos aproximar dele pelo uso da razão, e que as ideias tem um caráter universal, ou seja, tem validade ontológica para tudo e para todos, independente do contexto social, político ou econômico, independente do tempo histórico, seja passado, presente ou futuro. A ideia é a fonte da realidade, e como essência é imutável, a-histórica e atemporal.
+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>>
Da Grécia Antiga de Platão vamos dar um salto ao início da era moderna com Descartes – “penso, logo existo”. O ponto de partida para garantir a existência é o pensar. Descartes opera um corte com esse pensar, e separa o corpo da mente, espírito da matéria. Não se faz necessário indicar que aqui se realiza uma distinção valorativa. A essência, adivinhem, é a realidade do espírito: incorpórea, imaterial. A filosofia moderna tem como característica a mudança do enfoque, de um prisma ontológico (estudo do ser, do que é) para uma perspectiva epistemológica (como posso saber o que é, sem antes entender como posso conhecer o que é). Kant, por exemplo, com a Crítica da Razão Pura, busca demonstrar as condições de possibilidade para o conhecimento. Como posso afirmar que alguma coisa é, sem questionar minhas faculdades cognitivas que condicionam a forma como enxergo, interpreto e tenho experiências no mundo? No final das contas, Kant diz que nunca conheceremos a coisa em si, ou seja, o que ela realmente é em sua pura constituição objetiva, sua essência, mas apenas conheceremos o fenômeno subjetivo de sua apreensão, aquilo que é primeiro capturado por nossa consciência, por nossas faculdades que condicionam a forma com a qual apreendemos a realidade. Kant parece indicar, portanto, que não conseguimos elucubrar sobre a essência, já que não temos acesso a coisa em si.
Aqui chegamos ao ponto nerval da filosofia moderna: a dicotomia entre sujeito e objeto, base das análises epistemológicas do período. Para assegurar a existência, para discernir entre o que posso conhecer do que não posso, entre o que é essencial e o que é contingente, entre o que vale a pena pesquisar e o que não vale, cria-se um sujeito, dotado de um aparato racional inato que capacita e condiciona sua apreensão da realidade. Este sujeito, a grosso modo, é o que podemos chamar de essencial na filosofia moderna, pois é ele quem carrega, agora, as características da essência que na filosofia Antiga estavam instituídas ao mundo das ideias: imaterial, racional, inato e incorpóreo. Este sujeito, dotado da razão como seu mais nobre instrumento, é o responsável por balizar toda forma de conhecimento, responsável por legitimar o que é digno de estudo do que não merece sequer citação em nota de rodapé. Este sujeito é universal, no que diz respeito ao seu alcance e ao seu estatuto. Nada escapa ao seu julgamento (e quando escapa, é porque foi previamente julgada como escapável), assim como suas características são universais, ou seja, dizem respeito a todos os sujeitos.
Por aí seguimos, até chegarmos às formas de pensar que vão combater esta ideia de essência ao inverter a pirâmide dos valores, colocando no topo, então, o material, o sensível, o contingente. E daí prosseguimos até a morte da metafísica, a morte da história, a morte do homem, atribuídas ao pensamento pós-estrutural, pós-moderno, pós-todas-essas-mortes-que-de-mortas-não-tem-nada. Neste resumo belicoso e injusto, o que busco enfatizar é a carreira do essencial na formatação de nossa subjetividade, e de como este conceito está arraigado a formas de pensar a essência como algo abstrato, racional, imaterial e, principalmente, incorpóreo. Dando mais um salto olímpico, o essencial, no fim das contas, parece ser aquilo que não possui corpo. Vamos nos deter um pouco sobre isso.
A ideia de essencial, na sua trajetória moderna, como vimos acima, sempre esteve acompanhada da ideia de um sujeito universal, e aqui vamos explorar melhor esta ideia. A modernidade não é apenas o local da virada epistemológica da filosofia. A modernidade é também o período da colonização, do tráfico de escravos, do nascimento do capitalismo, do estado moderno, da ciência moderna, e da imbricação de tudo isso na constituição do tal sujeito universal moderno. Este sujeito opera uma bifurcação no modo de pensar, e trabalha suas especulações filosóficas, científicas e políticas criando dualismos que, até hoje, vigoram. Este sujeito investiga a realidade na base dos dualismos mente e corpo, natureza e cultura, homem e animal, dentre tantos outros. É na forma com que concebe estes dualismos, em sua maneira de delimitar o que cada um dos termos destes binômios significam, que este sujeito segrega e exclui, apresentando-se como portador de algumas características – raciais, sexuais e de classe – e totalmente obstruído do que se presume – um sujeito imbuído de universalidade. O sujeito universal se constitui na base da exclusão, é o que vão apontar diversos pensadores pós-estruturais (Deleuze, Derrida, Butler, etc). Ao delimitar, por exemplo, o que distingue o homem do animal, usa como fronteira a capacidade de pensar, de chegar à essência através da articulação racional. Durante quase toda modernidade (ou porque não, durante toda ela) negrxs e mulheres foram zoofilizados, ou seja, tornados animais, destituídos da capacidade de pensar. O negro, no momento de sua criação como sujeito racial na escravidão moderna (teoria preconizada por Mbembe na Crítica da Razão Negra) é associado a besta de carga, sempre pronto ao trabalho braçal exaustivo, como qualquer animal domesticado, e totalmente despido de qualquer tipo de capacidade intelectual. Na caça às bruxas é a vez da mulher ser animalizada ao ser subtraída do aparato racional. Portanto, o tal sujeito universal é, na realidade, um conjunto de características que compõem o sujeito colonizador: branco, europeu, homem, heterossexual, imperialista.
Este sujeito universal, tido como o único tipo de sujeito possível, naturaliza tanto as suas características como as características do outro – de raça, gênero, sexo, etc – as invisibilizando e as tornando visível da maneira que melhor lhe convém, e assim chega até a construir um Jesus Cristo branco e europeu, feito a sua imagem e semelhança, fazendo com que todos acreditem na realidade deste Jesus ficcional. Sendo o único sujeito possível, já que o único dotado de um aparato racional capaz de discernir o essencial do contingente, o único capaz de pensar, a figura do homem per se, este sujeito europeu e eurocêntrico interage o tempo todo com a incorporalidade, já que os que possuem corpo são os outros, aqueles que não são capazes de pensar, nem de agir com moralidade, aqueles que são humanos apenas em sua morfologia antropocêntrica, pois são animais em sua essência. Incorporal, pois sujeito da razão, do transcendental, do abstrato e universal, ou seja: espírito, não matéria; mente, não corpo. Enquanto as mulheres e os negros são hipersexualizados, transformados em puro corpo, objetificados e destituídos de capacidade para o raciocínio intelectual, o branco é seu oposto, ou seja, é mente, inteligência, razão, sujeito.
2- O que é essencial, nesta discussão acerca dos trabalhadores essenciais, em tempos de pandemia?
Chegamos então a covid-19. Quem são, mesmo, os essenciais? São eles os incorpóreos, ou são eles os corpos mais vulneráveis, mais marcados pelas cicatrizes sempre abertas e reabertas de raça, sexo e classe? Na luta à pandemia, fica exposta uma fratura ética global: enquanto uns podem ficar em casa trabalhando, outros precisam ir à rua trabalhar. Deste ponto de vista, ficar confinado em casa, em trabalho remoto, é um luxo reservado a poucos. A grande maioria está confinada sem emprego, ou na rua, exposta. Com a exceção dos médicos e de outras poucas categorias profissionais – pois são a exceção que confirma a regra – a maior parte dos corpos são corpos negros e pobres. O que nos faz deduzir que talvez não sejam de fato essenciais, mas descartáveis. Não é coincidência o fato da primeira vítima fatal de coronavírus no Rio de Janeiro ter sido uma empregada doméstica, que contraiu a doença através do contato com sua patroa, moradora da zona sul carioca, recém-chegada da Itália. Estes corpos sempre foram sacrificados para sustentar a “nossa” sociedade. Digo corpos, e não seres, pois nesta lógica eles não possuem direito a ontologia alguma, são totalmente destituídos de humanidade, seres que não o são, e quando o são é apenas e na medida em que estão incluídos na roda mortal que faz girar a nossa sociedade ao serem excluídos, quando não assassinados.
O trabalho digital, home-office, nos ajuda a pensar esta imaterialidade pressuposta e desejada pelo sujeito universal. A economia do conhecimento, o trabalho digital, sempre foi a realização par excellence da lógica do sacrifício. Para eu comprar no meu iFood, sacrifico o informal que vai de bike do restaurante a minha casa. Quem é o essencial, mesmo? Nesse delírio funesto característico da sociedade capitalista, o mais importante é me digitalizar, me perder no mundo dos algoritmos e códigos binários, pois assim escapo ao destino de ter um corpo, e com ele todas suas possibilidades de marcação social e política – um corpo explorável, vulnerável, torturável, matável – que ignoro e deixo passar despercebido ao concluir meu pedido no app. Os assim chamados “essenciais” – agora entre aspas, pois é só comprimido entre elas que não invisibilizamos o masoquismo e a hipocrisia do termo em seu uso atual – não têm nada de digital, só participam da economia do conhecimento como precarizados, terceirizados, informalizados – a realidade dos essenciais é analógica, de carne e osso, e eles são servidos, nus e crus, para o banquete sacrificial do neoliberalismo.
Com a realidade inescapável do vírus, aumento minha imunidade sacrificando a vulnerabilidade do outro. Com a onipresença do vírus, defendo meu corpo (que agora existe mais do que nunca) usando como para-choque o corpo do outro (que na verdade, nunca exerceu outra funcionalidade).
A digitalização, a abstração, a imaterialidade, sempre foram as palavras de ordem na sociedade capitalista neoliberal, sonho e delírio de um sujeito particular que almeja o poder universal. Afinal, quem controla os fluxos de capital, se não os “oligopólios generalizados”, conceito criado por Samir Amin para agrupar todos aqueles que controlam as cadeias de valor e produção, as redes de investimento, seguradoras, previdências e bancos? Os poucos grupos que dividem, compartilham e controlam todas estas instituições. A financeirização sempre se fez por abstrata, usando a economia real concreta como escudo para então controlá-la. Operando por meio de números, códigos, algoritmos, equações e diagramáticas, a finanaceirização é o reino da abstração neoliberal, não possuindo lastro físico, dependendo apenas da ganância especulativa de seus investidores, livre para se autovalorizar até o infinito. Como dizia Gilles Deleuze, existem duas “formas-dinheiro”: aquela que usamos no dia-a-dia, como valor de troca, compra e venda, e aquela forma-dinheiro que é capital, ou seja, que tem poder político, que dita o que vai ser produzido, que controla as produções, que cria o valor em si – a financeirização por excelência, mas não só.
Fica evidente, portanto, que os essenciais são os capitalistas, co-propietários destes oligopólios, os que possuem dinheiro como capital, os mesmos que sucateiam o sistema de saúde, a aposentadoria, educação, e insaciáveis, vão sucatear cada vez mais os serviços sociais para assim conseguirem acumular ainda mais, numa aliança obscena com o Estado. Dívida pública, dívida privada, dívida de vida: na sociedade capitalista neoliberal cuja lógica é sacrificial, todos nós devemos nossa vida a eles. Quando nos impõem goela abaixo reformas neoliberais, por exemplo, a reforma da previdência, o que se destaca nela é exatamente a lógica do sacrifício, proclamada aos quatro ventos: vai ser difícil para todos, mas a reforma é necessária e inescapável, um remédio amargo, sem dúvida, mas que é preciso tomar – em nome da economia. É preciso se sacrificar agora para colher os frutos no futuro. Como todo ritual sacrificial é composto por aqueles que são autorizados a realizar o ritual (sacrificadores), e aqueles que são sacrificados, faz-se preponderante distinguir quem é quem no atual cenário.
Se enganam aqueles que acreditam que o vírus tem um poder a priori para mudar o mundo, para mudar nossas consciências, atitudes, enfim. Se enganam, pois se esquecem de uma característica fundacional do capitalismo: seu poder de transformar uma ameaça em uma oportunidade, um inimigo em um complacente. Quantas vezes a sociedade capitalista não enfrentou uma crise e saiu dela ainda mais forte?
O capital, que só almeja o lucro, é um comando, uma direção, uma ordem. O capital dita as regras, e os Estados colocam as regras em jogo, por meio de suas leis, políticas econômicas, políticas sociais. É o que Deleuze e Guattari chamam de axiomática do capital no Anti-Édipo. O Estado é um modo de realização do capital, um meio para tornar material a abstração da autovalorização do capital. É o Estado quem racializa, quem generifica, quem realiza a divisão social do trabalho, para assim fazer funcionar a lógica do lucro. Portanto, quando o estado te confina em casa, ele está salvando vidas? Essa não parece ser uma boa questão, por omitir mais do que expor. Quando ele te confina, bem ou mal, está tentando manter viva a lógica do capital, assim como os verdadeiros essenciais. Manter vivo o “nosso” sistema.
Outra lição que podemos tirar da axiomática do capital é a de que não há economia sem política. O conceito de Deleuze e Guattari salienta que não há mudança econômica, não há direito dos trabalhadores, não há estado de bem-estar social, se não houver luta. Toda conquista vem dos esforços para conquistá-la. A axiomática é exatamente a máquina social capitalista que apropria as vitórias – sejam elas da classe trabalhadora, dos oprimidos, subalternos – transformando-as em axiomas, ou seja, realizando a transmutação de poderosas possibilidades revolucionárias em novas engrenagens que alimentarão o sistema. Todo progresso que alcançamos nas lutas de classe, gênero, sexo e raça, todas as vitórias, de uma forma ou outra, estão abertas a cooptação pelo capital. Esse é um dos mecanismos pelo qual mantém-se vivo. E não será diferente no mundo pós-covid. Acredito que toda forma de avanço, em direção a uma sociedade mais justa e igualitária, é autojustificada pela melhora nas condições de vida daqueles que batalharam pelo avanço. Mas nem por isso o capitalismo se torna mais fraco, ou mais próximo de sua derrocada. O vírus, portanto, nada nos garante. Desemprego em massa, um sistema de saúde precário que não atende as necessidades do surto, as bolsas de valores despencando, um número inaceitável de mortes por dia – não há previsão possível sobre o futuro do capitalismo a partir do que fica exposto na pandemia, há apenas mais um diagnóstico do que já está óbvio: chegamos a esse ponto por conta das ações políticas que nos conduziram até aqui.
O que busco salientar, portanto, é que não esqueçamos do poder de ressurreição do capital, essa verdadeira fênix pós-apocalíptica, que quanto mais se prevê sua morte, mais em chamas fica. Mas, principalmente, não nos esqueçamos dos “essenciais”, que são assim chamados por manterem a roda do sistema capitalista girando e servindo aos essenciais de fato. Se o essencial é incorpóreo, portanto, livre em sua essência para se mover e manipular o que melhor lhe aprouver, o “essencial” está fadado ao peso incomensurável de seu corpo, afundando em terra movediça, “livre” – apenas e a cada dia mais – de seus direitos trabalhistas e humanos.
Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OutrosQuinhentos

Uma democracia que não se amplia tende a morrer de inanição.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Michel Zaidan Filho: Ódio à Senectude



 

No belíssimo filme “Rapsódia de Agosto”, onde os sobreviventes da bomba (americana) jogada em Hiroshima e Nagasaki, no final da segunda grande guerra mundial, cultuam seus antepassados mortos e desaparecidos na hecatombe nuclear e marcam o encontro  com eles, num momento vindouro, é um traço forte da cultura nipônica de louvar a ancestralidade, como fonte de respeito e admiração. Sentimento claro presente no marcante filme  “A balada de Naraiama”, onde o sacrifício para salvar a comunidade recai voluntariamente  nos mais velhos. Este tributo aos mais velhos é uma característica das culturas orientais e contrasta vivamente com o culto ao novo e a novidade das sociedades ocidentais, onde os idosos são concebidos como fardos insuportáveis a serem custeados  pela Previdência Social.


Estas observações vêm a propósito dessa fúria assassina contra os mais velhos, no atual governo do Brasil, que, aliás, se arrogou no direito de decidir soberanamente que deve viver e quem morrer, em consequência da pandemia do Coronavírus 19. O direito à senectude é fruto do amadurecimento da consciência social da humanidade. Resulta da  criação de um micro código chamado “Estatuto do idoso”, não é favor, privilégio, esmola ou outorga de nenhum governante. Significa um aumento do patamar da dignidade humana, num país como o nosso. As mudanças drásticas no financiamento da saúde, da assistência social e da previdência pública, iniciadas no governo Temer (com a aprovação da malfadada PEC da morte) expressaram claramente um retrocesso ou uma triste mudança de prioridade da administração pública no Brasil. Os cortes no orçamento da seguridade social se refletem de imediato na qualidade de vida (ou sobrevida) da população mais idosa, ou que necessita de cuidados especiais. De uma época de grande avanço nas políticas de ação afirmativa, destinadas a amparar coletivos vulneráveis, passamos rapidamente a uma política darwinista da “sobrevivência dos mais aptos”, através de uma seleção que não tem nada de natural, mas de política e social.


O objetivo da atual política econômica é  claramente sacrificar a vida dos mais frágeis e dependentes – em meio a uma grande crise sanitária e social-  em favor dos interesses da banca, do mercado, das empresas, dos patrões. É como se a pandemia do Coronavírus 19 viesse sabotar o plano adredemente preparado de destruir as conquistas sociais da Constituição de 1988, em benéfico do capital e da especulação financeira internacional. Depois da reforma trabalhista e da reforma da previdência pública, parecia que o atual governo ia mesmo entregar aos seus patrocinadores  a mercadoria que vendeu, na campanha eleitoral: a desregulamentação completa da economia brasileira. Mas foi atropelado pela pandemia mundial, provocando um crescimento negativo de 5% do PIB, um exército de 14 milhões de desempregados, um rombo fiscal nas contas públicas que vai além do 125 bilhões de reais. Grande frustração para o gerente do capitalismo internacional. O que fazer para cumprir as promessas de campanha!


É com o sangue da população mais velha e dos setores mais frágeis da população brasileira que o governo que pagar a conta. Aquilo que já foi chamado de “população excedente”, sem fins ou utilidade econômica. Peso morto no orçamento público da nação. Gente que já não tem mais lugar no mundo (econômico, do capitalismo). Para os gestores da economia, ela deve ser eliminada. E nada como os efeitos mórbidos e letais de uma pandemia para realizar essa tarefa. É só corta o investimento no combate ao vírus, reduzir o gasto com leitos hospitalares, pessoal da área da saúde, e instar os idosos a irem para rua. Curioso o interesse do Ministério da Defesa pelo número de covas disponíveis nos cemitérios públicos. Fazem a complementação da visão dos evangélicos de que a praga ocorre por um desígnio divino. Se as orações não evitarem as mortes, cuidemos de enterrar as vítimas em covas rasas, ou valas comuns. Se fosse à Índia, cremavam-se os cadáveres e se jogava as cinzas no rio Ganges.  Aqui, acumulam-se corpos nos hospitais ou se  guardam em contêineres refrigerados. Uns cuidam da alma pecaminosa dos condenados. Outros, dos corpos putrefatos. Uma combinação macabra e tanto.

Não nos assustemos muito. Só os que manifestam vocação para golpista ou ditador se arrogam o direito de decidir soberanamente que deve viver ou deve morrer. E a massa bolsonarista brada:” Cesar, os que vão morrer, te saúdam!"

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

sábado, 18 de abril de 2020

Jean-Paul Sartre e as responsabilidades históricas coletivas.

Jean-Paul Sartre e as responsabilidades históricas coletivas


Com este vídeo, iniciamos um projeto de consolidação de mais um espaço do blog via abertura de um canal no Youtube, espaço que se propõe a complementar, com os nossos comentários, as matérias aqui divulgadas, proporcionando um outro momento de diálogo com os nossos leitores. Neste primeiro vídeo, a partir de um artigo de Anne Mathieu - originalmente publicado pelo jornal Le Monde Diplomatique - onde a autora discute a trajetória acadêmica e política do filósofo francês, identificando as teses com as quais ele acabou se indispondo com grupos de ultra-direita, conservadores e até mesmo colegas da academia francesa, chamo a atenção para a questão das responsabilidades históricas coletivas, momento que o autor de As Palavras critica a sociedade francesa, por sua parcimônia em relação à guerra de libertação da Argélia. Ele que era um anti-colonialista convicto. Leiam, comentem, inscrevam-se, assinem o canal, deixem suas impressões. Como disse antes, trata-se de mais um espaço de construção de um diálogo, num momento crítico de nossa sociedade, onde o afeto e a solidariedade parecem perder a batalha contra o egoísmo e a indiferença. A crise política, econômica e de saúde pública que ora enfrentamos, nos sugerem uma boa reflexão sobre o tema das responsabilidades históricas coletivas. Como chegamos a isso? O próximo vídeo, a partir da resenha de um artigo sobre a trajetória acadêmica do sociólogo Ricardo Antunes, da UNICAMP, aborda a questão das mudanças substantivas do mundo do trabalho nesses tempos de pandemia. Num momento de uma grave crise de saúde pública, o vírus pegou milhões de trabalhadores brasileiros literalmente desprotegidos, o que potencializou o problema da exclusão produtiva. Um forte abraço do editor.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Le Monde Diplomatique: A recusa de Sartre


Anne Mathieu


Em 19 de abril de 1980, o enterro de Jean-Paul Sartre mobilizou uma multidão, como o de Victor Hugo, pouco menos de cem anos antes. Com a morte de Sartre, uma época de engajamentos e de recusa da etiqueta burguesa parece ter terminado. O exibicionismo midiático e o encastelamento universitário hoje em dia caracterizam os dois polos do mundo intelectual, ambos distantes do modelo sartriano
Existe um “paradoxo Sartre”. Aquele que simboliza “o intelectual total, presente em todas as frentes do pensamento (filósofo, crítico, romancista, teatrólogo)”,1 mal encontra um lugar póstumo, digno desse nome, em seu país. O paradoxo é acentuado pela disseminação cada vez mais intensa do pensamento e dos escritos sartrianos no estrangeiro. É que a França se ilumina agora com as lanternas do conformismo consensual ao que os (pseudo)debates televisivos e radiofônicos nem sequer chegam a dar a ilusão de um sopro desestabilizador. O medíocre e o convencional ficavam bem longe daquele que nunca deixou, após a Segunda Guerra Mundial, de fustigá-los, de se lançar ao combate, de assumir riscos. Uma certa intelligentsia recusa a Sartre seu status de representante do intelectual engajado “à francesa”. Única obra a conseguir unanimidade: As palavras (1961). Sobram elogios sobre “a obra-prima do escritor”, o que não é por acaso: essa autobiografia na qual ele narra sua infância e juventude não perturba ninguém. O pensamento único de direita, assim como o de esquerda, soube identificar a obra que lhe permitia poupar unilateralmente o intelectual e, ao mesmo tempo, relegá-lo à “loja de acessórios” datados, ultrapassados.2
Ultrapassados e gastos até a medula do erro. Pois, como tantas vezes nos recordam, Sartre estaria errado o tempo todo3 – a menos que essa acusação não se volte contra os acusadores. Façamos nossas as palavras revigorantes de Guy Hocquenghem alguns anos depois da morte do autor de Caminhos da liberdade: “Almas avaras e pobres, puritanas e teoristas, vocês quiseram cem vezes matar Sartre. Mas, quanto mais o renegam, mais o reanimam. Quanto mais o empurram, mais ele os abraça, mais os leva consigo na morte. O verdadeiro Sartre escapa ao túmulo do respeito renegado e da traição onde vocês quiseram encerrá-lo”.4
Desde sua morte em 1980, pouca coisa foi poupada àquele que muitos temeriam enfrentar enquanto vivo. Sartre seria um filósofo que falou mal da literatura… As carteiras dos estudantes pulularam durante muito tempo com essas piadas de mau gosto – e chegaram até as salas de aula dos universitários, disfarçadas de legitimidade científica. Justamente em literatura é que Sartre continua pouco estudado. Mas convém reler seu primeiro romance, A náusea (1938), sua coletânea de contos, O muro (1939), sua trilogia injustamente ignorada e subestimada, Os caminhos da liberdade (1945-1949). Belos textos, variados estilística e narrativamente, que “falam” a todo mundo, afetando para sempre a formação intelectual e pessoal: marca das obras-primas. Seu teatro? Também ele diverso, inventivo e… atual. Além de Entre quatro paredes (1944) e As mãos sujas (1948), suas peças mais conhecidas e mais montadas até hoje, a força de denúncia de Nekrassov (1955) e Sequestrados de Altona (1959) continua intacta: no caso da primeira, a da mistificação da informação e do aliciamento; no caso da segunda, a do fim e dos meios em períodos violentos da história.
Há também, é claro, seus textos políticos. Pois é aí que está o problema: Sartre incomoda porque está “inserido”. Ele disse em Os tempos modernos (1945): “O escritor está inserido em sua época: toda palavra repercute. Todo silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha para impedi-la. Não era da conta deles, dirão vocês. Mas o processo de Calas era da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus era da conta de Zola? A administração do Congo era da conta de Gide? Cada um desses autores, em uma circunstância particular de sua vida, levou em consideração sua responsabilidade de escritor”.5

Companheiro do Partido Comunista
A guerra estimularia o engajamento de Sartre. Mobilizado em setembro de 1939 e aprisionado em junho de 1940, foi transferido para um stalag (campo de prisioneiros) em Trèves. Ali conheceu a camaradagem, a fraternidade; escreveu e encenou uma peça de Natal, Bariona ou o Filho do Trovão. Libertado em março de 1941 fazendo-se passar por civil, Sartre voltou a Paris decidido a agir. Fundou com Maurice Merleau-Ponty o grupo efêmero “Socialismo e Liberdade”, imaginando organizar um movimento de resistência com a ajuda de André Gide e André Malraux, na zona livre. Sua peça As moscas fala em resistência na Paris ocupada. Em 1943-1944, colaborou nas Lettres Françaises, órgão do Comitê Nacional dos Escritores fundado na clandestinidade por Jacques Decour e Jean Paulhan.6 Mas isso foi tudo: Sartre não seria nem Georges Politzer nem Claude Bourdet. Antes da Segunda Guerra Mundial, o que impressiona é a ausência de qualquer horizonte político. Diga o que disser Simone de Beauvoir e malgrado a novela O muro, ele permaneceu distanciado do que acontecia na Espanha.7 Quando lemos sua correspondência com Simone, o “Castor”, ficamos estupefatos ao notar a primeira menção política apenas em julho de 1938, dois meses antes de Munique. Além disso, os dois não sabiam muita coisa da Frente Popular. Esse distanciamento político no entreguerras o levou durante a vida inteira a caminhar lado a lado com o fantasma de Nizan, seu amigo de juventude que, ele sim, se engajara totalmente desde o fim dos anos 1920.
Sartre entrou em fevereiro de 1948 para o comitê diretor do Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR) [União Democrática Revolucionária], cujo projeto havia sido elaborado anteriormente por jornalistas e intelectuais de esquerda e extrema esquerda, entre os quais David Rousset. O RDR morreu com a saída de Sartre (outubro de 1949); e esse foi seu único engajamento em um partido político. De meados de 1952 ao fim de 1956, ele flertou com o Partido Comunista Francês (PCF), amplamente motivado pela repressão policial e judicial de que este era então objeto, mas que se insurgira violentamente contra ele até então. Com efeito, o presidente da União dos Escritores Soviéticos o havia chamado em 1948 de “hiena datilógrafa”. Sartre rompeu com o partido em novembro de 1956, quando a URSS esmagou o motim húngaro. Como seria sempre o caso, seu ímpeto jornalístico se impregnou da temática e do léxico dos companheiros que escolheu. São assim os textos publicados no France-U.R.S.S. em 1955, que não devem nada à fraseologia dos comunistas ortodoxos. Não obstante, os artigos sartrianos desse período oferecem uma reflexão sempre atual sobre a mistificação dos dirigentes e da imprensa: “Todos os nossos leitores sabem que consideramos nefasta a política do governo e que desprezamos os homens que a inspiram; mas nossa tarefa consiste em demonstrar isso sem descanso. Somente demonstrando é que podemos esperar servir. Insistiremos: se é proibido chamar Bidault de criminoso, nós o chamaremos de grande culpado; se nos recusarem o direito de falar sobre o sangue que ele tem nas mãos, falaremos das escamas que ele tem nos olhos. Mera questão de terminologia”.8
Os últimos meses de flerte com o PCF coincidiram com a luta de Sartre contra a Guerra da Argélia. Essa foi sua grande batalha.9 E aqui está o que alguns nunca perdoarão: seu anticolonialismo visceral, a insistência de seu discurso em colocar os franceses face a face com suas responsabilidades históricas, intelectuais e morais. “Falsa candura, fuga, má-fé, solidão, mutismo, cumplicidade recusada e por fim aceita, eis o que chamávamos, em 1945, de responsabilidade coletiva. Na época não aceitávamos que a população alemã fingisse ter ignorado os campos de concentração. ‘Ora, vamos’, dizíamos. ‘Eles sabiam de tudo!’ Tínhamos razão, eles sabiam de tudo, e somente hoje podemos entender isso, pois nós também sabíamos. […] Ousaremos ainda condená-los? Ousaremos ainda nos absolver?”10
Alguns, frequentemente os mesmos, não aceitam também sua amizade com o psiquiatra e ensaísta martinicano Frantz Fanon, então quase no ostracismo, e do qual prefaciou Os condenados da terra (1961), ensaio que serviu de farol para o terceiro-mundismo. No prefácio, ele vilipendia a mentira de uma nação orgulhosa que é apenas a sombra de si mesma: “Quanta conversa fiada! Liberdade, igualdade, fraternidade, amor, honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impediu ao mesmo tempo de proferir discursos racistas: negro sujo, judeu sujo, rato sujo”.11
O radicalismo da subversão de Sartre se medeia à luz do ódio que inspirava aos donos de lojas literárias e jornalísticas. Ninguém se insurgiu assim nem sequer contra Céline, salvo por certa crítica que admirava seu estilo. Pois, se não era antissemita, Sartre cometeu o grande erro de confraternizar com aqueles que se revoltavam contra o opressor francês. As calúnias se multiplicavam. Um desses valentões de salão não temeu o ridículo ao acusar Sartre de “tentativa de assassinato contra Camus”. Tudo isso, bem entendido, tendo por pano de fundo a Guerra da Argélia e o elogio de Camus como “o filósofo que nunca se enganou”.12 Em nome da complexidade da situação pessoal, justificava-se a posição equivocada do autor de O estrangeiro perante os desafios do momento histórico. Desdenhava-se o combate corajoso… e perigoso. A casa de Sartre foi alvo de um atentado com explosivo plástico cometido pela extrema direita – em nome do direito dos povos de disporem de si mesmos. As mídias não deixaram de zombar de Sartre discursando em Billancourt sobre um tonel, na época de sua camaradagem, em 1970, com os maoistas da esquerda proletária.
Há alguns meses, no Figaro, Jacques Julliard, membro da Academia Francesa e encarnação perfeita do intelectual oficial, institucional e consensual, emitiu seu veredicto sobre Sartre: “Mau romancista, dramaturgo tedioso, filósofo prolixo, mas sem originalidade, eis aí um amante da liberdade que sempre adulou todas as ditaduras, uma grande alma que justificou todos os massacres desde que fossem inspirados pelo socialismo […]. É um impostor de boa-fé que reservou sua severidade, e às vezes seu ódio, aos regimes liberais e que viu na ostentação da má consciência do escritor um álibi para sua tranquilidade intelectual. Até hoje, foi só nessa área que ele aliciou discípulos”.13 Mas, com os diabos, por que tanta dimensão humana?

Foto: Domínio Público
Para empreender “uma defesa política de Sartre”14, o melhor é considerar sua obra “inserida”, avaliar nela tanto os erros, os exageros e as fraquezas quanto o brio, a pertinência e a atualidade. Atualidade? Se esse modelo do intelectual engajado saiu de moda, não há motivo nenhum para regozijo. Em 1983, três anos após a morte de Sartre, Pierre Bourdieu explicou que “as condições conjunturais, mas também estruturais, que […] tornavam possível [o intelectual por excelência] estão hoje desaparecendo: as pressões da burocracia de Estado e as seduções tanto da imprensa quanto do mercado de bens culturais, unidos para reduzir a autonomia do campo intelectual e de suas instituições próprias de reprodução e consagração, ameaçam o que havia, sem dúvida, de mais raro e mais precioso no modelo sartriano do intelectual e que mais contrariava de fato as disposições ‘burguesas’: a recusa dos poderes e privilégios mundanos (o Prêmio Nobel, por exemplo) e a afirmação do poder e do privilégio propriamente intelectuais de dizer ‘não’ a todos os poderes temporais”15.
A recusa de Sartre a que assistimos é o inverso da lógica da homenagem. Má consciência dos intelectuais televisivos ou apadrinhados, ele nos lembra (e a eles) que um intelectual se torna digno desse nome por seu pensamento, sua atuação, sua obra, sua determinação, nunca por suas aparições nas mídias ou por seus amigos poderosos. Aos praticantes do pensamento pronto, sempre a repetir que os tempos mudaram, que as lutas e as reivindicações só são admissíveis dentro de limites estreitos, pode-se replicar que nenhuma mudança pelo bem comum ocorreu quando se sussurrou “sim”, mas quando se bradou “não”. No início da luta há sempre a recusa. Os intelectuais e jornalistas que rejeitaram Sartre sabem disso muito bem, embora seus discursos digam o contrário. Deformar e cobrir de opróbrio a palavra sartriana é sufocar a liberdade de nos opormos à pressão das convenções e dos poderes. É induzir-nos a crer que todas as palavras se equivalem e contribuir para degradá-las num momento em que a responsabilidade do intelectual consiste às vezes em recorrer, conforme dizia o próprio Sartre, a “revólveres carregados”.

*Anne Mathieu é mestre de conferência em Literatura e Jornalismo da Universidade de Lorraine, França, e diretora da revista Aden.

(Texto publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)

1 Pierre Bourdieu, “Sartre, l’invention de l’intellectuel total” [Sartre, a invenção do intelectual total], Libération, 31 mar. 1983; reeditado em Agone, n.26-27, 2002.
2 Cf. Dossier Sartre, Europe, Paris, out. 2013.
3 Cf. Claude Imbert, “Sartre, la passion de l’erreur” [Sartre, a paixão do erro], Le Point, 14 jan. 2000.
4 Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary [Carta aberta àqueles que não usaram colarinho Mao no Rotary] (1986), Agone, Marselha, 2003.
5 Jean-Paul Sartre, “Présentation des Temps Modernes” [Apresentação de Os tempos modernos], Les Temps Modernes, 1º out. 1945 (reeditado em Situations II, Gallimard, Paris, 1948).
6 Cf. Michel Contat e Michel Rybalka, Les Écrits de Sartre [Os escritos de Sartre], Gallimard, 1970; cf. também Annie Cohen-Solal, Sartre, Gallimard, 1985.
7 Cf. Anne Mathieu, “Jean-Paul Sartre et l’Espagne: du ‘Mur’ à la préface au Procès de Burgos” [Jean-Paul Sartre e a Espanha: de O muro ao prefácio do Processo de Burgos], Roman 20-50, jun. 2007.

Hora de sobreviver, hora de lutar

  Tarso de Melo

Hora de sobreviver, hora de lutar
Primeiro dia de comércio fechado na cidade do Rio de Janeiro, em março (Foto: Agência Brasil)

Vejo muitos amigos preocupados, com razão, diante do apoio que Bolsonaro ainda tem em parte significativa da população, não apenas porque pesquisas atuais indicam algo na casa dos 30%, mas também pelo eco que suas “ideias” ainda têm em redes sociais, parte da imprensa, grupos religiosos, alguns políticos.
Entre o primeiro e o segundo turno de 2018, o fosso que se abriu entre quem dizia #elenão e quem fazia arminhas com os dedos não apenas me parecia ser definitivo, como sempre me pareceu que devia mesmo ser, porque a defesa de Bolsonaro, ao menos pelos seus mais entusiasmados seguidores, com camisetas e berros, revelava uma postura inconciliável com qualquer patamar de civilidade, humanismo, tolerância, convivência, qualquer uma dessas palavras e posturas que eles odeiam.
Boa parte desse cordão que se formou em torno de Bolsonaro, numa observação empírica aqui pelas minha bandas, é formado por ex-malufistas, gente que achava que os tucanos eram “muito de esquerda” e sentiam falta de um representante “verdadeiramente de direita”, querendo dizer, com isso, que precisávamos de um “líder” capaz de mandar a polícia matar “bandido”; acabar com “privilégios” de trabalhadores, sindicalistas, políticos, servidores públicos etc.; defender “a família” e seus valores tradicionais contra a “balbúrdia” dos “comunistas” (desculpem o abuso das aspas, mas eles nunca usam essas palavras num sentido minimamente preciso).
A meu ver, não há vírus no mundo que os faça mudar de posição. Com tudo que acontece neste momento, com a morte batendo à porta de todo mundo, o que mais temem é que “a esquerda” aproveite para voltar ao poder – e “a esquerda” inclui a Globo, o PSDB de Doria, Rodrigo Maia, os ministros do STF e todo mundo que, por qualquer razão, diga que Bolsonaro não tem condições de ocupar aquela cadeira. É uma insanidade, uma obsessão, uma paranoia, e Bolsonaro sabe tirar proveito disso. Para essa turma, até mesmo a cruzada da cloroquina contra o comunismo faz sentido – e, infelizmente, acho que continuará assim.
Não é com eles, portanto, que devemos gastar nossa energia – tão escassa, tão necessária – neste momento. A principal preocupação é de luta por sobrevivência, em três sentidos pelo menos: o primeiro é sobreviver ao coronavírus; o segundo é sobreviver à radicalização da crise econômica precipitada pela pandemia; e o terceiro é sobreviver politicamente ao bolsonarismo, o que pode unir todos aqueles que, no amplo espectro das posições políticas democráticas, têm razões para se situar contra um governo que é a ameaça das ameaças, um governo que aposta na morte, na desigualdade, na ignorância e no autoritarismo.
É verdade que, para nosso pesadelo, Bolsonaro teve 57.797.847 votos em 2018. Mas devemos lembrar que, do outro lado do ringue, somando os votos de Haddad (47.040.906), brancos, nulos e abstenções, estavam 89.507.308 eleitores. Isso não é nada mecânico, eu sei, mas temos boas razões para acreditar que, de lá para cá, nenhum desses 89.507.308 passou para o outro lado, assim como, diante do desempenho bisonho do governo em tantos setores, podemos crer que parte daqueles 57.797.847 já engrossa as fileiras do lado de cá.
Os bolsonaristas e seus robôs gritam muito (a começar pelo próprio Jair, em rede nacional), então parece que eles estão por todos os lados e são maioria, mas não são. O enfrentamento da pandemia, neste momento, deve unir politicamente a maioria que se opõe às medidas de morte que Bolsonaro defende e, daqui em diante, servir como um marco na luta por direitos sociais num sentido amplo, com base no que a Constituição garante, como eixo principal para a reconstrução da vida neste país.
Os últimos anos foram de muitas derrotas, não apenas nas urnas. Assistimos ao desfile de múltiplas ofensas escancaradas a direitos conquistados duramente por gerações e gerações, que vão dos instrumentos democráticos fundamentais à proteção social dos trabalhadores, passando pelo SUS, pela Previdência e Assistência Sociais, pelas universidades públicas, por tudo que mais importa à maioria da população, como se tornou ainda mais evidente neste momento de pandemia, em que Estados em todo o mundo, para socorrer a população mais atingida pela “modernização” neoliberal, são obrigados a ressuscitar (sim!) instrumentos bem conhecidos dentro do que, até pouco tempo, chamávamos de Estado de Bem-Estar Social.
Por uma dessas ironias da História, os governos responsáveis por essas medidas, não apenas no Brasil, são aqueles que haviam sido eleitos para dar o golpe final nas estruturas da forma estatal distributiva e intervencionista. São presidentes, ministros e parlamentares ultraliberais que estão agora na encruzilhada, tendo que abrir para a população, em parte, cofres que, de outra maneira, não se destinariam a despesas tão estranhas aos propósitos do “Estado mínimo”, como o financiamento de pesquisas e o socorro direto dos trabalhadores informais e pequenas empresas, entre outras medidas que devem trazer muito desgosto pessoal a figuras como Paulo Guedes.
Foi um vírus, enfim, que nos trouxe até aqui. Os poderosos de sempre, no Brasil e no mundo, já perceberam que as cartas estão todas na mesa e não perdem tempo para forjar, nessas condições, os instrumentos que possam garantir ainda mais poder a eles daqui em diante. Em termos políticos nacionais, nem todos esses poderosos são representados por Bolsonaro, mas já perceberam que podem se aproveitar da incompetência e truculência do governo para saírem mais fortes.
Contra eles, quero crer que somos 89.507.308 “eleitores” e podemos ser muitos mais, agora que, do outro lado, temos um adversário que cada vez mais se revela inimigo. Mas aí também está um problema: nossa força não pode ser medida apenas na urna, que está longe se pensarmos nas urgências que a pandemia agudizou, e, além disso, na eleição esse número provavelmente vai se quebrar.
Insisto nesses números, entretanto, para lembrar que essa força existe e que devemos pensar numa forma de organizá-la desde já, porque o inimigo não faz quarentena. Esse momento excepcional de ressuscitação do “Estado máximo”, capaz de prover sobrevivência à população, à pesquisa científica, ao pequeno empresariado etc., e também de forçar grandes empresas a manter empregos e salários, se depender da mentalidade ultraliberal, não tenhamos dúvida de que será apenas o “canto do cisne” de tudo que se opõe aos interesses das elites e do grande capital.
É hora, portanto, de mostrar como essas medidas “emergenciais” podem e devem ser permanentes (como a “renda básica de cidadania”, há tanto tempo defendida por Eduardo Suplicy, ou o “salário mínimo” para o trabalhador uberizado), atravessando essa fase de pandemia para, num futuro próximo, servir de base para reivindicações mais amplas da população. É só uma brasa, mas pode pegar fogo.
Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Poderes obscuros


Biografia narra a ascensão de Mussolini, morto há 75 anos, a líder do fascismo e faz refletir sobre a ameaça presente da tirania
Manuel da Costa Pinto 01abr2020 01h12
 
articles-LXIVS8FbIdK7Avd
Benito Mussolini, 40º primeiro-ministro da Itália, em 1922 Topical Press Agency/Wikimedia Commons
Scurati, Antonio M, o filho do século
TRAD. Marcello Lino
Intrínseca • 816 pp • R$ 79,90
Em 1981, o ensaísta e crítico literário George Steiner — que morreu em fevereiro deste ano — publicou o romance The portage to San Cristobal of A.H. (“O  transporte para San Cristobal de A.H.”). As iniciais do título correspondem a Adolf Hitler — que teria sobrevivido à Segunda Guerra e, localizado na América do Sul por caçadores de nazistas, é perseguido e capturado na selva amazônica, sendo julgado ali mesmo devido a seu estado de saúde precário. O romance causou furor e protestos, redobrados quando, no ano seguinte, uma adaptação teatral deu corpo e voz ao Führer. Há inúmeras obras ficcionais que encenam a vida de Hitler, na literatura e no cinema. Mas a narrativa de Steiner, além de inserir Hitler no mainstream artístico-intelectual, desafiava o mandamento formulado por Emil Fackenheim, conhecido como “teólogo do Holocausto”, de “não conceder a Hitler nenhuma vitória póstuma”, uma vez que o livro de Steiner termina dando a última palavra ao ditador, no discurso em que se defende diante do tribunal.
Agora, outro romance traz no título a inicial de um ditador sobre o qual pesam interditos éticos semelhantes: M, o filho do século, de Antonio Scurati. O “M”, como fica claro de saída, refere-se a Benito Mussolini, o líder fascista que ascendeu ao poder em 1922, aliou-se a Hitler, levou a Itália à Segunda Guerra Mundial e, melancolicamente destituído em 1943, ficou  acuado na República de Salò (Estado fantoche sob proteção nazista) até ser morto por membros da resistência em 28 de abril de 1945. Vencedor do prêmio Strega de 2019 com o romance, Scurati declarou, em entrevistas, que só foi possível escrever essa narrativa por causa da queda de um tabu sobre o qual se fundou a República italiana. Durante quase setenta anos, diz o escritor, qualquer discussão ou ação política teria como premissa uma tomada de posição antifascista.
Organizações inspiradas na extrema direita de Mussolini nunca deixaram de existir, mesmo no imediato pós-guerra. E vários partidos, a partir dos anos  1980 e 90, retomaram seus valores sob a máscara do nacionalismo e de uma xenofobia “legitimadas” pela globalização e por um sistema político que, em vários momentos, usou o escudo do antifascismo como salvo-conduto para a corrupção.
Cinismo despudorado
Tudo isso é arquiconhecido e está na gênese de partidos separatistas como a Liga Norte. O tabu a que se refere Scurati diz respeito menos a questões políticas e institucionais do que a um clima de cinismo despudorado. Um clima que hoje permite a Matteo Salvini — político da Liga que alcançou o papel mais relevante no Executivo entre 2018 e 2019 — fazer pronunciamentos em que parafraseia Mussolini. Ou que o movimento estudantil seja dominado por extremistas de direita, tendo como referência a CasaPound — agremiação social que se apropria de métodos de esquerda e do éthos anarquista: nasceu com a ocupação ilegal de um imóvel em 2003, tem como presidente o líder da ZetaZeroAlfa, uma banda de rac (Rock against communism, ou “Rock contra o comunismo”), e hoje se espalha por mais de cem sedes com paredes cobertas por lemas e imagens do Duce (além, obviamente, de portar um nome em homenagem a Ezra Pound, poeta norte-americano que viveu no país e foi entusiasta do fascismo). Enfim, se no século passado era tolerável se declarar nostálgico do fascismo, só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas. 

Só na Itália deste milênio é possível cultuar Mussolini em praça pública e escarnecer dos antifascistas

Paradoxalmente, foi esse ambiente que rima neofascismo com cultura pop, a calva de Mussolini com skinheads, que propiciou o surgimento de um livro claramente antifascista como M, o filho do século. A nota introdutória diz: “Fatos e personagens deste romance documental não são fruto da imaginação do autor. Cada acontecimento, personagem, diálogo ou discurso aqui narrado é, ao contrário, historicamente documentado e/ou fidedignamente testemunhado por mais de uma fonte”. Ao longo de mais de oitocentas páginas, temos uma sucessão de momentos-chave da história da Itália sob Mussolini descritos por um narrador que, a cada capítulo, se coloca do ponto de vista de uma personagem, com indicação de data e localidade do episódio. Importante: o volume começa em março de 1919, com a fundação dos Fasci di Combattimento (grupos paramilitares que estão na origem do movimento fascista), e termina em janeiro de 1925, com um discurso de Mussolini como primeiro-ministro para o plenário do Montecitório (sede da Câmara dos Deputados). Os períodos sucessivos serão abordados em outros dois volumes já anunciados pela editora italiana Bompiani.
A imensa maioria dos capítulos, como era de se esperar, é narrada do ponto de vista de Mussolini. Vários outros partem da perspectiva de asseclas de expressão local ou de personagens célebres, como o socialista Giacomo Matteotti e o poeta decadentista Gabriele D’Annunzio — que, antes mesmo da ascensão do Duce, chegou a liderar um delirante governo de feição fascista em Fiume (atual Rijeka), cidade da Croácia então reivindicada pela Itália. E, reforçando o caráter de “romance documental” de M, o filho do século, Scurati insere, entre cada capítulo, a transcrição de trechos de notícias de jornal, manifestos partidários, discursos e cartas. 
O narrador de Scurati se coloca em cena com cada personagem, mas nunca em seu lugar. E adota o presente do indicativo como tempo verbal dominante — procedimento semelhante, por exemplo, ao usado por Emmanuel Carrère em Limonov (livro que, aliás, acompanha a trajetória de um ativista russo com muitas afinidades com o “fascismo eterno” de que fala o célebre ensaio de Umberto Eco). Com isso, a escrita ganha um sentido de imediatez teatral ou cinematográfica. 
Romances narrados retrospectivamente, nos quais predominam verbos no pretérito, em geral conduzem o enredo para um fim que nós, leitores, ignoramos, mas que o narrador parece dominar desde o início. Aqui, a situação se inverte: todos, inclusive o autor, já sabem onde a história vai dar, mas o narrador, imerso no tempo presentificado, abdicando da plausível onisciência, se limita ao puro acontecimento, dramaticamente encerrado em si mesmo. 
Esse procedimento formal, mais do que simples opção estilística, dá espessura linguística à incerteza permanente que caracteriza o nascimento do fascismo e realça os momentos em que o movimento parece liquidado, mas consegue se reerguer, no momento seguinte, de modo tão inacreditável para seus protagonistas quanto para os leitores. Dito isso, existe uma tese que atravessa a encenada falta de onisciência do narrador: para Scurati, o fascismo nasce da aliança entre a vontade de potência de Mussolini e as pulsões de morte de uma legião mítica de ex-combatentes da Primeira Guerra Mundial, os Arditi, que durante o conflito puseram seu apetite pela violência a serviço do Exército italiano — mas que, ao fim da guerra, voltaram a ser o que sempre foram: delinquentes e assassinos.
É o caso de Ferruccio Vecchi: “A seu respeito, circulam relatos inverossímeis e extraordinários: ferido mais de vinte vezes, diz-se que tomou de assalto sozinho, lançando granadas, uma trincheira austríaca, e trepou com a mulher do coronel enquanto ela dormia ao lado do marido”. Ou de Albino Volpi, um dos “jacarés do Piave” especializados em atravessar esse rio a nado para apunhalar sentinelas na outra margem; mais tarde, ele seria responsável por jogar uma granada sobre a multidão que comemorava o triunfo socialista após o fiasco na primeira eleição disputada pelos fascistas, em 1919 (quando nomes ilustres como o poeta futurista Marinetti e o maestro Toscanini foram candidatos da extrema direita). Ou ainda Domenico Ghetti: “Anarquista, exilado na Suíça com Mussolini durante a juventude, assassinou padres, é desonesto, violento, conspirador, desvalido”.  
Em um dos mais sinistros capítulos do romance, esses Arditi estão reunidos numa trattoria com o futuro Duce, que tem de conter os impulsos homicidas de seus recrutados quando, na sala ao lado, um grupo de trabalhadores do jornal socialista Avanti! entoa o hino Bandiera rossa trionferà! (“A bandeira vermelha triunfará”) e chama Mussolini de traidor. 
Ex-diretor do Avanti!, Mussolini fora expulso justamente por discordar da postura pacifista dos socialistas na Primeira Guerra Mundial e fundara o Il Popolo d’Italia, periódico no qual, além de se mostrar “apóstolo sincero e apaixonado pela intervenção bélica” (segundo relatório policial transcrito por Scurati), conclama a “multidão de desajustados” dos Arditi, que vagam pelas ruas como “minas errantes”, para formar os Fasci di Combattimento.
Mas as milícias fascistas só terão seu triunfo em 1922, quando, após incontáveis episódios de vandalismo e durante uma crise na formação do gabinete de governo no sempre tumultuado sistema político italiano, acontece a “marcha sobre Roma”. É o momento que sintetiza o livro. Mussolini, com sua tática de “dosar, diluir, dilatar e, por fim, negociar em uma posição de força”, prega em público uma solução parlamentar para o impasse. Em surdina, porém, insufla o ímpeto golpista dos Fasci di Combattimento, que haviam se transformado nas temidas esquadras de camisas negras, disseminando o terror. Na iminência da chegada dos socialistas ao poder por via institucional, eles precipitam, em 27 de outubro de 1922, uma mobilização que, partindo de Florença e Cremona, arrasta milicianos de outras cidades e atinge Roma no dia seguinte.
Enquanto isso, Mussolini estava no teatro Manzoni, de Milão, assistindo ao drama O Cisne, de Ferenc Molnár, com a amante Margherita Sarfatti — sofisticada crítica de arte, judia da alta burguesia casada com um advogado socialista, única mulher com quem Mussolini não manteve as tantas relações sexualmente predatórias e misóginas descritas no livro. É só quando a marcha sobre Roma se torna um putsch irreversível que ele parte para a capital, onde o rei Vittorio Emanuele 3º, acuado pelos camisas negras, lhe entrega o cargo de primeiro-ministro.
Mas ainda não é a ditadura. Em seu primeiro pronunciamento diante da Câmara dos Deputados, em novembro de 1922, Mussolini faz o célebre discorso del bivacco (“discurso do acampamento”) diante de parlamentares apavorados: “Eu poderia ter obtido uma vitória acachapante. Impus limites a mim mesmo. […] Com trezentos mil jovens impecavelmente armados, prontos para tudo e esperando quase misticamente uma ordem minha, eu poderia castigar todos aqueles que difamaram e tentaram jogar o fascismo na lama. Eu poderia fazer deste plenário surdo e cinza um acampamento exíguo” — e aqui, infelizmente, a ótima tradução de Marcello Lino põe a perder a força metafórica do original, pois Mussolini ameaça fazer do plenário um “acampamento de legionários” (bivacco di manipoli). 
Chefe do crime
A ocasião não tardará. Em 1924, em represália a acusações de corrupção e fraude eleitoral feitas pelo deputado socialista Giacomo Matteotti, sicários fascistas o sequestram e assassinam com conhecimento do primeiro-ministro. Em vez de assinalar o fim do regime, a reação ao famigerado “Delitto Matteotti” leva o Duce a desafiar o Parlamento a processá-lo: “Se o fascismo foi uma organização criminosa, eu sou o chefe dessa associação criminosa!”. Ninguém ousa levantar a voz. Estava aberto o caminho para a ditadura plena, que certamente será tema do próximo volume de Scurati. 
Nesse primeiro volume da trilogia, o ex-socialista Mussolini funda o fascismo menos como um projeto ideológico distinto e inovador do que como pura e simples ideologia do poder: ele mesmo se proclama “o homem do depois”, que reina sobre o caos que fomentou, mobilizando primeiramente os instintos degenerados de criminosos de guerra e, em seguida, a insatisfação de italianos “enjoados de si mesmos”, fartos de “verem seus defeitos representados no Parlamento”.
Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje. De um lado, o populista que afirma que os fascistas são um “antipartido” que faz “antipolítica” para salvar a Itália do bolchevismo, mas negocia astuciosamente nos bastidores enquanto mantém à espreita uma guarda pretoriana pronta para transformar o Parlamento numa caserna. De outro, o capitão e deputado do baixo clero que, em meio à salvaguarda para milicianos e um clã que ameaça enviar um soldado e um cabo para fechar a Suprema Corte, se apresenta como o messias antissistema que salvará o Brasil do comunismo. 

Para leitores brasileiros, é inevitável pensar na semelhança com o que acontece hoje

Mussolini, entretanto, é uma personagem arquetípica — tanto pela envergadura intelectual (inexistente em sua contrafação) quanto pela capacidade de produzir o mal. Nesse sentido, só é mesmo comparável a Hitler. Scurati correu o risco de incorrer na mesma infração ética apontada por intérpretes do Holocausto e do ditador alemão: inserir Mussolini na ordem natural das coisas, produzir alguma forma de empatia pela compreensão do caráter patológico de sua obsessão pelo poder. Mas sua minuciosa reconstituição de cada gesto do ditador italiano, de cada brutalidade ou traição cometidas contra adversários, aliados e mulheres pode ter outra conotação. 
O teólogo Emil Fackenheim, citado no início deste texto, dizia haver uma “desconexão radical entre a natureza humana e a natureza de Hitler”. Com isso, talvez tenha nos obrigado, involuntariamente, a colocar genocidas como Hitler e Mussolini não numa espécie de santuário maligno, apartado do gênero humano, mas como núcleo obscuro de nossa natureza. É, aliás, o que propôs o próprio Steiner em Linguagem e silêncio. E é o que faz Antonio Scurati nesse magnífico M, o filho do século.

(Publicado originalmente no site da Quatro Cinco Um, a revista dos livros)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2020/04/13/15868259445e950ad88e3dc_1586825944_3x2_th.jpg

Charge! Montanaro via Folha de São Paulo

https://f.i.uol.com.br/fotografia/2020/04/12/15867388235e93b687d84db_1586738823_3x2_th.jpg

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Ricardo Antunes e o proletariado em tempos de pandemia

  Tarso de Melo

Ricardo Antunes e o proletariado em tempos de pandemia

O sociólogo e professor da Unicamp Ricardo Antunes (Foto: Unicamp/Divulgação)

As medidas econômicas necessárias para lidar com os efeitos da pandemia, em qualquer país, não são simples. E há apenas uma certeza quanto a elas: a sua eficiência, a sua chance de dar bons frutos – salvar a vida da maioria da população não apenas do vírus, mas da fome – vai depender profundamente do terreno com que se deparar. É o que éramos até aqui que vai definir o que poderemos ser durante e depois da pandemia.
Nos países em que a maior parte dos trabalhadores vivia ainda num ambiente de formalidade, resguardado por direitos e contratos, tais medidas serão mais eficientes, porque o socorro do Estado se dará dentro de estruturas mais consolidadas. No entanto, quando o vírus se depara com uma realidade em que metade dos trabalhadores se divide entre a informalidade e o desemprego, seus efeitos certamente serão mais devastadores e, consequentemente, as medidas contra a pandemia serão mais difíceis.
É assim que o Brasil vai enfrentar o coronavírus: com 50 milhões de pessoas que não estão protegidas por um contrato de trabalho. E ainda mais: com uma outra parcela, provavelmente de igual tamanho, de trabalhadores formais em condições absolutamente precárias, porque o movimento das “reformas” nos últimos anos foi no sentido de deixar o emprego formal cada vez mais parecido com a informalidade, “flexibilizando” direitos e, assim, deixando os trabalhadores mais vulneráveis às crises.
Portanto, para entender como os trabalhadores vão enfrentar a pandemia e, mais ainda, como estarão ao final dessa jornada trágica, é muito importante entender o que vinha sendo gestado, em termos de precarização das condições de trabalho, nos últimos anos. Passa por aí, obviamente, grande parte da angústia que tantos de nós sentimos neste momento, diante do risco de demissão, do corte de salários, da impossibilidade de buscar emprego, da paralisação das atividades informais e do sorriso cretino dos piores patrões que aproveitam o momento para demitir trabalhadores.
Poucos autores podem nos ajudar a entender o arco dessas questões, do ponto de vista dos trabalhadores, como o sociólogo Ricardo Antunes, professor da Unicamp. Sua obra, há quatro décadas, cumpre, com densidade teórica e compromisso de classe, a função importantíssima de pensar a nossa realidade à quente, no meio do furacão de transformações que a classe trabalhadora, não apenas no Brasil, tem enfrentado nas últimas décadas. Mobilizando em seus textos conhecimentos de diversas áreas, Antunes atravessa os debates da economia política, da filosofia, da sociologia, da história, do direito, da saúde, da política, na melhor tradição marxista, para criticar e esclarecer as formas assumidas pelo enfrentamento entre capital e trabalho.
Com livros como Classe operária, sindicatos e partidos no Brasil (1982), A rebeldia do trabalho (1988), Adeus ao trabalho? (1995), Os sentidos do trabalho (1999), A desertificação neoliberal do Brasil (2004), O caracol e sua concha (2005) e O continente do labor (2011), entre diversos outros, individuais e coletivos, traduzidos para outras línguas, frutos a um só tempo de atividade docente, pesquisa e militância política, que têm influenciado diferentes gerações de pesquisadores, a obra de Antunes é indispensável para entender como chegamos a esse quadro de profunda vulnerabilidade dos trabalhadores diante das decisões de um governo e das investidas de um vírus. Digo isso para destacar, aqui, seu livro mais recente, O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, lançado pela Boitempo em 2018, e também a série Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, coordenada por Antunes para a mesma editora, que teve seu quarto volume lançado recentemente.
O primeiro volume de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil foi lançado em 2006, reunindo textos que logo se tornariam referência para os debates sobre os rumos do mundo do trabalho entre nós. De nomes como István Mészáros, Luciano Vasapollo e Márcio Pochmann aos de jovens pesquisadores brasileiros, os autores reunidos por Ricardo Antunes se empenham em municiar não apenas outros pesquisadores, mas os próprios trabalhadores na luta contra o capital, explicando as transformações, refletindo sobre suas consequências e também apontando os caminhos para a resistência, inclusive com pesquisas específicas sobre determinadas empresas e categorias. O segundo (de 2013) e o terceiro (de 2015) volumes ampliaram essa rede, trazendo sempre mais contribuições densas, precisas e combativas para a compreensão dos desafios de nossa época. No conjunto, entre suas muitas qualidades, tais coletâneas cumprem a tarefa de levar a um público mais amplo o resultado de pesquisas acadêmicas, além de antecipar reflexões urgentes sobre os direitos e a organização dos trabalhadores.
O quarto volume da série, lançado em 2019, seguindo essa trilha, é dedicado à reflexão sobre as transformações que o “trabalho digital” impõe aos trabalhadores, que agora, em grande parte, passam a compor uma espécie de “infoproletariado” (ou “ciberproletariado”) em todo o mundo. Os artigos exploram os mais diversos aspectos dessas transformações em curso, passando por temas como a expropriação do tempo de trabalho e de vida por empresas globais, a explosão do trabalho intermitente, as relações de gênero e classe, as novas formas de adoecimento dos trabalhadores, os desafios para a juventude que trabalha, o mito do “empreendedorismo”, as greves e outras formas de luta da classe trabalhadora. A cada novo volume (e a série deve continuar), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil se consolida como uma enciclopédia viva e indispensável dos embates entre capital e trabalho em nossa época. Confiram.
É também sobre o trabalho na era digital que escreve Ricardo Antunes em O privilégio da servidão. Num momento tão negativo para a classe trabalhadora, é um grande alento saber que esse livro, cuja segunda edição saiu da gráfica quando a pandemia já se espalhava pelo Brasil, teve sua primeira edição e duas reimpressões esgotadas em menos de dois anos, desde o lançamento em 2018. A meu ver, esses dados, além de confirmarem a importância do livro e da obra de Ricardo Antunes para o debate sobre o trabalho entre nós, é sinal da urgência de sua reflexão.
O privilégio da servidão se divide em quatro partes, que, juntas, cobrem os principais eixos da questão: começa pela investigação do perfil assumido pelo proletariado na era digital; debate o impacto da precarização, da terceirização e da crise do sindicalismo; a dinâmica de conciliações, rebeliões e contrarrevoluções; e conclui questionando o futuro dos sindicatos e do socialismo na América Latina. Em cada um desses eixos, sem fugir do debate teórico de cada ponto, Antunes estuda em detalhes a complexa teia de fatores que afetam – de modo novo, mas igualmente destrutivo – os trabalhadores nessa época em que a servidão é um privilégio.
O título do livro remete justamente ao aspecto mais assustador do trabalho em nossa época de “uberização”, de “contratos de zero hora”, de “intermitência”, em que os trabalhadores são obrigados a oscilar “entre o desemprego completo e, na melhor das hipóteses, a disponibilidade para tentar obter o privilégio da servidão”, porque, nesse quadro de absoluta desproteção, receber a notificação do aplicativo para trabalhar por algumas horas converteu-se num privilégio, numa espécie de sorte para o trabalhador que assume todos os riscos da atividade econômica, mas nada decide sobre ela. Quando seus direitos são derrubados quase por completo, é um privilegiado esse trabalhador que consegue se encaixar nos padrões da “economia dos bicos”, porque nem todos estão aptos a fazer tais “bicos”, seja em razão da qualificação exigida ou da necessidade de ter um carro. (Recomendo, aqui, o filme de Ken Loach, “Você não estava aqui”.)
É claro que ler o livro de Ricardo Antunes e pensar sobre essas questões enquanto o noticiário fala das medidas que o governo está apresentando para “salvar empregos e socorrer informais” durante a quarentena – reduções de salário para uns, benefícios abaixo do salário mínimo para outros – deixa tudo ainda mais dramático, porque os exemplos que saltam à cabeça somam-se aos do livro (e o autor não podia prever que ele circularia junto com o coronavírus!) para não deixar dúvida de que estamos diante de um momento crítico para os trabalhadores e, consequentemente, para toda a sociedade, porque as consequências da precarização transcendem a relação de cada trabalhador com o aplicativo-patrão. Num momento em que a economia do país é obrigada a parar para salvar vidas, isso é ainda mais evidente, porque as autoridades – em especial o presidente e seu ministro da Economia – não escondem que a vida dos trabalhadores e suas famílias será garantida na medida em que o capital permita!
Numa entrevista recente (a Helena Dias, do site Marco Zero), Antunes chamou atenção para uma distinção importantíssima: “essa tragédia [“os trabalhadores cheguem aos hospitais e não tenham atendimento mesmo se contaminando com o coronavírus e contaminando seus parentes”] não é causada pelo coronavírus, ela é amplificada exponencialmente pela pandemia. Porque a tragédia antecede a atual situação”. Sim, o coronavírus aqui se depara com uma situação que vinha sendo gestada há muito tempo, e justamente por isso que as melhores leituras desse momento serão aquelas capazes de entender os movimentos que trouxeram os trabalhadores e toda a sociedade a esse nível de vulnerabilidade. E serão as melhores não pelo que podem dizer a respeito das raízes da nossa tragédia, mas porque é aí que encontraremos uma saída para essa crise que interesse aos trabalhadores, imediatamente – e também para o futuro.
Ninguém sabia que, em 2020, além do enfrentamento com o pior governo da história deste país, teríamos ainda uma pandemia das mais violentas no nosso caminho. Entretanto, de alguma maneira, quem sempre resistiu a essas palavrinhas que prometiam a “modernização” tirando direitos dos trabalhadores – flexibilização, terceirização, pejotização, colaboradores, empreendedorismo etc. – sabia que a luta não seria fácil para as próximas gerações. E nunca foi. Mas talvez venha dessa pandemia, além de tanta tristeza, uma lição: se os trabalhadores não quiserem morrer de vírus ou de fome, devem se dedicar, como classe, em qualquer momento, ao desafio da emancipação e não aceitar nada menos que um novo modo de vida, em que o trabalho faça sentido dentro da vida, e não que a vida perca seu sentido dentro do trabalho.

Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)