Em
sua copiosa e extensa trilogia, "A Sociedade em Rede", o sociólogo
espanhol Manuel Castells classificou os movimentos ambientalista e
feminista como "identidades de projeto", com isso querendo dizer que se
tratavam de movimentos que apontavam para o futuro da sociedade humana.
Particularmente o segundo, foi visto por ele como uma luta que
antecipava sociabilidades, valores e atitudes mais generosas e
tolerantes. Naturalmente, a novidade deste pensamento ia muito além das
formas de relacionamento familiar e sexual até então existentes.
Famílias monoparentais, homoeróticas, comunitárias etc. Bem longe do
modelo nuclear e patriarcal que conhecemos.
A infeliz decisão do governo brasileiro, em
recente encontro de cúpula da ONU, em acompanhar os países islâmicos no
tocante à educação das mulheres, seus direitos reprodutivos, à sua
sexualidade e o direito ao próprio corpo é um retrocesso paradoxal, se
se tem em conta que nem os judeus têm uma posição tão antiquada e
conservadora como essa. Pode se entender a influência religiosa
(pentecostal e neo pentecostal) sobre a decisão do governo nesse item.
Mas é impensável que uma sociedade multicultural, multiétnica e
religiosa, como a nossa, possa ser regida por uma ética e um pensamento
tão estreito, sectário e fundamentalista, como este.
Nós já avançamos muito em relação ao
patriarcalismo e a misoginia (e também à homofobia) no âmbito da
cultura brasileira. Persegue-se os homossexuais, as lésbicas e
transformistas, mas isso já está tipificado como crime de ódio pelo
Supremo Tribunal Federal. As mulheres são sujeito de direito e têm a
capacidade civil e jurídica de disporem do seu corpo, como quiserem. Não
é mais possível voltar à época colonial (ou da idade das cavernas), no
que respeita aos direitos de gênero e orientação sexual no Brasil. A
despeito de todas as restrições ao ensino dessa matéria nas escolas
públicas brasileiras, não é dado a ninguém perseguir, discriminar ou
incitar a violência contra as minorias sexuais e as mulheres(como aliás, contra
ninguém).
Foi uma grande luta social e sexista superar a
herança "sado-masoquista" da nossa civilização luso-tropical, trazida
com a escravidão africana no Brasil. Essa nefasta herança contaminou os
lares, as cabeças e as práticas familiares e sexuais das pessoas,
originando uma doente e perigosa misoginia entre nós. Ou seja, a ideia
de que a mulher é inferior e serva da luxuria masculina. E seu papel
social é procriar e atender aos apetites sexuais dos machos. Ainda bem,
que esse papel mudou. A mulher é, hoje, prefeita, governadora, senadora,
ministra e presidente da República. Não há mais porque manter essa
ideia atrasada de que Deus fez a mulher de uma costela de Adão e que ela
o desviou do bom caminho.
Precisamos defender com unhas e dentes a
laicidade do estado brasileiro e não permitir que concepções religiosas
ou éticas tão obscurantistas e antiquadas queiram influenciar as
políticas públicas relativas às questões de gênero e orientação sexual.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Pelos
jornais e sites especializados, notícias dão conta de que os paladinos
da moral e dos bons costumes pretendiam auferir vantagens financeiras da
cruzada contra a corrupção, uma narrativa discursiva que, quase sempre,
está na raiz de projetos autoritários. Teríamos aqui uma boa discussão
para este editorial semanal, mas vamos cumprir o prometido, ou seja,
tratar das categorias dos regimes de governos autoritários a partir da
obra do escritor inglês George Oswell, conforme anunciamos na semana
passada, a partir de uma obra recente do filósofo francês, Michel Onfrey, que observa na obra 1984, uma provável construção de uma teoria sobre as ditaduras, tema tratado por Rubens R.R.Casara num texto publicado pelo site da revista Cult. Destruir ou relativizar a liberdade - exceto a liberdade de consumir e circular o capital - observa Casara, constitui-se na primeira categoria dessas ditaduras de um novo tipo. A liberdade deixa de ser um direito inalienável dos indivíduos para tornar-se algo negociável, limitada, apenas permitida sob certas condições. Uma pena de 23 anos pode ser reduzida a 03 - com o preservação do patrimônio adquirido irregularmente - se, num acordo de delação premiada, o indivíduo resolver construir uma "narrativa conveniente."
O epicentro desse medo à liberdade teria ocorrido depois do atentado de 11
de setembro, quando se formulou uma espécie de novo contrato social,
onde os cidadãos e cidadãs passaram a abdicar de suas liberdade individual e coletiva - com
medo de possíveis atentados terrorista - abrindo maiores precedentes para as ações
de vigilância e controle - e até abusos de autoridades - por parte de agentes
públicos. Daí para as violações de direitos e garantias individuais e
coletivas foram apenas um passo. Hoje, os tentáculos de controle e
vigilância sobre os indivíduos atingiram níveis extremamente
preocupantes, violando direitos mais comezinhos. Com toda a clarividência do seu texto, talvez nem o George Oswell poderia prever o aparato de vigilância utilizado pelos aparelhos de segurança do Estado, como o largo uso das câmaras de reconhecimento facial, inclusive no Brasil.
Num debate recente,
alguém observou que o Recife é uma das cidades estratégicas para a
implantações desses sistemas de vigilância. Não explicou as razões, mas
observou que há câmaras instaladas na avenida Guararapes que reagem ao
barulho, com sensores que direcionam seu foco a partir de um som, por exemplo, de um tiro. Num texto bastante instigante, Para Além do Bem e do Mal, o
filósofo alemão Friedrich Nietzsche - que teve forte influência sobre o pensamento do filósofo francês Michel Foucault - observa que todo discurso é uma fraude e toda palavra é uma máscara. A
verdadeira intenção de um discurso não está naquilo que ele revela, mas
naquilo que ele omite, que se traduz na verdadeira intenção do autor do discurso.
Os diálogos até agora disponibilizados pelo site The Interceptrevelam as reais intenções daquela operação, conduzida de forma não republicana, ancorada num
discurso falso de moralidade pública e amparada num projeto político. Caiu a máscara, meu caro Michel Foucault. O país, por sua vez, está mergulhado numa pulsão de morte. Estamos pagando um preço muito alto por essa insensatez política.
Os especialistas em análise de discurso terão panos para as mangas pelos próximos anos. Comenta-se que são centenas de horas de gravação que estão sob o controle do site. Curioso observar que as palestras realizadas pelo ex-presidente foram logo apontadas como recebimento de propinas, irregulares ou com o propósito de obter vantagens indevidas. O ex-presidente tinha capital simbólico para realizá-las. Agora se sabe que os seus algozes, na realidade, estavam tentando construir esse capital a partir de sua condenação. Resta saber se teremos instituições ainda suficientemente fortes para coibir esses abusos. Sinto informar que possivelmente não. Na próxima semana, iremos tratar do empobrecimento da linguagem e do anti-intelectualismo, mais uma característica dos regimes fechados. Depois dos memes de envelhecimento que viralizaram nas redes, a queda do padre Marcelo Rossi, vou até à cozinha tentar aprender a fritar alguma coisa...
Há dois escritores com os quais tenho grandes afinidades, sobretudo em
razão dos seus textos políticos: Franz Kafka e George Oswell. De alguma
forma, os leitores mais perspicazes já devem ter percebido que eles
estão presentes em nossas crônicas políticas, publicadas aqui pelo blog.
Ambos são escritores muito citados nesses tempos obscuros de
pós-verdade e pós-democracia. Ouvida no documentário de Petra Costa,
Democracia em Vertigem, a presidente eleita e depois deposta num golpe
institucional, Dilma Rousseff, declara: Eu me senti a própria senhora K,
numa alusão ao senhor K de O Processo, famoso livro do escritor tcheco
Franz Kafka. Surpreendentemente, A Revolução dos Bichos, de George Oswell, há
semanas, é um dos livros mais vendidos no Brasil. Embora aborde aspectos
políticos e sociais de regimes fechados - no caso especifico, o stalinismo na antiga União Soviética - o mais provável, para este
momento de obscurantismo - seria o seu texto 1984, onde o filósofo francês. Michel Onfrey, observa a construção de uma teoria sobre a
ditadura. (Théorie de la dictature).
De fato, a distopia de George Oswell disseca todos os meandros de uma arquitetura autoritária, desde de seus primórdios à sua consolidação, constituindo-se, assim, num aparato teórico para nos orientar sobre como nascem as ditaduras, como elas se consolidam e os possíveis meios para enfrentá-las. Apesar de uma obra de ficção política científica - pelo menos ao que sabe, George Orwell não tinha pretensão de construir uma teoria sobre as ditaduras - como bem "sacou" Onfrey, 1984 pode, sim, figurar nas estantes dos cientistas políticos como um bom guia para entender a dinâmica dos regimes autoritários. Nos Estados Unidos, ele teve um grande pool de vendas, depois da manipulação do número de pessoas presentes na cerimônia de posse do presidente Donald Trump, grotescamente alterados sob o argumento de "fatos alternativos", conforme a explicação de sua assessoria. O termo poder ser traduzido aqui como uma "mentira institucionalizada", consoante objetivos escusos em jogo, quando as verdades são "relativizadas", dependendo da condição dos atores políticos.
Numa primeira aproximação, é preciso reconhecer que os regimes autoritários guardam algumas semelhanças entre si, notadamente uma narrativa discursiva que apresenta suas grandes lideranças como redentoras, quase sempre ancoradas num discurso contra a corrupção, em relação ao qual tudo se justifica, inclusive o esfacelamento do edifício democrático e a instalação de uma ditadura. Julgamentos seletivos e institucionalização de mentiras como "verdades absolutas", então, como prática de atingir os adversários, tornam-se procedimentos recorrentes. A verdadeira face de um regime autoritário apenas se torna perceptível depois de um momento de "lua de mel" com seus apoiadores e consolidação do seu projeto de poder. Depois dessa fase, os tentáculos autoritários não mais podem ser escondidos sob o manto da tese de que "as instituições estão funcionando normalmente" e, começa, de fato, a materialização do projeto autoritário, traduzidos no arsenal de ações persecutórias aos inimigos, que inclui desde a cooptação à eliminação física.
Mesmo para compreender as ditaduras de "um novo tipo", o livro de George Oswell nos oferece algumas contribuições importantes, o que nos leva aqui a fazer rasgados elogios à sua clarividência. Nem a forma predadora com que essa turma trata as questões ambientais escapou às suas críticas. A "produção" da ignorância e a perseguição de caráter anti-intelectualismo igualmente. A sanha é dirigida a toda pulsão de vida, o que talvez explique esse momento de "depressão coletiva" experimentada por aqueles brasileiros que ainda conservam a lucidez. Os loucos ensandecidos, estes já estão nas ruas, agredindo homossexuais, negros, índios, praticamente de religiões de matriz africana e afins. Com base num excelente texto publicado no site da revista Cult, de autoria de Rubens R.R.Casara, ponto por ponto, vamos discutir os aspectos dessa teoria da ditadura oswelliana pelas próximas semanas.
Acabo
de ler uma excelente entrevista com a professora Maria Luiza
Quaresma Tonelli, Doutora em Filosofia pela USP e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Recorrente em seus trabalhos, as consequências para o tecido democrático do processo de judicialização da política, abordagem de sua tese de doutoramento. No contexto
dessas discussões semanais sobre o tema de nossa experiência democrática,
naturalmente, utilizo a metáfora do tecelão - juntando os fios de forma
coordenada - para entender como chegamos a este estágio de
desmoronamento do edifício democrático, um fenômeno que, conforme já
observamos, se consolida em vários quadrantes do planeta, com a ascensão
de grupos ultradireitistas e seu receituário brutal de violência física e simbólica contra indivíduos, grupos e movimentos sociais que se lhes opõem.
Numa quadra de normalidade
democrática, ainda se podia falar em adversários. Hoje, não mais. Nestes
dias bicudos de retrocesso autoritário, adversários tornaram-se
inimigos a serem eliminados. A entrevista de Maria Luiza é longa e densa,
envereda por alguns pontos nevrálgicos da realidade brasileira pós-democracia
e pós-verdade, mas antecipo apenas um ponto, deixando os demais para
as discussões desses editoriais pelas próximas semanas. O ponto que
gostaria de destacar em sua entrevista diz respeito à participação de setores ou agentes públicos ligados ao poder judiciário nas tessituras de caráter autoritário. Lá para as
tantas, categoricamente, Maria Luísa, observa que em todas as ditaduras
do século XX o poder judiciário sempre teve uma participação efetiva,
corroborando com os achaques e assédios ao Estado Democrático de Direito e,
consequentemente, à democracia.
No Brasil, como já observamos por aqui
noutra ocasião, essa brincadeira de mau gosto começou "inocentemente",
com a figura do domínio do fato, que condenou indivíduos sem provas, sem a
prerrogativa inalienável da presunção de inocência, tampouco respeitando o direito ao
contraditório. Ali começou o descaminho jurídico que culminou com as
aberrações hoje denunciadas pelos vazamentos dos áudios do site The
Intercept Brasil, onde se evidenciam nitidamente o componente dos acordos políticos
determinando decisões que estão longe de atenderem aos requisitos jurídicos
mínimos para a condenação de um réu. Como diria o falecido juiz Teori Zavascki, são métodos medievalescos, ao se referir às práticas recorrentes de se
encarcerar um provável delator, contingenciando-o a fazer delações dirigidas,
orientada para fins específicos, beneficiando-os em termos de redução de pena e manutenção de patrimônio amealhado de forma duvidosa. Um tribunal de exceção sem qualquer
sombra de dúvidas. E olha que o membro da Suprema Corte sequer tomou conhecimento sobre esses áudios ainda em vida.
A onda fascista ensandecida deixa seus
rastros por onde passa. No Brasil, a cada 16 horas um homossexual é
assassinado. Neste último final de semana, perdemos o militante da causa
LGBTQIA+, o professor Sandro Cipriano, da Serta, uma ONG que trabalha com
tecnologias alternativas e inovadoras para enfrentar os problemas do semiárido nordestino. Não
raro, levava os nossos alunos para conhecerem este trabalho. Militante da causa
na região, tudo leva a crer que se trata de mais um caso de crime de
homofobia. Ele havia se queixado com os colegas e amigos, dias antes, de sofrer hostilidades motivadas por sua orientação sexual.
E, por falar em
hostilidades, mais um caso, desta vez do Norte, da terra do tio Trump. Depois
daquele acidente envolvendo pai e filha que tentavam fazer a travessia
do Rio Grande, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, o
chargista Michel Adder resolveu fazer uma charge sobre o tema, onde aparece o
presidente Trump jogando golf, ao lado dos corpos inertes, perguntando: Se importam se eu continuar o jogo? Num rompante de intolerância, o chargista
registra retaliações sofridas pelos órgãos de imprensa que publicavam suas charges. Noutros tempos, os homens do traço eram poupados até por sanguinários ditadores. Nesses tempos de cólera, surreais, tanto no Brasil como em países estrangeiros, ninguém está imune à sanha persecutória. Ninguém mesmo. Nem os criativos chargistas.
Primeira Marcha do Orgulho
Gay, em Nova York, um ano após Stonewall (Foto: Leonard Fink/Arquivo da
História Nacional do Centro Comunitário LGBT)
Stonewall Inn era um singelo bar frequentado pela população LGBT+, localizado
no bairro nova-iorquino de Green2wich Village. O público mais cativo do
bar eram os setores mais marginalizados da sociedade: travestis, gays
afeminados, lésbicas masculinas, michês, drags, pessoas em situação de
rua, enfim, LGBT+ pobres, negras e latinas que pertenciam a um
“submundo” e que, por isso, não gozavam de reconhecimento como cidadãs.
Um bar destinado a esse público e que era um dos únicos lugares disponíveis para LGBT+
que queriam dançar e curtir só poderia existir no interior de um gueto
culturalmente arejado de uma grande metrópole. Mas isso só era possível
em tensão constante com as forças de segurança pública. Não à toa,
Stonewall Inn era controlado, desde 1966, por máfias que subornavam as
autoridades policiais para manter o funcionamento da casa, que nem
sequer tinha licença para comercializar bebidas alcoólicas, além de
outras irregularidades. Periodicamente, policiais passavam no bar para
receber suas propinas, mas também aproveitavam para dar batidas de modo a
humilhar, identificar, chantagear, prender e extorquir os
frequentadores. A corrupção e a violência eram, assim, parte do
cotidiano da experiência LGBT+ nos poucos lugares de sociabilidade
existentes.
Mas algo começou a mudar no dia 28 de junho de 1969. Já
era madrugada quando a polícia apareceu e começou a abordar, de forma
agressiva, as mais de 200 pessoas que ali estavam curtindo a noite.
Algum desajuste ocorrera no acordo entre polícia e máfia. Os agentes
policiais começaram a revistar, já separando aqueles que seriam detidos e
os que seriam soltos, como sempre faziam. Também começaram a apreender
as bebidas alcoólicas. Mas os poucos policiais e viaturas não eram
suficientes para a prisão de tanta gente. Foi preciso esperar a chegada
de reforço e foi nesse contexto que eclodiu uma revolta espontânea e
violenta por parte das pessoas LGBT+.
Diversas são as memórias e as diferenças
nas narrativas de como se deu esse acontecimento histórico. Fala-se em
quem deu o primeiro grito contra um policial, quem jogou a primeira
pedra na viatura, quem liderou a rebelião. Apesar das diferenças, todos
os relatos convergem, contudo, para a descrição de um motim que começa a
se formar sem planejamento prévio, por meio de combinação de pequenas
desobediências individuais tais como pessoas se negando a entregar
documentos, não se deixando algemar e nem ficando em fila conforme o
comando das autoridades. As LGBT+ que foram liberadas não foram embora,
mas permaneceram na frente do bar acompanhando as discussões e tensões. A
polícia tentou impor suas ordens e as pessoas resistiram e começaram a
jogar latas, garrafas e pedras contra a polícia. Alguns dos oficiais
ficaram protegidos dentro do bar. A população atirava também dinheiro
aos gritos de “policiais corruptos”. O reforço demorou a chegar e a
temperatura aumentou nas horas seguintes, com o envolvimento das pessoas
que estavam na rua e que começaram a se dirigir para a frente do
Stonewall, inflando a aglomeração de gente.
A humilhação, desta vez, fora imposta à polícia pelo “gay power”
que emergira naquele episódio. A rebelião do primeiro dia só terminou
com a dispersão no começo do amanhecer por uma tropa especial da
segurança pública que foi chamada para resolver a insólita situação. Nos
dias seguintes, a repercussão nos jornais e nos panfletos distribuídos
pela comunidade vão provocando novas revoltas que seguirão desafiando a
repressão estatal. Os conflitos tomavam as ruas de modo que não podiam
mais ser escondidos. As pessoas LGBT+ expressavam seu orgulho e já não queriam mais voltar aos guetos e armários nas noites seguintes.
Essa breve descrição tenta dar conta do
clima efusivo e esperançoso que marcou os levantes de Stonewall. Mas um
olhar mais cuidadoso para a história revela que não foi essa a primeira
vez que a população LGBT+ irrompeu na cena pública reivindicando
direitos e combatendo a violência policial. Há registros de confrontos
em bares na Costa Oeste dos Estados Unidos na década de 1960,
destacando-se, por exemplo, a experiência da revolta da Compton’s
Cafeteria em São Francisco, ainda em 1966.
Mesmo não sendo um acontecimento inédito ou exclusivo,
algumas razões ajudam a compreender a singularidade que caracterizou
Stonewall. Primeiro, Nova York já era uma das cidades mais cosmopolitas
do mundo naquele momento. Ao funcionar como epicentro econômico do
capitalismo norte-americano, ela também se tornou um lócus privilegiado
de desigualdades sociais e um refúgio para milhares de pessoas LGBT+ que
migravam em busca do anonimato da vida em uma grande cidade. A mistura
de “desajustados” de diferentes raças e classes sociais presentes em
Stonewall era um ponto de partida propício para uma revolta coletiva.
Segundo, as lutas por liberdade sexual e igualdade de
gênero fermentadas durante as décadas de 1950 e 1960 sedimentaram as
condições para a emergência de novas perspectivas sobre o corpo, o
desejo e a sexualidade. Além disso, foi fundamental nesse processo de
questionamento de valores tradicionais a contracultura hippie, as lutas pelos direitos civis de mulheres e negros, as mobilizações contra a Guerra do Vietnã e a geração beat.
Terceiro, a afirmação de uma identidade
homossexual coletiva e igualitária, resumida na palavra “gay”, que não
se hierarquizava mais tão centralmente pelos papéis de gênero, permitiu a
criação de laços de solidariedade e a formação de uma subcultura mais
adensada.
Quarto, os Estados Unidos contavam, em grande parte dos
seus estados, com legislações discriminatórias e de criminalização das
homossexualidades, tendo havido uma campanha de perseguição contra a
população LGBT+ durante o macarthismo, que ficaria conhecida como
Lavender Scare, na qual quase cinco mil homossexuais teriam sido
cassados dos cargos públicos civis e militares entre 1947 e 1950. Isso
despertou resistências importantes na aglutinação dessa identidade gay
em busca de mudanças legais e maior aceitação.
Além dessas condições, Stonewall deixou
legados notáveis. Apesar de não inaugurar o ativismo LGBT+ nos Estados
Unidos, as revoltas marcam um ponto de inflexão, mudando o estilo de
militância. Acusava-se a Mattachine Society, organização homófila
fundada em 1950, de ser bem-comportada e assimilacionista, por pregar
para uma postura mais tradicional e descolada de outras agendas.
Stonewall inauguraria, ao menos na visão de seus protagonistas, uma
militância mais combativa e orgulhosa. Não bastava lutar pela
tolerância, era preciso mudar as estruturas da própria sociedade que
estigmatizava as pessoas LGBT+.
Antes de Stonewall, diante da injúria e
da vergonha na sociedade patriarcal e heteronormativa, a saída era
construir uma imagem socialmente respeitável de homossexual, batalhando
por uma integração à normalidade para conseguir acessar as migalhas de
alguns direitos. Depois dessa revolta histórica, o melhor jeito de lidar
com o preconceito era o embate, a denúncia e a não conformidade. Desse
modo, houve um deslocamento no estilo de ativismo, com o orgulho
funcionando como vetor ideológico principal de um modo eroticamente
subversivo de ser.
Tanto que, depois de Stonewall e graças a
ele, serão fundados grupos que pela primeira vez estamparão
orgulhosamente a expressão “gay” nos seus nomes: o Frente de Libertação
Gay, que remete às frentes de libertação anticoloniais, e o Aliança de
Ativistas Gays. Além disso, nas maiores cidades americanas –depois
exportadas para todo o mundo – começarão a ser realizadas, já em 1970 e
anualmente, as Paradas do Orgulho LGBT+ e que expressam, justamente, o
espírito de Stonewall: ocupar as ruas e romper com a invisibilidade
imposta pelo gueto e pela violência.
No entanto, deve-se frisar que Stonewall tornou-se o “mito
fundador” do movimento LGBT+ global também pelo imperialismo cultural
norte-americano. James N. Green, em seu artigo,
aponta como havia experiências de organização de pessoas LGBT+ em
estilo muito semelhante àquele produzido por Stonewall já em 1967 na
Argentina e, poucos anos depois, também no México. Enquanto países
latino-americanos estavam construindo seus próprios referenciais de
“stonewalls”, o Brasil vivia o período mais agudo da repressão
ditatorial a partir de 1968, atrasando a emergência do movimento LGBT+ entre nós.
Por sua vez, Symmy Larrat chama atenção para os apagamentos e invisibilizações de outras letras
da sigla LGBT+ nas disputas de memória em torno de Stonewall, lembrando
como travestis foram fundamentais naquele acontecimento histórico,
entre eles Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera. Symmy também nos lembra
como a continuidade da violência policial ainda é uma constante na vida
de LGBT+ pobres nas áreas periféricas das cidades brasileiras, mesmo
passados 50 anos desde o marco de Stonewall.
Desse modo, mais do que comemorar, o objetivo deste
especial é trazer uma leitura crítica e contextualizada de Stonewall,
feita desde a realidade brasileira e considerando as dificuldades
presentes na atual conjuntura, marcada pelo crescimento da LGBTfobia em
ato e em discurso. Conhecer a história de lutas da comunidade LGBT+ é
não somente um modo de aprendizado para pensarmos táticas e estratégias,
mas também uma maneira de nos inspirar para estar à altura dos desafios
do presente.
Benedito Nunes em seu escritório-biblioteca “abarrotado de livros” (Fotos: Patrick Pardini)
Apoiado em um sentido humanístico de
ampla formação acadêmica, aberto e de contornos fluidos, o ensaísmo de
Benedito Nunes contribuiu para a elucidação crítica de nomes importantes
da cultura brasileira, como Farias Brito, João Cabral de Melo Neto,
Clarice Lispector, Oswald de Andrade etc. Em relação a Guimarães Rosa, o
professor paraense também trouxe uma interpretação original, cujos
contornos se desenham entre a dimensão imagético-poética e o nível
conceitual das especulações filosóficas, planos esses articulados por
uma constante interpelação da própria linguagem, à luz de pensadores
como Heidegger e Sartre. A produção bibliográfica nunesiana
conta com aproximadamente vinte e seis artigos e cinco capítulos de
livros. Os textos publicados em jornais e revistas datam do período que
vai de 1957 a 2007, perfazendo cinco décadas de uma produção ensaística
relevante para os estudos rosianos no Brasil e no exterior. Publicados
em revistas brasileiras e estrangeiras ou nos mais importantes
suplementos literários nacionais, tais textos abordam, sob diversas
perspectivas, temas como a tradução, o menino, o amor, a viagem etc.,
com base no estudo interpretativo de diversas obras rosianas, como Sagarana, Grande sertão: veredas, Corpo de baile, Tutaméia, entre outras. Sintetizar tais textos, cuja dimensão
material supera, em muito, o artigo dos nossos dias, levando em
consideração sua base teórico-crítica, é uma tarefa que aqui não é
possível, contudo salientemos suas linhas de força, centradas em temas
fundamentais como a concepção erótica da vida e as relações entre poesia
e filosofia. No ensaio “O amor na obra de Guimarães Rosa” (1964),
republicado em O dorso do tigre, considerando as obras Grande sertão: veredas, Corpo de baile e Primeiras estórias,
o crítico postularia a tese da centralidade do amor, no que diz
respeito à cosmovisão rosiana: “O tema do amor ocupa, na obra
essencialmente poética de Guimarães Rosa, uma posição privilegiada. Em Grande sertão: veredas,onde
aparece entrelaçado com o problema da existência do Demônio e da
natureza do Mal, atinge extrema complexidade e envolve diversos aspectos
que compõem toda uma ideia erótica da vida”. As três espécies de amor existentes
na obra rosiana poderiam ser representadas por Otacília (o enlevo),
Diadorim (a dúbia paixão pelo amigo) e Nhorinhá (a volúpia). Embora os
tipos de amor sejam qualitativamente diversos, ocorre uma
interpenetração entre eles. Sem recorrer à interpretação alegorizante
dos trabalhos de Heloisa Araujo, o professor paraense buscará mostrar
que a tematização do amor, na obra rosiana, remonta ao platonismo,
porém numa perspectiva mística heterodoxa, “que se harmoniza com a
tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia
amorosa, que exprime, em linguagem mítico-poética, situada no extremo
limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor
divino, do erótico em místico”. A visão erótica da vida, em Guimarães
Rosa, assim, segundo Benedito Nunes, permitiria a aproximação entre o
profano e o sagrado. Assim, de Nhorinhá a Otacília, há uma como uma
ascensão, partindo da explosão erótica de Nhorinhá à imagem angelical de
Otacília, objeto ideal, à semelhança do mundo inteligível de Platão.
Dessa forma, o platonismo está subjacente a essa ideia de amor, uma vez
que se pode falar numa espécie de conversão do carnal em espiritual. Grande parte dos trabalhos lançados inicialmente em periódicos foi republicada em livros organizados pelo autor ou por outrem: O dorso do tigre (1969 e 1976), Teoria da Literatura em suas fontes (2. ed., 1983), Seminário de ficção mineira II (1983), O livro do seminário (1983), Guimarães Rosa (1991), Crivo de papel (1998), Veredas no sertão rosiano
(2007). Como se trata de livros muito conhecidos e debatidos pela
crítica especializada, propõe-se uma breve referência ao primeiro texto
rosiano escrito por professor Benedito Nunes em 1957: “Primeira notícia
sobre Grande sertão: veredas”, estampado no Jornal do Brasil de 10 de fevereiro de 1957. O artigo de 1957, lido em confronto
com a tradição crítica que se formou em torno de Guimarães Rosa na
última década, põe em foco o vínculo entre Guimarães Rosa e Mário de
Andrade. Além disso, discutem-se a linguagem, o processo narrativo, o
problema do gênero, entre outros aspectos. O texto rosiano apresenta-nos em uma
“narração inteiriça” e oscila, abandonando-se a língua culta, entre
dialeto regional e criação arbitrária. A inovação introduzida pelo
autor mineiro se justifica esteticamente pela “necessidade irrecorrível,
exigida pela natureza do próprio romance, cuja trama, situações e
personagens demandavam forma especial de tratamento”. No que diz respeito à técnica
narrativa, Benedito Nunes apoia-se no conceito de discurso livre para
explicar a autonomia do narrador em relação ao romancista. “Ele não é,
entretanto, o narrador controlado pelo romancista que, em geral, quando
adota este recurso de fazer com que o personagem exponha os
acontecimentos ou as próprias ideias, não desaparece atrás de sua
criação e com ela não se confunde. Mas, nesse romance, o autor quis se
enredar num problema dificílimo de técnica. Como permitir que Riobaldo
falasse, num discurso livre, ele mesmo contando a sua história, sem
desfigurar-se a condição humana do sertanejo, inculto, mas extremamente
sensível, ligado ao mundo pelo constante pelejar, com um código moral
diferente do nosso, sem dúvida e, ainda, com seu linguajar próprio,
limitado, regional?”. A relação entre Mário de Andrade e
Guimarães Rosa – depois retomada por Mary Daniel e outros intérpretes – é
um dos eixos do artigo de 1957. O linguajar do sertão se transforma em
linguagem artística, em estilo, resolvendo o problema do regionalismo,
debatido desde a recepção crítica primeira de Sagarana. “Sob esse aspecto, o processo de Guimarães Rosa não é novo. Mário de Andrade em Macunaíma
fez, guardadas as proporções, o mesmo, forjando uma língua que reuniu
várias modalidades linguísticas existentes no país; entrosou os termos
de origem indígena aos de origem africana, alterou a sintaxe, deu
vigor literário às expressões familiares e de gíria”. Assim, relacionando, de modo
original, a linguagem ao tema, às situações e aos personagens, fazendo
daquela “instrumento psicológico”, cuja intensidade garante a unidade da
obra e o seu “poder expressivo que confina com a poesia”. Não se limitando a uma gesta do sertão, Grande sertão: veredas
ultrapassa o âmbito regional, pois, no drama do sertanejo ou do
jagunço, “irrompem os grandes problemas humanos – seja a luta do homem
contra natureza que o estimula e o abate ao mesmo tempo, seja o ímpeto
do jagunço que se põe em armas para defender uma causa indefinível,
adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu espírito do que pela
necessidade de viver e de realizar o seu destino”. Antecipando tanto leituras
sociológicas quanto esotéricas da obra-prima rosiana, Benedito Nunes
postula uma interpretação “espiritual” da terra e do povo que nela vive.
Os fatores mesológicos, sociais e históricos, na mesma linha do
conceito de reversibilidade de Antonio Candido, tomam a forma de um
problema mais amplo (o Diabo existe ou não? O que leva o homem à
crueldade e à violência?). Ademais, o crítico refere à presença, no
texto, de “expressões acordes com a tradição do misticismo – tanto no
oriente como no ocidente”. Entre essas, cite-se: “Tem horas em que penso
que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de
encanto. As pessoas e as coisas não são de verdade”. Em consonância com a crítica estilística então vigente, o estudioso aponta a saturação de elementos pitorescos na linguagem de Grande sertão: veredas,
a fim de defender um estilo afim do poético, dada a sua peculiar
configuração rítmica, algo que Oswaldino Marques já fizera para a obra
até então publicada por Guimarães Rosa: “Mas quase sempre o estilo é
extremamente poético. A prosa tem ritmo: é célere ou lenta conforme a
situação exige. […] Mas raras são as mudanças do léxico e da sintaxe que
não correspondam a uma contorsão necessária, para dilatar o poder
expressivo da linguagem. […] Mas devido mesmo à comunicação emotiva que
se estabelece, participamos de seus problemas, de suas lutas, alegrias e
aflições”. Ao lado das deficiências, entre elas o
abuso de desarticulações sintáticas, contrações e elipses, o crítico
salienta, no “livro tumultuoso e imenso”, episódios hoje consagrados
pela crítica brasileira e estrangeira: o amor de Riobaldo por Diadorim, a
morte dos cavalos assassinados pelos cangaceiros, o encontro da tropa
de jagunços com os catrumanos, as lembranças tumultuosas de Riobaldo, os
últimos combates entre os dois bandos que dividiam o domínio dos
“gerais” e a descoberta de que Diadorim é mulher. Como se viu, o artigo de 1957,
lançado nas páginas do Jornal do Brasil, onde já atuava Mário Faustino,
embora datado e ligado a circunstâncias diversas, insere-se na tradição
crítica rosiana, tanto pelas vias que abriu, como a aproximação com
Mário de Andrade, quanto pela retomada de perspectivas já em
consolidação, como a via da crítica estilística de um Oswaldino Marques e
de um Cavalcanti Proença. A esse primeiro trabalho, viria somar-se um
conjunto de textos que, malgrado a modéstia do crítico paraense,
mudaram, definitivamente, a leitura crítica do maior romancista
brasileiro do século 20. Sílvio Holanda é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professor associado do Instituto de Letras e Comunicação da UFPa
I just watched the documentary by Petra Costa, Democracy in Vertigo, recently released by Netflix. There are already four documentaries produced addressing the 2016 coup in Brazil: The Process (Maria Augusta Ramos), Excellencies (Douglas Duarte), The Wall (Lula Buarque) and Democracy in Vertigo (Petra Costa). I have not had the opportunity to watch the others yet. Petra's documentary has received a lot of praise and even a possible nomination for an Oscar for the documentaries category. I analyze the documentary by Petra Costa as a political scientist, refraining from making other considerations, certainly more pertinent to the people of the cinematographic field, which is not our beach.
Our lens is the lens of Political Science. In this aspect, the documentary does not bring great news, except for the blatant scenes of savagery produced by the intensification of the political moods of those dark days, with reflections to this day. A sharpening, indeed, intensely stimulated, when it should be restrained, in the name of a civilized coexistence. We refer here to the chain of successive events that culminated in the coup of 2016, identifying the political actors who participated in these tessituras, such as the international financial banking, consorted with sectors of the political and economic elite, aligned with segments of the media and the judiciary. As Petra Costa notes, we are a republic of families. One day they get tired and take power. This "tiredness" or indisposition of our elite with the rules of the democratic game, Petra Costa, is in fact a constant. The country lives of authoritarian upheavals, with few moments of tranquility and democratic normalcy. It is a democracy bound to be unbound.
I recorded here an interview granted by an American jurist who, well before the recent leak of the audios of The Intercept Brazil, already pointed out the clamorous flaws in the process that condemned the former president Lula to the prison. The failures in the conduct of the process that has condemned Lula, as his defense has pointed out, are blatant since then. What the website brings again is the fabric of the frame of this plot, consubstantiating what impartial lawyers had already denounced. Incidentally, at the end of the speech, the jurist concludes that the greatest guarantee of a fair trial for a defendant is an impartial judge. In a country with a minimum of democratic normality and legal order, the evil would have been avoided since the illegal staples and the subsequent leakage of them, an affront to the Constitution.
A renowned jurist from Pernambuco, after watching the documentary, was impressed by the suffering of President Dilma Rousseff. In fact, yes. She cries a lot when she remembers the fear of the torture sessions she was subjected to, the cancer that she has overcome, and the death of our democracy. After the presidential elections, with Dilma Rousseff's victory, her executioners had already decided that she would not rule. Leaks from The Intercept Brazil site - the material is said to be robust - help us understand the coup sewing, the interests at stake, and its main architects. As the journalist Luis Nasiff observed, the republic fell along with the plane that drove former Federal Supreme Court Justice Teori Zavascki, who was determined to prevent excesses.
Ao
seu biógrafo oficial, Edson Nery da Fonseca, Gilberto Freyre
confidenciou algo curioso: chegou a concluir o livro Jazigos & Covas
Rasas, aquele que completaria a tetralogia de sua obra, abordando como
os habitantes da Casa Grande e da Senzala deixam o plano terrestre. Ao
viajar ao exterior, deixou o livro envolto num pano vermelho e, ao
voltar, não mais o encontrou. Apenas o prefácio da obra teria sido
localizado. Trata-se, certamente, de uma perda irreparável não apenas
para o sociólogo, sua família, mas para a cultura do país, que foi
privada do acesso à análise do tema, produzida por um dos mais importantes intérpretes
do país.
Este prólogo, leitores, é para chamar a atenção sobre um acervo
recentemente doado à Fundação Joaquim Nabuco pela esposa do antropólogo
Waldemar Valente. Waldemar Valente, ao lado de René Ribeiro, Mauro Motta
e o próprio Gilberto Freyre formavam uma espécie de núcleo duro do
então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois Fundação
Joaquim Nabuco. À época do então IJNPS, a despeito de enormes
dificuldades, pesquisas importantíssimas foram realizadas, colocando a
Instituição, nas palavras do próprio Gilberto, como uma instituição de
excelência nos trópicos, numa perspectiva principalmente européia. Apesar dos tempos de estudos de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, a Instituição nunca conseguiu ampliar seu capital simbólico naquele país.
Numa
entrevista, Waldemar Valente fala daqueles tempos, relatando alguns
fatos importantes de sua passagem pelo Instituto. Chama a atenção, por
exemplo, entre outras tantas coisas, uma pesquisa realizada por ele
sobre os terreiros do Recife e região metropolitana, num total, à época, salvo melhor juízo, de 4.500 terreiros dedicados aos cultos de matriz africana. Possivelmente um levantamento realizado entre as décadas de 40 e 60 do século passado, quando esses cultos foram bastante perseguidos na província, notadamente pelo Estado Novo. Mais ainda, um
possível vídeo gravado por ele de um desses ritos, com o pai de santo em
transe, vestido com uma indumentária muçulmana, falando línguas estranhas, como diriam os evangélicos. Algo inusitado.
Quando,
recentemente, numa viagem a Salvador, no contexto de uma pesquisa inserida nos Programas Institucionais, relatamos o fato aos pesquisadores do CEAO, Centro de Estudos Afro-Orientais, eles ficaram curiosíssimos, pois
são raríssimas as referências sobre a presença dos escravos muçulmanos
naquele Estado. Essas referências foram completamente dizimados depois da Revolta dos Malês. O respeitado pesquisador João José Reis, por exemplo, levanta
dúvidas até mesmo em torno da existência de Luísa Mahin, que
supostamente liderou a revolta e depois refugiou-se na região do Recôncavo Baiano,
precisamente na cidade de Cachoeira, tendo seu nome também associado à fundação da Irmandade da Boa Morte. João José Reis não encontrou nenhum documento que comprove a sua existência. Há de se perguntar: Seria mais uma dessas lendas? À exemplo da escrava Anastácia?
Difícil saber se este tal vídeo
encontra-se entre o acervo recentemente doado pela família de Waldemar
Valente à Instituição. Se estiver, reputo-o já como numa dessas
preciosidades que vem se juntar ao pré-sal de acervos da Fundação Joaquim Nabuco, numa expressão feliz de uma de suas servidoras.
Acabo
de assistir o documentário de Petra Costa, Democracia em Vertigem,
recentemente disponibilizado pela Netflix. Já são quatro os documentários
produzidos abordando o golpe de 2016 no país: O Processo(Maria Augusta Ramos),
Excelentíssimos(Douglas Duarte), O Muro(Lula Buarque) e Democracia em Vertigem(Petra Costa). Ainda não tive a
oportunidade de assistir os demais. O documentário de Petra tem recebido
muitos elogios e cogita-se, até mesmo, uma provável indicação para
concorrer ao Oscar, na categoria documentários. Analiso o documentário de Petra Costa na condição de cientista político, abstendo-me de fazer outras considerações, certamente mais atinentes ao pessoal do campo cinematográfico, o que não é bem a nossa praia.
Nossa lente é a lente da Ciência Política. Sob
esse aspecto, o documentário não traz assim grandes novidades, exceto pelos
flagrantes das cenas de selvageria produzidas pelo acirramento dos ânimos políticos daqueles dias sombrios, com reflexos até hoje. Um acirramento,
aliás, acintosamente estimulado, quando deveria ser contido, em nome de uma
convivência civilizada. Nos referimos aqui à cadeia de eventos sucessivos que culminaram com o golpe de 2016, identificando os atores políticos que participaram dessas tessituras, como a banca financeira internacional, consorciadas com setores da elite política e econômica, alinhavadas com segmentos da grande mídia e do judiciário. Como observa Petra Costa, somos uma república de famílias. Um dia eles se cansam e tomam o poder. Esse "cansaço" ou indisposição de nossa elite com as regras do jogo democrático, Petra Costa, na realidade é uma constante. O país vive de sobressaltos autoritários, com poucos momentos de tranquilidade e normalidade democrática. É uma democracia fadada a não consolidar-se.
Registro aqui uma entrevista concedida por um
jurista americano que, bem antes do vazamento recente dos áudios do site The
Intercept Brasil, já apontava as falhas clamorosas no processo que condenou o
ex-presidente Lula à prisão. São flagrantes, desde então, as falhas na
condução do processo que condenou Lula, como apontou sua defesa. O que o site traz de novo é a
tessitura da armação dessa trama, consubstanciando aquilo que
os juristas imparciais já haviam denunciado. Aliás, ao final da fala,
o jurista conclui que a maior garantia de um julgamento justo para um réu é um juiz imparcial. Num país com um mínimo de normalidade democrática e ordenamento jurídico, o mal teria sido evitado desde os grampos ilegais e o posterior vazamento dos mesmos, uma afronta à Constituição.
Um conceituado jurista pernambucano, depois de assistir ao documentário,
ficou impressionado com o sofrimento da presidente Dilma Rousseff. De
fato, sim. Chora bastante ao lembrar do pavor imposto pelas sessões de
tortura às quais foi submetida, o câncer que superou e a morte de nossa
democracia. Concluído as eleições presidenciais, com a vitória de Dilma Rousseff, seus algozes já haviam decididos que ela não iria governar. Os vazamentos do site The Intercept Brasil - afirma-se que o material é robusto - nos ajudam a entender um pouco melhor a costura golpista, os interesses em jogo, assim como seus principais artífices. Como observou o jornalista Luis Nasiff, a república caiu juntamente com o avião que conduzia o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Zavascki, disposto a impedir os excessos.
As semânticas políticas contemporâneas, à esquerda e à direita, aprofundam o uso daquilo que Armin Nassehi (no livro Die letzte Stunde der Wahrheit. Kritik der komplexitätsvergessenen Vernunft) chamou de “razão que esquece a complexidade” (komplexitätsvergessene Vernunft).
Esta “razão” consiste basicamente na crença de que a sociedade possui
um ponto central a partir do qual se pode conduzir e controlar a mudança
social, oscilando entre a moral, a política, o direito ou a educação,
mas nunca considerando a complexa situação de concorrência e
incongruência simultânea entre estas esferas diferenciadas.
Tradicionalmente, cética de que a política pudesse realizar este
papel, a direita via este ponto central de condução na reforma e na
seleção moral de pessoas, no cultivo das virtudes, enquanto a esquerda
tomava exatamente a política como o centro de condução e controle das
mudanças na sociedade e em suas esferas. Frustradas com suas respectivas
apostas, direita e esquerda tendem a inflacionar suas expectativas
sobre a educação,
como se esta pudesse direcionar a mudança das estruturas da ação social
por meio da formação e da integração moral e cultural dos indivíduos e
da sociedade. A dificuldade é entender e falar da mudança como algo que
ocorre no plural, de modo simultâneo e não integrado em diferentes
esferas da sociedade, sem um centro que conduza os diferentes processos
de transformação, embora seja necessário para a política a produção de
narrativas unificadoras. Não se trata de abrir mão destas narrativas,
mas de entender que elas não resolvem todos os problemas da política e
da arte de governar.
Em seu novo livro sobre o assunto (Gab es 1968?), Nassehi
avança a tese de que 1968 se tornou uma “fonte de narrativas
simplificadoras” sobre a transformação social, nutrindo uma moralização
duradoura e amplificada da política e tornando a nova direita
(nacionalista) e nova esquerda (identitária) cada vez mais parecidas em
sua forma de fazer política: ambas tendem a propor a transformação da
sociedade a partir da promoção das boas intenções, da pureza de
princípios e da condenação ou conversão dos moralmente indesejáveis como
âncora para a ação coletiva. Esta fusão semântico-discursiva entre
moral e política aprofunda a “razão que esquece a complexidade”, pois,
enquanto a sociedade se torna mais complexa e mais difícil de ser
transformada a partir de um único ponto de condução, mais se cultiva a
fixação por “histórias simples” do “bem” contra o “mal”.
Um dos sintomas mais fortes deste aprofundamento da “razão que
esquece a complexidade” é o desprezo crescente pela “técnica” tanto na
nova direita como na nova esquerda. Na direita, basta observar o
“governo” Bolsonaro
(um aborto, um feto que não nasceu e já parece morto) para perceber
como a crença na fusão entre política e moral (“guerra cultural” contra a
esquerda) leva a se desconsiderar a complexidade de uma sociedade
diferenciada em esferas e lógicas que reagem a todo esforço de
transformação externa pela moral e/ou pela política. Para ação prática, o
maior problema é que isto implica em não perceber que os setores de
políticas públicas precisam levar em conta a “tecnologia social”, ou
seja, o modo como intervenções produzem efeitos pretendidos e não
pretendidos, de acordo com as lógicas diferenciadas da economia, da
educação, da segurança.
A ideologia neoliberal de Paulo Guedes não é exceção que confirma a
regra. É a regra: não se trata, como é vendido pelo banqueiro e seus
seguidores, de uma visão “técnica” da economia, comprometida em
considerar a complexidade interna deste subsistema da sociedade, mas sim
de mais uma “história simples”, igualmente moralista (como sabemos
desde Reagan e Thatcher), sobre como gerar riqueza e prosperidade. A
crença de Guedes de que as virtudes do livre mercado vão resolver os
problemas da economia é tão subcomplexa como a crença de que o estado
pode conduzir este subsistema. Guedes e os neoliberais não tem nada a
ver com ciência econômica. Geram vergonha em liberais como Andre Lara
Resende e Monica de Bolle, atentos à complexidade real do mundo
econômico.
Na esquerda, o desprezo pela “técnica” se dá, por exemplo, na
hiperinflação do discurso de que “tudo é política”, especialmente como
escapismo para a abstinência econômica que tomou conta com a “virada
pós-estruturalista” que ensinou que tudo é poder. Falta um discurso
econômico capaz de levar em conta a complexidade e a autonomia operativa
da economia, com relações de causalidade, expectativas e processos
construídos internamente que ressignificam e redirecionam as tentativas
de intervenção pela política.
Em vez de estudar e levar em conta os desafios e os meios mais
efetivos para que a intervenção estatal não seja neutralizada, mas sim
potencializada pela economia, a esquerda se fixa no bordão do “tudo é
poder” e joga a culpa do fracasso na ganância dos empresários, oscilando
entre moral e política, sem passar pela inteligência. Ora, a ganância
dos empresários, assim como desejo de poder dos políticos, são as razões
sociais criadas pela sociedade complexa com suas esferas diferenciadas,
com suas lógicas autônomas e simultâneas, e quando estas razões são
desconsideradas, qualquer esforço de mudança social torna-se cego e
inconsequente.
Não se trata de defender o “livre mercado” e desaconselhar a
intervenção do Estado, mas sim de entender que a intervenção do Estado
precisa levar em conta que a lógica e os motivos próprios da ação
econômica são um fato da realidade, e que o sistema econômico vai
observar e interferir na interferência do estado, com uma resultando que
pode fazer os efeitos não pretendidos predominar sobre os pretendidos. A
construção e a reconstrução das estruturais sociais da economia não
podem ser diretamente conduzidas pelo estado, mas podem ser induzidas ou
irritadas por ele. A impossibilidade de condução direta resulta da
diferenciação de “tecnologias sociais”, entre as quais está a formação
de relações mais ou menos seguras entre “causas” e “efeitos” específicos
da lógica econômica.
A “razão que esquece a complexidade” prefere ignorar tudo isso e
apostar na justificação moral de seu próprio fracasso: o que explica o
fracasso das boas intenções são os “corruptos”, para a direita, e os
“gananciosos e opressores”, para a esquerda. Que se tratam de “histórias
simples” é fácil de ver na mudança dos personagens, mas nunca da
estrutura narrativa: num momento é a “elite de rapina”, noutro o “lixo
branco”; num os “corruptos”, noutro os “comunistas”.
Quando mais a política ignora a “complexidade” e a “técnica”, mais
ela se torna incapaz de entregar o que promete. A necessidade de
simplificar o discurso no momento eleitoral não pode significar a
necessidade de simplificar o discurso sempre. Na construção e
implementação das políticas públicas ignorar a “complexidade” e as
“tecnologias sociais” é ignorar as condições de sucesso e fracasso das
ações do estado, é praticamente amputar a política para entregar
resultados (output) e assim se legitimar na sociedade (input). A
aceleração e a fragmentação da esfera pública que orienta a ação
política e governamental, com oscilações quase diárias entre as
“histórias simples” relevantes para a opinião pública, tendem a
aprofundar ainda mais a “razão que esquece da complexidade”: a
necessidade de “lacrar” todo dia torna ainda mais difícil a busca de
alternativas institucionais e organizacionais capazes de viabilizar
mudanças sociais em uma sociedade complexa, ou seja, de “tecnologias
sociais” adequadas. Atentar para a complexidade e a técnica como
elementos indispensáveis para a mudança social não é defender governos
fracos. Não se trata de ser contra as mudanças produzidas a partir da
política, mas sim de entender sua complexidade. É defender, de modo
consequente e realista, governos fortes e capazes de produzir mudanças,
pois o que temos hoje, com o uso da “razão que esquece a complexidade”
dominando a política, é um desaprendizado da arte de governar,
compensada pelo cultivo da arte de contar “histórias simples” (lacrar) e
atribuir a destruição do final feliz à maldade do outro lado.
As reflexões de Nassehi sobre a “razão que esquece a complexidade” na
política alemã chegam a conclusões parecidas com as de Mark Lilla (O
progressista de ontem e o do amanhã) sobre a política identitária nos
Estados Unidos. A moralização excessiva da política, que Lilla
identifica e critica na política progressista de viés identitário, torna
a esquerda incompetente politicamente, tanto para ganhar legitimidade e
formar maiorias, como para administrar o estado. A política identitária
tende a reduzir a conduta política a discursos concorrentes de grupos
com suas moralidades sectárias e “histórias simples” sobre como
transformar a realidade – a mesma aposta na conversão ou reconversão
moral e no ativismo inconsequente que Nassehi identifica na geração de
1968, com seus segmentos pró e contra, mas compartilhando o mesmo quadro
de referência hiper-simplificador da realidade e de suas possibilidades
de transformação. No momento político recente, as “histórias simples”
da direita parecem ter mais sucesso que as da esquerda. Mas a disputa
entre elas tende a agravar a incompetência, partilhada não tão
secretamente por ambas, de governar e entregar resultados. A
amplificação das disputas morais, ao substituir as habilidades de
abertura ao outro, à realidade empírica e à dimensão “tecnológica” da
vida social, cria o que Lilla chama de “pseudo-política”. Pseudo, aqui,
não porque seja de esquerda ou de direita, mas sim porque é incapaz de
realizar a função específica da política, seja com programas de direita
ou de esquerda: produzir decisões coletivamente vinculantes para formar
maiorias e para produzir e implementar transformações como resultado da
ação do estado na sociedade.
A ingovernabilidade e o colapso da função política só interessam a
quem deseja a manutenção do status quo, ainda que seja em rumo à
catástrofe civilizatória, e à neutralização das decisões coletivas e das
maiorias sociais e políticas no rumo da história. Só interessa à
direita, não à esquerda.
O que é ser de esquerda? Dominar a arte de governar em um mundo complexo
ou “contar histórias simples” que só servem para marcar uma identidade
política cheia de moral e vazia de programa e inteligência? Roberto Dutra é doutor em sociologia pela Humboldt
Universitaet zu Berlin/Alemanha e professor associado da Universidade
Estadual do Norte Fluminense (UENF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, descreveu um comportamento
patológico chamado de “narcisismo primário”. Todos nós, quando pequenos, temos
uma boa dose de narcisismo nas nossas atitudes. O duro e lento exercício de
descentramento do “eu”, ou seja, não se achar o centro do universo, leva muito
tempo. É uma etapa psicológica semelhante a do assassinato psicanalítico da
figura paterna. A maioria, contudo, se liberta desse comportamento, e aprende a
duras penas que não é o umbigo do universo, mas um grão de poeira ou uma cabeça
de alfinete, num vasto mundo que pouco se interessa pelas nossas fantasias de
onipotência. Ocorre que um grupo de pessoas não consegue jamais superar esse
“narcisismo”, e continuam, vida afora, a se acharem o centro de todas as
atenções. Estão inseridas nesse grupo certas personalidades do meio jurídico
que têm vida pública ou visibilidade pública através dos meios de comunicação
ou por ocuparem cargos públicos.
São parecidas àquelas notabilidades de aldeia, onde que tem pedigree
familiar ou estudou fora do país, realçam o seu brilho, como uma gota de água
no deserto. O velho Sergio Buarque de Holanda já tinha se referido ao caráter
retórico, vistoso, ligado à afirmação da personalidade da pessoa, de nossa
formação ibérica, portuguesa. Segundo ele, daríamos mais valor à afetação, ao
teatro, do que ao conteúdo do que falamos. Interessaria mais a impressão e o
modo do que dizemos/fazemos do que a mensagem propriamente dita.
Nosso
estado (ia dizer capitania hereditária), se ufana da sua longevidade histórica
e suas raízes coloniais e imperiais. Pernambuco vive desses fantasmas antigos
que sempre voltam ou são invocados para impressionar os vivos. Aqui, dizia o
conde da Boa vista, quem não é Cavalcanti é cavalgado. Pelo visto, as coisas
ainda caminham nesse passo. Os Cavalcantis permaneceram, com o seu brilho, sua
tradição retórica e sua vaidade. São como os “narcisistas primários” de Freud,
fazem de tudo (bom e ruim) para chamar a atenção. Trocam de lado na política,
apoiam candidatos fascistas e autoritários, desqualificam as comissões onde
pontificam e usam – como podem – os meios de comunicação para se expressarem
como “prima donas” num teatro burlesco e regional. Um arremedo de esfera
pública dominado por um punhado de famílias tradicionais e ricas torna-se o
palco, por excelência, dessas personalidades performáticos, onde o meio é a
mensagem. Ou seja, onde não há mensagem.
Rebentos da oligarquia ou associados a ela, por relações familiares,
acham que têm direito natural a tudo: cargos, influencias, posições de
prestigio etc. Quando são contrariados, fazem da frustração pessoal uma questão
política e assumem posições polêmicas e controversas. É o seu jeito de manifestarem
sua revolta pela contrariedade de seus desejos de onipotência infinita. Foi o
que ocorreu com o episódio das últimas eleições presidenciais no Brasil.
Pessoas de conhecida notabilidade local e regional, tomaram o lado do candidato
fascistóide, não por identificação ideológica ou política, mas pela vaidade
ferida, por terem sido “esquecidas” pelo governo petista para cargos, comissões
ou simples consultores. Acharam-se ofendidos, preteridos, quiçá perseguidos
pelo governo de turno. Lamentavelmente, esse tipo de gente pensa que tudo o que
acontece no universo tem a ver consigo, para o bem ou para o mal. Se são
lembrados e contemplados, ótimo. É merecimento natural. Se são esquecidos, é
crime de lesa-vaidade. E aí vem a retaliação na forma de ”ser do contra”, de
remar contra a corrente, independentemente de seu conteúdo ideológico, ético ou
político.
É
preciso considerar esse tipo de comportamento como uma patologia séria e
perigosa; se fosse possível criar um reino imaginário, um castelo de cartas, um
refúgio qualquer (como a religião) e colocar essas pessoas aí dentro, seria uma
terapia social de muita valia. Causaria menos danos à sociedade e a si mesmo.
Infelizmente, essas criaturas andam por aí pousando de sumidade jurídica, esperteza
político-ideológica, quando não de corregedores morais da nação. Muito triste
tudo isso.
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE