pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO.
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quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Uma dominação a ser combatida

Uma dominação a ser combatida
Em nossa sociedade patriarcal, o desprezo é destinado às mulheres inclusive nos espaços intelectuais (Foto: Andre Hunter/Unsplash)

 

Faz parte da visão falo-narcísica e da cosmologia androcêntrica manter uma barreira entre a mulher e a vagina como umas das estratégias de dominação masculina, conforme nos ensina Pierre Bourdieu.

A vagina precisa ser dissociada da mulher para que ela possa ser considerada virtuosa, digna do respeito e da consideração de um homem.

Aí está a dificuldade de ser mulher e de ser aceita como intelectual e política. Construído em uma sociedade machista, o olhar masculino está carregado de uma violência simbólica que afasta as mulheres desses espaços.

Se for sexualmente livre e não reprimir seus desejos, a mulher será etiquetada como objeto – e o contrário não a livra dessa objetificação, que sustenta a divisão sexual do trabalho e corrobora para manter a mulher no “lugar de mulher” e o homem no “lugar de homem”.

Feministas francesas como Danièle Kergoat nos ensinam a respeito da luta das mulheres contra a divisão sexual do trabalho. No livro Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo (Editora Unesp), Kergoat escreve:

“A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por característica a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares…)”.

No seio dos ambientes intelectuais, a mulher que não reprimir seus desejos e que não for “recatada”, atrairá homens que não veem nela humanidade o suficiente para escutá-la, pois só conseguem enxergá-la como objeto.

Isso pode ser evidenciado nas relações de amizade entre homens e mulheres nos espaços intelectuais e políticos. As amigas dos homens, que dominam esses campos, são lidas quase imediatamente como “amantes”. Na lógica do pensamento machista, um homem não pode compartilhar nada além de sexo com uma mulher.

A construção desse pensamento envolve acreditar que mulheres não merecem a amizade de um homem a não ser que, em troca, ofereçam a vagina. Na cabeça de um machista, de um misógino, o amor amigo e a troca de impressões intelectuais não são permitidos entre homens e mulheres.

O capitalismo precisa ser derrubado e uma nova forma de sociabilidade humana precisa ser construída, mas não sem que essas questões sejam resolvidas. Estamos falando de violência.

Não é possível continuar mantendo mulheres em um patamar de meros objetos, até porque, pelo menos no Brasil, a maioria da população é composta por elas. Pensar novas formas de sociabilidade humana deverá passar pelo crivo das mulheres – que, pasmem, são seres humanos.

Importante lembrar que a cada dia mais e mais mulheres rejeitam a etiqueta da objetificação. Com isso, o mais próximo de um consenso sobre a transição que precisamos não será possível sem que o pensamento machista ceda. Estamos falando de uma forma de pensar, de ser e existir muito violenta, já introjetada, que não se exaure com o fim da opressão econômica.

As barreiras impostas às mulheres pelos homens extrapolam as situações expostas neste texto. Situações que também se relacionam com a divisão sexual do trabalho, ligada a imagens de controle que afastam as mulheres, por exemplo, do campo político, dominado por homens brancos.

Como nos ensina bell hooks em O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras (Record): “Desafiar o pensamento sexista em relação ao corpo da mulher foi uma das intervenções mais poderosas feitas pelo movimento feminista contemporâneo. Antes da libertação das mulheres, todas as mulheres, mais jovens ou mais velhas, foram socializadas pelo pensamento sexista para acreditar que nosso valor estava somente na imagem e em ser ou não notada como pessoa de boa aparência, principalmente por homens”.

A teoria política que critica o neoliberalismo e sua forma de tratar pessoas como objetos indesejáveis quando não possuem poder de compra, não pode se omitir quando o assunto é “mulheres como objetos que só prestam para oferecer sexo”, ou seja, quando tiverem capital sexual para oferecer. Esse pensamento é misógino e desumanizante.

Sobre o neoliberalismo e sua característica desumanizante, Márcio Felippe Sotelo escreveu, na Cult de Maio: “O neoliberalismo nos tornou indivíduos competitivos. Se a isso juntarmos a meritocracia econômica, criamos um sistema de vencedores e perdedores, em termos individuais. O passo em direção à solidão, ansiedade e depressão é muito pequeno nesse sistema binário. Em termos gerais, faz-nos sentir infelizes, pois somos animais sociais, precisamos do outro, prosperamos em grupo. Este sistema econômico anula este aspecto crucial da natureza humana”.

Seguindo essa lógica, devemos apontar para a forma violenta como homens competem com mulheres nos espaços que ocupam e como o mérito masculino é forjado no falocentrismo, fazendo das mulheres seres inferiores no “sistema de oposições homólogas” ainda naturalizado.

Isso também é violento, causa infelicidade e depressão. E se precisamos uns dos outros para prosperar em grupo, mulheres não podem estar do lado de fora.

No livro Políticas da realidade: ensaios sobre Teoria Feminista, a filósofa Marilyn Frye escreve que o amor dos homens é homossexual, uma vez que eles parecem incapazes de direcionar às mulheres o mesmo amor amigo – que une, compartilha saberes, ideais, lutas, estratégias e espaços – que direcionam aos seus pares masculinos.

O filósofo Axel Honneth fala do amor – as relações eróticas, as amizades e a relação entre pais e filhos – como um padrão de reconhecimento intersubjetivo, ao lado do direito e da solidariedade. Segundo ele, o direito considera todas as pessoas iguais, enquanto a solidariedade está relacionada à maneira como os indivíduos se sentem valorizados e reconhecidos.

Essa forma de reconhecer o valor do outro pode fazer surgir o que Guilherme Assis Almeida e Eduardo Bittar revelam como “relações solidárias que são caracterizadas pela igual intensidade no sentido de estima mútua e pela possibilidade de compartilhamento de valores comuns significativos e engrandecedores para a vida de cada um. Compartilhamento esse que ocorre sem nenhuma espécie de pressão social”, escrevem em Curso de filosofia do direito (Atlas).

Os autores, que trazem o pensamento de Honneth, ainda nos ensinam que “é essa solidariedade que será capaz de estabelecer uma comunidade de valores ensejadora de relações sociais caracterizadas pela troca e desenvolvimento recíproco nas quais a violência não ocupa lugar algum e a peculiaridade de cada um é fruto da admiração de todos. Relações nas quais a competição não encontra nenhum espaço, já que o crescimento do indivíduo no âmbito do grupo é princípio. Entendida essa palavra no seu sentido de dar início, como também na sua perspectiva ética”.

É importante lembrar também do que nos ensinou Audre Lorde em Irmã outsider (Autêntica), quando escreveu que “a menos que alguém viva e ame dentro das trincheiras, é difícil se lembrar que a guerra contra a desumanização é interminável”.

O desprezo é o contrário da solidariedade. Numa sociedade patriarcal, machista e misógina inclusive nos espaços intelectuais e políticos, essa prática é destinada às mulheres e a outros grupos subalternizados.

Como é possível pensar em novas formas de sociabilidade fora do capitalismo, tão baseado no individualismo, egoísmo e no desprezo dos indesejáveis, sem atacar a raiz dessa construção social que despreza mulheres? Um desprezo que é incapaz de oferecer – para além da teoria – a solidariedade para esse grupo social?

É importante que deixemos de gastar energia fingindo que essas barreiras são intransponíveis ou até mesmo que elas não existem, nos ensina Audre Lorde. Negar a existência desse pensamento binário que coloca mulheres como merecedoras de desprezo não fará com que isso deixe de acontecer.

E como falar em democracia e justiça sem observar, por exemplo, a prática da valorização recíproca entre grupos sociais? O amor, o direito e a solidariedade são determinantes para a vida do indivíduo, escrevem Guilherme Assis Almeida e Eduardo Bittar, e a sua ausência, além de perturbar o espaço coletivo, tem consequências diretas para o convívio social.

A teoria crítica de Honneth, de 1992, nos desafia a experimentar novas práticas sociais – práticas que já têm sido propostas por teóricas feministas há décadas.

Ao considerarmos a interseccionalidade como ferramenta analítica, deixamos de entender a categoria mulher como universal e passamos a falar, por exemplo, de mulheres negras. E essas mulheres, como nos ensina Patricia Hill Collins, são atingidas por “imagens de controle”, ou seja, imagens negativas, como a da “gostosa”, para usar apenas um exemplo. São imagens que ajudam a justificar a opressão sobre elas.

Em Pensamento feminista negro (Boitempo), Collins demonstra como essas imagens de controle atuam como uma ideologia de dominação. “Dado que a autoridade para definir valores sociais é importante instrumento de poder, grupos de elite no exercício do poder manipulam ideias sobre a condição de mulher negra. Para tal exploram símbolos já existentes, ou criam novos”.

Ao tratar da objetificação da mulher negra, Collins aborda o pensamento binário que dialoga com o que Bourdieu chama de sistema de oposições homólogas, chamando a nossa atenção para o fato de que o binarismo retarda o pensamento e seus valores fazem com que os fatos se apresentem de forma obscura.

Essas imagens de controle – que colocam como “amante” a mulher negra intelectual amiga de homens intelectuais, como aquela que precisa oferecer capital sexual em troca de reconhecimento e valorização – estão no âmbito do desprezo, que é o contrário da solidariedade que precisamos para a construção da nova sociabilidade que nos interessa.

Da mesma forma, quando falamos da mulher trans que é desprezada porque não permitiu ser domesticada pelos seus pares, estamos diante do uso de imagens de controle que “justificam” a transfobia no campo político. A mulher trans que não se permite domesticar acaba sendo etiquetada como selvagem primitiva que não merece reconhecimento e valorização, apenas o desprezo.

A interseccionalidade é uma categoria de análise das opressões de raça, gênero e classe, sem hierarquia entre elas, como ressalta Audre Lorde.

No sistema binário de pensamento, mulheres são lidas e tratadas pelos homens como inferiores, assim como negros são tratados e lidos como inferiores pelos brancos. Não devemos reproduzir esse sistema dentro do espectro ideológico progressista. É preciso se educar, refletir e pensar no outro como alguém diferente, porém não menos importante ou que mereça desprezo.

É preciso coragem e honestidade intelectual para realizar uma autocrítica e se aliar na derrubada do pensamento binário desumanizante, mas sem acreditar que o grupo oprimido tem a responsabilidade de educar seus opressores.

A derrubada da arrogância intelectual – que faz com que aqueles que não tiveram acesso à educação sejam vistos como parte inferior do binarismo fato/opinião – está no âmbito da prática da solidariedade, inserida na teoria crítica social de Honneth.

Derrubar a arrogância intelectual não é sobre ser anti-intelectual, mas é se permitir escutar e refletir sobre o que dizem e sentem aqueles que não tiveram as mesmas condições objetivas para alcançar certos espaços, que inclusive não foram feitos para que esses corpos fossem recebidos.

É sobre exercitar a solidariedade intelectual e não fazer com que o outro se sinta um outsider compulsório nos debates que impactam diretamente as suas vidas.

Em Pensamento feminista negro, Patricia Hill Collins apresenta a fala de Ruth Shays, mulher negra e pobre. Uma fala impactante que nos faz refletir sobre o pensamento binário que desumaniza e afasta o princípio da solidariedade, além de nos distanciar das possibilidades de garantir nosso direito ao futuro e o direito daqueles e daquelas por quem dizemos lutar:

“Ouvir a verdade não mata ninguém, mas as pessoas não gostam da verdade e preferem ouvi-la de alguém de seu próprio grupo que de um estranho. Ora, para os brancos (para uma análise mais ampliada, insira aqui a categoria homem também), uma pessoa de cor (insira aqui a categoria mulher para uma reflexão mais ampliada) é sempre um estranho. E mais, acreditam que somos estranhos e estúpidos, por isso não podemos dizer nada para eles!”

Que não sejamos essas pessoas que colocam aqueles por quem dizemos lutar no patamar da infantilização, da objetificação e do desprezo. Talvez deva ser uma grande prioridade praticar os aspectos da luta pelo reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos, sujeito digno de receber amor e solidariedade.

Laura Astrolabio é advogada especialista latu sensu em Direito Público, mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos na UFRJ e articuladora política no movimento Mulheres Negras Decidem.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Michel Zaidan Filho: A tutela multinível dos direitos humanos e o Brasil

 
 
O sistema internacional de proteção aos direitos humanos, a jurisdição internacional e as cortes se constitui no fim da Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU e a carta sobre os Direitos Humanos, assinada por todos os países-membros originários do ato de fundação da Organização das Nações Unidas, entre os quais, o Brasil (representado por Oswaldo Aranha.
Esse sistema é uma cadeia complexa que envolve órgãos e tribunais que vão desde a esfera municipal, estadual, federal, regional até chegar no Tribunal Penal Internacional. Entre essas esferas estão A Corte interamericana, a Carta da OEA, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos e o Tribunal de Haia. Estas instâncias são reconhecidas e respeitadas por todos os países signatários dessas convenções internacionais. Aqueles governos que não não reconhecem ou respeitam esses princípios e comandos trans- constitucionais, são chamados de "párias", e estão à margem da comunidade política das nações.
 
Esta jurisdição e os poderes que ela confere às autoridades internacionais (regionais e internacionais) já atuou em várias ocasiões, dentro e fora do Brasil. Dentro do nosso país, temos a responsabilização penal do Estado brasileiro pela chacina dos militantes políticos da "Guerra do Araguaia" (caso Gomes Lund). Fora daqui, Há o rumoroso caso do julgamento e condenação do ex-ditador chileno General Augusto Pinochet, através da intervenção do juiz espanhol Baltazhar Garcon, pelo assassinato de cidadãos de seu país, durante a ditadura chilena. O mesmo magistrado ainda chegou a notificar o ex-secretário Henri Kissenger para que ele se apresentasse perante a corte européia e fosse julgado, mas Kissenger se saiu com uma"boutade": pior que a ditadura dos generais, era a dos juízes. E não compareceu.
 
O primeiro tribunal internacional criado para julgar os crimes contra a humanidade foi formado "ad hoc" pelos vencedores da Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg. Apesar da notória parcialidade da corte, composta de americanos e europeus, esta Corte foi a antecessora do Tribunal de Haia, da Tutela Internacional dos Direitos Humanos, e dos julgamentos de crimes cometidos por governos nacionais no mundo inteiro.Diga-se, de passagem, que nem o governo americano nem o do Estado de Israel reconhecem a jurisdição do TIP e não permitem que seus cidadãos e cidadãs sejam julgados por esse tribunal. Alegam razões de Estado e o direito de lutar pela sua sobrevivência. Isso sem falar no "buraco negro" jurídico das prisões de Guantânamo e a ocupação militar dos territórios palestinos pelo governo sionista.
 
O caso da discussão sobre a responsabilidade penal do atual governo brasileiro sobre a morte de milhões de civis, em razão do descumprimento das recomendações da Organização mundial da Saúde, e a ameaça de extinção das nações indígenas e sociedades quilombolas é francamente um daqueles que pode se tornar um processo internacional, pela acusação de genocídio ou crimes contra a humanidade. Caso seja aceita a denúncia pelo TIP, é possível que a denúncia prospere e o governo se torne réu num tribunal internacional. O dirigente brasileiro parece fazer pouco caso da imagem que a comunidade internacional tem do Brasil, sob a sua gestão e aposta no isolamento político como forma de convivência com os demais países americanos e europeus, com exceção dos E.U.A. e do Estado de Israel. Exatamente aqueles governos que não aceitam a jurisdição do TIP, em razão dos crimes que cometem contra os cidadãos e cidadãs estrangeiros.
 
De toda maneira, o julgamento e a condenação pela Corte de Haia implica sansões políticas, econômicas e o ônus de uma reputação internacional do país pelo desrespeito sistemático dos direitos humanos e as violências perpetradas contra os pobres, velhos, doentes e desassistidos. Além da perseguição ás minorias sociais. Um governo proscrito pela comunidade internacional - e que faz pouco caso das convenções e acordos políticos e humanitários - não só se arrisca a perder investimentos de longo prazo e receber turistas estrangeiros, mas sobretudo ser preso se sair do país.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Michel Zaidan Filho: Vocação de professora (resenha do livro Reforma Agrária no Papel)







Tem gente que nasceu para ganhar dinheiro. Outros nasceram para a Ciência e a Pesquisa. Mais os que são valiosos são que nasceram para o magistério e enorme capacidade de ajudar as pessoas a se instruírem e formarem uma opinião crítica sobre as coisas do mundo. Estes são os melhores. A professora Roseana Borges de Medeiros, docente do DLCH, da Universidade Rural de Pernambuco, vem mostrar através de seu ultimo livro – Reforma Agrária no Papel, a sua inegável vocação pedagógica, aliada à sua missão clínica e terapêutica junto a seus alunos e alunas.


Segunda a mestra, o livro foi elaborado para o seu magistério na disciplina Direito Agrário. Como inexistia na época uma publicação que abordasse de uma perspectiva jurídica e histórica a questão da regularização legal da terra no Brasil, desde o período colonial até a Nova República, ela tomou a si a tarefa de produzir esse livro, numa versão eminentemente didática. E conseguiu. Valendo-se de uma ampla pesquisa histórica da formação de Portugal, passando pela colonização lusitana do Brasil e chegando até a República, Roseana nos legou um estudo sistemático e lógico da questão agrária em nosso país, para além da hermenêutica jurídica e suas controvérsias entre os advogados e constitucionalistas. Diz ela que Portugal, uma das primeiras nações modernas da Europa, nunca teve originalmente um feudalismo, em razão da ocupação muçulmana na península ibérica. Os árabes nunca cuidaram de agricultura e sempre se dedicaram ao comércio e a conquista. Situação que provocou entre os portugueses uma crise crônica no cultivo dos campos, e sua gradual dependência da Inglaterra para o abastecimento de sua gente. Os lusitanos se entregaram sofregamente ao comercio e as grandes navegações. Dessa forma, a agricultura foi delegada a outros. Como nunca houve um feudalismo digno desse novo, falar de revolução burguesa na Lusitânia seria uma força de expressão, apesar do arremedo de uma frágil burguesia comercial associada à “revolução” de Avis, dando início á época das grandes navegações. Neste contexto, foi elaborada a lei das Sesmarias, como forma de regularização da posse da terra. O mérito dessa lei é que ela impedia a concentração fundiária, em tese. A lei das Sesmarias foi o texto legal que vigiu durante todo o período colonial e parte do Império brasileiro. Apesar das intenções, não impediu a concentração e privatização da terra no Brasil. Já que grandes proprietários e senhores de terra foram agraciados com as sesmarias.

Nesta altura, a autora introduz a questão da ausência de feudalismo na colônia brasileira. Discutindo com os autores marxistas, a mestra reafirma a inexistência desse modo de produção e diz que a história agrária brasileira foi desde o início a do latifúndio e da grande propriedade territorial. Confirmada pela agroindústria sucro-alcooleira e a mão-de-obra escrava.

O próximo passo seria o fim da escravidão, a crise da lavoura açucareira e a criação da Lei de Terras, de 1850. A abolição do trabalho escravo, sob pressão militar da Inglaterra, levou a uma reorientação da política agrária, no sentido de impedir que os ex-escravos e homens livres pudessem se beneficiar das terras devolutas e improdutivas e difundir o regime da pequena propriedade no Brasil. Antecipando a isso, os senhores de terra do oeste paulista e Rio de Janeiro, apressaram-se em aprovar uma lei que restringia a posse da terra, através da obrigação da venda e da compra. Mais uma vez, vinha o reforço da concentração fundiária, a serviço das fazendas de café e do trabalho livre dos imigrantes europeus. Esta lei perdurou em nosso país até o advento do Estatuto da Terra, aplicado já no regime militar. O Estatuto da Terra, coroava uma série de lutas, conflitos, reivindicações dos trabalhadores rurais, meeiros e parceiros que trabalhavam no campo, sem nenhum direito ou garantia. Esta lei, considerada a mais avançada nas circunstâncias brasileiras, previa expressamente a “função social da propriedade fundiária” e punia o latifúndio improdutivo. Na letra, seria um arremedo da revolução agrária que o Brasil nunca teve. Infelizmente, sob o tacão da ditadura militar, ele favoreceu aos grandes proprietários de terra, com a expulsão de muitos trabalhadores e camponeses de suas terras.

Roseana conclui sua pesquisa com uma análise muito crítica do Primeiro Plano nacional da Reforma Agrária, quando era vivo ainda o ministro Marcos Freire. Valendo-se das análises de José Graziano, ela menciona a expressão “modernização conservadora” ou “modernização dolorosa”, como o resultado prático desse Plano: a expansão do capitalismo moderno ao campo, através de grandes empresas nacionais e internacionais, com ajuda de incentivos fiscais, grandes obras de infra-estrutura e, sobretudo, “a militarização da questão agrária” no fronteira agrícola da Amazônia e no norte do país. Houve uma enorme concentração de terras, com a expulsão de imigrantes nordestinos, índios, camponeses, em benefício dos grandes proprietários e empresários rurais ligados ao agronegócio. Muita terra adquirida foi transformada em mera “reserva do valor”.

O livro confirma – através de uma boa pesquisa histórica – a tese arqueconhecida da concentração fundiária no país, através de uma dialética perversa da simbiose do novo com o velho, que faz do Brasil uma nação dotada de uma estrutura agrária arcaica, privada, concentrada e voltada para o exterior. A reforma agrária tantas vezes anunciada permaneceu no papel o tempo todo. E hoje é motivo de muita preocupação, em razão das opções macroeconomicas do atual governo.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD/UFPE. 
 
 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Aílton Krenak e a busca da totalidade cósmica


Em Ideias para adiar o fim do mundo, ele argumenta: Ocidente gerou uma sociedade de ausências. Desconectou-nos da memória ancestral, da Natureza e das experiências em comunidade. Evitar catástrofes requer descolonizar a vida
Imagem: Helene Santos
Não é de hoje que as reflexões de Ailton Krenak provocam intensas discussões e provocações aos pensadores convencionais. Líder indígena, pensador herdeiro dos saberes tradicionais e defensor dos direitos de seu povo, Ailton fala de um lugar onde os saberes ainda não foram colonizados e nem se renderam a materialidade eurocêntrica. Seu discurso transcrito carrega os potenciais da oralidade e estimula a reflexão para além das regras formais da escrita convencional e acadêmica. Tudo isso encontramos em seu pequeno e profundo livro intitulado As ideias para adiar o fim do mundo (2019) e na mais recente publicação intitulada O amanhã não está à venda (2020), ambos pela editora Companhia das Letras.
Ailton possui uma interpretação universal para todo tema que propõe analisar. Fala do universo na sua totalidade, considerando a importância de todos os organismos e geografia da terra como seres atuantes para prover a vida no planeta. Estranha quem não reconheça que haja vida nas árvores, nos rios, nas montanhas, nos ventos. Possui uma visão de totalidade cósmica, porém sem se render a um misticismo vulgar. A natureza é sábia e Ailton sabe disso!
Seu trabalho evidencia a importância do saber milenar das culturas tradicionais e seu potencial para realizar a crítica da sociedade moderna, seja através dos costumes, seja na maneira de produzir conhecimento. Os saberes ocidentais segmentados dificultam a compreensão de um organismo terra em sua totalidade, essa segmentação faz com que um geógrafo não tenha nenhuma dúvida da importância de uma montanha e da mata para a formação das correntes atmosférica e umidade do ar, porém um economista convencional desconhece completamente essa informação, vendo naquela mata uma potencial área de plantio que sua ciência será muito eficiente em aproveitar os recursos produzidos naquele solo. Para Ailton, a montanha, a mata e o solo são todos integrantes do mesmo organismo e sabidamente equilibrados, a terra nos provem a vida se soubermos respeitar o seu equilíbrio natural. O pensamento ocidental se considera avançado por não ter a menor compreensão da totalidade que há por “de fora da caverna”. A ciência ocidental possui um enorme saber e produziu importantes contribuições que devem ser defendidos em tempos de negacionismo, porém, conhece ainda muito pouco perto do todo existente no universo.
Ailton questiona o antropocentrismo e o saber ocidental imposto pela chegada dos europeus, afirma categoricamente que a terra não precisa do ser humano para existir, ao contrário de nós que não vivemos sem ela – quem seria o vírus destruidor do planeta? A “civilização” moderna fez com que a humanidade abandonasse a pluralidade das vidas nesse planeta. O homem não é o centro do universo. É tempo de conhecimento universal!
+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>>
O autor relata o quanto abandonamos os vínculos profundos com a nossa memória ancestral de tal forma que perdemos a referência e o significado de nossa identidade. A “civilização” moderna produziu um distanciamento do homem da natureza, da terra, das experiências em comunidade. Abandonamos a importância da memória coletiva, das heranças culturais, das danças, das festas e das vivências sociais. Criamos uma sociedade de ausências, insensíveis para as experiencias humanas afetivas, do canto, do brincar, da alegria. Isso se evidencia nos índices de insatisfação humana mesmo com tanto acesso a recursos materiais, nos elevados índices de transtornos psicológicos, suicídios e a busca inatingível por prazeres efêmeros, relacionados a esfera material, de consumos vazios de experimentações afetivas. Estamos cheios de vazios!
A sociedade moderna, capitalista, transformou homens em consumidores, uma sociedade que produz mercadorias sem respeitar os limites físicos do planeta. Vivemos em um período do Antropoceno enquanto resultado inconsequente das ações humanas, ainda que sob a crença de que temos capacidade de conhecer e controlar os desequilíbrios ambientais. O individualismo potencializado pela sociedade capitalista fez surgir um modelo de “civilização” doentia que só pensa em si, excludente, que destrói todas as demais formas de vida no universo. O narcisismo na sua forma social, se é que podemos definir assim.
Nossa sociedade transformou a natureza em recursos e distanciou o homem da natureza levando ao limite o processo de coisificação humana. Fizemos da criatividade humana uma ferramenta a serviço da técnica, subjugados, transformamos o saber em coisa a serviço da produção de coisas, de mercadorias. Não há alternativa a não ser for recuperar a importância humana do universo em sua totalidade. Recuperar o prazer nos prazeres, naquilo que naturalmente desperta nossos sentidos, nossos afetos e emoções, que estimula nosso imaginário, que valoriza a nossa inocência hoje subjugada.
Esse modelo de sociedade se mostra insustentável e se quisermos adiar o fim necessitamos iluminar o início! Pra ir adiante é preciso retomar a memória da estrada. Sentir o nosso povo, nossa tradição, nossa identidade. Dar voz a nossa memória, reencontrar com o Ser que habita o nosso imaginário coletivo tão ofuscado pelos tempos de modernidade individualista, neoliberal, principalmente em um momento de avanço do obscurantismo e da negação dos saberes ancestrais e científicos. É preciso retornar para dentro de nós, cruzar o deserto de vazios, ampliar os horizontes da existência. Essa a caminhada deve ser ultrapassada coletivamente. É preciso ouvir o cerrado, experimentar o sabor do chão, o sal da terra, o pó que sedimenta as estruturas do nosso Ser tão humano. O sertão de Guimarães. Provar o pó, os pães, as diferentes opiniães!
A cultura nos une! A arte está nos mantendo vivos!
(Publicado originalmente no site Outras Palavras)
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Anacronismo e outros erros


Anacronismo e outros erros

(Reprodução)

“Surge então a pergunta: se a fantasia funciona como realidade; se não conseguimos agir senão mutilando o nosso eu; se o que há de mais profundo em nós é no fim das contas a opinião dos outros; se estamos condenados a não atingir o que nos parece realmente mais valioso, qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado? Machado de Assis passou a vida ilustrando esta pergunta (…).”
Antonio Candido, Esquema de Machado de Assis
Uma das lições dessa quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus é que o medo e o tédio podem nos habitar quase ao mesmo tempo. Às vezes a alternância entre o pavor da morte e o marasmo do confinamento se passa no ritmo dos segundos. O noticiário de televisão intensifica essas emoções. Não apenas devido ao constante aumento do número de cadáveres que vemos nas estatísticas, mas sobretudo pelas explicações apresentadas: “não há leitos de UTI no Rio de Janeiro”, “os respiradores comprados pelo governo não funcionam”, “não existem equipamentos para os profissionais de saúde em Manaus”, “as pessoas não estão obedecendo ao distanciamento social”. As frases estão mais vazias do que as ruas. Mesmo aquelas que trocamos com os amigos mais queridos num chat qualquer pois nos falta um rosto em que se possa tocar. Faltam os olhos nos olhos e permanece o desejo de algo que nos roube, ainda que por alguns instantes, da sucessões do medo e do tédio.
Essa dificuldade tem levado várias pessoas a curtir a nova onda das lives. A experiência da simultaneidade, seja com artistas famosos, amigos, parentes e namorados abafa um pouco da solidão num mundo que já consegue chamar de “eu” o perfil no Facebook ou no Instagram. Outra alternativa para relaxar são as plataformas de filmes. O capital tem sido generoso com aqueles que possuem internet de banda larga, realiza promoções de diversos tipos e faculta acessos gratuitos hoje, mirando os futuros pagantes de amanhã. Por outro lado, sempre existe aquele livro que permaneceu intocado por anos mas agora encontrou a sua chance em meio a peste.
No meu caso, a coleção das obras completas de Machado de Assis eram os volumes mais atraentes da estante. Difícil era saber por qual deles começar. Romances e contos, mesmo na prosa dos grandes escritores, podem descambar em alguma forma de marasmo. Uma narrativa longa tem sempre um capítulo mais complicado para se seguir adiante e, por vezes, uma estória, mesmo curta, nos faz emperrar nesta ou naquela frase.  A solução foi o volume quatro dedicado às crônicas. Uma leitura em que as ansiedades dessa quarentena podiam se diluir na imaginação perdida nas atualidades de outros tempos. Os últimos acontecimentos vinham da peça A história de uma moça rica, o concerto musical Mosqueteiros da rainha e fatos inusitados como o aparecimento de uma baleia nas praias de Copacabana, então uma região de pescadores. Mesmo coisas tristes como a morte prematura do poeta Casimiro de Abreu não eram doloridas pois toda gente de hoje sabe que o passado, se foi também um futuro incerto aos homens e mulheres de outrora, agora é parte indelével de seu destino.
Talvez tenha sido essa constatação que logo na terceira manhã de leituras, precisamente nos Comentários da Semana de 1º de Novembro de 1861, destruiu toda a minha esperança de alienação do presente. De certa maneira, meio sibilina, Machado havia me alertado para o problema no dia anterior quando informou: “falei de esperanças abertas em flor; falarei de esperanças mortas também em flor”. Mas poucos suspeitam da verdade quando esta lhes é desagradável e ainda nas primeiras linhas começou a surgir, frase depois de frase, a descrição do Brasil de nossos dias. Não falo do “Brasil contemporâneo”, no sentido abrangente que encontramos em Caio Prado Jr., mas do Brasil atual, o país da semana passada, com pandemia e tudo:
O que há de política? É a pergunta que naturalmente ocorre a todos, e a que me fará o meu leitor, se não é ministro. O silêncio é a resposta. Não há nada, absolutamente nada. (…) O que dá razão a este marasmo? Causas Gerais e causas especiais. Foi sempre princípio do nosso governo aquele fatalismo que entrega os povos orientais de mãos atadas com o destino. O que há de vir, há de vir, dizem muitos ministros, que, além de acharem o sistema cômodo, por amor da indolência própria, querem pôr culpa dos maus acontecimentos nas costas da entidade invisível  e misteriosa, a que atribuem a tudo.
O princípio fatalista de nossos governos… palavras nas quais se lê sobre o atual presidente, no último sábado, em um jet ski, explicando aos apoiadores, gente do setor de aviação chateada com a baixa no movimento: “é uma neurose (as medidas de distanciamento social), 70% vai pegar o vírus, não tem como…”. Por “vírus” entenda-se “a entidade invisível e misteriosa” a que se atribui a causa de todos os maus acontecimentos. “Não há política” e os brasileiros estão desamparados das instituições competentes em meio a maior crise mundial da saúde pública. Pena mesmo é serem frouxos os laços que, segundo Machado, nos prendem a sina dos povos orientais, posto que fazem muita falta os respiradores da China.
De qualquer maneira, voltemos às últimas notas da semana passada, expostas pelo autor. Não houve maior prova de “amor à indolência própria” que aquela dada por Regina Duarte, ministra da cultura, quando interrogada sobre as consequências da ditadura para cultura brasileira e a ausência de auxílios governamentais aos artistas sem emprego devido ao avanço da Covid-19. Primeiro ela dançou e cantou: “pra frente Brasil, salve a seleção, não era bom quando a gente podia cantar essa música”. Sobre as pessoas que morreram nos porões do DOPS afirmou: “na humanidade não para de morrer [pessoas], se você fala vida, do lado tem morte (…) tortura, sempre houve tortura (…) Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas”. Gente assim, narra o cronista, “dorme à noite com a paz na consciência, uma vez que de manhã tenha assinado o ponto na secretaria”. E meditando sobre esse sono dos justos realizou uma grande descoberta:
Está dada a razão por que [este governo] subiu no meio das antífonas e das orações dos amigos, apesar do travão de fel com que alguns quiseram fazer-lhe amargar a taça do poder. Diziam estes: “É um Ministério medíocre”; mas, por Deus, por isso mesmo é que é sublime! Em nosso país a vulgaridade é um título, a mediocridade um brasão; para os que tem a fortuna de não se alarem além de uma esfera comum é que nos fornos do Estado se coze e tosta o apetitoso pão de ló, que é depois repartido por eles, para a glória de Deus e da pátria.
“Brasil acima de tudo, Deus acima todos”. A mediocridade é um brasão. A vulgaridade é um título. Mas brasões e títulos de verdade sem que haja razão em amargar com fel a taça do poder. Explico melhor este grande achado do cronista: se você mora em um país onde o secretário da pesca vem lhe explicar que os peixes são inteligentes e escapam por si próprios dos acidentes ambientais, como fez o senhor Jorge Seif Junior, é porque a vulgaridade trocou de sinais. Não pertence mais ao pólo negativo dos valores.  É boa, bela e verdadeira. Parte inseparável da própria realidade. É como um hospital de referência com leitos de UTI vazios em plena pandemia. Justo o que se passa na zona norte do Rio de Janeiro, no Hospital Federal de Bonsucesso. Daí que nosso autor, sempre realista, flagre nessa transvaloração brasileira dos valores a existência de “um sentimento de caridade, ou direi mesmo, um princípio de equidade e justiça. Por toda parte cabem as regalias às inteligências que se aferem por um padrão superior; é bem que os que não se acham neste caso tenham o seu quinhão em qualquer ponto da terra”.
No dia seguinte àquela leitura perturbadora o país havia enterrado mais de 11 mil vítimas da Covid-19 e voltei uma vez mais para a fatídica crônica. No trecho final, que escapou a minha atenção na manhã anterior, julguei adivinhar novos comentários sobre os dirigentes da nação: “esse povo, que vive no requinte dos prazeres materiais, só entende o que lhe fala aos sentidos, e considera bem-aventurados os que morreram, que já gozam ou estão perto de gozar os prazeres prometidos pelo profeta”. Todavia, neste ponto, Machado de Assis não se referia ao Brasil, mas aos costumes religiosos dos povos orientais na Turquia.
Matheus Gato é professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Membro do Núcleo Afro/CEBRAP. Autor do livro O Massacre do Libertos: sobre raça e república no Brasil.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Laerte via Folha de São Paulo

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quinta-feira, 14 de maio de 2020

Editorial: O dia depois do coronavírus: O mundo do trabalho II


    • Coronavírus: 7 tendências para o mundo pós-pandemia - Época ...




    Há, naturalmente, uma grande apreensão mundial em torno da pandemia provocada pelo coronavírus. No Brasil, esta pandemia avança exponencialmente, sem que tenhamos, até o momento, soluções concretas para o seu enfrentamento, exceto, talvez, pelas medidas restritivas de contato social, aplicadas com o propósito de impedir a propagação do vírus. Mesmo assim, enquanto no resto do mundo existe uma crise econômica e de saúde publica, aqui enfrentamos um outro problema, que apenas se agrava, como se a pandemia já não fosse suficiente para direcionar todas as ações de governo: uma crise política que, em última análise, sabota as possíveis ações mais consequentes para o enfrentamento do problema. 

    Em meio a esse turbilhão, no entanto, vão surgindo reflexões em torno de como seria o dia depois do coronavírus ou, em outras palavras, como seria a volta à normalidade. "Normalidade" sempre entre aspas, uma vez que foi exatamente essa "normalidade" que nos conduziu a tudo isso que estamos enfrentando. O bordão mais invocado é o nada será como antes. Será? Conforme havíamos prometido aos nossos leitores, estamos dando continuidade a série de editoriais com o objetivo de discutir a sociedade do pós-coronavírus em seus diversos aspectos, entre os quais os novos padrões de relação entre capital e trabalho, partindo de alguns pressupostos anteriores até mesmo a chegada do coronavírus, onde estava em curso bastante avançado um processo de consolidação de um capitalismo ultraliberal, onde o Estado tornou-se apenas um instrumento dessa lógica acumulativa do capital, com consequências nefastas para os trabalhadores e trabalhadoras. 

    A lógica perversa pode ser resumida no axioma do lucro sem ônus, ou seja a situação ideal para o capitalismo, onde o trabalho represente lucro efetivo e que os trabalhadores não tenha alguma garantia e possam ser descartados sem ônus, sempre que a perspectiva acumulativa do capital esteja ameaçada. Não é preciso ser nenhum especialista em relações de trabalho para compreender ou dimensionar as perdas gigantescas dos direitos e garantias dos trabalhadores ao longo desses últimos anos, principalmente em países de economia periférica como o Brasil, com uma elite econômica forjada no imaginário escravocrata. 

    Conforme havíamos prometido no editorial anterior, com base num texto de João Marques Albuquerque, publicado no site Outras Palavras, vamos abordar a questão dos trabalhadores essenciais, um tema muito em voga, como consequência dos problemas surgidos com a pandemia do coronavírus, que contingenciou alguns profissionais ao trabalho através do sistema de home office, a partir do seu próprio lar, como o nome sugere, enquanto outras categorias tiveram que se submeter à labuta diária, em razão da especificidade de suas atividades. Lá fora, no front, expostos aos vírus, por diversos motivos, estão aqueles trabalhadores ditos essenciais, como os trabalhadores que se dedicam as atividades nas áreas de segurança, transporte, entregadores de empresas de aplicativos, trabalhadores de supermercados, entre outros. 

    A narrativa discursiva dominante - sobretudo em determinados grupos sociais - diria que, estes últimos são, de fato, os ditos trabalhadores essenciais e não aqueles que tiveram o privilégio de ficar em seus lares, trabalhando remotamente e acompanhando suas séries preferidas na Netflix, numa frequência acima do habitual. Trazendo algumas variáveis intervenientes a essa debate, João Marques Albuquerque - num texto que gostaríamos de externar nossos elogios - remonta ao conceito histórico-filosófico de essencialidade, a partir de filósofos clássicos e contemporâneos, para problematizar, à luz das subjetividades do capital, quem seria, de fato, esses trabalhadores essenciais, se você que ficou protegido em sua redoma ou aqueles que se expuseram ao vírus cotidianamente, os corpos descartáveis. Observa João Marques que, curiosamente, o primeiro caso registrado de morte pelo coronavírus no Estado do Rio de Janeiro foi o de uma empregada doméstica que contraiu o vírus de sua patroa, recém chegada de uma viagem à Itália. Embora um fato isolado, não deixa de ser emblemático, como sugere o autor. O autor não envereda por essa seara, mas, nesses tempos de pandemia, as reflexões do filósofo francês, Michel Foucault, notadamente sobre a Bio-política e o Bio-poder voltam com muito fôlego às mesas de discussões. Ou teorias mais recentes, mas que beberam nessa fonte, como a necropolítica.

terça-feira, 5 de maio de 2020

Michel Zaidan Filho: Herança Sarda

  •  
    No dia  27 de abril  de 1937, morria um dos   pensadores mais originais da rica e diversificada cultura política marxista , Antonio Gramsci.  Oriundo  da Sardenha (Itália), Gramsci tornou-se cidadão brasileiro nos 70 e 80 pelas mãos do ensaísta e tradutor baiano   Carlos Nelson Coutinho, tradutor e introdutor de sua obra no Brasil (os "cadernos de Cárcere"). Como Walter Benjamin, foi mais uma vítima do nazi-fascismo e escreveu  em condições adversas, preso nos cárceres de Mussolini , de onde só sairia para morrer de tuberculose. Este grande pensador italiano foi um dos fundadores do partido Comunista de seu país, membro do Comité Executivo da internacional Comunista  e Deputado no Parlamento italiano. Contudo, nada disso se iguala à originalidade de seu pensamento político.   Chamado de "o Lenine europeu" , Gramsci inovou - como ninguém - a estratégia revolucionária para a conquista do socialismo no Ocidente, ao propor uma inversão da chamada "guerra de movimento" pela "guerra de posição" e colocou em primeiro plano- a luta pelo hegemonia.
    Houve muita controvérsia sobre a influencia leninista  (e até mesmo marxiana) sobre o pensamento gramsciano. Ele era ou não leninista!  - Discussão sectária e dogmática que ignorou o rico legado de uma trajetória de muitas fases . Como, ailás, a própria carreira de Lenine, ora apontado como conselheirista ora como homem de partido . O fato é que Antonio Gramsci foi, ao lado de Rosa Luxemburgo   e os austro marxistas, um adepto da republica dos conselhos, da organização de base dos operários, e um crítico do determinismo econômico    que ele via em sua primeira leitura de O Capital. A primeira fase da     carreira política de Gramsci é caracterizada pela veemente defesa dos "conselhos de fábrica"  de Turim: e a fase do jornal turinense "L ordine nuevo"  . Existe aí a manifestação de um voluntarismo político muito grande, que corre a par de seu otimismo com a revolta dos operários turineses. Com a derrota e o refluxo desse movimento, surge a reflexão sobre a indispensável aliança com os camponeses do "Mezzogiorno", a Itália rural e atrasada.   A mesma lição aprendida a duras penas pelos "comunards"   parisienses le em Turim: sozinhos e isolados, não se faz revolução.
    Esse aprendizado o levou a descobrir o "príncipe moderno" - o partido de novo tipo. Bom, aí estamos no domínio do leninismo propriamente dito, como antes parecia que a influencia anarquista (Amadeu Bordiga) orientava o jovem Gramsci. A teorização do partido, como intelectual coletivo, dotado de um centralismo orgânico e capaz de elaborar uma "cultura nacional-popular"  e levá-la às massas caracterizou essa nova fase do pensamento de Gramsci. O partido passou a ser o mediador, por excelência, daquilo que ele intitulou "a catarse" revolucionária do pensamento dos simples numa visão de mundo coerente  e sistemática. Sob este aspecto, o teórico sardo pode ser chamado de "leninista". Sua valorização da mediação partidária faz de s i  um partidário daquele "jacobinismo aferrado à disciplina do partido", criticada por Rosa Luxemburgo, em sua discussão com Lenine. E Gramsci foi um intelectual partidário. Primeiro no PSI, depois como um dos fundadores do PCI.

    Mas a descoberta do "novo príncipe" não estaria completa sem a nova estratégia revolucionária para a conquista do socialismo nas sociedades ocidentais. Aqui, entramos no coração da originalidade gramsciana,:a noção de Hegemonia (resumidamente descrita como a soma de coerção + persuasão), força e consentimento, estado e sociedade civil. A noção de "hegemonia" não era nova no marxismo-leninismo da 3a Internacional Comunista. Lenine a tomara de empréstimo de Clausenvitz, na sua "Arte da Guerra". A palavra sempre teve forte acepção militar. Mas Gramsci lhe confere um novo conteúdo: consentimento ativo dos dirigidos à liderança de um chefe.Claro, esta operação não teria sido possível sem a rica contribuição da cultura política e filosófica italiana: o paradigma da história ético-política, de Benedito Crocce. A idéia do bloco histórico, dos intelectuais como funcionários da superestrutura  etcetera.

    Essa inovação teórica e revolucionária conduziu Gramsci a  reconhecer o valor da indigitada "sociedade civil" e seus "aparelhos privados de hegemonia" (a escola, a igreja, as academias científicas, os jornais) como elementos fundamentais para a conquista do socialismo em sociedades de massa, como as ocidentais. E que antes da conquista do poder político, era necessário conquistar a hegemonia: o coração e as mentes das pessoas. É preciso advertir que para ele "hegemonia" nunca foi sinônimo de "dominação". Embora ajudasse a consolidar um projeto de poder por um longo  tempo.
    E aqui, gostaria de puxar a conversa para o Brasil. Como disse no início, Antonio Gramsci tornou-se cidadão brasileiro através de seu tradutor, Carlos Nelson Coutinho, no bojo de uma luta interna no Partido Comunista  Brasileiro, defendendo uma estratégia democrática radical para o fim da ditadura militar e a luta pela conquista  do  socialismo. No entanto, seu pensamento foi logo apropriado pela academia universitária no sentido de se estudar a chamada "cultura popular", Como um teórico da superestrutura, Gramsci trata da cultura dos simples, sua ideologia, suas formas de pensamento (materialismo histórico e a filosofia de Benedito Crocce).

    Nesta obra, ele  estuda o senso comum, o bom senso, a religião e as visões de mundo tradicionais. O teórico italiano manifesta uma particular forma de valorização do senso comum e da visão de mundo das classes subalternas, mas sublinha que esta visão é produto de um amalgama de variados  traços - vindos de fora - que se imprimem no imaginário dessas classes, produzindo uma ideologia acrítica, eclética e assistemática. Sendo, portanto, o papel dos intelectuais progressistas  e do partido político fazer  a necessária depuração dessa mixagem ideológica, ajudando as pessoas a sistematizarem e darem coerência ao seu pensamento. A  essa  nova forma de pensar, ele dá o nome de "cultura nacional-popular" e  ela varia de conteúdo, no âmbito das inúmeras revoluções burguesa s e populares ao longo da História.
    Sobre este aspecto, nos interessa sobretudo a ideia de usar os conceitos gramscianos para o estudo da cultura popular no Brasil, E, neste particular, tanto poderiam  ser as religiões populares, como os folguedos e brincadeiras carnavalescas, como os Maracatus. Que dizer dessa apropriação dos conceitos gramscianos! Em primeiro lugar, que hegemonia  não é sinônimo de dominação, dominação ideológica, do tipo que a indústria cultural moderna opera com o imaginário das pessoas. Segundo, os potenciais críticos, subversivos ou utópicos presentes nessas manifestações precisam ser submetidos a" uma hermenêutica da suspeição", ou seja, eles aparecem mesclados com elementos da tradição e precisam  passar por um processo de decantação ideológica, para que sejam devidamente aproveitados na construção de uma nova visão de mundo. Aí, o trabalho dos intelectuais "orgânicos" (não necessariamente acadêmicos), aqueles ligados aos movimentos de massa, é muito importante. Gramsci , como leninista de novo tipo, evita prescrever uma postura autoritária, diretiva e autossuficiente para essa pedagogia política. Acredita num movimento de reciprocidade e revezamento entre as bases e a direção do partido ou do movimento ("centralismo orgânico"). De todo maneira, seria conveniente não taxar de saída o pensamento dos simples como retrgrado ou atrasado. Ou cortejar simplesmente essa forma de pensamento como  sábia r revolucionária. Acho que Antonio Gramsci fica a meio termo.
    .
    Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Editorial: O dia depois do coronavírus - O mundo do trabalho I

terça-feira, 28 de abril de 2020

Castells: A hora do Grande Reset


Nem a Ciência pode nos salvar da barbárie ultraliberal. Sobreviver como espécie exigirá uma “reencarnação coletiva” no mundo pós-pandemia: novas formas de viver, pensar e organizar a Economia. É isso, ou nostalgia masoquista


Por Manuel Castells | Tradução: Simone Paz | Imagem:
Alessandro Gottardo
Nunca imaginamos isso. Ninguém imaginou. E ainda parece um pesadelo do qual vamos acordar ao amanhecer. É claro que, algum dia, vai acabar. Quanto mais nos ajudarmos entre todos, mais cedo vai acabar. E isso inclui todos aqueles que tiram proveito da tragédia em prol de seus interesses. Deixemos de lado nossas diferenças, já já acertaremos as contas.
Nunca tínhamos enfrentado uma ameaça do tipo, nem sequer com a gripe de 1918, porque, hoje em dia, a globalização e a trama de economias, culturas e pessoas têm uma repercussão em tempo real para qualquer barbaridade cometida em qualquer canto do planeta, como aconteceu com os mercados de espécies selvagens. Humanos predadores, se protejam de vocês mesmos. Nem nossos extraordinários avanços científicos e tecnológicos conseguem nos salvar da nossa imensa estupidez. Por isso, se sobrevivermos, não voltaremos ao mesmo. E, se voltarmos, a pandemia vai retornar, a mesma ou outras, até que ocorra um reset daquilo que éramos.
Só existe futuro se pensarmos numa reencarnação coletiva da nossa espécie. Isso não tem nada a ver com o mofado debate ideológico entre capitalismo e socialismo, porque até o socialismo real e palpável também já teve sua vez. Falamos em mudança de paradigmas. E algo do tipo está acontecendo. Por exemplo, essa pandemia deve deixar claro que a saúde, incluindo a higiene pública e a saúde preventiva, é nossa infraestrutura de vida. E que não vamos poder viver apoiados de forma permanente no heroísmo de profissionais da saúde, que adoecem dia após dia por falta de equipamentos de proteção.
+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir alternativas ainda mais intensamente. Para isso, precisamos de recursos: a partir de 15 reais por mês você pode fazer parte de nossa rede. Veja como participar >>>
Teremos de investir, com prioridade, na saúde pública, porque a particular serve para aquele que serve — e, em situações de emergência, deve ser absorvida pela pública. Esse investimento é quantitativo e qualitativo, em termos de materiais, aparelhos hospitalares, atenção primária, educação à população, pesquisa, remuneração dos sanitaristas e formação de médicos, enfermeiros e profissionais da saúde, de modo geral, com faculdades e escolas melhor preparadas para acolher um grande leque de vocações para o serviço
Fica evidente, agora, para além do sistema de saúde, a necessária prioridade do setor público na organização da economia e da sociedade. E não se trata de estatizar, porque cada fórmula de defesa do interesse público deve se adaptar às características de cada sociedade. Da mesma forma que a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial exigiram romper com o fundamentalismo do mercado para proteger os direitos sociais e a vida, de modo geral, mas conservando o dinamismo do mercado para tudo o que é útil. Da mesma forma, torna-se necessário revitalizar o setor público e reformá-lo, livrando-o da burocracia e da politicagem.
Por exemplo, pudemos constatar a hipocrisia social e institucional no âmbito do respeito aos idosos, que são abandonados em situações extremamente precárias quando as famílias não conseguem mais tomar conta deles. Em parte, pela privatização das casas de repouso, o que demonstra que a lógica de ambição não combina com cuidados que são caros em funcionários e equipamentos. Mas, também, nas casas de repouso públicas, pois os cortes orçamentários e a negligência de muitas instituições acabaram abandonando nossos idosos à sua própria sorte, como vimos no altíssimo número de mortes registradas nesses autênticos campos de extermínio, durante a pandemia. Somente uma grande intervenção — não somente em gastos, mas em gestão — pode evitar que isso ocorra novamente.
A pergunta imediata é: como pagar. É evidente que com novos impostos e com um aumento da produtividade. Não temos outra opção. Mas isso não quer dizer mais impostos para as pessoas, e sim, obter recursos lá onde se concentra o 75% da riqueza mundial, isto é, dos mercados financeiros globais e as grandes multinacionais que evadem impostos legalmente, precisamente, graças à sua mobilidade fiscal e administração da papelada jurídica. Aplicando, também, o aumento da produtividade, que envolve recursos humanos, isto é, setor público; ciência (de novo, setor público); infraestrutura tecnológica (parcerias público-privadas); e a transformação empresarial por meio da aplicação de novos conhecimentos e tecnologia na gestão das empresas. Além disso, deve-se adentrar o complexo território da produtividade e eficiência do setor produtivo, desde a administração, até a educação.
Porém, o maior reset, é aquele que está acontecendo em nossas cabeças e vidas. É termos percebido a fragilidade de tudo o que acreditávamos garantido, da importância dos afetos, do recurso da solidariedade, da importância do abraço — e que ninguém vai nos tirar, porque mais vale morrer abraçados do que viver atemorizados. É sentir que o desperdício consumista no qual gastamos erroneamente nossos recursos não é necessário, pois não precisamos mais do que uns comes e bebes com os amigos na varanda. Sabiam que as escandalosas transferências multimilionárias do mundo do futebol acabaram? E não por isso os Messi do mundo vão parar de jogar, porque o futebol corre pelas veias deles.
O reset necessário é um portal para uma nova forma de vida, outra cultura, outra economia. É bom que o valorizemos, pois a alternativa a ele é a nostalgia masoquista de um mundo que se foi para não voltar. A vida segue, mas outra vida. Depende de nós torná-la maravilhosa.

(Publicado originalmente no site Outras Palavras)

Salário e democracia

  Tarso de Melo 

Salário e democracia
Entrega de cestas básicas em São Sebastião, DF (Foto: Acacio Pinheiro/Agência Brasília)

Se a jornada de trabalho é a medida da troca entre capital e trabalho, o salário era o preço das horas compradas ao trabalhador, mas, historicamente, no desenvolvimento da legislação social, foi sendo cercado de proteção especial, para ficar menos sujeito às vontades do patrão e aos ventos do negócio. Assim como se conquistou, a duras lutas, a limitação da jornada, intervalos, descansos semanais, a proteção do trabalhador incorporou várias medidas relativas à remuneração, como salário mínimo nacional, piso salarial por categoria, equiparação salarial por cargo e função, multas para atraso, irredutibilidade, impenhorabilidade etc.
Já vem de alguns anos a pressão para vulnerabilizar o salário, permitindo que se torne tão precário quanto têm-se tornado outros aspectos do contrato de trabalho, mas, neste momento de crise aguda, a sanha para avançar sobre os salários tem sido persistente e, em grande medida, vencedora.
Quando o governo falou em auxílio de R$ 200 para trabalhadores informais, a primeira e triste constatação que me veio à mente é de que essa proposta escancarava que essa figura do “empreendedor”, do “patrão de si mesmo”, era alguém para quem o salário mínimo não valia. Num gesto apenas, cuja natureza não se altera quando o valor passa para R$ 600, nossos governantes reconheceram que, para o trabalhador informal e/ou “empreendedor”, todo mês começa do zero. Ou pior: abaixo do zero. E, se chegar aos patamares dos assalariados, dos trabalhadores “com carteira assinada”, é por sorte ou “meritocracia”. É a situação de dezenas de milhões de brasileiros: luta diária por sobrevivência, ganhar de dia o que comer à noite, e isso explica, em parte, o apoio de grande parte da população ao relaxamento da quarentena.
De outro lado, noutro gesto ainda mais violento, o governo acenou até mesmo com a suspensão do contrato de trabalho sem salários, mas teve que voltar atrás. Pegou mal, digamos. Mas, depois de muitas idas e vindas, conseguiu passar a atual MP 936, que autoriza a redução em até 70% dos salários, com compensação proporcional pelo seguro-desemprego. Na prática, os trabalhadores formais vão receber, no período, um pouco mais da metade dos seus rendimentos mensais.
É cada vez mais comum ouvir pessoas próximas dizendo que terão cortes de salários, mesmo em empresas que não passam por qualquer tipo de crise, empresas que ganham muito dinheiro há muitas gerações e continuam tendo seus contratos mantidos neste momento. Ou seja, soma-se à crise (geral) um oportunismo (específico) para reduzir salários que já vinham sendo achatados há bastante tempo.
Tenho certeza de que muitas empresas passam por grandes dificuldades neste momento, mas, a meu ver, demissões e cortes de salários deveriam ser colocados como a última fronteira, obrigando nossos criativos economistas a encontrarem soluções que salvassem as empresas e os empregos, sem sacrificar nenhum centavo destes.
Como já escrevi noutra oportunidade, essa redução dos salários formais é ainda mais terrível num momento em que o salário é apenas uma parte da renda de grande parte das famílias, ou seja, a parte que poderia dar alguma sustentação enquanto a renda informal mingua. É algo muito grave a ser enfrentado neste momento (mas sei que é quase impossível enfrentar, seja na esfera pessoal ou politicamente), mas muito grave também como horizonte para os trabalhadores assalariados e para o papel que o salário representa nas famílias e na sociedade como um todo.
Penso mesmo que um dos piores filhotes que essa pandemia pode deixar aqui, para o mundo do trabalho, é a naturalização de cortes e reduções de salário – algo com que o capital sempre sonhou e agora tem boas chances de implantar e perpetuar.
Tem horas em que achamos que todas as instituições detestam Bolsonaro, mas é importante notar como, na maior parte do seu projeto de destruição de direitos sociais (encabeçado pelo ministro Paulo Guedes), as instituições – o Congresso e o STF, notadamente – continuam aliadas do bolsonarismo. Portanto, não basta Bolsonaro cair, com a ameaça que ele representa à democracia, mas tem que ser varrido junto com todos os ataques à justiça social que seu governo realiza e outros tantos para os quais um governo ocupado com tantas crises internas é conveniente. Se ele cair e essas medidas ficarem, teremos uma democracia formal igualmente capenga, em que se pode até ter voz, mas ninguém grita. Porque a barriga está vazia.
Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Editorial: O dia depois do coronavírus