Por Alyson Freire e Carlos Eduardo Freitas
Os concursos para a universidade transformam-se, muitas vezes, em profundas fontes de mal-estar institucional e pessoal. As realidades políticas de alguns departamentos convertem o que deveria ser um processo meritocrático de seleção em uma verdadeira guerra por quadros para aumentar fileiras e reforçar posições na correlação de forças departamentais. A entrada docente nas universidades é um verdadeiro campo de luta em que grupos de professores se debatem para determinar as condições e critérios de pertencimento e de hierarquia legítimos. Nesse sentido, cada aspecto do processo de seleção, dos pré-requisitos do edital, a formação da banca, a escolha dos temas até o sistema de critérios “implícitos” , constitui objeto de intensa disputa política em que projetos e visões de mundo se chocam, o que é, a priori, perfeitamente legítimo e salutar. Porém, em alguns casos, lamentavelmente, os projetos e visões dizem mais respeito às divergências pessoais e de poder do que a coisas de natureza acadêmica, institucional e teórica.
Sob a pressão de contextos altamente polarizados por razões extraintelectuais e inflacionado de rancores, em que as disputas internas de poder e vaidades sobrepujam ideais de convivência democrática e normas legais e meritocráticas, a fórmula de concurso em que o departamento controla quase que inteiramente os rumos do processo mostra-se, a nosso ver, bastante desgastada, problemática e predisposta à equívocos, violências institucionais, injustiças e a produção de mais tensão, animosidade e ressentimento entre professores e candidatos. Este é o caso no qual está imerso o concurso para Ciência Política da UFRN.
A atual fórmula de seleção controlada pelos Departamentos se esgotou em termos de sua legitimidade social e tem transformado a universidade em uma fábrica de rancores e adoecimento emocional. E, nesse sentido, conduz a imagem da própria universidade, uma instituição cuja profissão de fé é a exemplaridade, o amor ao saber e ao mérito, ao desgaste e à constante suspeita, arrastando também a honra e reputação de profissionais íntegros que se veem tragados por esse redemoinho de intrigas.
Rebaixando o que já está rebaixado
Por conta de “denúncias”, realizadas por um professor do Departamento de Ciências Sociais, o concurso para Ciência Política da UFRN tomou o rumo da polêmica. E na polêmica, como já havia dito o filósofo Michel Foucault, o que se desenrola não é uma ética da discussão orientada pela busca conjunta por uma verdade relevante e difícil, mas uma moral de extermínio do adversário. É exatamente isto o que expressam as postagens do dito professor.
Postagem que circula na internet com a denúncia do professor.
Denúncias, aliás, repleta de conteúdos xenófobos, racistas e que visam o assassinato da reputação alheia em que, de maneira precipitada antes do fim do certame, a integridade pessoal de profissionais é colocada em xeque e manchada com insultos baixos e mesquinhos por conta de supostos privilégios a determinados candidatos. Tal não se coaduna com o comportamento esperado e digno de qualquer docente, e que, em certa medida, ilustra porque o curso de Ciências Sociais da UFRN, seja sua graduação ou pós, encontra-se tão mal avaliado por estudantes e por institutos de avaliação – como esperar equilíbrio e excelência de um programa de pós-graduação se o seu próprio coordenador age com desequilíbrio e distribui ofensas contra os seus pares? Na arte de viver (e na morada do saber), não há nobreza em quem não governa a si mesmo! Sob o espírito da polêmica e do ressentimento não existe crítica honesta. As “denúncias” do professor personalizam, atacando a honra e dignidade pessoal de maneira generalizante e inadvertida toda banca, um problema que é, na verdade, estrutural e sistêmico, qual seja: o dispositivo de seleção e a natureza das relações entre os professores.
Se há dúvidas sobre a lisura do processo, que os interessados judicializem o certame, apresentando as devidas provas legais. As ofensas e agressões realizadas, por sua vez, devem ser duramente condenadas, inclusive, a UFRN não deve permanecer neutra diante das acusações e seu conteúdo discriminatório, um vexame em se tratando de um profissional de Ciências Sociais.
A nosso ver, a crítica que deve ser realizada contra este concurso, além da destacada acima, deve se centrar em dois pontos principais: primeiro, nos critérios de composição da banca e no espectro restrito de temas escolhidos para avaliar o desempenho dos candidatos nas provas. No concurso em questão, não tivemos espelhado a diversidade teórica e metodológica da Ciência Política nem na formação da banca nem nos temas. Por que os professores do DCS não priorizaram o pluralismo teórico? Este, certamente, é um ponto sobre o qual se deve insistir e questionar porque a universidade, especialmente no âmbito das Ciências Sociais, notadamente um campo de saber multiparadigmático, deve se pautar pelo pluralismo e diversidade do pensamento – o expediente de convidar membros externos serve exatamente para garantir isso, e, como podemos ver na banca em questão, tal não foi feito.
No entanto, o monismo teórico ou a predileção por determinadas correntes de pensamento não constituem crimes nem, muito menos, permite ilações sobre o caráter das pessoas. Em outras palavras, abraçar uma corrente teórica e política não é sinônimo de desonestidade intelectual, que faria, inevitavelmente, seus autores, privilegiar candidatos alinhados a sua linha teórica ou ideológica. O próprio resultado final do concurso mostra, em franca contradição às acusações apressadas, que a banca seguiu critérios de desempenho na escolha dos candidatos aprovados. O problema está na suspeita e dúvida que tal monismo levanta e nas vantagens de partidas que candidatos com maior afinidade teórica irão ter na prova escrita. Nada disso impediu que se deflagrasse o “escândalo” e o mal-estar presente, porque as causas são mais profundas e as forças em questão ultrapassam a integridade e as intenções dos indivíduos. Estamos falando de um problema histórico e estrutural por conta das relações estabelecidas e dos dispositivos de seleção instituídos.
Segundo, e mais importante, a crítica deve ser dirigida ao papel que o acirramento das disputas políticas e pessoais nos departamentos tem produzido em termos de consequências sobre a vida acadêmica e sobre os processos que constituem a razão de ser desta – o Departamento de Ciências Sociais da UFRN é um flagrante e triste exemplo do estrago que o acirramento e a disputa incondicional pode produzir, mesmo com a presença e atuação de alguns professores íntegros, vocacionados e compromissados. Esse contexto anômico de relações esgarçadas de desavenças, rancores e luta por poder atravessa praticamente todo processo do concurso em menção, e é em função dele que o comportamento dos atores e as consequências que estamos assistindo ganham sentido, prejudicando até aqueles que se pautaram ética e legalmente na condução do certame. A esfera do debate qualificado sobre a vida acadêmica e o tipo de cultura científica e curso que se almejam fomentar acaba sendo submergida pela cena das acusações e guerras de boatos dos “corredores” e das redes sociais facebookeanas, as quais, aliás, servem apenas para alimentar blogs de abutres sensacionalistas, que publicou informações falsas “confundindo” currículos de candidatos, ou o vitimismo cínico dos concurseiros interessados. Este triste episódio deve servir para universidade e sua comunidade repensar suas relações e seus dispositivos de seleção.
Proposições futuras ou como a universidade pode cultivar o cuidado de si
Diante de tal quadro, urge revisar os dispositivos de seleção para a Academia. Defendemos o fim do monopólio departamental sobre o processo de seleção ou que o poder dos professores internos seja minimizado. Os concursos deveriam ficar à cargo de uma Fundação especializada e independente, seguindo o modelo de instituições como o Judiciário e a Polícia Federal. Esta Fundação ou OS, com efeito, teria, em tese, maior autonomia e distância em face das disputas internas dos departamentos, de modo que a escolha dos membros da banca – composta por quatro nomes sendo três externos e um interno ao departamento em questão – seria de responsabilidade da Fundação que teria em seu banco cadastro de diversos docentes e pesquisadores os quais seriam escolhidos mediante critérios meritocráticos, impessoais e plurais. A própria Fundação poderia exigir dos professores e pesquisadores cadastrados que formulassem questões diversas as quais poderiam ser utilizadas e adaptadas em vários concursos. A banca, por sua vez, teria a liberdade de formular e acrescentar novas questões discursivas para a prova escrita. Sendo ela responsável também, acrescida da presença de um pedagogo, pela avaliação da prova didática.
Evidentemente, esta fórmula não elimina por completo a força dos interesses políticos e subjetivos. No entanto, acreditamos que tornam o seu peso e interferência bem menores. Resulta urgente e cristalino o fato de que a universidade deve rever seus dispositivos de seleção, pois muitos departamentos não conseguem se governar devido as suas próprias desavenças e disputas internas. Em meio às lutas por poder e crenças de prestígio, todos os envolvidos com a vida universitária acabam sendo prejudicados em algum grau. A atual fórmula não é necessariamente viciada e corrupta, mas é extremamente vulnerável e frágil, e, seus resultados nos mais diversos cantos do país, provam sua fragilidade e o quanto ela tem ocasionado mal-estar, fazendo com que os concursos passem a ser cada vez mais judicializados.
Os departamentos tem fracassado sistematicamente em sua autogestão dos processos seletivos. E sua miséria organizacional e ética é a causa principal disso. É preciso enfrentar e promover este debate pelo próprio bem da universidade e de seu papel pedagógico e formador. A autonomia universitária não deve servir de caução ideológico e livre passe para se manipular e decidir, conforme a correlação de forças e interesses estranhos ao concurso e aos candidatos, o futuro, os projetos de vida e o valor das pessoas. O modelo fracassou. É o momento de pensar outro modelo em que o controle dos instrumentos de reprodução do corpo professoral não dependa de maneira tão absoluta das dinâmicas de poder dos departamentos. Dito de outro modo, os instrumentos de seleção docente não podem ser instrumentos e armas de poder para angariar e agraciar candidatos que assegurem a reprodução de grupelhos políticos e teóricos. A universidade não é uma sociedade de corte, portanto, é preciso eliminar os resquícios que a fazem parecer como tal.
Nesse sentido, para preservar a própria legitimidade da universidade e a ideia civilizatória que ela encarna, devemos ser realistas e críticos em relação às práticas acadêmicas vigentes, e, desse modo, reconhecer que elas tem contribuído para a deslegitimação da universidade e seus princípios éticos. Portanto, desde já, agir para prevenir a injustiça, a violência e garantir a lei, a equidade e o mérito.
(Postado originalmente por Carta Potiguar)