Quatro primeiros volumes da ‘Coleção ensaios brasileiros contemporâneos’ reúnem 120 textos de mais de 100 autores brasileiros
O crítico Antonio Candido diz que, desde o Arcadismo, o Brasil possui um “sistema literário”: autores conseguem publicar suas obras, que por sua vez chegam a um público leitor. Da mesma forma, para Francisco Bosco, já se consolidou no país um “sistema ensaístico”, com autores produzindo, editoras dedicadas ao gênero, publicações especializadas e até um espaço considerável na imprensa.
Mas uma das lacunas, segundo ele, sempre foi a falta de um olhar abrangente sobre a produção ensaística brasileira, especialmente sob a forma de antologias. Dessa percepção, nasceu o projeto Coleção ensaios brasileiros contemporâneos, idealizado por Bosco e publicado pela Fundação Nacional das Artes (Funarte). O lançamento dos quatro primeiros volumes acontece nesta quinta (9), no Espaço Cult, em São Paulo.
Os quatro volumes publicados agora são Música, Problemas de gênero, Cidades e Indisciplinares. Juntos, eles reúnem 120 ensaios de mais de 100 autores brasileiros de diversos campos do saber. Somados aos próximos cinco volumes da série, Artes visuais, Filosofia, Literatura, Política e Psicanálise – ainda sem data de lançamento -, a coleção deve reunir quase 300 autores e 28 editores em quatro mil páginas que apresentam ao leitor uma ampla perspectiva da produção ensaística brasileira das últimas décadas.
Segundo Bosco, a intenção é dar ao leitor não-especializado acesso às mais recentes teorias interpretativas da realidade brasileira produzidas nas últimas décadas, além de contribuir para a formação de um público leitor e propiciar uma compreensão mais precisa sobre o valor da produção ensaística brasileira, em seus diversos campos.
“Num país de baixo letramento e onde há uma distância grande entre a produção acadêmica e a cultura, o ensaio parece ser o gênero mais apropriado para tornar acessível a um público mais amplo uma dimensão crítica da realidade, pois ele costuma reunir traços como leveza, elegância, concisão, concretude e compromisso com o prazer da leitura”, afirma o organizador.
Ensaio, espelho do mundo
A coleção foi seu último projeto de Francisco Bosco na presidência da Funarte, órgão do qual se demitiu em maio de 2016, quando Michel Temer assumiu a Presidência da República. “Os presidentes que me sucederam não interferiram no andamento dos trabalhos [da publicação]. A se lamentar, somente a folha de rosto dos livros, que teve de sair com os nomes do presidente golpista e seu ex-ministro golpista.”
Para ele, o ensaio tem se revelado um gênero capaz de aliar profundidade, perspicácia e velocidade, motivo pelo qual muitas das melhores interpretações da realidade instável do Brasil – principalmente no âmbito político – tenham se dado por meio dele.
“A erosão das fronteiras discursivas, a democratização do conhecimento, e até mesmo a maior velocidade de produção, circulação e consumo das ideias (para o bem e para o mal) – tudo isso contribui para que o ensaio seja um gênero bastante contemporâneo, em um sentido menos complexo dessa palavra.”
No dia 31 de agosto de 2016, o Senado brasileiro votou pela destituição da presidenta Dilma Rousseff. A chegada ao poder do vice-presidente, o conservador Michel Temer, coloca a esquerda diante de uma dupla frente de luta: as extravagâncias do Partido dos Trabalhadores abalaram sua credibilidade antes mesmo de a direita partir para a ofensiva
por: Guilherme Boulos
20 de fevereiro de 2017
Após quatro eleições presidenciais vencidas pelo PT desde 2002, as forças conservadoras se reorganizaram para afastar a presidenta Dilma Rousseff e substituí-la pelo vice-presidente Michel Temer. Além de duvidosa no âmbito jurídico,1 a manobra teria sido mais difícil se o PT não houvesse cometido tantos equívocos. O partido renunciou à mobilização popular, costurou repetidas alianças com diversos setores da direita (que mais tarde trabalhariam contra ele) e escolheu responder à crise econômica com medidas de austeridade, correndo o risco de ampliar a insatisfação social.2 Essas decisões não contribuíram para o surgimento de uma reação ampla diante da ofensiva da direita…
Uma vez no poder, Temer não demorou a lançar-se ao trabalho. Sua receita: um liberalismo frenético no plano econômico e um conservadorismo militante no âmbito político. Suas primeiras decisões desenham desde já um capítulo de retrocesso social sem precedentes na história recente do país.
A composição de seu governo deixa claro que diversidade e paridade não estão entre suas prioridades. Nenhuma mulher, nenhum negro: somente homens brancos ligados às oligarquias regionais, muitos sob suspeita de corrupção. Ministérios como de Direitos Humanos e Reforma Agrária desapareceram. Foi por pouco que o novo presidente não desfez também o Ministério da Cultura: voltou atrás depois de uma onda de protestos de um meio artístico menos escandalizado pela supressão de outras pastas.
Se por um lado o programa de Temer tem o apoio do setor bancário e de grandes empresas, por outro jamais foi submetido ao voto. Em encontro com grandes nomes do patronato brasileiro, o novo presidente ainda prometeu que “não seria candidato à reeleição”, antes de ressaltar que isso o deixava com as mãos livres para “dar prioridade ao ajuste orçamentário”.3 Em outros termos, mostrou que manterá sua determinação porque não vai pagar o preço político das medidas impostas à população – que se anunciam severas.
O programa econômico de Temer se organiza em torno de três propostas: a emenda constitucional destinada a criar um teto para os gastos públicos (a PEC 55), a “reforma” da Previdência Social e a “flexibilização” da legislação trabalhista. Todas elas implicam retrocessos de direitos conquistados por fortes lutas sociais.
A hora é de enfrentamento
A PEC 55, aprovada em 13 de dezembro, impõe o congelamento dos investimentos públicos por um período de vinte anos. As despesas federais não podem crescer acima da inflação até 2037; portanto, elas não aumentarão em termos reais, contrariamente à demografia. A medida significa o colapso dos serviços públicos e a morte de programas sociais – sem precedentes em nível internacional. Pretexto evocado pelo poder: urgência de diminuir o déficit orçamentário e reembolsar a dívida pública. Em alta desde 2014, esta representa apenas 66% do PIB, índice inferior ao registrado na União Europeia.
A reforma da Previdência não é menos alarmante. Temer retomou uma ideia avançada por Dilma que já implicava redução de direitos e levou-a ainda mais longe, com a definição da idade mínima para aposentadoria em 65 anos. Em muitas regiões do país, a esperança de vida nem sequer chega a esse patamar.
Terceira ambição: flexibilizar a legislação trabalhista e reduzir o “custo” da mão de obra. Como? Autorizando a terceirização em todos os setores e tornando a negociação patrão-empregados superior à lei (uma medida que pode lembrar aos leitores franceses as disposições da “Lei Trabalho”). Esse último ponto retoma um projeto de lei já em estudo no Congresso, que estabelece a legalização de contratos desvinculados da legislação, desde que sejam negociados entre patrões e empregados.
Esse conjunto de propostas fez as elites econômicas legitimarem o projeto de destituição de Dilma concebido pela direita parlamentar – em relação ao qual estavam hesitantes no início. A presidenta não teria tentado ela mesma apaziguá-los lançando as bases de um ajuste estrutural em 2015 e de uma reforma da Previdência Social? Calculou mal: essas medidas agravaram a recessão e a insatisfação popular, enquanto as empresas e os bancos, de seu lado, julgaram suas medidas insuficientes e preferiram substituí-la por Temer.
A destituição de Dilma marca o fim de um ciclo no Brasil. Durante treze anos, os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e depois os de Dilma trabalharam para reforçar um “arranjo” que consistiu em promover certos avanços sociais e uma melhoria de vida dos mais pobres, sem, contudo, ameaçar os interesses dos mais ricos. A miséria recuou, enquanto os lucros decolaram. Lula foi, assim, o grande arquiteto de uma política de “conciliação”.4
O “setor inferior” da sociedade se beneficiou de políticas de revalorização do salário mínimo, do reforço da capacidade de consumo dos trabalhadores, assim como de programas sociais de luta contra a miséria e a favor do acesso à universidade, moradia e saúde. O “setor superior”, por sua vez, recebeu créditos oferecidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e generosas isenções fiscais. Seus privilégios históricos jamais foram colocados em questão. O sistema tributário, regressivo, não foi modificado, nem o nível de concentração das propriedades rurais e urbanas. O PT manteve – ou melhor, reforçou – a política de redirecionar um excedente primário para garantir o reembolso de uma dívida em grande parte das classes dominantes do país. Jamais contestou o controle do setor privado sobre os meios de comunicação ou tentou erradicar a corrupção, lubrificante do sistema político por ele herdado.5
Esse acordo, apresentado como “ganha-ganha”, não teria sido possível sem crescimento. E ele foi significativo (4% em média durante os dois governos de Lula), notadamente em função de uma situação internacional favorável: alta nos preços de produtos primários e crescimento da China. Esse contexto facilitou o aumento das reservas de divisas do Estado e permitiu aumentar os investimentos sociais sem que fosse preciso passar por reformas estruturais.
Com a crise de 2008 e a mudança do contexto internacional, esse modelo colapsou. Em 2009, a política anticíclica de Lula conseguiu, em um primeiro momento, manter o crescimento e retardar a catástrofe. Mas em 2011, enquanto Dilma dirigia o país, o acordo “ganha-ganha” começou a dar sinais de esgotamento. A margem de manobra para manter a conciliação de interesses tornou-se mais restrita, e a resposta da presidenta – a austeridade – precipitou a crise.
Esta tornou-se flagrante a partir das manifestações de junho de 2013,6 que marcaram o fim do consenso social que assegurava a hegemonia do PT. A operação de luta contra a corrupção “Lava Jato” abalou a imagem do partido e reduziu a capacidade de investimento da Petrobras e outras grandes empresas. A base parlamentar do governo implodiu, e a direita se reorganizou. Impossível, desde então, ignorar a derrocada estratégica do PT e sua crise institucional.
Essa situação coloca a esquerda brasileira e os movimentos sociais diante de novas dificuldades. A derrota do PT atingiu todo o campo progressista, facilitando a ofensiva dos conservadores e dos liberais. Os escândalos de corrupção abalaram fortemente a autoridade moral daqueles que encarnam a esquerda aos olhos da população. E a incapacidade do partido de realizar uma autocrítica real ou reconhecer o esgotamento de sua estratégia agrava a crise.
O PT foi a força hegemônica da esquerda brasileira durante 35 anos. Representou o lugar onde se reuniam as forças do movimento social e as de setores progressistas. Hoje, a capacidade de desempenhar esse papel está enfraquecida. Isso não significa morte, como pretendem os editorialistas. Lula ainda é a principal liderança política do país e está à frente nas pesquisas para eleições presidenciais, apesar do linchamento jurídico-midiático que tem sofrido. Mas o partido perdeu muito de seu dinamismo e de sua capacidade de mobilização. Envelheceu.
Como a esquerda vai reagir, na medida em que não apareceu ainda nenhuma força capaz de ocupar o espaço deixado pelo PT? Observam-se, sem dúvida, resistências importantes, notadamente contra a PEC 55 e a corrupção de dirigentes políticos – o presidente do Senado, Renan Calheiros, tornou-se réu acusado de desvio de fundos públicos, julgamento que jogou lenha na fogueira da cólera popular. Os sem-teto realizaram grandes mobilizações em centros urbanos. No plano político-partidário, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol), apesar de minoritário, reúne um grupo de parlamentares combativos que deixaram o PT para criar uma formação mais à esquerda. Mas essas iniciativas são ainda insuficientes para representar uma solução.
A esquerda se encontra, assim, confrontada por dois grandes desafios. O primeiro: ampliar o protesto contra o governo Temer, o que dependerá da capacidade dos movimentos sociais de reunir suas forças e mobilizar trabalhadores para a gravidade desses ataques. O segundo: construir um novo campo político de esquerda, assumindo o fato de que o período de consenso acabou. No momento atual, não é possível pleitear nenhum avanço social sem mobilizar a rua. A elite e a direita já entenderam; parte da esquerda ainda hesita.
A renovação das forças dependerá da capacidade da esquerda de encarnar uma solução contra-hegemônica – sem a qual a insatisfação social e política, amplificada pela crise, será canalizada por essa “nova direita” que, em nível internacional, soube recuperar o descontentamento e direcioná-lo para os chamados outsiders, como Donald Trump nos Estados Unidos, Nigel Farage no Reino Unido ou ainda Marine Le Pen na França. Um fenômeno que não poupa o Brasil.
A esquerda deve retomar a radicalidade que conscientemente negligenciou. Radicalidade democrática, com o objetivo de participação política e representação da diversidade brasileira. Radicalidade estratégica, com um programa ambicioso de transformação social, capaz de reanimar a esperança. A forma institucional que esse novo campo terá ainda não está clara, assim como o tempo que exigirá sua construção. Mas sua necessidade torna-se cada dia mais evidente.
*Guilherme Boulos é coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e da Frente Povo Sem Medo.
Para o organizador da obra, José Rivar Macedo, todo o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África corresponde a ‘formas de predação’
Com o “modesto” objetivo de apresentar as principais linhas de pensamento de autores africanos, o livro O pensamento africano no século XX reúne textos de dezesseis especialistas brasileiros que apresentam um panorama geral da intelectualidade africana no século passado.
“Conforme apontaram estudiosos eminentes, o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África correspondeu a formas de predação em diversos níveis, e a restituição da autonomia plena implica na devolução aos africanos de sua capacidade de resolver seus próprios problemas, de gerir suas riquezas, de conhecer o seu passado, discutir o seu presente e esboçar as linhas de seu futuro”, afirma o organizador da obra, o professor da UFRGS José Rivair Macedo.
O anti-colonialismo, a descolonização e o pós-colonialismo da África são alguns dos temas essenciais tratados por esses pensadores africanos, que, participando dos movimentos de libertação do continente, foram chefes de Estado, filósofos, escritores, historiadores e cientistas sociais. Entre eles, estão nomes como Léopold Sédar Senghor, Joseph Ki-Zerbo, Frantz Fanon, Achille Mbembe e Paulin Hountondji.
Em entrevista à CULT, o professor falou sobre as raízes e a importância do movimento.
CULT – A África é um continente com mais de 50 países. Dentro dessa diversidade cultural, religiosa, política e social, como você definiria um pensamento africano?
José Rivair Macedo – É muito difícil formular uma definição precisa do que seria o “pensamento africano”. As conceituações são forçosamente limitadas e quase sempre restringem as possibilidades de apreensão da complexidade do real. Em última instância, não existe um “pensamento africano”, como também não existem um “pensamento europeu”, um “pensamento ocidental” ou um “pensamento brasileiro”. Entretanto, se a diversidade é o que prevalece na base das experiências locais e na originalidade das vivências compartilhadas pelas dezenas de organizações estatais e pelos inumeráveis grupos etnolinguísticos espalhados pelo continente, nos últimos séculos o processo de unificação planetária promovido pelo capitalismo ocidental classificou, hierarquizou e criou formas de domínio de caráter econômico, político e cultural e forçou a aproximação entre pessoas, grupos e instituições originalmente distintas, gerando pautas de reivindicação comuns. Então, embora a ideia de um “pensamento africano” guarde em si uma parcela de artificialidade, ela passou a existir gradualmente a partir do momento em que pessoas nascidas em diferentes partes da África – e mesmo fora dela, na Diáspora negra – passaram a reivindicar para si uma identidade ancestral comum.
Quando isso começou?
É muito provável que isso tenha acontecido pela primeira vez no princípio do século 16, quando o erudito afro-muçulmano de origem marroquina chamado Hassan al-Wazzan (c. 1486- c. 1535) foi levado prisioneiro para as cortes da atual Itália, onde se tornou secretário do papa Leão X e, com o nome católico de “João Leão o Africano” escreveu a primeira obra de caráter enciclopédico sobre o continente, a Description de l’Afrique (1530), que até o século 18 seria uma referência obrigatória de leitura sobre o Magreb e a África subsaariana pelos letrados europeus. Séculos depois, na primeira metade do século 18, no mesmo contexto em que adeptos do ideário iluminista viam os nativos do continente africano como seres desprovidos de plena humanidade, relegando-os a estágios inferiores na escala evolutiva ou negando-lhes a capacidade de gerir de modo autônomo sua existência, um homem nascido na antiga região da Costa do Ouro (atual república de Ghana), chamado Anton Whilelm Amo (1703-1753), formou-se em Filosofia e lecionou em universidades germânicas de Halle, Wittemberg e Iena, adotando para si o nome de Amo Guinea Afer, isto é, “Amo guineense, o africano”. Vê-se então que, nesses casos, o genitivo objetivo “africano” resulta de pertencimentos construídos, reivindicados. Tendo isso em mente, e em conformidade com os argumentos do filósofo marfinense Paulin Hountondji, um dos intelectuais enfocados em nosso livro, defino como “pensamento africano” um conjunto de textos escritos por intelectuais que se afirmam como africanos, elaborados com a finalidade de expressar ou interpretar a posição de seus congêneres em relação ao mundo. Este se distingue dos saberes inerentes aos sistemas religiosos tradicionais, calcados na oralidade e na ancestralidade; do pensamento negro diaspórico, com que parcialmente se identifica; e do pensamento de tipo eurocêntrico, difundido no continente no período de dominação colonial, ao qual, aliás, muitas vezes se opõe ao oferecer alternativas endógenas de explicação dos fenômenos sociais, políticos, econômicos e culturais.
Há um elemento, além da geografia, que une os pensadores trabalhados no livro, uma temática que você percebe como o centro das preocupações desses intelectuais?
Ao contrário do que ocorreu nos séculos anteriores da longuíssima história da África, quando os africanos eram plenamente senhores de seu destino, no século 20 seus povos viveram durante décadas sob dominação colonial, lutaram pela autodeterminação e foram forçados a reconstituir sua existência no contexto da descolonização e da reorganização político-social do período pós-colonial. A fratura colonial e seu duplo, o racismo, produziram aproximações potencialmente inovadoras entre africanos e afro-americanos, e movimentos de valorização cultural e de afirmação político-social lastreados na ideia de uma solidariedade transcontinental entre os povos negros – em primeiro lugar o Pan-africanismo, e os conceitos de “personalidade africana” e “negritude”. Alguns intelectuais estudados no livro participaram ativamente da história política, liderando movimentos de libertação e ajudando a criar nações (Frantz Fanon, Amilcar Cabral), certos deles alcançaram a posição de chefes de Estado (Léopold Sédar Senghor, Kwame Nkrumah). Outros são filósofos (Marcien Towa, Paulin Hountondji, V. Y.Mudimbe, Severino Ngoenha), historiadores (Joseph Ki-Zerbo), escritores (Wole Soyinka) ou cientistas sociais (Cheikh Anta Diop, Achille Mbembe) que ganharam notoriedade ao propor explicações sobre a condição dos africanos no cenário internacional, sobre as alternativas encontradas por eles para criar instituições políticas e sociais modernas, rompendo ou não com as formas tradicionais de organização vigentes em todo o continente.
Não há o perigo de homogeneizar essa diversidade ao se falar em ‘pensamento africano’?
Em face do dilema diante da escolha entre a unidade e a diversidade, seguimos a posição do eminente cientista social Elikia Mbokolo, da École dês Hautes Études en Sciences Sociales, para quem, na África como em todo lugar, a história é marcada por processos dinâmicos, com continuidades, adaptações e rupturas. Alguns desses processos aproximam povos e sociedades, outros produzem identidades locais, intercâmbios e intensa circulação de estilos de vida, crenças e ideias, modelos de organização sócio-política. Unidade e diversidade são elementos intercambiáveis para a explicação do real africano, e a escala que melhor convém escolher para interpretá-lo – única, da África, ou múltipla, das Áfricas -, depende dos objetivos pretendidos. Quanto mais o foco se deslocar do exterior para o interior do continente, mais prevalecerá a diversidade, a singularidade e a especificidade étnicolinguística, religiosa, cultural, regional. Mas convém não esquecer que, no período contemporâneo, essas dinâmicas locais são, a todo o instante, afetadas em virtude de processos de unificação econômica e políticas exteriores a que estão ligados fenômenos de extroversão desenvolvidos pelas elites africanas associadas ao capital internacional. De modo que, seja qual for a escala de análise, as formas de expressão do ser africano são eminentemente periféricas, subalternas, enquadradas segundo critérios de distinção étnico-racial impostos de fora para dentro. Entendo que o perigo da homogeneização ronda as interpretações generalizantes, globalizantes, pouco propensas a considerar a complexidade e o papel dos contextos regionais e locais, mas o acento na diversidade guarda também seus riscos, e num ensaio famoso Kwame Nkrumah denunciou o perigo da balcanização do continente como o mais perverso efeito do neocolonialismo. Gosto particularmente da posição defendida pelo escritor Chinua Achebe, citada em epígrafe num dos capítulos do livro de Anthony Kwame Appiah intitulado Na casa de meu pai (1997), quando o romancista diz: “Sou um escritor ibo, porque essa é minha cultura básica; nigeriano, africano e escritor… Não, primeiro negro, depois escritor. Cada uma dessas identidades efetivamente invoca certo tipo de compromisso de minha parte. Devo enxergar o que é ser negro – e isso significa ser suficientemente inteligente para saber como gira o mundo e como se saem os negros no mundo. É isso que significa ser negro. Ou africano – dá no mesmo: que significa a África para o mundo? Quando se vê um africano, que significa isso para o homem branco?”
O livro ajuda a colocar os povos africanos como protagonistas da história?
Espero que sim. Já se tornou lugar comum considerar a África como o “berço da humanidade”. Poucos hoje se dão conta que há sessenta anos tal assertiva seria tomada como um disparate, um absurdo. As publicações de Cheikh Anta Diop, a começar por Nações negras e cultura (1954) inovaram ao introduzir o debate sobre a anterioridade africana na História da Humanidade e ao reivindicar o vínculo matricial entre o Egito e a África negra. Envoltas em polêmica e seguidas de intenso debate, as ideias diopianas exerceram forte influência na tendência interpretativa conhecida como afrocentrismo, que, por sua vez, foi e continua a ser fundamental como base de sustentação teórico-conceitual dos movimentos negros americanos. Independente do quanto tenham, ou não, lastro em dados empíricos, do quanto comportem mais de ideologia do que de conhecimento cientificamente comprovado – e aqui a definição de “ciência” esbarra em pressupostos que não são consensuais -, a recepção e difusão do ideário afrocentrista reveste-se de grande eficácia simbólica, cultural, social. Porem, se a defesa da anterioridade, especificidade ou autenticidade africana correm o perigo de recair em essencialismos e em contra-discursos, o reconhecimento das dinâmicas africanas de longa duração defendidas nos anos 1960-1970 por Joseph Ki-Zerbo abriram outras possibilidades ao reconhecimento do protagonismo dos povos africanos na história. Os ritmos, temporalidades, circularidade e entrecruzamentos que dão sentido às diversas experiências históricas do continente provam a autonomia de suas instituições originárias e sua enorme capacidade de adaptação e resistência. Uma das marcas distintivas dos africanos no mundo tem sido sua propensão para lidar com diferentes signos, conferindo-lhes sentidos reconfigurados, recompondo-os de acordo com o contexto e com a situação em que se veem inseridos, dentro e fora do continente.
Normalmente a Grécia Antiga é colocada como o berço da filosofia. Produções intelectuais, contemporâneas aos filósofos antigos, de outras partes da África, como do Egito, muitas vezes são ignorados quando se fala do surgimento da filosofia porque não carregam o racionalismo ocidental. Você acha que ainda há esse processo de desvalorização da produção intelectual não eurocêntrica?
Seria preciso problematizar nossa ideia de “normalidade” e admitir o quanto nosso desconhecimento de outras culturas e formas de pensamento decorre de limitações inerentes a nossa condição subalterna. Desde o título de uma de suas obras, o filósofo Paulin Hountondji formula a questão que em minha opinião deveria ser central: La rationalité, une ou plurielle? (A racionalidade, una ou plural?) (2007). O que tem sido colocado em discussão é a eleição da filosofia e do logos helênico ressignificado em ambiente judaico-cristão como paradigma universal de conhecimento. Para o filósofo e filólogo V. Y. Mudimbe, da Universidade de Duke, a gnose africana resulta de sucessivas interações entre tradições, formas de conhecimento nutridos pela tradição oral, e o saber formal de tipo ocidental. Também Hountondji tem desenvolvido diversos seminários e orientado projetos de investigação sobre o que ele denomina de “conhecimentos endógenos”, em que o saber formal e o saber-fazer, o escrito e o oral, a tradição ancestral e a ciência não são colocados em confronto, e sim em interação. O importante é ter em mente que os processos de aquisição, acumulação e transmissão de conhecimento não são isolados, mas se encontram em constante circulação, sendo apropriados e utilizados de acordo com diferentes interesses e finalidades.
Qual é a importância deste livro?
A elaboração de uma obra como a que aqui se discute assume de imediato uma posição em face do etnocentrismo e reveste-se de caráter anti-racista. Não quer dizer que apenas pessoas originárias da África devam ter exclusividade nas interpretações formuladas sobre sua realidade, mas que é importante garantir a elas espaço de enunciação, de modo a conhecermos diretamente sua palavra, seus pontos de vista. Conforme apontaram estudiosos eminentes, entre os quais o historiador nigeriano Toyn Falola, o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a África corresponde a formas de predação em diversos níveis, e a restituição da autonomia plena implica na devolução aos africanos de sua capacidade de resolver seus próprios problemas, de gerir suas riquezas, de conhecer o seu passado, discutir o seu presente e esboçar as linhas de seu futuro, enfim, implica em lhes conferir “poder de definição”. Nosso livro não pretende atingir o público acadêmico, menos ainda os especialistas em Estudos Africanos, para quem a maior parte dos assuntos tratados é familiar. Alguns intelectuais aqui estudados (Léopold Senghor, Joseph Ki-Zerbo,Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Severino Ngoenha) tem sido mais ou menos estudados em dissertações e teses, enquanto outros (Kwame Nkrumah, Marcien Towa, Cheikh Anta Diop, Paulin Hountondji, V. Y. Mudimbe, Achille Mbembe) carecem de estudos especializados em nosso país. O livro tem o objetivo modesto de apresentar as principais linhas de rumo da obra desses autores, cujos textos são essenciais para a compreensão do colonialismo, anti-colonialismo e pós-colonialismo na África.
Lançamento O pensamento africano no século XXQuando: Dia 09/02, às 19h Onde: Livraria da Editora Expressão Popular, Rua Abolição, 201 – Bela Vista – SP
Num dos nossos artigos sobre a "Greve Branca" da Polícia Militar, lembrávamos o fato de que "dispositivos repressores" acionados durante as "Jornadas de Junho" ainda não haviam sido completamente desativados no Estado. Com a desestabilização do Estado Democrático de Direito no plano federal, a tendência natural seria o seu recrudescimento nas esferas estaduais. Por aqueles idos, Rio de Janeiro e Pernambuco se notabilizaram por adotarem as práticas mais duras contra os manifestantes daquelas jornadas. Esse era, aliás, um dos argumentos que nos estimulavam a sugerir o diálogo e não a queda de braço que então estava sendo observada entre a corporação militar e o aparelho de Estado.
O desfilo do tradicional "Galo da Madrugada" era, assim, um momento importante para se saber como estava o humor da tropa, pois previa-se que a PM poderia não fazer o policiamento do evento. Mas, independentemente de uma recomendação das Associações neste sentido, os policiais foram às ruas e garantiram a segurança dos foliões, não sendo registrados nenhum incidente mais grave. Isso poderia significar um recomeço, digamos assim, nas relações entre o Estado e a corporação militar. Um divisor de águas, dada a magnitude do evento para o Estado de Pernambuco. Mas eis que, não se sabe muito por ordem de quem, viaturas da Polícia Militar resolveram apreender material de um bloco que protestavam contra as intervenções urbanas no Recife, administrada por um prefeito do mesmo partido do governador.
Uma medida arbitrária, desproporcional e profundamente infeliz. O bloco é ligado a um grupo organizado da sociedade civil que protesta contra as intervenções urbanas no Recife já há algum tempo, tendo a oportunidade - e a liberdade - para seus manifestos respeitadas. Havia até outros grupos que protestavam durante o desfile, contra o Governo Temer, por exemplo, com referências à reforma previdenciária. A Corregedoria de Polícia, segundo se informou já estaria ouvindo os policiais militares envolvidos no episódio, mas convém sempre deixar claro a necessidade de saber de ondem partiu a ordem para a apreensão dos materiais, fantasias e adereços que seriam utilizados no desfile do grupo. Como disse antes, uma ordem arbitrária, desproporcional e infeliz.
Festas populares são sempre um bom momento para os políticos se comunicarem com os seus eleitores ou possíveis eleitores. Eles não perdem uma Festa do Morro da Conceição, o São João de Caruaru ou o saída do bloco carnavalesco O Galo da Madrugada. Hoje, por exemplo, li uma notinha num blog local dando conta da presença do Deputado Federal Jarbas Vasconcelos no desfile do Galo da Madrugada. Indagada pela repórter sobre uma eventual candidatura sua ao Senado Federal nas eleições majoritárias de 2018, ele admitiu essa hipótese, apesar da prudência ao se referir ao assunto, sobretudo porque ainda teremos um bom tempo pela frente. Jarbas ainda não se movimenta, mas já se articula como um provável candidato a senador na chapa encabeçada pela reeleição do governador Paulo Câmara. Se seria pretensão demais manter dois nomes peemedebistas na cabeça de chapa - Jarbas e Raul Henry - já se especula que o vice possa abdicar de continuar como tal e disputar uma cadeira para o parlamento.
Do ponto de vista estritamente eleitoral, creio ser um equívoco do senhor Paulo Câmara eleger o PMDB como uma espécie de parceiro preferencial para a disputa das eleições de 2018, fazendo pouco caso de agremiações como o PSDB e o DEM. Em todo caso, ele deve saber o que está fazendo. Será? O fato concreto é que as forças de oposição também não brincam em serviço, mantendo contato regulares, como este último, ocorrido na residência do senador Armando Monteiro, que reuniu, além do anfitrião, o ministro Bruno Araújo e o ex-governador João Lyra Neto e Deputado Estadual, Carlos Porto. Outros ilustres representantes desse grupo - denominado pelo editor deste blog de Conspiração Macambirense, uma referência à Fazenda Macambira, dos Lyra - como o ministro da Educação, Mendonça Filho(DEM), foram convidados mas não puderam estar presentes.
A disputa de 2018 promete ser das mais acirradas, sobretudo se considerarmos a possibilidade concreta de o Estado não sair dos impasses que enfrenta até a realização daquele pleito. A gestão de Paulo Câmara(PSB) possui alguns "gargalos" evidentes, como os insuportáveis índices de violência e dificuldades de financiamento da máquina, o que gera insatisfação entre servidores, emperra obras e joga os índices de popularidade dos governantes para a rabeira. É preciso, antes de tudo, muita habilidade política para manter-se no posto nessas circunstâncias tão adversas. Por falar em habilidade política, Paulo Câmara (PSB)enfrenta, ainda, uma luta interna nas hostes do PSB local. Raposas felpudas e perigosas - controladas a mão-de-ferro pelo ex-governador Eduardo Campos - hoje não escondem suas pretensões políticas, tão pouco se sentem à vontade com a liderança de um ex-técnico que ainda não recebeu o "batismo" político.
Com um gabinete formado por militares e bilionários, as razões para temer sua posse são infinitas. No entanto, o Partido Democrata e diversos veículos de mídia ocidentais parecem obcecados pela ideia absurda de que Donald Trump seria uma “marionete do Kremlin”
por: Serge Halimi
23 de fevereiro de 2017
Em 9 de fevereiro de 1950, no auge da Guerra Fria, um senador republicano ainda obscuro fulminou: “Tenho em minhas mãos a lista de 250 pessoas que o secretário de Estado sabe serem membros do Partido Comunista e que, no entanto, determinam a política do Departamento de Estado”. Joseph McCarthy acabava de entrar para a história dos Estados Unidos pela porta da infâmia. Sua lista não existia, mas a onda de histeria anticomunista e de expurgos que isso provocou estraçalhou a existência de milhares de norte-americanos.
Em 2017, será justamente a lealdade patriótica do próprio presidente dos Estados Unidos que será questionada. Com um gabinete formado por militares e bilionários, as razões para temer sua posse são infinitas. No entanto, o Partido Democrata e diversos veículos de mídia ocidentais parecem obcecados pela ideia absurda de que Donald Trump seria uma “marionete do Kremlin”1 e que deveria sua eleição a uma pirataria de dados informáticos orquestrada pela Rússia. Muito tempo se passou desde a paranoia macarthista, mas o Washington Post acaba de se vincular a essa história, preocupando-se com a existência de “mais de duzentos sites que, voluntariamente ou não, publicam a propaganda russa ou a ecoam” (24 nov. 2016).
Maus ventos sopram sobre o Ocidente. Toda eleição – ou quase todas – é apreciada através de um prisma da Rússia. Quer se trate de Trump, nos Estados Unidos, de Jeremy Corbyn, no Reino Unido, ou de candidatos tão distintos quanto Jean-Luc Mélenchon, François Fillon e Marine Le Pen, na França, basta duvidar das sanções econômicas contra Moscou ou das conjecturas anti-Rússia da CIA – uma instituição que, todos sabem, é infalível e irrepreensível… – para ser suspeito de servir aos projetos do Kremlin. Em um clima desses, mal ousamos imaginar a avalanche de indignação que teria suscitado a espionagem pela Rússia, em vez de pelos Estados Unidos, do telefone de Angela Merkel, ou a entrega por parte do Google para Moscou, em vez de para a Agência Nacional de Segurança (NSA), de milhares de dados privados coletados na internet. Sem dimensionar o humor do que dizia, Barack Obama evocou a respeito da Rússia, “um país menor, mais fraco” que os Estados Unidos: “É preciso que eles entendam que o que eles fazem conosco nós podemos fazer com eles”.2
Isso, Vladimir Putin não ignora. Na primavera de 1996, um presidente russo doente e alcoólatra, artesão (corrompido) do caos social em seu país, apenas sobreviveu a uma impopularidade abissal graças ao apoio declarado, político e financeiro, dos capitais ocidentais. E a uma providencial fraude eleitoral. Boris Yeltsin, o queridinho dos democratas de Washington, de Berlim e de Paris (mesmo bombardeando o Parlamento russo e provocando, em dezembro de 1993, a morte de centenas de pessoas), foi então reeleito. Quatro anos depois, ele decidiu transmitir todos os seus poderes ao seu fiel primeiro-ministro, o encantador Vladimir Putin…
Tornar opcional o ensino de Filosofia corresponde a tirar dos estudantes a disciplina mais adequada para ajudá-los a pensar sobre o que os torna verdadeiramente humanos
Na próxima semana o Senado tratará da Medida Provisória referente à reforma do Ensino Médio. Na MP está em questão tornar opcional o ensino de Filosofia (bem como de outras disciplinas) e, como o Senado tem a prerrogativa de propor emendas à MP, ainda vale tentar obter alguma clareza no debate, apostando na capacidade de lucidez e ponderação dos senhores senadores.
Certamente uma das razões para desobrigar do ensino de Filosofia é uma razão econômica, embora seja irrisória a quantidade de dinheiro público que será poupada com o corte de professores e de aulas dessa disciplina (maior será o dano social à vida dos profissionais e dos estudantes). Outra razão é burocrática e refere-se à menção explícita de nomes de disciplinas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Outra razão, enfim, é mais séria e, vistos os debates que têm ocorrido em nosso país durante os últimos dois anos, ela parece ser o principal motor para desobrigar do ensino de Filosofia: trata-se de uma razão sócio-ideológica que diz respeito à preocupação de setores da sociedade brasileira com a “doutrinação comunista e ateia” que seria praticada nas aulas de Filosofia.
Dito dessa maneira, tudo parece uma caricatura. Na realidade, porém, não há nada de caricatural. Essa razão foi levantada por vários deputados e senadores, além de representantes da sociedade civil. Professores de Filosofia seriam marxistas, militantes petistas, anticristãos, adeptos do casamento homossexual, abortistas, anticapitalistas, contrários à meritocracia e outras coisas mais.
Assim, para além das simpatias e dos ódios, é necessário e urgente perguntar: esse diagnóstico corresponde à realidade? Seriam todos os professores de Filosofia comunistas e ateus? Seria realmente um ganho para a história mental de nosso país tornar opcional o ensino de Filosofia?
Num momento histórico em que muitas pessoas redescobrem a importância do pensamento filosófico (quando mesmo grandes empresas têm valorizado profissionais dotados de conhecimentos filosóficos, porque são capazes de análises mais globais e de pensamentos mais complexos), urge perguntar por que o Brasil pretende frear a ampliação da cultura filosófica em vez de acelerá-la? Aliás, outros países da América Latina também têm puxado o mesmo freio, o que faz pensar que a verdadeira razão para desobrigar do ensino de Filosofia talvez venha do medo de velhos fantasmas como o comunismo, a destruição do cristianismo, o ataque contra os valores da família etc.
Um parêntese histórico curioso: os partidos de direita e de centro-direita fazem hoje o que setores da esquerda fizeram no passado e fazem também atualmente. Refiro-me a todos aqueles de esquerda que são contra o ensino de Filosofia porque, como dizem, “diante da falta de professores em alguns locais, quem dará as aulas serão padres, pastores, historiadores e gente com qualquer diploma universitário”. Hoje os membros da direita dizem que quem dá as aulas são “marxistas, comunistas, petistas, ateus, gays, lésbicas e assim por diante”.
Indo ao núcleo dessa preocupação, é urgente perguntar se esse diagnóstico corresponde à realidade. E a resposta para essa questão é redondamente negativa.
Tenho conhecimento de causa, não apenas pelo trabalho na universidade em que leciono, mas também pela observação in loco em vários pontos do Brasil. Atendo-me apenas ao ponto talvez mais sensível, o aspecto religioso, posso afirmar que o maior número de professores de Filosofia do Ensino Médio é de pessoas religiosas ou agnósticas (pessoas que não se dedicam nem a afirmar nem a negar a existência de Deus e têm grande respeito pelas pessoas religiosas). Talvez por motivos sociais (o crescimento das religiões cristãs evangélicas e de setores do cristianismo católico, do budismo, das religiões africanas e outras religiões), o fato é que a maioria dos professores nos vários pontos que tenho visitado de norte a sul é uma maioria religiosa ou respeitosa da religião. Do ponto de vista político, muitas delas são inclusive de direita ou de centro-direita, muito longe de serem petistas.
Obviamente, quando faz parte do programa curricular o estudo de pensadores ateus, todos são obrigados a lê-los, inclusive os professores religiosos. Nesse aspecto, o que conta é a importância desses filósofos para a história do pensamento; não se pode querer evitá-los como se tivéssemos o direito de “proteger” os estudantes ocultando deles a verdade histórica. Ademais, a prática de ler pensadores ateus pode converter-se em um excelente exercício de reflexão que pode ajudar os estudantes a amadurecer sua fé religiosa, pondo-a em teste, e mesmo a intensificá-la.
Queremos ou não queremos formar cidadãos livres, responsáveis e construtores de uma sociedade respeitosa e democrática? Se esse é um dos objetivos centrais da educação, filtrar aquilo que chegará aos estudantes, deixando a Filosofia em segundo plano e ao gosto das possibilidades “opcionais”, significa atacar a única disciplina que, no contexto atual, levanta a pergunta pelo sentido dos saberes, das práticas, das artes, da religião, enfim, dos vários aspectos da existência.
O caso do falso debate entre criacionismo eciência
Para dar um exemplo mais concreto do bem que a formação filosófica pode fazer mesmo a pessoas religiosas, evoco aqui uma experiência que vivi quando lecionei no Ensino Médio (e que constantemente se repete na universidade): um grupo de estudantes estava muito angustiado depois de algumas aulas de Biologia, pois haviam estudado a teoria do Big Bang ou do que se chama em geral de “a grande explosão” que teria ocorrido nos inícios do Universo, e o professor de Biologia teria afirmado que a teoria do Big Bang provava a inexistência de Deus.
A ocasião não podia ser melhor para que eu atuasse como professor de Filosofia. A primeira coisa que propus em aula foi estudar o modo como se constrói o conhecimento em Biologia e nas ciências em geral, avaliando sobretudo a base que permite construir conceitos como início, causa, fim, finito, infinito, além de debater o que significa uma teoria e mesmo a verdade em ciência. Alguns estudantes quiseram logo tirar a conclusão de que o professor de Biologia estava errado, porque perceberam não apenas que nenhum cientista pode ter a pretensão de dizer que “viu” ou experimentou a infinitude do Universo (mesmo que ele seja infinito), mas também que não há a menor condição de provar cientificamente a inexistência nem a existência de um ser criador. Mesmo que haja evidências em um sentido ou outro, nunca haverá provas propriamente ditas. Outros estudantes, porém, estavam realmente abalados, porque percebiam que o discurso científico é extremamente bem construído e baseia-se em dados que podem ser debatidos e testados por todos os que se instruem nas regras desse discurso.
Depois de várias aulas de reflexão, de leitura de textos de Filosofia da Ciência, de Teoria do Conhecimento e de Filosofia da Religião, o ganho foi enorme, principalmente porque a conclusão mais adequada e mais lúcida era a de que a teoria do Big Bang não anula a fé na criação e que tampouco a fé na criação impede de adotar a teoria do Big Bang.
O dado comum percebido por todos era o de que o debate “criacionismo versus eternidade ou infinitude do Universo” é um falso debate, fundamentado no erro de tomar o criador do Universo por uma “parte” do mesmo Universo (e, por conseguinte, passível de ser provado ou não). Tanto os estudantes religiosos se apegavam a uma visão demasiado infantil do criador, como o professor de Biologia também era imaturo ao achar que sua briga era com aquele criador infantil. O erro conceitual do professor era explícito: ele tratava o ser divino como uma parte do mundo, querendo submetê-lo às leis da Física, da Química e da Biologia, em vez de entender que o ser divino, para ser tratado adequadamente, deve ser visto como transcendente ao mundo e suas leis.O mesmo erro era cometido pelos estudantes, pois, ao defendê-lo, o reduziam a uma parte do mundo e traíam sua transcendência.
Trocando em miúdos, o Universo pode ter surgido de uma explosão inicial, pode ter sempre existido, pode caminhar para um fim ou para a eternidade. Nenhuma dessas teorias impede pensar que um ser divino criador está no fundamento do Universo. Nunca será irracional crer que há um porquê para o dinamismo cósmico, pois provar a irracionalidade dessa crença exigiria provar o absurdo de seu fundamento mesmo, o ser divino, que, por definição, não é parte do mundo, não estando, portanto, sujeito a nenhum tipo de prova. Crer ou não crer são atitudes que envolvem não apenas o pensamento, mas também o sentimento (especificamente o sentimento religioso, na linha do que diziam Friedrich Schleiermacher e Rudolf Otto) e a vontade.
Relegar o ensino de Filosofia à categoria de “opcional” é diminuir ou anular a possibilidade de os estudantes desenvolverem exercícios desse tipo. É construir uma visão formativa em que os saberes técnicos têm prioridade, caindo-se na ilusão de que mais aulas de Português e Matemática vão realmente fazer os estudantes pensar e exprimir-se com correção.
Nós, brasileiros de hoje, temos uma grave responsabilidade pelo tipo de mente que desejamos formar nas crianças e jovens. São eles que continuarão a construção do Brasil. Queremos um futuro com pessoas de mente aberta, respeitosa e madura ou de mente fechada, medrosa, imatura e agressiva? Caso o estudo de Filosofia se torne opcional, é óbvio que alguns estudantes continuarão a ter acesso a ela, porque frequentarão as melhores escolas; mas a imensa maioria sequer ouvirá falar dela. O que sentimos diante desse quadro? Vamos dar de ombros e deixar acontecer a construção de um país desigual, autoritário, exclusivista, violento e mentiroso?
Juvenal Savian Filho é filósofo e teólogo, doutor pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Federal de São Paulo