Hora de quebrar ovos
A presente crise constitui uma nova chance para o conjunto da esquerda brasileira. Mas, para aproveitá-la, é importante responder ao seguinte: a crise que o país vive pode ser solucionada por meio de uma negociação entre as partes em conflito? Ou ela exige uma derrota profunda de uma das partes em conflito?
por: Valter Pomar
18 de julho de 2017
Crédito da Imagem: Aroeira
No dia 17 de maio de 2017, o sonho do PSDB parece ter ido a pique. Segundo esse sonho, Michel Temer faria o serviço sujo, as eleições de 2018 seriam vencidas por um dos tucanos históricos, o país voltaria a crescer, devidamente alinhado com os Estados Unidos, sem espaço para “lulopetismos” e com o “custo Brasil” (leia-se: salários e direitos) arrochado.
O torpedo foi disparado pela Procuradoria-Geral da República e pelas Organizações Globo, ao divulgarem o diálogo criminoso entre titulares da empresa JBS e o senador Aécio Neves (PSDB-MG).
Se tivesse ficado nisso, poderíamos estar diante de uma jogada calculada: sacrificar Aécio para tentar dar credibilidade a um “ataque final” contra Lula. Acontece que divulgaram também um diálogo criminoso mantido por Temer. E com os diálogos vieram fotos e filmes de assessores carregando malas de dinheiro.
Há quem diga que, incapaz de fazer frente à crescente mobilização popular – que teve na greve de 28 de abril um ponto destacado –, Temer deixou de ser funcional para o golpismo. Mas, qualquer que tenha sido a motivação original da PGR e da Globo, a situação ganhou vida própria, afetando o PSDB, ampliando a rejeição contra Temer, mudando o patamar da crise que vive o país e aprofundando a polarização, tendência que deve agravar-se, inclusive durante e depois da próxima eleição presidencial, quem quer que vença.
Importante dizer que, se não houver alteração constitucional nem interdição ilegal da candidatura Lula, a tendência é que as próximas eleições presidenciais – em 2017 ou 2018 – sejam decididas num segundo turno entre a direita e a esquerda. Mais exatamente entre alguém “padrão” Bolsonaro ou Dória contra Lula.
Os golpistas continuam trabalhando para impedir que Lula concorra às eleições presidenciais. Eles imaginam que isso dividiria o eleitorado lulista entre os adeptos do boicote, os de uma candidatura petista, os da esquerda antipetista, os de Ciro Gomes etc.
Tal fracionamento facilitaria a vitória de uma candidatura de direita. E poderia ter como efeito colateral desconstituir o bloco democrático popular que, desde 1989, constitui uma alternativa de governo que polariza a disputa política do país.
Entretanto, nada garante que seja possível interditar Lula, ao menos respeitando minimamente as aparências e os prazos previstos em lei. Afinal, trata-se não apenas de condenar sem provas em primeira instância, mas também em segunda instância, em tempo recorde e novamente sem provas.
Nada garante, igualmente, que interditar juridicamente Lula o impeça de “transferir votos” para outra candidatura que, ao final, possa sair vitoriosa. Ademais, se a direita vier a vencer as eleições graças à interdição de Lula, o resultado pode ser mais crise, inclusive devido à baixa legitimidade do novo presidente diante de uma situação marcada por grandes conflitos políticos e sociais.
Noutras palavras, aos golpistas não basta impedir Lula de concorrer. Nem prosseguir na tentativa de demolir a imagem e a capacidade operativa do presidente Lula, do PT e de outras instituições e símbolos do campo democrático e popular. Afinal, mesmo após doze anos em que vêm sendo vítimas de uma campanha sistemática de desconstrução, o PT e Lula seguem liderando as pesquisas de opinião, motivo que leva setores do golpismo a defender uma mudança no sistema político.
As alternativas em estudo, que vão do adiamento das eleições até a introdução do parlamentarismo – assim como as hipóteses vocalizadas por cavernícolas, tais como o magnicídio e uma saída jurídico-militar –, constituiriam um golpe dentro do golpe, para impor as contrarreformas, impedir a vitória de Lula e não ter de depender de um novo Collor.
Ainda não está claro como as elites poderiam materializar esse golpe dentro do golpe. As alternativas envolvem operações complexas, como uma “renúncia acordada” de Temer, um mandato-tampão de Rodrigo Maia ou Carmem Lúcia (presidente da Câmara e presidenta do STF, respectivamente) e a eleição indireta de um personagem como Henrique Meirelles ou Nelson Jobim. E mesmo assim não se teria conseguido remover aquilo que os golpistas consideram uma “pedra no meio do caminho”: a eleição presidencial direta em 2018. Também por esse motivo há quem defenda, nos meios golpistas, a convocação de um arremedo de Constituinte, por meio da qual buscariam pôr fim à crise, legitimar as contrarreformas e a mudança no sistema político.
Evidentemente, para que possam materializar um desfecho como o descrito, não basta a conciliação entre os golpistas. Por esse motivo, é essencial o contraponto dos setores populares, reafirmando que não existe solução democrática que não inclua a saída imediata de Temer e a convocação de eleições diretas já.
Essa unidade popular é fundamental não apenas para sabotar uma “saída por cima”, mas também para impedir que a direita sequestre a insatisfação popular, como de certa forma ocorreu em determinado momento das manifestações de 2013!
Entretanto, entre os que defendem o Fora, Temer e as Diretas Já, há diferenças importantes no terreno da tática, da estratégia e do programa.
No terreno estratégico e programático há, por exemplo, um velho e conhecido debate acerca de como enfrentar o neoliberalismo: se por meio de um programa de capitalismo democrático nacional ou se por meio de um programa democrático popular e socialista. Dito de outra forma, para que a população apoie com radicalidade a “Democracia” e a “Nação”, será ou não essencial defender a “Igualdade”?
Na tática também há variados pontos de vista, desde os que falam em “volta, Dilma” até os que não descartam a hipótese de participar, mesmo que de forma encoberta, de uma eventual eleição indireta, passando, ainda, pelos que apoiam Lula e indo até aqueles que se opõem à sua candidatura, seja por sonharem com uma alternativa “mais à esquerda”, seja por acreditarem que a retirada do ex-presidente facilitaria a luta das Diretas Já e também a constituição de uma frente progressista, por exemplo, em torno de Ciro Gomes. Vale lembrar que o apoio popular à Lula faz com que ele seja um candidato eleitoralmente mais amplo do que eventuais alternativas.
Finalmente, há nas forças populares um debate sobre como relacionar a luta democrática e nacional com a luta em defesa dos direitos sociais afetados pelas contrarreformas. Debate diretamente relacionado com outro: a importância de combinar as manifestações de rua com greves que paralisem a produção.
A crise política e a queda na popularidade de Temer aumentaram e muito a possibilidade de uma vitória popular na batalha em defesa da Previdência. Isso teria efeitos extremamente positivos, entre os quais consolidar – no imaginário de vastos setores da classe trabalhadora – a greve geral como um instrumento de luta possante e exitoso.
A crise também ampliou as possibilidades – por enquanto muito pequenas – de vitória popular no enfrentamento da contrarreforma trabalhista. Até agora, a compreensão popular sobre o tema é menor do que no caso da Previdência. O enfraquecimento de Temer nos garante mais tempo para organizar, esclarecer e mobilizar.
Por outro lado, fatos como a abertura de processo contra Temer e a prisão preventiva da irmã de Aécio Neves criaram um álibi e uma cortina de fumaça que fortalecem a decisão, tomada pelo “juiz” Moro há muito tempo, de condenar Lula. Mesmo sem provas, não faltariam elogios à “higienização das instituições” que estaria sendo promovida pela Operação Lava Jato. Isso apesar de a situação atual demonstrar exatamente o contrário: a Lava Jato vinha acobertando Temer, Aécio & Cia., pois tem como objetivo central criminalizar a esquerda.
Os efeitos colaterais de uma condenação sem provas não parecem preocupar a facção golpista de que Moro faz parte. Apesar do primitivismo e da mediocridade de seu cabeça mais visível, essa facção é a vanguarda do golpismo, entre outros motivos por saber que não se faz omelete sem quebrar os ovos.
Como disse Moro em declaração publicada pela imprensa no dia 17 de maio: “O Brasil encontra-se em uma encruzilhada. É possível avançar na implementação do estado de direito e no fortalecimento da democracia, o que exige o enfrentamento da corrupção sistêmica. Ou é possível retroceder ao status quo anterior, de desenfreada corrupção sem responsabilização. A passagem entre um modelo de privilégio para um modelo de responsabilidade não se faz sem turbulência”.
De fato, turbulência é o que não faltará, não apenas em razão do que ocorre na “grande política”, mas também por causa da piora na situação econômica e social.
As contrarreformas reduzem o valor pago aos trabalhadores e ampliam os recursos disponíveis ao capital, mas a conjuntura global e a situação interna são desfavoráveis ao crescimento. A tendência é a ampliação do desemprego, da desassistência e da miséria, o que, como é óbvio, não contribui para estabilizar o cenário político.
Até o dia 17 de maio, vivíamos uma crise político-institucional caracterizada pela crescente desarmonia e conflitos entre os “poderes” da República. Desde então, estamos ingressando em uma “crise de regime”. Noutras palavras, numa situação que pode desembocar numa mudança do regime político do país.
No varejo, isso pode se explicar assim: o caminho escolhido para atacar Lula e o PT, a aplicação da “ponte para o futuro” e o clima de radicalização decorrente polarizam o país entre alternativas (como Lula, Dória e Bolsonaro) que não são exatamente as preferidas pela cúpula de diferentes setores do golpismo. O aprofundamento da polarização, por sua vez, faz crescer a possibilidade de um “pronunciamento” militar, mesmo que venha fantasiado de toga. Noutras palavras: a crise das instituições tende a se converter numa crise de regime, podendo levar a uma ruptura da institucionalidade vigente.
No atacado, a explicação para o surgimento de uma crise de regime está na dificuldade cada vez maior de aparecer uma solução para a crise nos marcos da atual institucionalidade, no descompasso entre as necessidades das diferentes classes sociais versus os limites impostos pela atual constitucionalidade, na distância cada vez maior entre a profundidade da crise e as capacidades e pretensões dos que controlam as instituições de Estado.
Na história do Brasil já assistimos a situações semelhantes. Algumas poucas vezes, a mobilização popular prevaleceu e a crise foi resolvida por meio do exercício das liberdades democráticas. No mais das vezes, prevaleceu o acordo por cima, sustentado muitas vezes por intervenções militares, não faltando quem alimentasse ilusões nos “setores patrióticos” das Forças Armadas, que antes como hoje estariam supostamente incomodadas com o entreguismo, a corrupção e o caos social.
Importante levar em consideração também que a tendência à polarização e à crise não é restrita ao Brasil. É uma tendência latino-americana e também mundial. O golpe no Brasil só ganha pleno sentido e lógica quando o inserimos nas movimentações dos Estados Unidos, especialmente no sentido de enfrentar China e aliados, inclusive militarmente.
Apesar desses enormes perigos, a presente crise constitui uma nova chance para o conjunto da esquerda brasileira. Mas, para aproveitá-la, é importante responder ao seguinte: a crise que o país vive pode ser solucionada por meio de uma negociação entre as partes em conflito? Ou a crise que o país vive exige uma derrota profunda de uma das partes em conflito?
O golpe de 31 de agosto, tudo o que ocorreu antes e depois, bem como o apoio dos “jovens ricos educados” a alternativas do tipo Bolsonaro ou Dória indicam que uma parte das elites já decidiu seu caminho: aprofundar o golpismo, se necessário com doses de militarização. Tudo leva a crer que a maior parte das elites tocará a música de sua jovem guarda.
Como impedir que as alternativas de direita se concretizem? Alguns setores acham que contribuiremos para isso se “despolarizarmos” a disputa. Esse é o espírito que move diversas outras iniciativas autodenominadas “progressistas” e “nacional-populares”: ceder parte dos interesses do campo popular em troca de supostas “garantias democráticas”.
O principal problema deste tipo de “solução” é que ela consiste em tentar impedir nossa derrota por meio de uma autoderrota. Uma consequência prática disso seria que não haveria reversão, e sim aprofundamento da “ponte para o futuro”. E já sabemos (vide Europa e Estados Unidos) o que tende a ocorrer quando a esquerda capitula enquanto o tecido social se deteriora.
Outro caminho para impedir as alternativas de direita consiste em ampliar a mobilização popular. A Frente Brasil Popular, o PT, a CUT, o MST, a CMP, a UNE, a Frente Povo Sem Medo e todas as organizações do campo democrático, popular e de esquerda precisam insistir na campanha pelo Fora, Temer e Diretas Já; defender os direitos e enfrentar as contrarreformas; colocar em pauta a necessidade de uma Assembleia Nacional Constituinte, como mecanismo democrático que propomos para reordenar as instituições e indicar o tipo de desenvolvimento que queremos para o Brasil; e, ao menos no caso do PT, apresentar desde já a candidatura de Lula presidente.
Não necessariamente a mobilização será suficiente para impedir desfechos como as indiretas, a interdição de Lula e o parlamentarismo, mas, mesmo na pior das hipóteses, ajudará a preparar o povo brasileiro para as duras lutas que virão.
Seja no melhor, seja no pior cenário, devemos nos preparar para um período em que a luta de classes assumirá formas mais duras, mais confrontadoras e mais violentas do que no período 2003-2016. Inclusive se a esquerda vencer a próxima eleição presidencial, a tendência seguirá sendo a ampliação dos conflitos. Em resumo: também precisaremos estar dispostos a quebrar ovos.
*Valter Pomar é professor do bacharelado de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.
[Texto publicado na edição 199 – Le Monde Diploamtique Brasil – junho de 2017]