pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : setembro 2017
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sábado, 30 de setembro de 2017

Caiuá, a Ong de R$ 2 bilhões que se tornou dona da saúde indígena no Brasil



Maurício Angelo

Convênios bilionários mantidos à custa de influência política, relações suspeitas com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), acusações de suborno de lideranças indígenas, denúncias de assédio moral e ameaças a funcionários da instituição. É assim que a Missão Evangélica Caiuá, sediada na zona rural de Dourados (MS) tornou-se dona da saúde indígena no Brasil, recebendo mais de R$ 2 bilhões do governo federal entre 2012 e 2017. A rede de atuação da entidade está na mira do Ministério Público, do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal.
Em 2000, a Caiuá firmou um convênio com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para prestar serviços de atendimento à população indígena do Mato Grosso do Sul. A parceria durou até 2010, ano em que a Sesai é criada e passa a ser responsável por todas as ações de saúde voltadas aos povos indígenas do país. É a partir daí que o valor dos repasses e a quantidade de convênios entre a Missão Evangélica e a União explodem.
Em 2010, a ONG gerenciava sete dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs)  do país. No ano seguinte, já eram 17 as unidades gestoras de saúde sob seu comando. Os R$ 36,5 milhões recebidos em 2010 saltaram para R$ 433,4 milhões em 2015, ano em que a Caiuá foi a segunda entidade sem fins lucrativos a receber mais dinheiro do governo federal, perdendo só para o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Somente em 2017, até maio (último dado disponível), a Caiuá já tinha levado R$ 248,6 milhões dos cofres públicos, e lidera o  ranking de ONGs mais beneficiadas pela União.

ONG tem 64% dos atendimentos

O domínio impressiona: a Caiuá responde por 64% dos atendimentos em saúde indígena. O restante fica a cargo de outras duas entidades: o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) e a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM). Com mais de 9 mil funcionários espalhados pelos 19 distritos sanitários em que tem contratos atualmente, a entidade atua do Acre ao Rio Grande do Sul – com destaque para Roraima e Mato Grosso do Sul. A ONG cobre, assim, uma população indígena estimada em 510 mil pessoas e é responsável por toda a contratação de profissionais de saúde especializados e pela gestão dos contratos. A Sesai fornece a estrutura adequada e os suprimentos necessários.
Instituição quase centenária, a Caiuá foi fundada em 1928 em Dourados por Albert Maxwell, pastor presbiteriano americano que decidiu empreender uma jornada de evangelização aos povos indígenas brasileiros. Além dos convênios, a entidade é dona do Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança, inaugurado em 1963, e do Instituto Bíblico Felipe Landes. Além disso, criou a primeira Igreja Indígena Presbiteriana no Brasil, em 2008, e mantém diversas escolas no Mato Grosso do Sul, responsáveis por milhares de alunos, da pré-escola ao ensino médio.

Jucá, o padrinho

Para entender a influência atual da Caiuá, é preciso voltar ao ano 2000, quando o farmacêutico Demetrius do Lago Pareja assumiu a coordenação de convênios e passou a ser responsável por toda a articulação política da entidade. Ele é apontado como o principal elo da ONG com o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que se tornou o grande padrinho político da Caiuá.
“Ele (Jucá) é quem garante todo o aparato para que a Missão possa continuar com os contratos milionários. Eles batem no peito e desafiam a Justiça a apontar irregularidades na gestão deles. A maioria das denúncias eles conseguem abafar com essa influência forte de padrinhos políticos”, afirma Lindomar Ferreira Terena, ex-presidente do Distrito Sanitário de Mato Grosso do Sul.
Procurado, Romero Jucá se recusou a comentar suas relações com a Caiuá. Ainda um dos homens fortes do presidente Michel Temer (apesar dos 14 inquéritos a que responde no Supremo Tribunal Federal), Jucá se tornou o primeiro governador do recém-criado estado de Roraima, por nomeação de José Sarney, em 1988. Antes disso, de 1986 a 1988, presidiu a Fundação Nacional do Índio.
À frente da Funai, amealhou façanhas: loteou a instituição com indicações políticas, autorizou a extração ilegal de madeira em território indígena, reduziu o tamanho do Parque Yanomami, liberou áreas para exploração de mineração, expulsou médicos e missionários e ainda é citado em relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) como responsável direto pelo genocídio de milhares de índios yanomamis. Para a CNV, Jucá permitiu que cerca de 40 mil garimpeiros invadissem as terras indígenas, o que causou um impacto devastador na comunidade.
Além do senador, a Caiuá teria a proteção também de Pastor Everaldo, presidente do PSC, partido que controla a Funai e tem promovido um desmonte completo na instituição, como admitiu o ex-ministro da Justiça Osmar Serraglio. O pastor evangélico Antônio Costa, que presidiu a Funai por menos de quatro meses este ano por indicação do PSC, é ex-funcionário da Caiuá, tendo atuado de 2005 a 2009 na instituição. Costa deixou o cargo em maio, trocando farpas com Serraglio e indicando divergências na cúpula.

Empregos na ONG em troca de votos

Roraima é o estado com a maior população proporcional indígena do Brasil e concentra também a maior presença institucional da Caiuá, que controla o Distrito Leste e o Yanomami. Juntos, os dois somam mais de 1.800 funcionários da Caiuá e são responsáveis pelo atendimento de cerca de 75 mil indígenas.
Ismael Cardeal, coordenador da Caiuá em Roraima e um dos homens de confiança de Demetrius Pareja, está sendo investigado pela Polícia Federal por oferecer empregos na ONG em troca de votos para sua candidatura a vereador em 2016, cargo para o qual ele não conseguiu ser eleito. A PF realizou busca e apreensão de documentos e dinheiro na sede da entidade em Boa Vista em outubro de 2016. Procurada, a PF não comenta a questão por sigilo. A Missão Caiuá diz que aguarda o resultado do processo para decidir se demite ou não o coordenador regional.
Ismael Cardeal, coordenador da Caiuá, posa com o senador Romero Jucá
Ismael Cardeal, coordenador da Missão Evangélica Caiuá, posa com o senador Romero Jucá.
Reprodução
As relações suspeitas entre políticos e gestores de distritos sanitários levaram a Hutukara Associação Yanomami a formalizar denúncia no Ministério Público Federal de Roraima e na Sesai em 2013. Os indígenas tiveram acesso a uma gravação de áudio que apresentava “indícios de ligações e influências” do deputado estadual Jânio Xingu (PSL) com Joana Claudete (coordenadora do DSEI Yanomami), Antônio Gonçalves (assessor de Planejamento do DSEI) e Ismael Cardeal. Para a associação, ficou claro à época nas gravações que havia uma articulação entre essas pessoas no sentido de manter a hegemonia da Caiuá nos convênios com a Sesai.
Na denúncia, a Hutukara afirmou ainda que o DSEI não cumpria a obrigação de disponibilizar os dados epidemiológicos e não era transparente com o uso dos recursos. Denunciaram também a falta de medicamentos, de infraestrutura e de condições para que as equipes de saúde prestem assistência básica. “Não compreendemos como o DSY [DSEI Yanomami] pode estar prestando um serviço de saúde com os problemas que vivenciamos tendo cerca de R$ 48 milhões só para o exercício de 2013, fora os mais R$ 38 milhões da Missão Evangélica Caiuá que é responsável apenas pela contratação dos funcionários. Este orçamento em anos anteriores era de R$ 8 milhões no máximo. Aumentaram os recursos mas não melhorou a saúde e a qualidade de vida”, diz o documento.
Três anos depois, numa mudança de postura no mínimo curiosa, Davi Kopenawa Yanomami, presidente da Hutukara, assinou uma “Manifestação de Apoio à Missão Evangélica Caiuá”. Nela, elogia a Caiuá por pagar salários em dia; afirma que os funcionários estão satisfeitos com a entidade; diz que “não há ato que desabone o Coordenador (Ismael Cardeal) e funcionários do escritório da Caiuá em Roraima, uma vez que se pautam pela transparência nos seus atos”.
O presidente da associação diz ainda que a Hutukara, legítima representante do povo Yanomami e Ye’kuana, fiscaliza e monitora todas as ações da Caiuá no estado e, por fim, manifesta “total apoio à permanência da Caiuá como conveniada junto à Sesai para o DSEI Yanomami”. Davi Kopenawa afirma que questionamentos anteriores à Caiuá teriam ocorrido “por um erro de assessoramento”.
A carta teria sido redigida por Ismael Cardeal, com a anuência e supervisão de Demetrius Pareja, restando a Davi Kopenawa, presidente da Hutukara, a mera assinatura. Procurada, a Hutukara não se pronunciou até o fechamento desta matéria. Os representantes do DSEI Yanomami também se recusaram a comentar o caso. Em ofício enviado para a reportagem, o MPF/RR informa que arquivou a denúncia porque a apuração dos fatos mostrou que “nenhum servidor do DSEI-Yanomami ou político local teve influência na escolha e na manutenção da Caiuá, uma vez que houve um chamamento público federal”.

Condições de trabalho em xeque

A Missão Evangélica Cauiá também já se viu às voltas com a Justiça do Trabalho. Em 2012, o Ministério Público do Trabalho (MPT) em Roraima ingressou com uma ação civil pública na Justiça do Trabalho contra a ONG e a União. O objetivo do MPT era assegurar melhores condições para os profissionais da área de saúde que prestam serviços nas comunidades indígenas de Roraima. À época, havia denúncias de condições precárias de trabalho.
Em 2015, a Caiuá firmou um acordo com o MPT, se comprometendo a mudar o modelo e oferecer padrões mínimos de higiene, saúde e segurança. Em entrevista a The Intercept Brasil, a procuradora do trabalho Safira Nila Rodrigues afirmou que a maioria das inconformidades foi ajustada, mas que recentes auditorias, incluindo a que foi realizada em 2017, mostram que a Caiuá ainda não cumpre com todas as condições colocadas – a escala de trabalho prevista em alguns contratos continua a não ser devidamente respeitada, por exemplo. Segundo ela, “o MPT tem ciência de todas dificuldades e está atento no bojo desse processo para requerer que a União também seja intimada. Vamos continuar nas fiscalizações dos polos de saúde”, promete.

Falta de transparência

O controle social, através do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI), dos DSEIs, dos Grupos de Trabalho e outras instâncias, é um dos mecanismos mais importantes que os indígenas têm à disposição para fiscalizar a aplicação dos recursos, a qualidade do atendimento, identificar as necessidades de cada povo e fazer suas reivindicações. No entanto, é um processo contaminado pelas influências políticas, que faz com que presidentes de DSEIs e de CONDISIs fiquem na mão das entidades, especialmente a Caiuá.
Para o procurador Gustavo Alcântara, o controle social definitivamente está aquém do que deveria. “As instâncias de controle não têm informações transparentes do que acontece, não têm acesso a vários documentos, não têm estrutura para trabalhar e recursos para realizar fiscalizações, reuniões e deliberações. Há muito o que melhorar”, enumera.
O caso do DSEI do Mato Grosso do Sul é bem sintomático dessa realidade. Lindomar Terena foi presidente da unidade por três meses em 2016. Tanto sua nomeação quanto sua exoneração, no início do governo Temer, causaram protestos – o que dá uma ideia das inúmeras brigas políticas que contaminam as questões indígenas do estado. Durante sua gestão, no entanto, Lindomar pôde apurar várias irregularidades.
Para ele, que atua na luta indígena pelo menos desde 2003 e mora na Terra Indígena Cachoeirinha, situada na divisa do Mato Grosso do Sul com o Paraguai, o estado em geral da saúde indígena é de calamidade pública e falta boa gestão para mudar isso. Lindomar também acusa a Missão Caiuá de utilizar indevidamente as instalações do próprio DSEI para suas despesas operacionais, de pressionar funcionários a defender a ONG, sob pena de demissão, e de manter funcionários fantasmas.
“Encaminhamos ao Ministério Público Estadual alguns dados de funcionários que ganhavam da Missão Caiuá sem trabalhar. Não podíamos conviver com aquela situação e eles foram demitidos. A Caiuá tentou nos intimidar conforme fazíamos auditoria mas mantemos nossa posição”, conta.
No caso da denúncia dos funcionários fantasmas, o MP não conseguiu provar as acusações feitas por Lindomar.

Convênios ao menos até o fim do ano

Até 2016, a Sesai foi administrada pelo médico cirurgião Antônio Alves, que comandou a transição da Funasa para a secretaria. Alves teria relação próxima com Demetrius Pareja, o que pavimentou o caminho para que a Caiuá alcançasse os 19 DSEIs no chamamento público de 2013, convênios que serão mantidos até o fim de 2017 e possivelmente, caso uma nova extensão ocorra, até o fim de 2018.
Com a saída de Antônio Alves, a relação entre a Caiuá e seu sucessor no cargo, Rodrigo Rodrigues, hoje diretor de Proteção Territorial da Funai, foi marcada por animosidade. Lindomar Terena conta, por exemplo, que a Caiuá chegou a mandar mensagem para todos seus funcionários no Mato Grosso do Sul convocando-os a manifestarem apoio à Caiuá, para que a ONG continuasse com os convênios. Do contrário, todos seriam demitidos.
“Os funcionários foram para a rua, para o DSEI, para polo de saúde, para a BR, manifestando apoio a Caiuá. Eles usam os próprios funcionários para manter os convênios. Se os funcionários não manifestassem apoio, em 30 dias, todos estariam desempregados. E as pessoas, mal informadas, obedeceram”, afirma.
Segundo Lindomar, a Caiuá em Campo Grande nem se preocupa em ter escritório próprio. Em vez disso, aproveita-se da estrutura dos distritos que comanda. “Quando assumimos o DSEI, descobrimos que ela usava uma sala, as viaturas, telefone, internet, água, luz, tudo dentro dele. Como ficamos apenas 3 meses, não conseguimos removê-los, ela continuou e a nova gestão tomou conta. Esta é a forma que eles atuam no estado”, acusa.

Alvo do TCU

Na sua cidade-sede, a Caiuá sempre chamou atenção: foi um dos alvos da chamada “CPI da Desnutrição Indígena”, finalizada em 2008. Na época, o escândalo da morte de mais de 80 crianças indígenas no Mato Grosso do Sul, vítimas de desnutrição ou de doenças associadas à inanição, teve repercussão internacional. O relatório da CPI indicou que havia conflitos de funcionários que não aceitavam o modelo de gestão terceirizado, questionado pelo Ministério Público do Trabalho e pela Controladoria Geral da União.
Para o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua em Dourados há 9 anos, um dos fatores que dificultam a fiscalização é que a aplicação do recurso é descentralizada. “Torna-se uma investigação um pouco mais difícil porque em tese esses desvios são realizados nos locais sede e não aqui, em que receberiam só o pagamento. Esse é um fator que dificulta, especialmente com o crescimento que a Caiuá teve nos últimos anos”, afirma.
Há em curso contra a Caiuá também uma investigação do Ministério Público Federal e um processo em andamento no Tribunal de Contas da União (TCU) para auditar convênios da Sesai em todo o país. O processo foi enviado para relatoria do ministro Bruno Dantas em novembro de 2016 e aguarda julgamento do plenário colegiado do TCU, ainda sem previsão de acontecer. A reportagem teve o pedido de acesso ao processo negado.
No entanto, em entrevista, o secretário do TCU no Mato Grosso do Sul, Tiago Modesto, afirma que foram encontradas irregularidades nos convênios das três entidades responsáveis pela contratação de pessoal para os distritos sanitários (Caiuá, IMIP e SPDM). Segundo ele, a auditoria analisou se os profissionais contratados cumpriam a obrigação laboral de acordo com o total de horas previsto no sistema; se a fiscalização da gestão do convênio estava sendo realizada conforme a lei (Portaria Interministerial 507 e Decreto 8.901 de 2016); e se os cerca de 15% do valor de cada convênio para gestão do contrato foram de fato gastos com despesas administrativas.
“O que posso dizer no momento é que todas as entidades apresentaram desconformidades em relação à lei”, adianta Modesto. Segundo ele, a auditoria não partiu de uma denúncia específica, mas porque o volume de recursos repassados para a Caiuá chamou a atenção por ser alto demais.
“Convênios em geral possuem algumas fragilidades de controle, não costumam ter um controle muito apurado”, assume o secretário.
No site do TCU, já estão disponíveis o acórdão 863/2017 e o acórdão 2187/2016 , que servirão de base para o julgamento do plenário. Lá, a Caiuá é intimada a fazer ajustes:
“Dentre as determinações dirigidas à Sesai, destaca-se a que se propõe exigir das convenentes “que todos os profissionais atualmente contratados e ativos comprovem junto às entidades a compatibilidade de seus vínculos adicionais”, bem como a que fixa prazo de 90 (noventa) dias à Sesai para exigir dessas entidades, inclusive da Missão Evangélica Caiuá (responsável pelos indígenas de Dourados/MS), providências com vistas a inserir nos planos de trabalhos de cada um dos convênios demonstração das estruturas de pessoal necessárias para sua gestão..”  

Outro lado: Caiuá nega irregularidades

Em entrevista concedida pelo seu coordenador de convênios, Demétrius Pareja, e pelo seu presidente nacional, Geraldo Silveira, a Missão Evangélica Caiuá negou todas as irregularidades e afirmou que assumiu os convênios com a Sesai “a contragosto”. Os dois representantes alegam que, no chamamento público de 2013, a intenção era administrar menos DSEIs mas que acabaram assumindo mais distritos “porque não tinha ONGs interessadas”, e a experiência da entidade a credenciava para assumir a responsabilidade.
A Caiuá também afirmou que todas as suas prestações de contas foram realizadas em dia e que, auditadas por instituições públicas, não apresentaram nenhuma irregularidade até o momento. Lembrou ainda que os dados podem ser vistos pelo sistema de convênios do governo federal em tempo real com total transparência.
Segundo seus representantes, a assembleia da instituição já deliberou que a Caiuá irá entregar todos os convênios até o fim de 2017 – ou no máximo até o fim de 2018, caso sejam ampliados pelo ministro Ricardo Barros. Mas após quase 20 anos atuando diretamente na saúde indígena, não participará de novos editais ou chamamentos da Sesai. “Os questionamentos e críticas quanto ao modelo de saúde indígena têm caído nas nossas costas. Isso tem trazido mais prejuízo que benefício para a imagem da instituição”, diz Silveira. Encerrados os atuais convênios, “está oficializado que a Missão não vai participar de novos chamamentos”, comprometeu-se.
Segundo eles, o volume de recursos recebido pelo governo federal teria passado a inibir as doações que sempre mantiveram as ações da instituição desde a sua fundação. De acordo com Pareja, o risco não compensa. “Acumulamos muitos questionamentos e inseguranças jurídicas. Gerir 9 mil funcionários é um risco institucional muito grande. São muitos políticos se arvorando como parte da Caiuá ou nos execrando porque não colaboramos com eles”, defende-se.
As doações recebidas de igrejas brasileiras e do exterior teriam caído mais de 60% em função do protagonismo que a Caiuá assumiu e das centenas de milhões que recebe por ano. “Quando mando uma circular pedindo uma doação para o hospital, por exemplo, a resposta que tenho é ‘porque vamos doar se vocês já recebem tanto?’. Isso é um incômodo muito grande para a instituição”, diz Silveira.
Segundo a entidade, as irregularidades apontadas em ação do Ministério Público do Trabalho de Roraima foram em função de responsabilidades não cumpridas da União. E reiterou que está ciente das investigações em curso do Ministério Público, do TCU e da Polícia Federal mas que, até o momento, a Caiuá não foi condenada e que garante total transparência na sua atuação.
A Caiuá negou qualquer relação com os políticos citados na reportagem que não a meramente protocolar e formal e também que o senador Romero Jucá tenha atuado como seu padrinho. Demetrius Pareja afirmou ainda que sua relação com Antonio Alves, secretário da Sesai, era cordial e próxima, mas absolutamente funcional.
A ONG também negou expressamente que mantenha funcionários fantasmas. Os representantes dizem que jamais ameaçaram ou assediaram moralmente seus funcionários de forma institucional e que todo caso esporádico foi investigado e punido internamente. Por fim, seus representantes reforçaram que a ONG sempre ficou à margem de eventuais disputas políticas.

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)

Le Monde: A violência e o retorno do Leviatã

 

O problema é que esse modelo de democracia está em crise e na falta de opção, as pessoas vão cambaleando para a única opção que conhecem: o culto ao Leviatã. Ironicamente, passam a odiar o que foram ensinadas a amar.
por: Raphael Silva Fagundes e Wendel Barbosa
29 de setembro de 2017
Crédito da Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

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Na manhã de domingo, do dia 17 de setembro, moradores da Rocinha acordaram ao som de tiros, num conflito interno entre os traficantes da comunidade. Na noite do mesmo dia, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, mais um policial militar foi morto, o 103º. Em julho, moradores da Vila Kennedy, zona oeste do Rio de Janeiro, fizeram um protesto – contra a violência corriqueira no bairro – na principal avenida que corta o estado, a av. Brasil. Em matéria no site do Jornal O Globo, de 18 de setembro, a manchete estampada dá conta de que mais de 3 mil estudantes estão sem aulas devido a operação policial na zona sul: seis escolas, quatro creches e um espaço de desenvolvimento infantil.
Todos os dias nos deparamos com chamadas parecidas em nossos noticiários. Os números baseados em registros de ocorrência lavrados nas delegacias policiais de todo o estado do Rio de Janeiro, dão conta que – em comparação à 2016 – os casos de homicídio doloso subiram 10,2%, latrocínio subiu 21,2%, homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial subiram 45,3% (581 casos até julho passado) e roubo de veículos subiu 40,2% .Existe um consenso popular, pautado pelo senso comum, de que os noticiários só nos mostram desgraças. A violência é um tema que está muito em evidência ultimamente na sociedade brasileira. A mídia nos tem bombardeado com notícias sobre como é triste a nossa realidade. E o mais interessante disso tudo, é que a opinião formada é de que ela – mais do que um fenômeno, geralmente, urbano que cresce na mesma proporção do aumento populacional e em momentos de crise econômica – é recente.
No ócio, segundo Theodor Adorno, “as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema” . Da mesma forma, os noticiários – como parte dessa indústria do entretenimento – acaba por massificar a ideia de violência em nossas mentes. O criminalista Antônio Carlos Mariz de Oliveira – em entrevista para o jornalista Luis Nassif – diz que a “TV não veio só para o Ibope, mas para servir a sociedade como instrumento de formação. Mas, a TV teatraliza, instiga e assinala para a sociedade que a única resposta possível ao crime é a prisão” .
Para o sociólogo Max Weber, o Estado seria um instrumento de violência organizada, que possui o legítimo monopólio do uso da força. Ou seja, tem o direito de recorrer à força sempre que houver necessidade . A violência, dessa forma, muitas vezes só é combatida com mais violência, seja ela física ou moral. Nesse sentido, nos é apresentado um modelo legítimo de violência relacionado aos interesses dos grupos que detém o poder político e econômico. O Estado, desta maneira, orquestrado por grupos que mantém sua hegemonia, na medida em que afasta qualquer ideia de luta de classes, cria os monstros para os quais devemos apontar nossa ira, justificando o controle social. Enfim, o grande truque é fazer com que a sociedade passe a acreditar na proteção contra um inimigo comum, indesejado por todas as camadas sociais, forjando, assim, um discurso de legitimidade.
Na era moderna, durante as monarquias absolutistas, o crime era encarado como uma sublevação ao soberano que fazia valer sua força através do triunfo das leis que criou. O suplício teria uma função jurídico-política: a busca pela verdade e a reconstituição da soberania lesada . Nesse sentido, as execuções públicas, encaradas como um espetáculo, colocava o povo como testemunha e, ao mesmo tempo, o coagia – pelo poder exposto – a temer caso fosse desobediente. As pessoas devem perceber que o criminoso foi punido, pois a pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram falta. Atualmente, ao contrário do que acontecia na época dos suplícios, “a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez que inteiramente comprovada” . O espetáculo da mídia é o principal instrumento de comprovação da criminalidade latente entre nós.
Dessa forma, todos somos uma pequena engrenagem que mantém funcionando todo um sistema de opressão. O corpo – como acredita Foucault – só será útil na medida em que for obediente . Para isso é necessário a disciplina através da vigilância. Toda vez que a ideia de impunidade é reclamada, o que se deseja, portanto, é demonstrar que o conjunto de costumes e hábitos fundamentais da sociedade foi violado. Dessa forma, partindo do princípio de Weber, a veiculação dessas notícias, nos meios de comunicação de massa, busca o consenso da sociedade civil à violência praticada pelo Estado. Só ele pode restaurar o ethos perdido, que visa o retorno do controle sobre os seus corpos.
É na falha do Estado em demonstrar esse controle que discursos mais autoritários como do deputado federal Jair Bolsonaro, ou do General Antônio Hamilton Martins Mourão, Secretário de Economia e Finanças do Exército – que em palestra promovida, no dia 15 de setembro,numa loja maçônica, em Brasília,defendeu uma intervenção militar no país – ganham cada vez mais força. Ambos, já homenagearam publicamente – a título de curiosidade – o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, reconhecido pela Justiça brasileira como torturador durante os anos de ditadura militar no país. Com o sentimento de impunidade e insegurança, para muitos, é preferível a estabilidade da retórica autoritária a defesa de princípios democráticos básicos como a liberdade.
O retorno do Leviatã
Mas a violência na cidade, de acordo com a mídia, está sempre relacionada à crise econômica. Trata-se da transformação da violência cotidiana em violência simbólica. Sim, pois tem o objetivo de monopolizar a interpretação das causas da violência, depositando toda a culpa no Estado, na corrupção e não na lógica da sociedade de consumo que está alheia a uma distribuição mais igualitária das oportunidades.
Pensa-se em punir as populações marginalizadas espetacularmente, com drama e entretenimento, para não nos inclinarmos a pensar nas causas sociais e econômicas de sua marginalização. Hipnotizados ficamos com a imagem em movimento. A mídia estipula uma definição da realidade calando todas as outras com o interesse de manter as relações sociais tradicionais intactas.
A partir dessa lógica, surge um paradoxo: ao mesmo tempo em que se exige um Estado forte para a repressão, exige-se, também, um Estado mínino para o mercado. Qualquer distúrbio que atrapalhe a circulação e exibição das mercadorias deve ser apaziguado. O espetáculo midiático nos faz crer nessa sentença sem que percebamos. E dessa violência simbólica, nasce a violência física que alimenta a cultura punitiva de nossa sociedade. Entregamos a liberdade em troca de um modelo de segurança que não visa a paz social, mas o tráfego das mercadorias. Não se pensa nas pessoas, mas nos consumidores em potencial. Consumir não pode ser arriscado, esse é o lema.
Esse raciocínio, que não dá as caras, mas está submerso nas relações discursivas, torna-se perigoso por uma questão singular de nossa época. A hegemonia da democracia burguesa enfraqueceu todas as alternativas a ela. Tudo que não representa a democracia ocidental, simbolizada, principalmente, no modelo estadunidense, é considerado autoritário, espúrio e enganador. Ou preservamos a nossa democracia, ou seremos submetidos ao domínio tirânico de um Leviatã. A indústria cultural é a principal geradora desse discurso maniqueísta, com seus supermans, x-mens e vingadores.
O problema é que esse modelo de democracia está em crise e na falta de opção, as pessoas vão cambaleando para a única opção que conhecem: o culto ao Leviatã. Ironicamente, passam a odiar o que foram ensinadas a amar. E a amar o que foram adestradas a odiar. O monstro lendário é requisitado novamente para conter a violência latente nos seres humanos. A grande imprensa valoriza os depoimentos de moradores, turistas e comerciantes que celebram a presença dos militares. É desta forma que os discursos radicais ganham espaço, seduzindo as pessoas a seguirem essa lógica bipolar criada pela cultura política hegemônica.
Tal discurso não prejudica o andamento dos lucros do mercado, pois se baseia apenas na repressão social, e não na resolução da queda do desemprego, na valorização dos profissionais da educação e das condições físicas das escolas, e o mesmo serve para a saúde e assistência social. As elites endinheiradas querem sim que nos revoltemos, mas não contra elas, e sim contra o Estado, exigindo que ele nos reprima mais, que exerça de fato a violência física, fazendo justamente o que foi criado para fazer.
*Raphael Silva é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
** Wendel Barbosa Pós-graduado em História social e cultural do Brasil pela FEUC e professor da rede estadual e particular de ensino.

[3]http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/07/29/internas_polbraeco,613518/violencia-no-rio-de-janeiro-aumentou-no-primeiro-semestre-de-2017.shtml
[4]ADORNO, Theodor W. Industria Cultural e Sociedade. 5 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 116.
[5]Ver http://jornalggn.com.br/noticia/a-influencia-da-tv-aberta-na-violencia-difusa
[6]Ver WEBER, Max.  “A Política como Vocação”. Em Ciência e politica: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993..
[6]FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas prisões. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 2001,p. 232.
[7]FOUCAULT, op cit,p. 42.
[8] RODRIGUES, Thiago. Rio de Janeiro sitiada? Le Monde Diplomatique Brasil, ano 11, n. 122, set. 2017, pp. 10-11.
[9]FOUCAULT, op cit,p. 82.
[10]FOUCAULT, op cit,p. 119.
[11] Questão levantada por GARLAND, David. La cultura Del control: crimen y orden social en la sociedad contemporânea. Traducción de Máximo Sozzo. Barcelona: Gedisa, 2005.p. 323

 

O que as cotas raciais têm feito comigo?

                                           


O que as cotas raciais têm feito comigo?
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Entro em sala de aula. Olho para os lados. Somos cerca de 40 pessoas para mais um dia de aula, entre eles, pelo menos 30% de estudantes negros/as. Há também a presença de estudantes gays e lésbicas, que exibem, orgulhosos/as, símbolos e camisetas que os/as identificam com causas dos ativismos LGBTTs.
A universidade mudou. Os efeitos ainda não estão elaborados porque são rizomáticos. Talvez a forma como penso a relação entre a minha biografia e a cor da minha pele seja um destes efeitos invisíveis.
A primeira vez em que escutei que a cor da minha pele me conferia privilégios, reagi com estranheza. Ora, como é possível que uma filha de empregada doméstica, retirante, estudante de escola pública que começou a trabalhar aos 15 anos de idade possa ser considerada uma privilegiada? O que é um privilégio?
Privilégio é aquilo que você herda e é socialmente reconhecido/a como um bem material ou/e simbólico. “Reconhecido/a” não porque se tratem de atos absolutamente conscientes, mas sociais. O fato de você ser reconhecida como branca tem o dom mágico de abrir portas. É como se fosse um passaporte que pode te levar para lugares interditados aos/às que não o possuem.
Mas… Qual seria, afinal, o meu privilégio? Hoje, faço parte da elite universitária, sou doutora, com pós-doutorado, embora continue fazendo da minha vida um lugar de luta pela transformação e justiça social. A primeira reação, portanto, seria relatar a mim mesma como alguém que “conseguiu” vencer na vida por mérito, reatualizado o mito midiático da heroína que subverte seus destinos inscritos no corpo. Será?
Volto com certa regularidade ao bairro onde morei por longos anos. Às vezes me encontro com colegas do meu tempo de escola. Há uma regra geral: as amigas negras trabalham no supermercado ou em outro trabalho mal remunerado. Não consegui refazer os rastros dos meus colegas negros.
Lembro que, algumas vezes, uma colega e eu fomos juntas tentar um emprego de garçonete. Eu consegui. Mandaram-na voltar depois. Tínhamos entre 14 e 16 anos. Ela era negra. Na escola, nossas notas eram muito próximas. O que me diferenciava da minha amiga? A classe social? Não. A cor mais clara de minha pele me deu coisas, me abriu portas. Foi meu passaporte. Conforme fui atravessando os funis da vida universitária, a cor da minha classe foi ficando mais homogênea.
Neste jogo de reinterpretação da minha própria existência eu também me pergunto o que o gênero em que eu fui construída – o feminino – me tirou? Quais as portas que se fecharam por ser paraibana no contexto carioca, em que um xingamento recorrente é chamar o outro paraíba?
É como se a consciência dos dividendos do período da escravidão fossem sendo lentamente revelados para mim e localizando minha própria existência em um fluxo histórico que eu não controlei, em uma narrativa fora de mim, mas que encontra seu “agora” histórico (nos termos do Walter Benjamin) também em minha existência.
Minha questão é tentar entender como os dados de exclusão social, política e econômica da população negra se conecta com a minha própria inclusão. Não se trata de uma falta de consciência histórica dos sentidos dos 388 anos de escravidão no Brasil, mas, agora, eu também estou interessada em amarrar a existência desta história aos meus relatos.
De forma alguma reler minha biografia vinculando-a a contextos mais amplos, acredito, resvala para um juízo moral. Este movimento de reinterpretação, de cavar camadas antes adormecidas de minha memória, não teria sido possível se, um dia, estudantes negros/as em sala de aula não tivessem me questionado sobre meus próprios privilégios de raça, se estudantes não inundassem a sala de aula com suas histórias pessoais de violência do Estado. Estudantes que representam, geralmente, a primeira geração de suas famílias a ingressar em uma universidade.
Recentemente, assistimos a um episódio do seriado Black Mirror que contava a história de como um exército desenvolveu uma técnica para distorcer a realidade e fazer os/as soldados matarem sem culpa. Estava acoplado aos capacetes um dispositivo que transformava gente em barata. Durante a aula, estudantes começaram a contar suas próprias experiências de “baratas” (como um deles se definiu: “nós somos as baratas na sociedade brasileira”): assassinato de membros da família, prisões arbitrárias, blitz abusivas e violentas.
Olhei para os lados e me dei conta de que aquelas narrativas de terror vinham quase todas de estudantes negros/as. Saí da aula atravessada por suas histórias e me dando conta de quanto tempo eu perdi ao estar fechada para a escuta do/a outro/a. Reproduzia, assim, nos meus atos, nos meus programas de curso, uma estrutura do conhecimento na qual fui formada e que tem aversão a qualquer saber que venha poluir os cânones eurocentrados das Ciências Sociais. Enfim, tenho descoberto que tenho uma formação acadêmica, no mínimo, deficitária.
Como eu estaria no mundo atualmente se não fossem as cotas raciais? Não sei. Talvez reproduzindo o canto liberal do mérito, algo que, certamente, poderia ser potencializado pelos outros marcadores sociais da diferença que me constituem. Agora, percebo que o título deste artigo deveria ter sido: O que as cotas raciais têm feito por mim?
BERENICE BENTO é professora do departamento de Sociologia da UnB

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Mor via Folha de São Paulo

Claudio Mor

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: A vez de Paulo Câmara jogar.



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José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político


Os acontecimentos políticos de Brasília, não raro, atropelam os fatos políticos aqui da província. Em Brasília, por exemplo, se diz que o namoro entre o PSB e o PSDB já teria virado noivado - na expectativa das núpcias presidenciais que unem os interesses das cúpulas partidárias -  enquanto aqui no Estado, as rusgas entre os dois grêmios partidários permanecem, sendo ainda forte o coro daquelas aves emplumadas tucanas que apostam na construção do apoio do partido a  uma candidatura oposicionista nas próximas eleições estaduais. Num convescote em Brasília, entre lideranças do DEM, PTB e PSDB local, segundo fomos informados, ficou completamente descartada a possibilidade de os tucanos e democratas se recomporem com o Palácio do Campo das Princesas. Não pelos mesmos motivos, outro partido que deverá seguir o mesmo rumo será o PMDB, em razão das manobras da Executiva Nacional da legenda, que deverá tirar o seu comando estadual dos aliados do governador Paulo Câmara(PSB) e entregá-lo ao senador Fernando Bezerra Coelho.

Entretanto, nos últimos dias, foram protagonizados alguns movimentos no xadrez político local, dignos de registro. Depois de se sentirem preteridos na condução da gestão da prefeita de Caruaru, Raquel Lyra(PSDB), o grupo político do ex-prefeito, José Queiroz, que controla o PDT local, decidiu apoiar o projeto de reeleição do governador Paulo Câmara(PSB), passando a integrar formalmente o governo, ao assumir a Secretaria de Agricultura, provocando uma verdadeira dança das cadeiras na composição do secretariado. Contingenciado pelo formação do palanque oposicionista, os movimentos do governador Paulo Câmara no tabuleiro político pernambucano sinaliza para a recomposição de suas alianças mais à esquerda do espectro político, como o PDT e, quem sabe - o diálogo continua aberto - com o PT. As portas, como costumam informar os palacianos, nunca foram fechadas. Há algumas arestas que não serão superadas muito facilmente, mas a vontade da caciquia pode prevalecer sobre as indisposições localizadas. 

Até bem pouco tempo numa espécie de inércia -batendo na tecla do 2018 só em 2018 - o governador Paulo Câmara resolveu se mexer no tabuleiro político local, creio, muito em função dos movimentos da oposição, que a cada dia arregimenta mais forças para o embate duro que deverá ser travado em 2018 pela conquista do Palácio do Campo das Princesas. A reaproximação com o PDT constitui-se apenas num lance dessas jogadas. Nesta semana ele também consolidou o diálogo com outras siglas que dão sustentação ao governo, como o PSC, o PSD. O desfecho do imbróglio no PMDB é uma incógnita, mas ele já trabalha com a possibilidade concreta de não contar com este partido no seu palanque em 2018. A Executiva Nacional do PMDB, apesar das queixas de grandes proporções, não recuará de sua decisão. Há quase um consenso entre os analistas políticos acerca deste assunto. 

As costuras políticas pelo lado da oposição também não param. Pelo andar da carruagem política, seja lá qual for o resultado das próximas eleições, o Estado continuará controlado por alguma oligarquia política, com aquelas consequências já conhecidas. Os representantes dessas oligarquias se sentem com o privilégio de tocarem a gestão dos negócios públicos, sem sequer ouvirem as críticas dos cidadãos acerca dos desmandos na máquina. Mais do que em qualquer outro espaço, aqui fica patente as observações do historiador Sérgio Buarque de Holanda, acerca da indistinção, no Brasil, das fronteiras entre o público e o privado.


Neste cenário, entra em cena a família Ferreira, que negocia o apoio do grupo a uma das forças políticas, segundo dizem, condicionado a abertura de uma vaga na disputa ao Senado Federal a um representante do clã, o Deputado Estadual André Ferreira(PSC). A família conta com dois trunfos: o voto evangélico e a Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, com uma expressiva densidade eleitoral, administrada hoje por Anderson Ferreira(PR), cuja gestão conta com o apoio da população. Em algumas de suas aparições públicas, André Ferreira já é saudado como postulante ao Senado Federal. Resta saber se isso já foi definitivamente combinado com a frente de oposição ou mesmo com os inquilinos do Palácio do Campo das Princesas, que desejam renovar o contrato de locação por mais 04 anos. Os Ferreiras se tornaram um desses núcleos familiares capazes de influenciar bastante uma eleição no Estado.

Apesar da troca de farpas recentes com o Palácio do Campo das Princesas - em razão de uma declaração sua afirmando que Pernambuco é um Estado mais violento do que o Rio de Janeiro - O PPS também poderá compor com o PSB para as próximas eleições estaduais. A despeito de sua presença em evento da oposição na Princesa do Agreste, Raul Jungmann(PPS) tem ratificado que tudo está em fase de negociação no partido. Ainda não foi batido o martelo sobre como o PPS marchará nas eleições de 2018. A impressão que se tem é que Paulo Câmara(PSB) enxergou aí uma boa margem de negociações com os pós-comunistas, seja lá o que isso possa significar nos dias de hoje.   

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Charge! Hubert via Folha de São Paulo

oHubert

Durval Muniz: Com quem você pensa que está falando?

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Duas corporações se destacaram na luta pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef e foram decisivas para a consumação do golpe contra as instituições democráticas brasileiras: os médicos e os profissionais do direito. A criação do programa Mais Médicos, pelo governo Dilma, que pretendia levar assistência médica para as periferias das grandes cidades, para as cidades do interior, para as comunidades rurais, indígenas e quilombolas, combatendo o deficit de profissionais médicos no país, com a contratação de médicos estrangeiros, com a criação de novos cursos de medicina e novas vagas de residência médica, foi recebido com muita indignação e protestos por parte das instituições e órgãos de representação médicos. Os carrões dos profissionais médicos se encheram de adesivos em que lia “Fora Dilma, e leve o PT junto”. Os médicos cubanos foram recebidos com vaias, cascas de banana, xingamentos, agressões racistas e xenófobas. Até o velho discurso anticomunista veio à tona para justificar o que parecia não ter justificativa perante a mínima lógica: os médicos estrangeiros e brasileiros contratados pelo programa não estavam retirando o emprego de ninguém, estavam sendo enviados para áreas do país onde os médicos não queriam ir, para atender comunidades e grupos sociais que não era do interesse deles atender, estavam sendo remunerados nas mesmas bases salariais que os médicos já contratados pelo Sistema Único de Saúde e tendo acesso às mesmas condições de trabalho dos colegas, quando não enfrentavam condições de trabalho mais precárias. No entanto, os médicos se tornaram cabos eleitorais de Aécio Neves, assediando, até em seus consultórios, os clientes para que votassem na oposição. Panfletos eram distribuídos junto com receitas médicas, clientes petistas eram hostilizados, quando não negligenciados no atendimento. Médicos, profissionais que deveriam militar em favor da vida, desejando explicitamente a morte daqueles que não concordavam com suas ideias políticas. Os médicos foram presença destacada nas passeatas coxinhas: aqui em Natal, distribuíam sanduiches para alimentar os membros da corporação integrados à marcha. As principais lideranças da categoria vieram a público condenar o programa e militar por sua não aprovação no Congresso Nacional e, posteriormente, por sua extinção, colocando-se contra, até mesmo, a abertura de novos cursos de medicina no país, notadamente em cidades do interior.
Os profissionais do direito não fizeram diferente. A participação das várias instâncias do poder Judiciário no golpe é indiscutível. Aqueles que deveriam zelar pela observância das leis, pela defesa do Estado de direito, inclusive, pela defesa da Constituição foram decisivos para que leis fossem violadas, princípios básicos do direito fossem desconsiderados, que a Constituição fosse desrespeitada. A começar do vice-presidente da República, um jurista, constitucionalista, que, sabemos hoje, militou em todos os momentos pelo golpe e pela desobediência à lei maior do país. Sabemos, hoje, também, que ele não se destaca pela observância das leis. O Supremo Tribunal Federal se omitiu durante todo o processo, quando não militou a favor do desfecho que conhecemos. Até hoje não julgou o pedido de anulação do impeachment impetrado pelo advogado da presidenta legitimamente eleita. A atuação partidária e parcial de alguns de seus membros chega a ser escandalosa. O Procurador Geral da República se omitiu diante das inúmeras violações constitucionais perpetradas pelo juiz Sérgio Moro, não denunciou o deputado Eduardo Cunha enquanto esse foi importante para a realização do golpe e se mostrou parcial em inúmeras oportunidades. A Operação Lava Jato foi fundamental para a desestabilização do governo, trabalhando explicitamente para criminalizar o partido majoritário no governo, atuando para encurralar as lideranças do PMDB, obrigando-os a se afastar da aliança com o PT e tramar o golpe. As inúmeras violações à Constituição e ao Estado de direito cometidas pelo juiz Sérgio Moro, pelos procuradores que faziam parte da força-tarefa da Lava Jato, acompanhadas da espetacularização pela mídia de todas as suas ações prepararam o ambiente para o golpe. Não podemos deixar de lembrar o espetáculo promovido pela advogada Janaína Paschoal que, ao lado do jurista reacionário de priscas eras, Miguel Reale Jr, apresentaram o pedido de impeachment encaminhado por Eduardo Cunha para julgamento no Congresso Nacional. A reprovação em recente concurso na Universidade de São Paulo deixa explícito o saber jurídico da “musa do impeachment”. A Ordem dos Advogados do Brasil esteve na linha de frente em apoio à ruptura da ordem democrática e constitucional através de uma farsa parlamentar, sem nenhuma base jurídica sólida. Os cursos de direito, assim como os de medicina, espalhados pelo país, se tornaram centros de militância a favor do golpe, como haviam sido centros de militância em favor da eleição de Aécio Neves que, como sabemos hoje, mas já sabíamos à época também, tem muitas contas a ajustar com a justiça.
O comportamento dessas duas corporações – deixando claro que muito juristas e médicos não partilham dessas mesmas concepções – remetem à própria trajetória da formação médica e jurídica no país, como também explicitam a permanência entre nós de um elemento que foi decisivo na estruturação da sociedade brasileira: a lógica do privilégio. Durante todo o período colonial não tivemos a presença do ensino superior entre nós. Somente com a independência e a instalação do regime monárquico, no país, foram criadas as primeiras instituições de ensino superior, destinadas, justamente, a formatura de juristas e médicos. As Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro e as Faculdades de Direito de Recife e São Paulo foram as primeiras instituições voltadas para formar uma elite que iria servir ao regime monárquico e dirigir os destinos da nova nação. Como partes de uma ordem social, política e jurídica que ainda mantinha muitos elementos do chamado Antigo Regime, com a presença de uma pretensa aristocracia, de uma nobreza, que se destacava do todo da população por sua pertença a dadas genealogias de sangue e privilégios nobiliárquicos, os formandos dessas faculdades passaram a considerar o acesso ao ensino superior como uma marca de distinção, como um privilégio, como uma prebenda exclusiva daqueles pertencentes aos mesmos extratos sociais que eles, um privilégio estamental ou de classe. Como o ensino superior foi tardiamente introduzido no país, como as nossas primeiras universidades só foram criadas em pleno século XX, como o ensino superior continuou, por muito tempo, sendo de difícil acesso para a maioria de uma população formada majoritariamente por analfabetos ou por pessoas que tinham acesso precário às primeiras letras, consolidou-se, entre nós, a visão de que o acesso á universidade é um privilégio de que alguns devem desfrutar. Mesmo com a criação das universidades federais, a partir dos anos cinquenta, mesmo com a reforma universitária e a expansão do ensino superior realizadas após o golpe de 1964, a clientela universitária continuou se concentrando nas camadas médias e altas da sociedade.
É bastante significativo que, quando da implantação dos campi universitários por parte dos governos militares, tenha havido resistência por parte dos professores e alunos dos cursos de direito e medicina em se integrarem a essas novas instalações, defendendo a manutenção de seus antigos prédios, apartados da convivência com os alunos e professores dos demais cursos das universidades, era a lógica da superioridade ou do privilégio atuando. Os alunos egressos desses dois cursos são os únicos a receberem o título de doutor, mesmo que tenham apenas concluído a graduação, mesmo não tendo cursado o doutorado. Na maioria das outras áreas do conhecimento, mesmo que alguém tenha cursado o doutorado, não faz questão de ser chamado de doutor, já os médicos e, principalmente, os juristas fazem questão de ser assim chamados. O doutor funciona aqui como uma espécie de título nobiliárquico, ele indica a distinção e a diferença, não apenas de saber, mas inclusive de condição social. Mais ainda, a par com um sentido que vem das sociedades marcadas pela lógica do privilégio, o doutor aqui remete a pretensa existência de pessoas de uma qualidade superior às demais e, portanto, com direito a ser tratadas de modo diferenciado e ter direitos que os demais não podem ou não deveriam ter. As camadas populares brasileiras, muito marcadas pelo servilismo advindo da escravidão, chama de doutor todo aquele que é de condição social considerada superior ou distinta. Essa distinção, essa diferença em relação aos demais profissionais se explicita, também, no fato de que essas duas categorias utilizam roupas, paramentos, insígnias e, inclusive, uma linguagem que as distingue dos demais mortais. A roupa branca dos médicos, que os estudantes de medicina portam com orgulho desde o primeiro dia de aula, o paletó e gravata, obrigatórios para todos os membros do judiciário, a toga, remetem a uma sociedade de corte, a uma sociedade aristocrática, onde a distinção entre nobres e plebeus, inclusive, em relação ao burguês, ao morador das cidades, deveria ser visível, a começar pelas vestimentas e ornamentos. A escrita ininteligível dos médicos, o uso de uma terminologia própria, assim como a retórica medievalizante dos operadores do direito, com o uso de expressões em latim, com o emprego de palavras raras e imagens de pouco uso, são fundamentais para reproduzirem essa aura de seres especiais, privilegiados, distintos, de um saber superior e raro, em relação aos demais. A própria autoridade do médico e do jurista, o poder quase discricionário de que gozam, podendo, em uma fala, com uma penada, condenar alguém à morte ou à prisão, são pouco afeitas a uma sociedade democrática, republicana e cidadã.
Como estamos presenciando nestes dias que correm, no país, as leis podem ser utilizadas para perseguir e cometer injustiças, o que foi uma constante na história da justiça brasileira. Temos uma justiça que explicita bem o que é a própria sociedade a que pertence, sendo em muitos casos misógina, racista, homofóbica, perpetuadora de preconceitos e privilégios. Tanto o acesso a medicina de ponta, como o acesso à justiça continua sendo um privilégio na sociedade brasileira e, seus profissionais vêm, quase sempre, das camadas privilegiadas da sociedade e raciocinam e agem na defesa do privilégio. A lógica familista, típica da sociedade brasileira, se faz aqui presente, com os consultórios médicos passando de pai para filho, assim como os escritórios de advocacia, as togas, os cargos públicos. Muitos profissionais dessas áreas, pela própria formação que receberam e sua origem social têm pouco apreço pelas camadas populares, têm conceitos bastante desabonadores de seus clientes pobres, oferecendo para eles o pior serviço possível. Vistos ainda como plebe ignara ou como homens sem qualidades morais, sociais, éticas e até humanas, são tratados como gente de segunda categoria, não como cidadãos portadores dos mesmos direitos e deveres. Esses profissionais, formados na lógica do privilégio, só podem ser péssimos servidores públicos, já que possuem um baixo conceito acerca do público a que atendem, não os considerando merecedores do mesmo atendimento que dão àqueles privilegiados socialmente como eles.
Na sociedade contemporânea brasileira, estamos no pior dos mundos, pois essa lógica do privilégio não moderna, veio se articular com o desenvolvimento do capitalismo entre nós, dando a ele uma face muito particular. O ter dinheiro, o ser rico, o ser burguês se tornou sinônimo de ser alguém com direito a dados privilégios, inclusive, perante as leis. Ao mesmo tempo, essas categorias de profissionais liberais, vêm perdendo status social no interior da sociedade de mercado, vêm se proletarizando, o que gera um medo pânico em relação a perda de seus poucos privilégios ainda existentes, muitos deles de ordem apenas simbólica. Diante da ameaça de proletarização, essas categorias dos extratos médios da sociedade tendem a reagir ao processo de ascensão social dos mais pobres, ocorridos nos últimos anos no país. O fato das políticas educacionais, implantadas nos últimos anos, estar levando membros das camadas populares para os bancos das faculdades de medicina e direito acendeu o sinal de alerta, chamou atenção para esse processo de proletarização e ameaçou fortemente a prevalência da lógica do privilégio. A democratização do ensino superior, a adoção de políticas republicanas visando tornar as universidades públicas acessíveis aos mais pobres mexeu fortemente com esse imaginário do privilégio que ainda está presente nas faculdades de direito e de medicina. Os quase deuses têm que, agora, cair na real. A reação corporativa de médicos e juristas a várias ações de governos eleitos pela população, a pretensão de muitas instâncias do Judiciário de se apropriar de cada vez maior parcela do Estado, afrontando os representantes da soberania popular, aqueles que foram eleitos pelo povo, a defesa de privilégios insustentáveis numa verdadeira democracia como: salários acima do teto do funcionalismo, as várias gratificações e sinecuras que faz da justiça brasileira uma das mais caras do mundo, explicitam a sobrevivência, entre nós, dessa lógica do privilégio. Agir corporativamente, na defesa de interesses particulares, em detrimento dos interesses da sociedade, em detrimento dos cofres públicos, inclusive no desrespeito a lei, é um indício de que essas categorias ainda estão imbuídas de uma lógica estamental e nobiliárquica.
Para muitos médicos brasileiros foi um acinte verem desembarcar os médicos cubanos no país. Eles eram, em sua maioria negros, vinham de condição social humilde, vinham de um país considerado mais pobre e inferior ao Brasil, além de que vinham trazer uma outra maneira de entender a prática da medicina, não transformada, principalmente, numa mercadoria visando dar dinheiro e status social, por isso foram vistos como comunistas perigosos. O racismo, um dos elementos estruturantes da sociedade brasileira, o fato de que a categoria médica, no país, é formada, em sua maioria, por gente que se considera branca, foi responsável pela recepção hostil que os colegas cubanos tiveram entre os médicos brasileiros, o que não aconteceu por parte da clientela, a maioria formada por pessoas pretas e pardas, vivendo nas periferias, que os recepcionaram muito bem. O racismo faz com que os negros e pardos formem a grande maioria da população carcerária, já que a presença de negros entre os operadores do direito é uma raridade. A forma ressentida com que o ministro Joaquim Barbosa atuou no STF, sua ira antissistêmica, que o levou a se tornar mais um paladino do que um juiz, julgando sem qualquer equilíbrio, só não foi maior do que a hostilidade que alguns colegas a ele devotavam, como a famosa diatribe com o ministro Gilmar Mendes explicitou.
Todos nós já escutamos, algum dia, a frase que dá título a esse artigo: Com quem você pensa que está falando? Ela é a materialização na linguagem da lógica do privilégio, da ideia de que existe alguns melhores que outros, alguns que têm mais direitos que outro e menos obrigação que os demais. Quando você é interpelado por essa frase é para que você se coloque em seu lugar de subalterno, para que você reconheça que está diante de alguém diferente dos demais, superior aos demais, que deve ser tratado com deferência e diferença. Ela aponta para o fato de que você cometeu um equívoco ao considerá-la uma pessoa como outra qualquer, uma pessoa com os mesmos deveres das demais. Essa frase normalmente é dita quando, numa dada situação, se cobra que alguém cumpra as leis, cumpra as obrigações, aja como deveria agir qualquer um. O problema é que essa pessoa não se considera uma pessoa comum, com os mesmos direitos e deveres que os demais. Portanto, uma sociedade fundada na lógica do privilégio terá uma enorme dificuldade em construir instituições democráticas e republicanas, terá uma enorme dificuldade de compreender, inclusive, o verdadeiro sentido da vivência da cidadania. Ser cidadão é justamente gozar de direitos e possuir deveres comuns a todos os demais. A cidadania foi entendida desde a emergência dos regimes políticos fundados na soberania popular como sendo universal, estendida a todos os membros da população da nação. Não pode haver cidadania efetiva quando alguns se julgam melhores do que outros, quando uns defendem seus interesses corporativos em detrimento dos direitos do restante da população, não existe cidadania quando se aparelha as instituições e o Estado para o atendimento de demandas corporativas e individuais. A cidadania é condição de acesso, a todos, à fala pública, quando todos podem falar e quando se pode falar com todos sem que se tenha que perguntar com quem se está falando.

Durval Muniz é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, agência de reportagem, aqui reproduzido com a autorização do autor)

 

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Editorial: Um pacto pela segurança pública



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Um cronista da política local, em sua coluna de hoje, informa que, apesar de convidados, os representantes da Princesa do Agreste na Assembléia Legislativa do Estado não compareceram ao ato que reuniu a prefeita de Caruaru, Raquel Lyra(PSDB) e autoridades do Governo Paulo Câmara(PSB), ocorrido recentemente no Palácio do Campo das Princesas. O governador, em viagem, não pode receber a prefeita, mas, segundo consta, um novo espaço na agenda oficial será reservado para o encontro. Até bem pouco tempo uma vila tranquila, Caruaru tornou-se uma das cidades mais violentas de Pernambuco, como consequência, segundo dizem, da presença efetiva de grupos organizados dedicados ao tráfico de drogas na região, aliado ao fluxo de comércio local. Apesar de derrotados nas urnas, não se justifica a ausência desses parlamentares ao encontro, numa evidente demonstração da ausência de espírito público, como quem estivesse torcendo para o quanto pior melhor, apostando no desgaste da gestão da tucana.

Conforme já informamos por aqui, segurança  pública é algo que atinge a todos, agentes públicos e privados, independentemente das colorações partidárias ou outras quaisquer idiossincrasias. Na cruzada com o objetivo de enfrentar o problema em sua cidade, a prefeita Raquel Lyra(PSDB) vem mostrando um grau de despojamento e espírito público dos mais elogiáveis. Uma pena que a política local ainda seja movida por picuinhas desse tipo, onde se ignora um convite para debater um tema da mais alta importância para o município, quando o cardápio - se carne de sol ou carne de charque, como diria a raposa Drayton Nejaim no passado - é o de menos. A prefeitura elaborou um plano municipal de segurança pública e veio discuti-lo com as autoridades da área no Governo do Estado. Como se sabe, a vitória de Raquel Lyra representou uma derrota política significativa para o grupo palaciano, mas não impediu que a prefeita abrisse um canal de diálogo com o Governo do Estado, em razão de sua responsabilidade pública.

Louvável a atitude pro-ativa da prefeita do município, ao recorrer aos dispositivos locais que possam contribuir para minimizar o problema da violência naquele município. No entanto, assim como as autoridades estaduais cobram ações do Governo Federal, naturalmente, algumas medidas dependem exclusivamente do Governo do Estado e foi neste sentido que a prefeita procurou as autoridades de segurança. O tema segurança pública é algo muito complexo, envolvendo uma união de esforços entre atores estatais e privados, em todas as suas esferas. Um dos motivos pelos quais o Pacto Pela Vida fracassou, conforme analistas, é que, ao longo dos anos, por problemas de gestão, os diversos atores direta e indiretamente envolvidos sobre a questão, ao invés de ampliarem esse diálogo, foram se distanciando. O PPV previa, de acordo com o sociólogo José Luiz Ratton - o sistematizador daquela política de segurança pública - uma espécie de conselho de gestão, que nunca chegou a ser efetivado. Hoje, se comparado ao PPV criado em 2007, tornou-se uma mera caricatura, que conserva o nome apenas por uma questão de marketing institucional.

O que mais se observa são as farpas trocadas de lado a lado, sem que as soluções, de fato, apareçam. Sinceramente, a postura da oposição ao Governo Paulo Câmara não é das mais plausíveis. O que há é uma exploração do tema, de olho nas próximas eleições estaduais, onde o assunto deverá ser o mote de campanha. Até recentemente, numa entrevista concedida ao canal Globo News, o Ministro da Defesa, Raul Jungmann(PPS), teria afirmado que a violência em Pernambuco é maior do que a violência no Rio de Janeiro. Isso foi o suficiente para reacender a polêmica, levando o Estado a soltar uma nota à imprensa, contestando o ministro. Deus nos livre desse campeonato macabro, sobre onde se mata mais, se aqui ou lá nas favelas cariocas. Vamos é abrir um amplo diálogo social para que a solução do problema seja encontrada aqui e alhures, de preferência sem a presença das Forças Armadas que, além de não terem recebido treinamento para essas funções, depõe contra uma atmosfera de normalidade democrática, sobretudo nesses momentos bicudos, acompanhados de declarações bombásticas.

       

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

O xadrez político das eleições estaduais de 2018, em Pernambuco: Ato de desagravo a Jarbas reúne velhos "companheiros".



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José Luiz Gomes da Silva

Cientista Político


As manobras políticas da família Coelho, em Pernambuco, criaram um ambiente nada favorável ao grupo. Sem ambiente entre os antigos companheiros socialistas, eles tiveram uma aterrissagem tumultuada no seu novo grêmio partidário, o PMDB, onde chegaram para ditar as regras e não se submeterem a elas. A guinada representa, claramente, a construção de uma candidatura própria do partido nas próximas eleições estaduais, o que significaria um rompimento com o projeto de reeleição do governador Paulo Câmara(PSB), hoje encampado pelo vice-governador, Raul Henry(PMDB), assim como pelo Deputado Federal Jarbas Vasconcelos(PMDB). Mas, ainda assim, os problemas não terminaram por aí. O protagonismo de uma possível candidatura majoritária do grupo também gerou algumas indisposições entre os integrantes da "Conspiração Macambirense", uma vez, a rigor, nomes definidos, em princípio, não há. 

A reação dos peemedebistas locais às manobras urdidas pela cúpula nacional da legenda foi dura e hoje já se fala até mesmo na impossibilidade de uma dissolução do diretório estadual, como chegou a ser cogitado. O impasse, no entanto, está mantido. Como conciliar situações tão antagônicas? Seguindo os conselhos de uma raposa política local, ligado ao DEM, de que "cobra que não anda não engole sapos", além de engoli-los, o vice-governador e presidente do diretório regional do PMDB, Raul Henry, resolveu digeri-los no Palácio do Planalto, em conversa reservada com o então presidente em exercício, Rodrigo Maia(DEM), profundamente descontente com as manobras dos peemedebistas, que assediam, sem o melhor constrangimento, os dissidentes de outros grêmios partidários, impedindo, segundo ele, o crescimentos dos Democratas. Essas rusgas já se transformaram em declarações veladas do presidente da Câmara dos Deputados. 

Por aqui,farpas surgem diariamente, de lado a lado. Farpas que já estão se transformando em portarias publicadas no Diário Oficial do Estado, exonerando dos cargos os afilhados políticos do hoje desafeto e renegado senador Fernando Bezerra Coelho. Há quem assegure que FBC desejava ser o indicado para concorrer ao Governo do Estado nas eleições passadas. Foi preterido pelo ex-governador Eduardo Campos, que indicou Paulo Câmara para concorrer ao cargo. Eleito senador da República, teria pleiteado a Secretaria de Desenvolvimento Econômico para o filho, o Ministro das Minas e Energias, Fernando Filho. O pleito não foi atendido, ampliando as insatisfações da família Coelho, que alegam que não tiveram a oportunidade de colaborar com o Governo Paulo Câmara(PSB). Os Coelhos chegaram a acomodar alguns afilhados na máquina, mas em cargos de menor projeção. 

Os impasses políticos aqui da província, no entanto, parecem não preocupar a família Coelho. O senador Fernando Bezerra Coelho, por exemplo, não reduziu seu ritmo de articulações, mantendo encontros com prefeitos tucanos e peemedebistas. Os movimentos indicam que ele deve ter algumas garantias da cúpula nacional da legenda quanto ao desfecho do impasse criado aqui no Estado, envolvendo a executiva estadual do partido. Aqui se aplica uma máxima atribuída ao ex-governador Paulo Guerra, que afirmava que em política não existiam "nunca" nem "jamais". Tudo é possível, até mesmo um acordo conciliador entre as partes em litígio. Confirmada as articulações aliancistas entre o PSB e o PT, por exemplo, Jarbas não teria condições para permanecer no palanque situacionista em 2018. Morubixabas do DEM estavam presentes no ato de desagravo em seu favor, promovido recentemente. Que leitura pode ser feita do fato? Apenas em nome dos velhos "cozidos" dos tempos ainda da União por Pernambuco? Ou, quem sabe, em razão dos laços afetivos entre eles? Sabe-se, no entanto, que uma das possibilidades de migração do clã Coelho seria justamento o DEM. Em tese, ele estaria mais para os Democratas do que para o PMDB.  

Conhecemos os amigos verdadeiros nas adversidades. Em razão da natureza do ato, é arriscado tirar conclusões políticas da presença dos Democratas. Em sua justificativa, o ex-ministro Gustavo Krause lembrou de episódios do passado, onde contou com a solidariedade de Jarbas Vasconcelos. Vamos admitir que sim. Outro dia, um dos nomes cotadíssimo para assumir a liderança oposicionista, na condição de candidato ao Governo do Estado nas eleições de 2018, chegou a comentar sobre a possibilidade da não existência de nomes consolidados. Um cientista político, em artigo num blog local, nas entrelinhas, cogita sobre o lançamento de um "novo" nome no cenário da disputa de 2018, o que se constituiria como algo "improvável", do tipo da expressão "Nixon vai à China". Reagindo às movimentações do campo oposicionista, o Palácio do Campo das Princesas resolveu intensificar as articulações em torno das próximas eleições. Na contingência de perder o PMDB, amplia o diálogo com o PSD e chama para conversar o PPS, cuja a maior liderança no Estado, o ministro da Defesa, Raul Jungmann, esteve presente naquele famoso encontro de Caruaru, onde o grupo político oposicionista consolidou-se. Mas, como dizem eles, 2018 só em 2018. 

E, por falar em Caruaru, a prefeita Raquel Lyra, do PSDB, vem ao Recife para um encontro no Palácio do Campo das Princesas, onde deverá ser recebida pelo chefe de gabinete, João Campos(PSB). A prefeita traz, para a apreciação das autoridades do Estado, um plano de segurança pública elaborado pelo município, que hoje ostenta um dos maiores índices de violência. Para situações como esta, não existe oposição nem situação. Segurança pública é um problema de toda a sociedade. As autoridades públicas devem ser cobradas, mas chega a ser uma irresponsabilidade tirar dividendos políticos de situações como esta, onde o Estado parece ter chegado ao fundo do poço, com o malogro de várias tentativas de enfrentar o problema. Voltaremos a discutir este assunto por aqui, mas o quadro é realmente assustador. Projeções do sociólogo José Luiz Ratton, a partir das séries estatísticas de evolução do número de homicídios no Estado, indicam que logo, logo Pernambuco será responsável por 1% de todos os homicídios ocorridos no mundo.

O Estado tem alcançado alguns bons indicadores no campo educacional e o fato tem motivado campanhas institucionais no sentido de captar os dividendos políticos desses resultados. Claro que poderemos encontrar algumas surpresas quando esses dados forem analisados com mais profundidade. Alguns indicadores podem induzir a muitos equívocos. Outro dia alguém cotejou os investimentos na educação, entre os países integrantes da OCDE e conclui algo surpreendente.Numericamente,o Brasil aparece como campeão de investimentos percentuais do PIB, superando aqueles países. Duas questões precisavam ser esclarecidas, no entanto, o tamanho do nosso PIB bruto - menor do que os registrados naqueles países - e os resultados alcançados que, no Brasil, ficam bem aquém. Certos indicadores, portanto, podem induzir a erros e conclusões precipitadas. É preciso se ter muito cuidado com pesquisas. Num ranking de excelência universitária recentemente publicado pelo jornal Folha de São Paulo, a UERJ supera a USP e a UNICAMP. Destrinchando os dados, descobre-se, por exemplo, que os mesmos foram levantados quando a UERJ ainda "existia", ou seja,  antes do desmonte sofrido por aquela instituição.   

Assim como o Pacto pela Vida, existe até um Pacto Pela Educação. É sabido que educação e segurança pública são variáveis convergentes, daí se entender, que investimentos em políticas públicas de educação pode, sim, contribuir para diminuir os índices de violência. Este, aliás, foi um dos grandes equívocos das UPPs do Rio de Janeiro. Os investimentos do aparelho de Estado se limitaram a adquirir armamentos, contratar e treinar os efetivos e coisas do gênero. Socialmente,as populações das favelas cariocas onde as UPPs foram instaladas continuarem desassistidas, tornando-se, gradativamente, vítimas do braço repressor do Estado, como ocorreu com o pedreiro Amarildo, um emblema do fracasso das UPPs. Mesmo diante de ponderações, vejo nesse Pacto pela Educação o caminho mais efetivo perene para o enfrenamento do recrudescimento da violência no Estado. Convém ouvir o que tem a dizer a prefeita Raquel Lyra. Trata-se de uma gestora pública séria, imbuída de espírito público.

sábado, 23 de setembro de 2017

Drops político para reflexão: Eu não confio é no guarda da esquina

"Há dois episódios do passado que devem ser mencionados aqui, até mesmo para servir de lição a essas gerações do presente que estão, de fato, preocupadas com os rumos que o país poderá tomar diante desses rumores de sabres. O Deputado Pedro Aleixo era ligado a arena. Por ocasião da implantação do Ato Institucional nº 05 - uma espécie de golpe dentro do golpe - como ele se mostrasse em contraposição ao ato, os generais o questionaram se ele não teria confiança nos comandantes militares, ao que ele retrucou: eu não confio é no guarda da esquina. O outro episódio ocorreu num dos auditórios de uma instituição federal de pesquisa, aqui no Recife, onde palestrava o ex-governador Dr. Miguel Arraes de Alencar, cassado e preso durante o regime militar.  Durante aqueles dias sombrios que antecederam à intervenção militar, ocorreu uma manifestação na Faculdade de Direito do Recife, classificada pelos militares como um grave distúrbio à ordem pública. Na realidade, tratou-se apenas de uma mobilização dos estudantes, que culminou com alguns arremessos de cadeiras pelas janelas, sem maiores consequências, conforme observou o ex-governador. Aqui estamos diante de dois exemplos sobre o quão se tornam complexas as interpretações que se possam fazer das declarações dos militares. No mesmo local onde houve a palestra de Hamilton Mourão, os jornais divulgaram que o Comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, mencionou as intervenções militares que já se tornaram recorrentes no país -atendendo a pedido de governantes- em apuros com os problemas de segurança pública. Sempre alertei que isso deveria ser evitado porque, além de não resolver o problema da violência, criariam um ambiente ou uma atmosfera nada compatível com a normalidade democrática, além de permitiriam aos militares um estudo do terreno."
(José Luiz Gomes, Cientista Político, em editorial publicado aqui no blog) 

Le Monde: Stálin e Hitler: irmãos gêmeos ou inimigos mortais?

 

Em contraste com a recorrente interpretação que, à luz da categoria de “totalitarismo”, equipara o nazismo e o bolchevismo – e especificamente Hitler e Stálin –, este artigo pretende demonstrar que os líderes do nazismo alemão e da União Soviética tinham posições políticas antagônicas. Hitler parece estar muito mais próximo da política de Winston Churchill. Acima de tudo, este ensaio se concentra no conceito de colonialismo: em seu interior, as diferenças entre Hitler e Stálin tornam-se óbvias. A guerra de Hitler foi uma guerra colonial, de base racial, bastante semelhante à política de conquistas dos Estados Unidos. A União Soviética de Stálin se opôs de forma vigorosa e bem-sucedida a essa guerra. Ou seja: Stálin e Hitler não são irmãos gêmeos, e sim inimigos mortais
por: Domenico Losurdo
21 de setembro de 2017
Crédito da Imagem: Cartazes russos para a Segunda Guerra Mundial

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  1. Acontecimentos históricos e categorias teóricas
 
Na atualidade, com base na categoria de “totalitarismo” (a ditadura terrorista do partido único e o culto ao líder), Stálin e Hitler são considerados as máximas encarnações desse flagelo, dois monstros com características tão semelhantes a ponto de parecer gêmeos. Não por acaso – argumenta-se –, ambos se uniram por quase dois anos em um pacto perverso. Se é verdade que a esse pacto se seguiu uma guerra impiedosa entre eles, não importa – essa guerra foi conduzida por irmãos gêmeos, a despeito da violência do conflito.

Seria essa uma conclusão necessária? Afastemo-nos da Europa. Gandhi também estava convencido de que Hitler tinha um irmão gêmeo. Mas ele não era Stálin, a quem, já em setembro de 1946 e com a Guerra Fria em vigência, o líder indiano definia como “um grande homem” à frente de um “grande povo”[1]. Não, o irmão gêmeo de Hitler, em última instância, era Churchill, o que se verifica em pelo menos duas entrevistas de Gandhi, uma de abril de 1941, outra de abril de 1945: “Na Índia, temos um governo hitlerista, ainda que camuflado em termos mais brandos”. E por fim: “Hitler foi ‘o pecado da Grã-Bretanha’. Hitler é tão somente a resposta ao imperialismo britânico”[2].
Das duas declarações, talvez a primeira seja a que mais faça pensar. Ela foi dada num momento em que ainda vigia o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética: o líder independentista indiano não parecia escandalizado por isso. No âmbito dos movimentos anticolonialistas, a política das frentes populares era a que encontrava maior resistência. Quem explica esse fato é um grande historiador afro-americano de Trinidad, admirador ardoroso de Trótski, Cyril L. R. James, que em 1962 descreve da seguinte maneira a evolução de outro grande intérprete, também proveniente de Trinidad, da causa da emancipação negra:

Ao chegar nos Estados Unidos, ele [George Padmore] se tornou um comunista atuante. Foi transferido para Moscou para assumir a direção do escritório de propaganda e organização do povo negro, período em que se tornou o mais conhecido e confiável dos agitadores da independência africana. Em 1935, o Kremlin, na busca por alianças, separou a Grã-Bretanha e a França, enquanto “imperialismos democráticos”, da Alemanha e do Japão, considerados “imperialistas fascistas” e que se tornaram os principais alvos da propaganda russa e comunista. Essa distinção reduziu a luta pela emancipação africana a uma farsa, pois a Alemanha e o Japão, de fato, não possuíam colônias na África. Padmore rompeu imediatamente suas relações com o Kremlin.[3]

Stálin era criticado e condenado não enquanto irmão gêmeo de Hitler, mas por se recusar a ver este último como o irmão gêmeo do líder do imperialismo britânico e francês. Para importantes figuras do movimento anticolonialista, não era fácil entender que quem comandava a contrarrevolução colonialista (e escravista) era o Terceiro Reich: o recorrente debate sobre o pacto de não agressão claramente padece de eurocentrismo.
Por mais discutível que seja, a aproximação Hitler-Churchill feita por Gandhi (e, indiretamente, por outros expoentes do movimento anticolonialista) é fácil de compreender: Hitler não declarou diversas vezes o desejo de construir na Europa oriental as “Índias germânicas”? E Churchill não prometeu defender com todas as forças as Índias britânicas? De fato, a fim de sufocar o movimento independentista, em 1942 o primeiro-ministro inglês “recorreu a meios extremos, como o uso de aeronaves para metralhar multidões de manifestantes”[4]. A ideologia que encabeçava a repressão dá muito o que pensar. Leiamos Churchill: “Eu odeio os indianos. É um povo bestial, com uma religião bestial”; por sorte, a ordem foi mantida e a civilização, defendida, por um número sem precedentes de “soldados brancos”. Tratava-se de enfrentar uma raça “que só está protegida do destino que merece porque se prolifera muito rápido”; teria agido bem, portanto, o marechal Arthur Harris, artífice dos bombardeios sobre a Alemanha, quando resolveu a questão dos indianos enviando “para destruí-los alguns de seus bombardeiros excedentes”[5].
Retornemos da Ásia para a Europa. Em 23 de julho de 1944, Alcide De Gasperi, que se preparava para ser o presidente do Conselho na Itália livre do fascismo, pronunciou um discurso em que afirmava enfaticamente:

Quando vejo que Hitler e Mussolini perseguiam homens por causa de suas raças, e inventavam aquela pavorosa legislação antijudaica que conhecemos, e ao mesmo tempo vejo o povo russo, composto por 160 raças, buscar sua fusão, superando a diversidade existente entre a Ásia e a Europa, essa tentativa, esse esforço pela unificação do consórcio humano, permitam-me dizer: isso é cristão, isso é eminentemente universalista, no sentido do catolicismo.[6]

Neste caso, o ponto de partida foi constituído pela categoria do racismo, um flagelo que encontrava sua expressão mais crua na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. Pois bem, qual era a antítese a esse respeito? Esta não podia ser representada pela Grã-Bretanha de Churchill, pelas razões já observadas, mas tampouco pelos Estados Unidos, onde, ao menos no que se refere ao Sul, continuava incandescente a ideologia da white supremacy. Acerca desse regime, um notável historiador estadunidense (George M. Fredrickson) escreveu recentemente: “Os esforços para preservar a ‘pureza da raça’ no Sul dos Estados Unidos anteciparam alguns aspectos da perseguição deflagrada pelo regime nazista contra os judeus nos anos trinta do século XX”[7]. Não impressiona então que De Gasperi identificasse a União Soviética como a verdadeira, a grande antagonista da Alemanha de Hitler. Os irmãos gêmeos de que fala a categoria do totalitarismo se configuram como inimigos mortais à luz das categorias do racismo e do colonialismo.

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  1. “A maior guerra colonial da história”
 
Sendo assim, qual categoria devemos desenvolver? Vamos dar a palavra às duas personalidades aqui discutidas. Em 27 de janeiro de 1932, dirigindo-se aos industriais de Düsseldorf (e da Alemanha) e conquistando definitivamente seu apoio para ascender ao poder, Hitler expressava desta forma sua visão da história e da política. Durante todo o século XIX, “os povos brancos” conquistaram uma posição de incontestável domínio, concluindo um processo iniciado com a conquista da América e que se desenrolou erguendo o estandarte do “absoluto, inato sentimento senhorial da raça branca”. Ao pôr em discussão o sistema colonial, o bolchevismo provocava e agravava a “confusão do pensamento branco europeu”, fazendo a civilização correr um perigo mortal. Para enfrentar tal ameaça, era preciso bradar a “convicção da superioridade e, assim, do  direito [superior] da raça branca”, era necessário defender “a posição de domínio da raça branca em relação ao resto do mundo”, recorrendo à “mais brutal falta de escrúpulos”: era impositivo “o exercício de um direito senhorial (Herrenrecht) extremamente brutal”[8]. Sem dúvida, Hitler apresentava sua candidatura à direção de um dos países mais importantes da Europa apegando-se ferrenhamente à causa da white supremacy, que ele almejava defender em escala planetária.
O apelo à defesa e ao resgate da raça branca tinha encontrado uma vasta repercussão na Alemanha no decorrer da Primeira Guerra Mundial, e sobretudo nos anos imediatamente posteriores. Suscitara escândalo e indignação o recurso da Entente e, em particular, da França às tropas de cor – que faziam parte do exército de ocupação da Renânia e estupravam as mulheres alemãs: era a impiedosa vingança dos vencedores que tentavam de todas as formas humilhar o inimigo derrotado e também contaminar seu sangue, “mulatizando-o”. Seja como for, tal como no Sul dos Estados Unidos, onde quem fazia a guarda era, contudo, a Ku Klux Klan, a ameaça negra pesava também nas costas da Alemanha (e da Europa). Era assim que na Alemanha, àquela época, argumentava uma vasta opinião pública[9], e esse clima ideológico influenciou fortemente a formação do grupo dirigente nazista. Em 14 de junho de 1922, Heinrich Himmler participou de uma manifestação lançada em Munique pela “Deutscher Notbund gegen die Schwarze Schmach” (Liga Pela Defesa da Alemanha contra a Ameaça Negra) que – nas palavras de um jornal local – definia “a ocupação da Renânia por tropas de cor como um crime concebido a sangue frio e de pura bestialidade, um crime que visa nos contaminar e degradar enquanto raça, a fim de nos aniquilar”. Em seu diário, Himmler anotou: “Muitíssimas pessoas. Todas gritavam: ‘Vingança!’. Realmente impressionante. E, todavia, eu participei de iniciativas deste tipo mais bonitas e mais entusiasmantes”[10].
Por sorte, a irresponsabilidade racial da França foi estranha para a Inglaterra. Era o que dizia Alfred Rosenberg, que lutou pela “aliança dos dois povos brancos” ou dos três povos brancos por excelência, se examinarmos a luta contra a “negrização” (Vernegerung) em plano mundial e levando em conta também os Estados Unidos, além de Alemanha e Grã-Bretanha[11]. Ainda no final de janeiro de 1942 – o Terceiro Reich e o Japão combatem juntos na guerra –, mais do que gozar dos sucessos de seu aliado de raça amarela, Hitler lamenta “as duras perdas que o homem branco é obrigado a sofrer na Ásia oriental”: quem se refere a tais palavras, em uma nota de seu diário, é Joseph Goebbels, o qual por sua vez condena Churchill como “o verdadeiro coveiro do Império inglês”[12].
A raça branca já vinha sendo defendida na Europa. Seu principal inimigo era a União Soviética, que incitava a revolta das raças “inferiores” e que inclusive fazia parte, ela própria, do mundo colonial. Tal visão era bastante difusa na Alemanha da época: a partir da ascensão dos bolcheviques ao poder – escrevia Oswald Spengler, um ano depois –, a Rússia retirou a “máscara branca” para se tornar “de novo uma grande potência asiática, ‘mongol’”, parte integrante “da totalidade da população de cor do planeta”, animada pelo ódio contra a “humanidade branca”[13].
Essa grave ameaça era, ao mesmo tempo, uma grande oportunidade: diante da raça branca e da Alemanha abrira-se um imenso espaço colonial, uma espécie de Velho Oeste. Já no Mein Kampf, Hitler celebrara “a inaudita força interior” do modelo americano de expansão colonial, um modelo que era preciso imitar, a fim de se construir um império territorialmente compacto na Europa centro-oriental[14]. Mais tarde, após a eclosão da Operação Barbarossa, Hitler reiteradamente comparava sua guerra contra os “indígenas” da Europa oriental à “guerra contra os índios”, à luta “promovida contra os índios da América do Norte”: tanto num caso como no outro, “será a raça mais forte que triunfará”[15]. Por sua vez, nos discursos privados, não direcionados ao público, Himmler ilustrava com clareza particular outro aspecto essencial do programa colonial do Terceiro Reich: são absolutamente necessários os “escravos de raça estrangeira” (fremdvölkische Sklaven), diante dos quais a “raça dos senhores” (Herrenrasse) não deve jamais perder sua “aura senhorial” (Herrentum), e com os quais não deve jamais se misturar ou confundir. “Se não enchermos nossos campos de trabalhadores escravos – neste recinto me permito definir as coisas de modo nítido e claro –, de operários-escravos que construam as nossas cidades, nossas vilas, nossas fábricas, a despeito de quaisquer perdas”, o programa de colonização e germanização dos territórios conquistados na Europa oriental não poderá ser realizado[16].
Em suma: os “indígenas” da Europa oriental eram, por um lado, os peles-vermelhas que deveriam ser expropriados de suas terras, deportados e dizimados; por outro lado, eram os negros, destinados a trabalhar como escravos a serviço da raça dos senhores (ao passo que os judeus, que, tal como os bolcheviques, eram responsabilizados pela sublevação das raças inferiores, deveriam ser liquidados). É óbvio que uma visão desse tipo não poderia ser compartilhada pelas vítimas, entre as quais a União Soviética era a mais considerável. Mas é interessante observar que, já entre fevereiro e outubro de 1917, Stálin insistentemente chamava a atenção para o fato de a Rússia, àquela altura destruída pelo interminável conflito, correr o risco de se tornar “uma colônia da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França”: tentando impor a qualquer custo a continuação da guerra, a Entente se comportava na Rússia como se estivesse “na África central”. A Revolução Bolchevique era necessária também para afastar tal perigo[17]. Depois de outubro, Stálin identificava o poder dos sovietes como o protagonista da “transformação da Rússia de colônia em país livre e independente”[18].
Conclusão: desde o início, Hitler se propunha retomar e radicalizar a tradição colonial, fazendo-a valer na própria Europa oriental e em particular na Rússia, considerada bárbara após a vitória bolchevique. No lado oposto, desde o início, Stálin convocava seu país a enfrentar o perigo da submissão colonial e, através dessa chave interpretativa, lia a própria importância da Revolução Bolchevique.
Embora procedesse com cautela, Stálin começava a identificar as características fundamentais do século que se abria. Na esteira da Revolução de Outubro, Lênin imaginava que o conteúdo principal ou exclusivo do século XX seria a luta entre capitalismo, de um lado, e socialismo/comunismo, de outro: o mundo colonial já fora totalmente ocupado pelas potências capitalistas e qualquer outra divisão por iniciativa das potências derrotadas ou “desfavorecidas” teria significado uma nova guerra mundial e um novo passo rumo à destruição definitiva do sistema capitalista. Isto é, a conquista da nova ordem socialista estava imediatamente na ordem do dia. Porém, Hitler fez um movimento inesperado: identificou a Europa oriental, e em particular a Rússia soviética, como o espaço colonial ainda livre e à disposição do império alemão a ser erguido. De modo análogo agiam o Império do Sol Nascente, que invadia a China, e a Itália fascista, que mirava os Bálcãs e a Grécia, além da Etiópia. Stálin começava a perceber que, ao contrário das expectativas, o que caracterizava o século XX era o confronto, na própria Europa, entre colonialismo e anticolonialismo (este último apoiado ou promovido pelo movimento comunista).
Nos nossos dias, observou-se com correção que “a guerra de Hitler pelo Lebensraum [espaço vital] foi a maior guerra colonial da história”[19], guerra colonial inicialmente promovida contra a Polônia. São eloquentes as instruções dadas pelo Führer na véspera da agressão: impõe-se a “eliminação das forças vitais” do povo polonês; é preciso “proceder de modo brutal”, sem ser afetado pela “compaixão”; “o direito está do lado do mais forte”. São análogas as diretrizes que mais tarde regem a Operação Barbarossa: uma vez capturados, é preciso imediatamente eliminar os comissários políticos, os quadros do Exército Vermelho, do Estado soviético e do Partido Comunista; no Oriente, impõe-se uma “dureza” extrema e os oficiais e soldados alemães estão convocados a superar suas reservas e seus escrúpulos morais. Para que povos de civilização antiga possam ser reconduzidos à condição de peles-vermelhas (que possam ser expropriados e dizimados) e de negros (que possam ser escravizados), “todos os representantes da intelectualidade polonesa” e russa – observa o Führer – “devem ser aniquilados”; “isso pode soar duro, mas não deixa de ser uma lei da vida”[20]. Explica-se assim a sorte reservada, na Polônia, ao clero católico, na União Soviética, aos quadros comunistas, e, em ambos os casos, aos judeus, presentes em grande número entre os grupos intelectuais e suspeitos de inspirar e alimentar o bolchevismo. Hitler consegue jogar Polônia e União Soviética uma contra a outra, mas reserva às duas a mesma sorte; mesmo que através de um percurso tortuoso e trágico, a guerra popular de resistência nacional e a grande guerra patriótica acabam por se associar. A brusca mudança de rumo da “maior guerra colonial da história” é representada por Stalingrado. Se Hitler foi o comandante da contrarrevolução colonialista, Stálin comandou a revolução anticolonial que, de modo completamente inesperado, teve na Europa seu epicentro.
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  1. Stálin, Hitler e as minorias nacionais
 
A definição de Stálin que acabo de oferecer contrasta com a política que ele seguiu em relação às minorias nacionais na União Soviética? É inegável que, na visão de Stálin, não há espaço algum para o direito de secessão. Isso se confirma pela conversação com Dimitrov, em 7 de novembro de 1937: “Nós destruiremos qualquer um que, com suas ações e seus pensamentos, mesmo que apenas com os pensamentos, atente contra a unidade do Estado socialista”[21]. Derrubar inclusive os pensamentos: é uma definição extraordinariamente eficaz, mas completamente involuntária do totalitarismo! Simultaneamente, no entanto, Stálin saúda e até mesmo promove o renascimento cultural das minorias nacionais vastamente oprimidas da Europa oriental. São eloquentes as observações que ele desenvolve em 1921, no decorrer do X Congresso do Partido Comunista Russo: “cinquenta anos atrás, todas as cidades da Hungria tinham um caráter alemão, agora se magiarizaram”; também “despertaram” os “tchecos”. Trata-se de um fenômeno que toma a Europa inteira: de cidade “alemã” que era, Riga se torna uma “cidade letã”; de modo análogo, as cidades da Ucrânia “inevitavelmente irão se ucranizar”, tornando secundário o elemento russo antes predominante[22]. É constante em Stálin a polêmica contra os “assimilacionistas”, sejam os “assimilacionistas turcos”, sejam os “germanizadores prussiano-alemães” ou os “russificadores russo-tsaristas”. Essa tomada de posição é muito importante porque está ligada a uma elaboração teórica de caráter mais geral. Em polêmica com Kautsky, Stálin sublinha que, longe de representar a desaparição da língua e das peculiaridades nacionais, o socialismo comporta seu desenvolvimento e desdobramento ulterior. Toda “política de assimilação” deve ser tachada como “inimiga do povo” e “contrarrevolucionária”: tal política é ainda mais “fatal” porque ignora “o colossal poder de estabilidade das nações” que língua e cultura nacional representam; querer declarar “guerra à cultura nacional” significa ser “adepto da política de colonização”[23]. Por mais dramática que pareça sua diferença adiante da política concretamente realizada, as declarações de princípio não podem ser ignoradas, muito menos no âmbito de um regime político em que a formação e a mobilização ideológica dos quadros e militantes do partido e o doutrinamento das massas desenvolvem um papel bastante relevante.
Aqui, de novo emerge a antítese com Hitler. Este também começa por assumir a eslavização e “anulação do elemento alemão” (Entdeutschung) que ocorre na Europa oriental. A seus olhos, no entanto, trata-se de um processo que pode e deve ser rejeitado com todas as forças. Não basta nem mesmo a assimilação linguística e cultural, que na realidade significaria “o início de um abastardamento” e, portanto, da “aniquilação do elemento germânico”, a “aniquilação justamente das características que, em seu tempo, permitiram ao povo conquistador (Eroberervolk) alcançar a vitória”[24]. É preciso germanizar o solo sem germanizar os homens de modo algum. E isso só é possível seguindo-se um modelo muito preciso: do outro lado do Atlântico, a raça branca se expandiu para o Oeste americanizando o solo, nunca os peles-vermelhas. Dessa maneira, os Estados Unidos tornaram-se “um Estado nórdico-germânico” sem se rebaixar à condição de “lamaçal internacional de povos”[25]. Esse mesmo modelo deve ser seguido pela Alemanha na Europa oriental.

  1. O papel da geografia e da geopolítica

Ao menos no que se refere à atitude tomada perante a questão nacional, confirma-se a antítese entre a Rússia soviética e o Terceiro Reich. Chegamos a resultados muito diferentes, porém, se nos concentramos nas práticas de governo dos dois regimes, que bem podemos comparar à luz da categoria de totalitarismo. E, ainda assim, seria um engano querer ler em chave psicopatológica o terror, a brutalidade, até mesmo a reivindicação de controlar o pensamento.
Convém não esquecermos a lição metodológica transmitida por um clássico do liberalismo: em 1787, na véspera do lançamento da Constituição federal, Alexander Hamilton explicava que a limitação do poder e a instauração do governo da lei tinham alcançado sucesso em dois países de tipo insular (Grã-Bretanha e Estados Unidos) graças ao mar que os separava das ameaças de potências rivais. Se o projeto de União federal falhasse e sobre suas ruínas emergisse um sistema de Estados correspondente àquele existente no continente europeu, teriam aparecido inclusive na América os fenômenos do exército permanente, de um forte poder central e até mesmo do absolutismo: “Assim, deveríamos, em curto espaço de tempo, ver estabelecidos em cada parte deste país os mesmos mecanismos de despotismo que foram o flagelo do Velho Mundo”[26]. Aos olhos de Hamilton, para explicar a permanência ou dissolução das instituições liberais, era preciso, em primeiro lugar, considerar a situação geográfica e geopolítica.
Se analisarmos as grandes crises históricas, notaremos que, mesmo em matizes distintos, todas elas terminaram por provocar uma concentração do poder nas mãos de um líder mais ou menos autocrático: a Primeira Revolução inglesa desaguou no poder pessoal de Cromwell; a Revolução Francesa, naquele de Robespierre e, sobretudo, anos depois, no de Napoleão; o resultado da revolução dos escravos negros de Santo Domingo foi a ditadura militar, primeiro, de Toussaint Louverture, e mais tarde de Dessalines; a Revolução francesa de 1848 levou ao poder pessoal de Luís Bonaparte ou Napoleão III. A categoria de totalitarismo pode servir à análise comparada das práticas de governo a que se recorrem em situações de crise mais ou menos agudas. Mas, se nos esquecemos do caráter formal dessa categoria e a absolutizamos, corremos o risco de constituir uma família de irmãos gêmeos demasiadamente numerosa e heterogênea.
No que se refere ao período entre as duas grandes guerras mundiais do século XX, são inúmeras as crises que culminaram na instauração de uma ditadura pessoal. De fato, uma análise mais atenta permite observar que esse é o destino de quase todos os países da Europa continental. Os únicos que se preservaram foram os dois países de tipo insular mencionados por Hamilton. Mas inclusive esses países, a despeito de terem atrás de si uma sólida tradição liberal e de gozarem de uma situação geográfica e geopolítica particularmente favorável, viram a manifestação da tendência à personalização do poder, à acentuação do poder executivo sobre o legislativo, à restrição do rule of law: nos Estados Unidos, bastava uma ordem de F. D. Roosevelt para que os cidadãos estadunidenses de origem japonesa fossem presos num campo de concentração. Quer dizer, a análise das práticas de governo, na qual se funda a categoria de totalitarismo, acaba atacando, ou ao menos roçando, até mesmo os mais insuspeitos países.

  1. “Totalitarismo” e “autocracia absoluta de raça”

Das práticas de governo, desloquemos outra vez nossa atenção para os objetivos políticos. Também no que se refere à política interna, Hitler tem um olhar para o outro lado do Atlântico. Tanto o Mein Kampf quanto o Zweites Buch repetidamente alertam que, na Europa, a revelar-se inimigo jurado da civilização e da raça branca não é somente a Rússia soviética, que conclama os povos de cor a se insurgirem contra o domínio branco; não se pode esquecer o país que submeteu uma nação de raça branca como a Alemanha ao insulto da ocupação realizada por soldados de cor. É mister atentar também para o “abastardamento”, para a “negrização” (Vernegerung) ou “negrização geral” (allgemeine Verniggerung) que acontece na França ou, mais exatamente, “no Estado mulato euro-africano”, que àquela altura se estendia “do Reno ao Congo”[27]. Contrapõe-se a essa infâmia o exemplo positivo da “América do Norte”, onde os “germânicos, evitando a ‘mistura do sangue ariano com o de povos inferiores’ e o ‘insulto ao sangue’ (Blutschande), se mantiveram ‘racialmente puros e incontaminados’, de modo que podem exercer seu domínio em todo o continente”[28].
O regime da white supremacy vigente no Sul dos Estados Unidos já se tornara um modelo para a cultura reacionária que desembocou no nazismo. Em visita aos Estados Unidos no final do século XIX, Friedrich Ratzel, um dos grandes teóricos da geopolítica, traça um quadro bastante significativo: dissipada a fumaça da ideologia fiel ao princípio da “igualdade”, impõe-se a realidade da “aristocracia racial”, como demonstram os linchamentos dos negros, “a deportação e o aniquilamento dos índios” e as perseguições de que são alvo os imigrantes provenientes do Oriente. A situação criada nos Estados Unidos “evita a forma da escravidão, mas mantém a essência da subordinação, da hierarquização social com base na raça”. Verifica-se um “rompimento” em relação às ilusões caras aos abolicionistas e aos apoiadores da democracia multirracial dos anos da Reconstruction. Tudo isso – observa Ratzel com lucidez – provocará efeitos para além da República norte-americana: “Estamos apenas no início das consequências que esse rompimento provocará, mais na Europa do que na Ásia”. Posteriormente, também o vice-cônsul austro-húngaro em Chicago chama a atenção para a contrarrevolução que acontece nos Estados Unidos e para seu caráter benéfico e instrutivo. Nesse aspecto, a Europa revela seu grande atraso: aqui, o negro proveniente das colônias é acolhido na sociedade como uma “guloseima”: que diferença em relação ao comportamento do “americano tão orgulhoso da pureza da sua raça”, que evita o contato com os não brancos, entre os quais inclui até mesmo aqueles que têm “uma só gota de sangue negro”! Pois bem, “se a América pode ser de algum modo um exemplo para a Europa, ela o é na questão do negro” e da raça.
De fato, como previam os dois autores aqui citados, a contrarrevolução racista, que nos Estados Unidos dá cabo da democracia multirracial dos anos da Reconstrução, atravessa o Atlântico. Alfred Rosenberg celebra os Estados Unidos como um “esplêndido país do futuro”: restringindo a cidadania política aos brancos e sancionando em todos os níveis e com todos os meios a white supremacy, os Estados Unidos tiveram o mérito de formular a feliz “nova ideia de um Estado racial”. Sim: “A questão negra está no topo de todas as questões decisivas”; e uma vez que o absurdo princípio da igualdade seja cancelado para os negros, não haverá razão para não se trazer “as consequências necessárias também para os amarelos e os judeus”[29].
Trata-se de uma declaração estarrecedora apenas à primeira vista. No começo do século XX, nos anos que precederam a formação do movimento nazista na Alemanha, a ideologia dominante no Sul dos Estados Unidos era expressa pelos chamados “Jubileus da supremacia branca”, nos quais marchavam homens armados e uniformizados, inspirados pela denominada “profissão de fé racial do povo do Sul”. Essa ideologia era formulada da seguinte maneira:

1) “O sangue dirá”; 2) a raça branca deve dominar; 3) os povos teutônicos declaram-se pela pureza da raça; 4) o negro é um ser inferior e permanecerá como tal; 5) “Este país é do homem branco”; 6) Nenhuma igualdade social; 7) Nenhuma igualdade política […]; 10) Transmitir-se-á ao negro aquela profissão que melhor se adeque a fazê-lo servir ao homem branco […]; 14) O homem branco de condição mais baixa deve ser considerado superior ao negro de condição mais alta; 15) As declarações acima indicam as diretrizes da Providência[30].

Não há dúvida de que estamos nas margens do nazismo. Tanto é verdade que no Sul dos Estados Unidos os que professavam esse catecismo eram militantes que explicitamente declaravam estar prontos para “mandar para o inferno” a Constituição, além de bradar, na teoria e na prática, a absoluta “superioridade do ariano”, bem como dispostos a impedir “a perigosa, nefasta ameaça nacional” representada pelos negros. Se – observam isoladas vozes críticas –, aterrorizados como estão, “os negros não podem fazer mal” a ninguém, isso não impede que grupos racistas estejam prontos para “matá-los e exterminá-los da face da terra”; são decisões que instauram “uma autocracia absoluta de raça”, com a “absoluta identificação da raça mais forte com a própria essência do Estado”[31].
Para definir o Terceiro Reich, é mais adequada a categoria de “totalitarismo” (que compara Hitler a Stálin) ou a de “autocracia absoluta de raça” (que remete ao regime da white supremacy  ainda em vigor no Sul dos Estados Unidos quando do advento do poder nazista na Alemanha)? É certo que não se pode compreender adequadamente o dicionário nazista se limitamos nosso olhar à Alemanha. O que é a Blutschande, contra a qual o Mein Kampf alertava, se não a miscigenação denunciada inclusive pelos líderes da white supremacy? Até mesmo a palavra-chave da ideologia nazista, Untermensch, é a tradução do Under Man americano! Quem nos lembra disso, em 1930, é Rosenberg, que expressa sua admiração pelo autor estadunidense Lothrop Stoddard: atribui a ele o mérito de ter sido o primeiro a cunhar o termo em questão, que se destaca no subtítulo (The Menace of the Under Man) de um livro que ele publica em Nova York em 1922, bem como em sua versão alemã (Die Drohung des Untermenschen), publicado em Munique três anos mais tarde[32]. É o Under Man ou Untermensch quem ameaça a civilização e é para espantar tal perigo que se impõe a “autocracia absolutista de raça”! Se fizermos uso dessa categoria mais do que daquela de totalitarismo, consideraremos irmãos gêmeos não Stálin e Hitler, mas sim os supremacistas brancos do Sul dos Estados Unidos e os nazistas alemães. Tanto em relação a uns quanto aos outros, a antítese é Stálin, que não por acaso foi algumas vezes considerado pelos militantes afro-americanos o “novo Lincoln”[33].

  1. Duas guerras pelo restabelecimento do domínio colonialista e escravista

Bem, ainda falta explicar o pacto Molotov-Ribbentrop. A União Soviética não foi a primeira a tentar um acordo com o Terceiro Reich, mas a última. Neste ponto, enquanto filósofo que, através da análise das categorias políticas, procede com uma comparação histórica, gostaria de fazer uma consideração distinta. Quase um século e meio antes da guerra desencadeada por Hitler a fim de subjugar e escravizar os povos da Europa oriental, houve outra grande guerra cujo objetivo, num contexto histórico evidentemente diferente, era o restabelecimento do domínio colonial e da escravidão. Refiro-me à expedição, ordenada por Napoleão e confiada a seu cunhado, Charles Leclerc, contra Santo Domingo, ilha governada pelo líder da vitoriosa revolução dos escravos negros, Toussaint Louverture. Mesmo depois de 29 de agosto de 1793, dia em que L. F. Sonthonax, representante da França revolucionária, proclamou a abolição da escravidão na ilha, Louverture continuou combatendo ao lado da Espanha; porque desconfiava da França, por muito tempo o líder negro continuou a colaborar com um país do Antigo Regime, escravista e empenhado na guerra contra a República jacobina e o poder abolicionista que se empossara em Santo Domingo. Ainda em 1799, a fim de salvar o país que dirigia do iminente colapso econômico, Louverture estreitou relações comerciais com a Grã-Bretanha, país em guerra contra a França e cuja eventual vitória traria consequências bastante negativas para a causa do abolicionismo[34]. Mesmo assim, Toussaint Louverture permanece como o grande protagonista da revolução anticolonialista e antiescravista e como antagonista de Leclerc (e de Napoleão). Não obstante a completa mudança no quadro histórico que se verifica cerca de um século e meio depois, não há nenhuma motivo para procedermos diferentemente com Stálin: as reviravoltas do processo histórico não devem nos fazer perder de vista o essencial.
Ainda antes da invasão francesa, e prevendo-a, Toussaint Louverture impunha uma férrea ditadura produtivista e reprimia com mão de ferro quem desafiasse seu poder; posteriormente, a chegada a Santo Domingo das tropas francesas dirigidas por Leclerc foi o início de um conflito que se tornou uma guerra de aniquilamento de ambas as partes. O que podemos dizer sobre uma leitura que compara Louverture e Leclerc à luz da categoria de “totalitarismo”, contrapondo os dois aos dirigentes liberais e democráticos dos Estados Unidos? Por um lado, essa categorização seria banal: é óbvio o horror implícito num conflito que se configura como guerra racial. Por outro lado, essa leitura seria um tanto quanto mistificadora: colocaria num mesmo plano antiescravistas e escravistas, e omitiria o fato de que estes últimos encontravam inspiração e apoio nos Estados Unidos, onde a escravidão dos negros vigia em seu esplendor. A categoria de totalitarismo não se torna mais persuasiva se a utilizamos como única chave de leitura do gigantesco conflito entre revolução anticolonial e contrarrevolução colonialista e escravista que ocorreu na primeira metade do século XX. É evidente que se trata de um capítulo da história que merece aprofundamento e que ainda não pode evitar interpretações controversas. Mas não há motivos para transformar em irmãos gêmeos dois inimigos mortais.

*Domenico Losurdo é professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino, doutorou-se com uma tese sobre Karl Rosenkranz. Tem publicadas em português, entre outras, as seguintes obras: Democracia ou bonapartismo (Unesp, 2004); Contra-história do liberalismo (Idéias & Letras, 2006); Liberalismo: entre civilização e barbárie (Anita Garibaldi, 2006) e Nietzsche, o rebelde aristocrata (Revan, 2009).

Este artigo foi retirado do livro 1917: o ano que abalou o mundo, da Editora Boitempo e Edições Sesc São Paulo, que será lançado em evento homônimo que ocorre entre 26 e 29 de setembro, no Sesc Pinheiros, que contará com a presença do autor. O evento está sendo organizado pela Boitempo e pelo Sesc. Mais informações em: www.revolucaorussa.com.br.

Tradução: Diego Silveir


[1] Dinanath G. Tendulkar, Mahatma. Life of Mohandas Karamchand Gandhi, v. 7 (Nova Déli, Division, 1990), p. 210.
[2] Mahatma K. Gandhi, The Collected Works of Mahatma Gandhi, v. 80 e 86 (Nova Déli, Division/Ministry of Information and Broadcasting of India, 1969-2001), p. 200 e 223.
[3] Cyril L. R. James, I Giacobini Neri. La prima rivolta contro l’uomo bianco [1963] (trad. R. Petrillo, Milão, Feltrinelli, 1968),  p. 327 [ed. bras.: Os jacobinos negros: Toussaint Louverture e a revolução de São Domingo, São Paulo, Boitempo, 2000].
[4] Michel Guglielmo Torri, Storia dell’India (Roma/Bari, Laterza, 2000), p. 598.
[5] Madhusree Mukerjee, Churchill’s Secret War: The British Empire and the Ravaging of India during World War II (Nova York, Basic Books, 2010), p. 78 e 247.
[6] Alcide De Gasperi, “La democrazia cristiana e il momento politico” [1944], em Tommaso Bozza (org.) Discorsi politici (Roma, Cinque Lune, 1956), p. 15-6.
[7] George M. Fredrickson, Breve storia del razzismo (trad. A. Merlino, Roma, Donzelli, 2002), p. 8.
[8] Adolf Hitler, citado em Max Domarus (org.), Reden und Proklamationen, 1932-1945 (Munique, Süddeutscher, 1965), p. 75-7.
[9] Cf. Domenico Losurdo, Il revisionismo storico. Problemi e miti (Roma/Bari, Laterza, 1996), cap. IV, § 6 [ed. bras.: Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917, São Paulo Boitempo, 2017].
[10] Peter Longerich, Heinrich Himmler: Biographie (Munique, Siedler, 2008), p. 66.
[11] Cf. Ernst Piper, Alfred Rosenberg. Hitlers Chef Ideologie (Munique, Blessing, 2005), p. 299 e 160.
[12] Joseph Goebbels, Tagebücher (org. R. G. Reuth, Munique/Zurique, Piper, 1992), p. 1.747-8.
[13] Oswald Spengler, Jahreder Entscheidung (Munique, Beck, 1933), p. 150.
[14] Cf. Adolf Hitler, Mein Kampf [1925-1927] (Munique, Zentral verlag der NSDAP, 1939), p. 153-4.
[15] Idem, citado em Werner Jochmann (org.), Monologe im Führerhauptquartie,r 1941-1944 (Hamburgo, Albrecht Knaus, 1980), p. 377 e 334 (conversações de 30 e 8 ago. 1942).
[16] Cf. Heinrich Himmler, citado em Bradley F. Smithe e Agnes F. Peterson, Geheimreden 1933 bis 1945 (Berlim, Propyläen, 1974), p. 156 e 159.
[17] Cf. Josef Stálin, Werke, v. 3 (Hamburgo, Roter Morgen, 1971-1976), p. 127 e 269.
[18] Ibidem, v. 4, p. 252; cf. Domenico Losurdo, Il revisionismo storico, cit., p. 52-3.
[19] David Olusoga e Casper W. Erichsen, The Kaiser’s Holocaust. Germany’s Forgotten Genocide (Londres, Faberand Faber, 2011), p. 327.
[20] Adolf Hitler, citado em Max Domarus (org.), Reden und Proklamationen, cit.. Vejam-se sobretudo os discursos de 22 ago. 1939, de 28 set. 1940, de 30 mar. 1941 e de 8 nov. 1941.
[21] Georgi Dimitrov, citado em Silvio Pons (org.), Diario. Gli anni di Mosca (1934-1945) (Turim, Einaudi, 2002), p. 81.
[22] Josef Stálin, Werke, cit., v. 5, p. 31 e 42.
[23] Ibidem, v. 9, p. 305-11 e v. 10, p. 60-1.
[24] Adolf Hitler, Mein Kampf, cit., p. 82 e p. 428-9.
[25] Adolf Hitler, citado em Gerhard L. Weinberg (org.), Hitlers Zweites Buch. Ein Dokument aus dem Jahre 1928 (Stuttgart, Deutsche Verlags-Anstalt, 1961), p. 131-2.
[26] Alexander Hamilton, “The Consequences of Hostilities between the States from the New Yor Packet”, The Federalist Papers, Nova York, n. 8, 20 nov. 1787.
[27]  Adolf Hitler, citado em Gerhard L. Weinberg (org.), Hitlers Zweites Buch, cit., p. 152; idem, Mein Kampf, cit., p. 730.
[28] Idem, Mein Kampf, cit., p. 313-4.
[29] Alfred Rosenberg, Der Mythus des 20. Jahrhunderts [1930] (Munique, Hoheneichen, 1937), p. 673 e 668-99.
[30] Comer Vann Woodward, Origins of the New South 1877-1913 [1951] (Louisiana, Louisiana State University Press, 2013), p. 330 e p. 334-5.
[31] Ibidem, p. 332.
[32] Sobre Ratzel, o vice-cônsul em Chicago e Stoddard, ver Domenico Losurdo, “White Supremacy und Konterrevolution, die Vereinigten Staaten, das Russland, der ‘Weissen’ und das Dritte Reich”, em Christoph J. Bauer et al. (orgs.), Faschismus und soziale Ungleichheit (Duisburg, Universitäts verlag Rhein-Ruhr, 2007), p. 164-5 e 159.
[33] Cyril L. R. James, I Giacobini Neri, cit., p. 118 e p. 200.
[34] Idem.