Ontem, recebi um zap do professor André Martinello, que está em Natal fazendo um pós-doutorado. Ele estava chocado, pois acabara de socorrer, junto com outros vizinhos, um jovem que estava caído na rua, em frente ao prédio onde está residindo, desmaiado por inanição, por estar há muito tempo sem comer. É a fome que está de volta em nosso país. Bastou um ano e meio de políticas recessivas, neoliberais, de ataque a todas as políticas sociais que foram implementadas, nos últimos anos, por um governo ilegítimo, nascido de um golpe midiático-jurídico-parlamentar, para que a retirada do Brasil do mapa da fome mundial tenha sido revertida. Cinicamente, como é característica das organizações Globo, é esse jornal, que fez a propaganda pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que foi um golpista de primeira hora, que em reportagem publicada no dia 09 de julho, desse ano, noticiava que um relatório elaborado por mais de quarenta entidades da sociedade civil mostrava os efeitos catastróficos para a renda das famílias mais pobres trazidas pela recessão, pelo desemprego, pelo verdadeiro desmonte da economia brasileira e, em especial, da economia fluminense, como resultado da ação conjunta do governo Temer e da Operação Lava Jato, que paralisou setores estratégicos da economia do estado do Rio de Janeiro, como a indústria naval e o setor de petróleo e gás.
Em todas as cidades brasileiras já é perceptível o crescimento da pobreza, o retorno de milhões de pessoas à miséria. Com uma economia ainda mais frágil, os estados do Nordeste, onde bancadas quase inteiras, como a do Rio Grande do Norte, votaram pela saída da presidenta e, com ela, o fim das políticas desenvolvimentistas, nacionalistas e com preocupações sociais, a fome volta a ser uma realidade, em milhares de domicílios. Como no período do governo Fernando Henrique Cardoso, marcado pela aplicação de selvagens políticas econômicas neoliberais, as ruas voltam a se encher de vendedores ambulantes, de desempregados que tentam de alguma forma arranjar o dinheiro para se alimentar. Os semáforos começam a se encher novamente de crianças a lavar para-brisas de carros ou a pedir uma moeda para comer. Essa semana encontrei como motorista da Uber, um imigrante italiano, dono de uma construtora, setor destroçado pelo juiz Moro e pela paralisação, quase completa, das obras públicas e do programa Minha Casa, Minha Vida. Enquanto a fome se alastra pelo país, o governo golpista, desde que assumiu, se caracteriza por oferecer regabofes, banquetes para as bancadas reacionárias do Congresso Nacional tramarem mais ataques aos direitos coletivos, das minorias e dos trabalhadores. Nossa imprensa que, às vezes, beira as raias do patético, se ocupa em descrever o cardápio servido aos digníssimos parlamentares e, sempre em tom de fofoca, de conversas de compadres, vai dizendo os direitos que vão sendo surrupiados aos brasileiros entre um fuagrá (foie gras) e uma rabanada de banana. Para aprovar a PEC 241, que limitou por vinte anos os gastos públicos, medida que vai comprometer por duas décadas o crescimento do país, os investimentos em educação, saúde, ciência e tecnologia, que se efetivamente aplicada e não modificada por nenhum governo eleito, levará o país a uma situação comparável aos dos mais pobres países africanos, nos transformando definitivamente numa nova colônia, o presidente ofereceu, para cerca de 400 parlamentares, um jantar que custou cerca de 50 milhões de reais.
As nossas elites sempre foram assim, gulosas, empanturradas de comida, feitas e servidas, quase sempre por mãos negras, muitas delas escravizadas, condenadas a comer uma ração, um angu com os restos que sobravam das mesas dos senhores. Dos restos que sobravam do repasto dos patrões e, às vezes, depois de alimentado os cachorros e gatos da casa, se alimentavam as empregadas domésticas, proibidas de comer aquilo que era dos patrões, como retratou o filme Que horas ela volta?, da cineasta Anna Muylaert. Nele, um dos atrevimentos cometidos pela filha da empregada, recém-chegada à casa dos patrões da mãe, é comer o sorvete que era exclusividade do filho da patroa e, para espanto de sua genitora, sentar na mesa com os patrões. A insensibilidade social de nossas elites nasce, entre outros fatores, do fato de que nunca souberam o que é passar fome, sempre viveram na abundância, enquanto milhares de pessoas ao seu redor viviam na penúria. Enquanto as elites europeias, por exemplo, nas várias guerras que assolaram aquele continente, tiveram, em algumas ocasiões, que se alimentarem até de carne de cavalos, gatos, cachorros e ratos para poder matar a fome, nossas elites não sabem a sensação de passar dias sem comer direito. Ao contrário, sempre se caracterizou pelo enorme desperdício de alimentos. Segundo relatório da World Resources Institute (WRI), no Brasil, 41 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados todo ano. Nossas elites sempre jogaram muita comida no lixo, onde é catada pelos milhares de indigentes e mendigos famintos que perambulam por nossas cidades. Antes da existência dos programas sociais, como o Bolsa Família, tão odiados por setores das nossas insensíveis classes médias, milhares de pessoas, no país, se alimentavam do lixo. Muitas delas, inclusive crianças, viviam de pedir, de porta em porta, uma “sobrinha de comê”. Nossas madames cristãs, sempre se acharam muito bondosas e caridosas, por oferecer ao pedinte que batia à sua porta um prato de comida, desde que o comesse lá mesmo na calçada ou, no máximo, no jardim ou varanda. Muita gente, entre nossas elites, acha que conquista um lugar no céu ao fazer a empregada entregar uma banana ao esmoler que lhe bate às portas. Isso o catolicismo dá o nome de obrar, de realizar as obras de caridade necessárias para a conquista da vida eterna. Já as igrejas evangélicas que, hoje, proliferam no país, preferem obrar para si mesmas, embora, muitas delas, digam realizar obras assistenciais. A distribuição do sopão da meia noite é a refeição diária de muitos moradores de rua no país. Num país assim, é coerente que se queira como candidato a presidente um apresentador de TV que se caracteriza pela distribuição de presentes e de benesses a uns poucos sorteados entre a massa de miseráveis, enquanto ele se caracterizava por participar de farras homéricas com muitas daqueles que hoje estão na cadeia, como o ex-governador do Rio de Janeiro, que ia a Paris, de jato oficial, só para fazer uma farra, que incluía a ida a restaurantes caríssimos.
Nossas elites são obesas no corpo e na alma. Enquanto o governador do Rio Grande do Norte ataca professores, funcionários da saúde, com bombas de gás lacrimogêneo, para não cumprir com a obrigação de pagar os salários, e em dia, de onde sairá o sustento das pessoas, ataque autorizado por um juiz, mais de 80% dos magistrados do estado ganha acima do teto salarial estipulado para os servidores públicos. Que uns poucos funcionários possam se empanturrar auferindo um imoral auxílio alimentação, para quem ganha poupudos salários, enquanto outros desmaiam na rua de fome, nunca foi um problema e nunca causou escândalo no país. Escândalo se fez em torno das tímidas políticas sociais e de distribuição de renda que tentaram evitar essa escandalosa desigualdade de condição social. O Brasil é um país que desde sua formação foi marcado pela presença endêmica da fome. O geógrafo e cientista social pernambucano, Josué de Castro, já nos anos quarenta do século passado, denunciava que a história do país era a história da fome, que ainda não encontrou um historiador entre nós. Ele traçou uma geografia da fome no país, localizando onde ela era episódica, onde era endêmica, ou seja, permanente e onde atingia verdadeira situação de epidemia, como costumava ocorrer no Nordeste, nos períodos de secas. Exilado do país, perseguido pela ditadura militar instalada em 1964, foi um dos fundadores e inspiradores da criação da FAO (Fundação das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). No Brasil, quem denuncia e combate a fome, sempre é acusado de ser comunista, perigoso e é perseguido por aqueles que comem muito no país. O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva é vítima de uma verdadeira caçada jurídico-policial-midiática por ter se atrevido a colocar o problema da fome no centro da agenda política e governamental do país.
A desorganização da vida comunitária indígena motivada pela sua expulsão das terras, cobiçadas pelos brancos que aqui chegaram, gerou, já o período colonial, epidemias de fome entre essas populações. A fome e a consequente desnutrição e com ela as doenças mataram boa parte de nossas populações indígenas. Tendo uma economia assentada na monocultura de produtos para a exportação, o Brasil, desde o período colonial, teve dificuldade de abastecimento de alimentos, a ponto do rei de Portugal dar incentivos a quem plantasse alqueires de mandioca, já que a farinha, produto que os brancos conheceram em contato com os índios, passou a ser a base da alimentação na colônia, alimentação, que sabemos hoje, se caracteriza por ser pobre em nutrientes. A mandioca se tornou tão importante para a sobrevivência das populações que na primeira Constituição brasileira, editada em 1824, a quantidade de alqueires de mandioca plantados definia o status político de cada cidadão do Império. Para ter o direito de votar, para ser um eleitor de primeiro ou segundo grau (no Império havia eleitores que indicavam apenas quem votaria por ele, eram os eleitores de paróquia que elegiam os eleitores de província), precisava se ter uma dada renda, o chamado voto censitário, e ela podia ser medida em alqueires de mandioca. Foi a esse fato histórico que a presidenta Dilma se referiu numa cerimônia de abertura das olimpíadas dos povos indígenas, para ressaltar essa contribuição dada por eles a nossa sociedade, que seria utilizada, pela recente propaganda política do PMDB, na TV, para ridicularizá-la e de forma machista e preconceituosa dizer que, enquanto o país vivia uma enorme crise política e econômica, a presidenta estaria pensando na mandioca (o conteúdo sexual e misógino é explicito), tentando justificar, da maneira mais vil e ignorante, o golpe contra a democracia que esse partido capitaneou, na contramão de toda a sua história.
Os escravos sempre foram mal alimentados, assim como os homens pobres e libertos, que fugiam para o interior do território da colônia, em busca de terras para produzir sua subsistência. Foram esses homens livres e pobres, que viviam, quase sempre, nas franjas dos latifúndios, nas regiões mais altas e umidas, que foram responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos que abasteciam as cidades e os latifúndios, no período colonial. Quando da expansão das monoculturas capitalistas, no século XX, foi justamente essa massa de camponeses que tinham acesso precário à terra, já que ocupavam franjas de grandes propriedades, cujos títulos de propriedade estavam na mão de outras pessoas, que se deslocaram para as grandes cidades, formando o grande cinturão de pobreza que as passaram a cercar, que se espremeram em morros, favelas, beiras de rios, palafitas, ribanceiras, em todas as áreas degradadas e sem valor para o capital. Nesses bolsões de miséria, doenças favorecidas pela fome, pela desnutrição, como a tuberculose, grassavam sem controle. A mortalidade infantil, que se reduziu drasticamente, nos últimos anos, vitimava uma boa parte das crianças nascidas vivas, por já nascerem com “cara de fome”, como o guri da música de Chico Buarque, ou porque comiam luz, como os meninos do Brejo do Cruz. Hoje, o Brasil, é um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, sua produção agrícola altamente tecnológica, abastece de alimentos boa parte dos países do mundo, mas sempre foi incapaz de alimentar dignamente a própria população do país. A previsão é que, esse ano, o país produza cerca de 238 milhões de toneladas de grãos e, no entanto, pessoas que não tem o que comer, tenham que esperar a feira acabar para catar no lixo o que sobrou ou chegar no final da feira para levar aquilo que ninguém quis comprar, a baixo preço: é a hora da xepa.
O Nordeste é, inclusive no imaginário nacional, associado a fome, pelas graves crises de subsistência que a população da região enfrentou, sempre que um período de estiagem acontecia. Grande parte da economia da região se apoiava em uma agricultura de subsistência muito dependente da ocorrência ou não de chuvas. Governos se sucederam, e as elites gordas e nababescas do Nordeste, descendentes de elites coloniais e imperiais que, ainda hoje, se orgulham de guardar nos museus da região as baixelas e talhares de prata, as toalhas de mesa e a prataria decorada com os escudos da família, os inúmeros objetos que compunham o trem das cozinhas, com os quais foram feitos e servidos inúmeros jantares e lautos almoços, nunca quiseram resolver o problema de convivência com as secas, nunca se preocuparam ou se chocaram com os espetáculos degradantes de corpos esqueléticos vagando pelas ruas, amontoados em campos de concentração ou em frentes de serviço, carregando pedras, fazendo estradas de rodagem, açudes, em troca de uma ração diária composta de feijão duro e farinha velha, nunca se apiedaram das crianças que lambiam, no chão de terra, pingos de mel de engenho que caíam de uma barrica, levada em um carrinho de mão. Nunca se importaram, de verdade, com as mulheres de seios murchos e corpos cadavéricos, a vagar em busca de um pão, sendo capazes de oferecer a sua carcaça ou o corpo de uma filha para que um poderoso pudesse lhe dar uma ajuda para matar a fome, em troca de serviços sexuais. Foi a fome extrema que levaram a ocorrências dos saques de armazéns do governo, a invasão de feiras e mercados, marcando a população nordestina com o estigma de não possuírem consciência social ou política, de não pensarem com a cabeça, mas com o bucho na hora de votar. Sim, a fome, a pobreza, leva a dependência, acarreta a impossibilidade de se ser cidadão. O golpe foi dado porque o combate a pobreza e a fome modificou a forma dos brasileiros pobres, e os nordestinos sempre foram uma boa parcela deles, votarem, de se colocarem politicamente. A derrota sofrida por grande parte das oligarquias nordestinas, que viveram sempre da exploração da miséria, da fome e da sede, nas eleições de 2006, acendeu o sinal de alerta e, desde lá, começou a fermentar o golpe que estamos vivendo. Nossas elites querem pessoas passando fome, pobres, sem educação, sem saúde, sem moradia, sem trabalho, sem aposentadoria, para, assim, se submeterem a qualquer tipo de relação de trabalho e de poder. Conscientemente eles não confessariam, mas o desejo de que os pobres voltem a seu lugar de miseráveis, de pessoas que precisam mendigar as sobras dos banquetes senhoriais, que precisam baixar a cabeça, se humilhar, se submeter a todo tipo de exploração, só para conseguir o “de comer”, é o sonho inconfessado dessa elite adiposa, no discurso e nas carnes. Enquanto nas elites, muitos morrem por excesso de comida, tendo corpos marcados pelo excesso de peso, os pobres andam com os ossos à mostra, pele e osso, ou se entopem com as comidas enlatadas e ensacadas, de baixo preço, muito calóricas, que enganam a fome, mas pouco alimentam.
Na minha infância, via a diferença entre o que eu comia e o que os filhos dos moradores das terras de meu pai comiam. Tudo o que compravam era feijão, quase sempre da pior qualidade, farinha, sal, açúcar e café, às vezes uma raspadura. As crianças se alimentavam de papa d´água com arrozina. Aquela cola era dada a criança pela mãe, usando os dedos das mãos, que eram passados na boca da criança, pois praticamente não possuíam talheres, era comum comerem com as mãos. Trabalhadores enfrentavam o eito, o dia inteiro, comendo apenas feijão, cozido numa panela de barro sobre uma trempe feita de pedras, com farinha. E, quando saíam no domingo para caçar, para ver se comiam a carne de algum passarinho ou de algum lagarto, tatu ou preá, eram considerados vagabundos, por meu pai, quando não proibidos de fazê-lo em suas terras. Eram criticados porque, como a carência alimentar, como a fome era muita, eles comiam toda a feira (grande feira!) em apenas dois dias e ficavam o resto da semana com fome. Nunca meu pai considerou a possibilidade de que, na verdade, era o salário miserável que pagava a eles que não dava para atender às necessidades alimentares de toda uma família, que era explorada, a medida que todos trabalhavam, inclusive crianças acima de sete anos e só o pai era remunerado. O trabalho de todo restante da família era gratuito, já que estavam só “ajudando” o marido ou o pai. Talvez seja a essa situação que a bancada ruralista sonha em fazer o país voltar.
Sim, o golpe foi dado, colegas deram pulinhos nos corredores, passeatas amarelinhas encheram as ruas, o pato amarelo grasnou pela avenida Paulista, o candidato filho-de-papai, que nunca soube o que é ficar sem comer, atendeu à sua vaidade e a seu mau-caratismo, os analistas e apresentadores de TV passaram tardes inteiras a convocar as pessoas para ir às ruas, os grupos de direita tornaram a vida política brasileira uma luta entre coxinhas e mortadelas, mas tudo isso foi feito para que voltássemos a ser o país da fome, do povo faminto de alimentos e de direitos, afrontados por seguidas decisões judiciais em benefícios dos poderosos de sempre. Os opulentos membros do Supremo Tribunal Federal devem estar muito satisfeitos com a sua obra. O governo golpista liquida em pouco tempo as riquezas que podiam alimentar a nossa população, por muitos anos e todos que apoiaram o golpe fazem de conta que não têm nenhuma responsabilidade pelo que está ocorrendo no país. Quem sabe esse povo com fome, revoltado, coloca no poder um fascista ou clama pela volta dos militares, talvez para uma farta distribuição do rancho para toda a população.
Durval Muniz de Albuquerque é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
(Texto publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)