pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : março 2018
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domingo, 25 de março de 2018

Intervenção traz risco altíssimo à democracia", diz historiadora Dulce Pandolfi

                                           
Luís Costa
                                                                                

‘Intervenção traz risco altíssimo à democracia’, diz historiadora Dulce Pandolfi           
 
Dulce Pandolfi, historiadora, pesquisa regimes autoritários no Brasil e na América Latina (Foto Luís Costa)

Às vésperas de completar 70 anos, a historiadora Dulce Pandolfi deixou a sala de aula – à sua revelia. Demitida em janeiro deste ano do CPDOC/FGV (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas), ela agora ocupa a agenda atendendo a convites de universidades para colóquios, seminários e aulas magnas. “É uma maneira de dar um troco. É como se dissessem: vocês estão jogando fora pessoas que nós consideramos fundamentais.”
Pandolfi é a veterana de quatro professoras do CPDOC demitidas entre janeiro e fevereiro deste ano. Além dela, Luciana Heymann, Verena Alberti e Mônica Kornis foram desligadas da instituição. Heymann, novata entre elas, tinha 32 anos de casa. Pandolfi, a decana, contava 42 anos de trabalho. “Nós quatro somos as últimas que fizemos toda a formação acadêmica integradas ao CPDOC”, diz.
O caso gerou uma reação imediata. Um abaixo-assinado na internet contra as demissões reunia, até o momento em que este texto é escrito, mais de 2.900 assinaturas, entre elas a de nomes como José Murilo de Carvalho, Lilia Moritz Schwarcz e Daniel Aarão Reis. O antropólogo Roberto DaMatta dedicou artigo em O Estado de S. Paulo para condenar as demissões, também criticadas em nota pela Associação Nacional de História (Anpuh).
Quando foi demitida, Pandolfi orientava seis alunos de pós-graduação e se preparava para oferecer mais uma versão do curso Democracia e Ditadura no Brasil e na América Latina, que havia ministrado no segundo semestre de 2017.
Em carta aberta divulgada nas redes sociais, Pandolfi considerou as demissões “desprezo, por parte da direção do CPDOC, pela liberdade de pensamento, pelo funcionamento democrático das instituições, pelo caráter público do conhecimento”. Ela chegou a falar em “destruição” da instituição, que guarda um dos mais importantes acervos de história contemporânea brasileira.
“Falou-se em crise, que havia necessidade de cortes. A direção nunca se dirigiu a nós, a despeito de um grande movimento da academia cobrando uma explicação”, diz Pandolfi, que fala em “sangria” após, segundo ela, um processo de seguidos desligamentos de professores com mais tempo de casa, a partir de 2010. “O CPDOC é hoje um centro em que não se debate minimamente as coisas. São decisões monocráticas da direção”.
‘Um pé na academia, outro na militância’
Filha do professor de direito Luiz Pandolfi, Dulce cresceu em uma casa frequentada por intelectuais. Menina ainda, conviveu com personalidades como o artista plástico Francisco Brennand, o escritor Ariano Suassuna e o designer gráfico Aloísio Magalhães. O ambiente doméstico combinava-se, aliás, com a agitação política e cultural daquele Recife dos anos 1960.
Pernambuco era então um estuário de nomes que formariam o cânone da esquerda no Brasil: era o tempo do governo socialista de Miguel Arraes, da liderança campesina de Francisco Julião, da pedagogia da autonomia de Paulo Freire, da pregação rebelde de Dom Helder Câmara.
Em plena efervescência do movimento estudantil em oposição à ditadura, Pandolfi entrou no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1967. Eleita secretária-geral do DCE da universidade, militou na resistência ao regime. “A gente não teve a passeata dos 100 mil, mas tivemos a dos 50 mil”, brinca. No ano seguinte, ingressou nos quadros da Ação Libertadora Nacional, a ALN, um dos principais grupos da esquerda armada no Brasil. Procurada pela polícia pernambucana, fugiu para o Rio.
Foi presa e levada, em agosto de 1970, ao quartel da Polícia do Exército, onde funcionava o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), no bairro da Tijuca. Naquelas instalações, sofreria três meses de tortura, entre afogamentos, choques elétricos e – uma invenção brasileira – a suspensão no pau de arara, quando serviu como cobaia para uma aula de tortura.
A história de horror foi contada em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013. “Há uma disputa de memórias e estamos perdendo”, afirma a professora, autora de Camaradas e Companheiros: Memória e História do PCB, lançado em 1995. “A ditadura no Brasil teve essa faceta de manter alguns aparatos da democracia, como a existência de eleições e partidos, e ficou muito disfarçada. A gente conseguiu pouco desmascarar essa ditadura”.
Para a historiadora, a fragilidade da memória da ditadura e a inexistência, segundo ela, de uma justiça de transição de fato na redemocratização, permitiram a permanência de um desprezo pelos direitos humanos em setores da sociedade brasileira. “Existe conivência com a tortura no Brasil”, diz a professora. “A cidadania no Brasil é muito frágil, os direitos humanos, muito precários. Por um lado, há uma elite predadora e, por outro, uma parte da população pré-cidadã, pouco consciente dos seus direitos, que são percebidos como benefícios, privilégios.”
Quando saiu da prisão, Dulce voltou à universidade, desta vez no Rio, no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi ainda na graduação que ela soube de uma vaga de estágio no recém-criado CPDOC. À época, o centro recrutava estudantes para trabalhar na pesquisa para o Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, que se tornaria uma referência no estudo de fatos e personagens da história política do Brasil contemporâneo.
Entre o estágio, a pesquisa e a docência, foram 42 anos de CPDOC, interrompidos pelo aviso de desligamento em janeiro passado (em 2013, Dulce já havia sido demitida, mas foi logo readmitida após pressão da comunidade acadêmica). Nesse tempo, com “um pé na academia e outro na militância”, como ela diz, aproximou-se do sociólogo Betinho e foi convidada para ser diretora do Ibase, função que ocupou entre 2004 e 2011.
Pesquisadora de regimes autoritários no Brasil e na América Latina, Pandolfi entende que há muita diferença entre o atual quadro institucional brasileiro e aquele de 50 anos atrás. Entretanto, segundo ela, há um “risco altíssimo”, por exemplo, na intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, sob controle das Forças Armadas desde fevereiro. “Temo que o Rio esteja sendo um laboratório para uma intervenção militar em outros estados, quiçá no Brasil como um todo”.
Ela aponta que, mesmo nas ditaduras, é possível haver arremedos de instituições democráticas em funcionamento, como eleições e partidos políticos, mas sob tutela autoritária. Foi o que teria acontecido com a ditadura de 1964-1985, na qual o autoritarismo era disfarçado por meio do funcionamento formal das instituições. Pandolfi acredita que é esse o risco por que a passa hoje o país. “Podemos até não ter uma ditadura naqueles moldes, mas um cerceamento da democracia cada vez maior”.

Luís Costa é jornalista e doutorando em história pela UFRJ

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Jean Galvão via Folha de São Paulo

sábado, 24 de março de 2018

Le Monde: Os exilados de Mangabal

Lideranças ribeirinhas são ameaçadas de morte ao desafiarem o crime organizado da madeira, a garimpagem e a extração ilegal de recursos em seu território. Ações de proteção territorial são frutos de aliança histórica com os índios Munduruku

                                                                 O ribeirinho Chico Caititu uniu-se às lideranças indígenas. Foto: Ailen Vega

Francisco Firmino precisou sair às pressas de sua casa, no beiradão do Rio Tapajós, no Pará, quando a notícia chegou aos seus ouvidos: chefes de garimpo e de esquemas de saqueio de madeira e palmito tinham colocado a sua cabeça a prêmio. As recentes ações de proteção territorial no Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) Montanha e Mangabal, onde Francisco vive, tinham atingido os bolsos daqueles sujeitos, impactando expressivamente o conflito na região. Era uma questão de tempo; a intimidação ganhava corpo numa rapidez ímpar, e o que antes eram rumores sobre “dar um jeito” nos ribeirinhos, logo se transformou em planos mais concretos, ouvidos diretamente por conhecidos de Francisco. E não se trata de um, mas de três alvos: junto com ele, outras duas lideranças de Montanha e Mangabal estão em risco – Ageu Lobo e Pedro Braga, presidente e vice-presidente da comunidade, respectivamente.
Chico Caititu (como Francisco é mais conhecido) atravessou o rio e foi se refugiar na terra indígena Sawre Muybu, do povo Munduruku: estratégia improvável, não fosse a parceria que ele estabeleceu com os indígenas nos últimos anos, em face das ofensivas aos povos e comunidades do Tapajós e às suas terras. E não foi apenas guarida que recebeu de seus vizinhos, mas oportunidade de saída: juntou-se ao grupo de noventa homens, mulheres e crianças munduruku que desciam o rio em três grandes canoas para protestar na cidade de Itaituba (PA) sobre as condições dos serviços de saúde e educação nas aldeias. Ele era o único não indígena presente. Em seguida, partiu para Santarém.
Já são dois os exilados de Montanha e Mangabal. (Isto é: duas pessoas que não sabem quando poderão retornar às suas casas e famílias, e como poderão se manter longe do trabalho e da garantia de vida.) Ageu teve que deixar a sua comunidade logo que soube de uma emboscada que o esperava no porto de Buburé, por onde sempre passava. Não fora a primeira nem a segunda vez que homens armados o aguardavam ali, segundo testemunhou um conhecido seu que trabalha no local. Foi avisado por esse homem que Ageu deixou de frequentar o porto – reconhecendo que as intimidações aumentaram em frequência e intensidade depois que a autodemarcação do PAE (realizada pela sua comunidade, em aliança com os Munduruku) impactou diretamente os esquemas de garimpagem e de retirada de madeira e palmito do território.
Já no início da atividades, em setembro de 2017, um grupo de garimpeiros armados ameaçou os beiradeiros, aumentando a tensão que enfrentam há décadas. Notificado pela comunidade, que seguiu com as ações de proteção territorial, o Ministério Público Federal recomendou a paralisação das atividades exploratórias dentro do PAE – em avisos que foram fixados pela Polícia Federal no trecho da Transamazônica que separa Itaituba de Jacareacanga. Em seguida, o Incra iniciou o georreferenciamento da área, que precede a fixação de marcos nos perímetros do assentamento, a certificação e a expulsão de invasores.
        Ageu Lobo, presidente da comunidade de Montanha e Mangabal. Foto: Adeline Laval

Aliança histórica
É certo que nas ameaças aos beiradeiros de Montanha e Mangabal ecoam padrões da violência que por anos seguidos coloca o Brasil no topo do ranking de assassinatos de ambientalistas e lideranças do campo – como o recente assassinato de Paulo Nascimento, em Barcarena, faz lembrar (e antes dele, tantos: Valdemir ResplandesJosé Cláudio e MariaNicinha). Mas a história de Chico, Ageu e Pedro é também marcada por uma singularidade que não pode passar despercebida: eles foram protagonistas de uma aliança histórica na região, que reverberou não apenas nos recônditos da Transamazônica, por onde circulam as ameaças de morte, como também no alto escalão do governo federal, nos escritórios de multinacionais interessadas na exploração da bacia Tapajós-Teles Pires e na imprensa nacional e internacional.
Desde que Chico Caititu se juntou à ocupação do canteiro de obras de Belo Monte em 2013 – ação que enfureceu o Planalto e que promoveu significativos efeitos no debate (e na luta) sobre megaprojetos na Amazônia –, a relação entre as comunidades de Montanha e Mangabal e o povo Munduruku mudou. E, no ano seguinte, ao lado dos Munduruku, Caititu adentrava a floresta com Ageu e outros beiradeiros para marcar os perímetros da terra indígena Sawre Muybu, cujo processo de regularização fundiária se encontrava paralisado por motivos de “força maior” – isto é, de pressão do setor elétrico sobre a Funai, como à época admitiu a presidência do órgão indigenista. A autodemarcação dessa TI foi, sem dúvida, fundamental para oarquivamento do licenciamento ambiental da maior das 43 usinas hidrelétricas (UHEs) projetadas para a bacia do Tapajós – o projeto que já foi a “menina dos olhos do governo federal” e de investidoreschineses. Depois dessa ação não se poderia mais fazer de conta que não havia indígenas habitando a região, como a presidência da Empresa de Pesquisa Energética costumava repetir, reproduzindo o velho discurso de vazio populacional da Amazônia, que tambémincidira sobre os moradores de Montanha e Mangabal.
Mas a pressão sobre os povos e as comunidades dali não se resumia à UHE São Luiz do Tapajós – e não é apenas essa usina que os está mirando: a construção da UHE Jatobá (que teve recentemente os estudos de viabilidade aceitos pela Aneel) está prevista para o exato centro da área de Montanha e Mangabal. Além dos megraprojetos logísticos que já estão sendo colocados em prática ou que estão projetados para a região (portos, hidrovias, ferrovias), outras frentes de destruição preocupam indígenas e beiradeiros. O garimpo de ouro, potencializado pela mecanização da última década, tem promovido uma verdadeira devassa nas margens e nas águas do Tapajós – como Chico Caititu insistentemente expôs ao participar do Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), 17 e 22 de março de 2018, em Brasília. Além disso, tanto a área das comunidades de Chico, Ageu e Pedro como a terra dos seus vizinhos Munduruku vêm sofrendo maciças investidas do crime organizado da madeira e da extração de palmito.
Em resposta a essas investidas, a aliança entre beiradeiros e indígenas foi mobilizada novamente para demarcar por conta própria um território: desta vez, o de Montanha e Mangabal. Refletindo sobre esse processo (e os seus efeitos) em palestra na Universidade de Brasília, Chico Caititu concluiu: “nós fomos buscar direitos e encontramos a morte”.
*Luísa Pontes Molina é doutoranda em Antropologia pela Universidade de Brasília e membro do Laboratório de Antropologias da T/terra.
Com a colaboração de Arthur Serra Massuda e Maurício Torres.
 
(Publicado originalmente no site do jornal Le Monde Diplomatique Brasil)

Marielle Franco e o mal radical

                                           
Marcia Tiburi

Marielle Franco e o mal radical                                       A vereadora Marielle Franco em encontro do PSOL (Foto: Mídia NINJA)
O assassinato de Marielle Franco é um acontecimento político limítrofe. Um divisor de águas na história da política nacional. Sua morte torna visível um tipo de luta à qual as classes dominantes, as corporações e a mídia convencional parecem ter pavor: a luta antirracista, anticapitalista, a luta contra o machismo, a luta pelo direito à cidade, a luta pelos direitos fundamentais das pessoas sem os quais não há vida justa em sociedade.
Mais que isso. As mulheres negras se tornaram as representantes de um poder totalmente outro, de um poder que aparece como ameaça real ao status quo. Nesse sentido, se olharmos do ponto de vista da história de um país racista e escravagista como é o nosso, de um país misógino, de um país em que aos pobres se reserva a morte por fome e abandono, a morte de Marielle Franco surge como uma espécie de fato dedutível em um longo processo de genocídio da população negra, antes usada como escrava, depois como mão de obra barata e, sempre, como descartável.
Combinando todas as características da indesejabilidade, todas as formas de ódio caíram contra ela: racismo, misoginia, ódio ao intelectual, à ativista, à socialista, mas também ódio ao fato de que Marielle, embora fosse uma pessoa meiga e amorosa, não andava de cabeça baixa, não se escondia, não tinha uma imagem “dócil” como se espera de mulheres, de pretos e pobres. Marielle não tinha medo e, também por isso, ela foi morta. A lógica do neoliberalismo implica que os cidadãos para sobreviverem nele devem curvar-se ao medo do que ele pode fazer com cada um simbólica e economicamente, e ela nunca se curvou. Foi morta também para nos dar o exemplo de que, ativistas e mulheres, negros e pobres, todos temos um novo “dever cívico”, o de “temer”. A lei não escrita que subjaz à nação do Estado de exceção na qual se transformou o Brasil define que será morto aquele que não temer.
De certa forma, configurando tantos aspectos em si mesma, dentro da lógica assassina do sistema que sobrevive da administração de afetos tais como o ódio (acrescentemos também a inveja e a avareza), não é um exagero dizer que seu assassinato vai ao encontro da racionalidade neoliberal que torna pessoas descartáveis, em especial os inimigos políticos desse projeto. E é, nessa mesma medida, lógico que, depois de morta, queiram usá-la para fundamentar o jargão assassino da extrema-direita: “bandido bom é bandido morto”. Agora é preciso transformar Marielle em algo de “bandido”.
As fake news que surgem em profusão visam a conspurcação de sua memória e de suas lutas nas redes sociais, nos jornais impressos e na televisão. Nesse momento, distorcer sua luta contra a intervenção militar no Rio de Janeiro faz parte de um jogo cínico que já se tornou tradicional em termos de relação entre política e mídia. O jogo retórico dos donos do poder, das classes favorecidas ou dos odiadores profissionais, humanos ou robôs é evidente, mas está ameaçado pela própria população que luta pelo respeito à sua memória.
Se Marielle não for transformada em “bandido”, o que só se consegue manipulando o imaginário da população e contando com aqueles que, sem ética, já tem um ódio bem desenvolvido, ela será transformada em heroína, como já vem sendo promovido pela maior parte da população que se identifica com ela, seja porque era jovem, negra e empoderada, ou porque admirava a sua causa, a da ativista e parlamentar que lutava por direitos humanos.
O perigo de sua condição de heroína está em seu potencial revolucionário. Essa condição também torna seu assassinato inútil. Uma espécie de tiro no pé que os donos do poder dão em si mesmos. Pois como símbolo Marielle vive e a maior parte da população brasileira, composta de mulheres negras e de jovens negros que ela defendia, não deixará de ressuscitá-la a cada dia como símbolo de luta.
A morte de Marielle Franco faz ver que o ódio aos negros e às mulheres negras é um ódio fascista, ou seja, um ódio que não se contenta em matar. Na linha desse tipo de ódio, é preciso “exterminar” e é isso o que se faz quando se tenta usar sua memória e sua morte para conspurcar sua própria luta.
Marielle representava uma luta contra o que podemos chamar de mal radical, esse mal que visa o extermínio do outro. Esse mal aparece em momentos, tais como quando os nazistas deixaram claro seu desejo de que os judeus nunca tivessem existido. O exercício do mal radical está claro em todas as mortes de líderes campesinos e indígenas (de 2014 até março de 2018, mais de 20 líderes foram assassinados no Brasil e não são noticiados pela televisão), na morte de cada menino negro nas favelas cariocas, e da população LGBT. Há um projeto de extermínio que se confunde com a história passada e presente.
O mal radical tem a dimensão de um projeto. Nele há um prazer em destruir. Um verdadeiro gozo perverso. Os donos do poder, governos e corporações, são seus sacerdotes. O cidadão comum faz parte desse projeto como uma espécie de “lacaio” que serve a um senhor. Ele é como o escravo digital que faz o mesmo papel do qual um robô é capaz, mas só o faz porque foi capturado por discursos orquestrados que o atingem no vazio previamente forjado pelos meios de subjetivação capitalistas, exímios esvaziadores de subjetividades. Nos espanta que haja alguém que possa aplaudir qualquer tipo de assassinato e que possa se utilizar politicamente disso. Mas não é de espantar quando pensamos nos fins administrativos e governamentais, os fins do poder que “educa” pessoas para serem replicante de ideias prontas que não pensam no que dizem e no que fazem ao dizer.
Nesse momento, não devemos nos esquecer das manifestações nas ruas em 2013. Assim que os meios de comunicação hegemônicos perceberam que o povo estava de outro lado, resolveram “capitalizar” sobre o fato. Fazem isso quando percebem que há “capital simbólico” em disputa e que podem perder muito, basicamente audiência e lucros relacionados a elas, sem tocar em determinados assuntos. O destaque ao assassinato de Marielle Franco tem fins específicos nesse momento.
O Rio de Janeiro tem sido usado para “dar exemplo” por todos aqueles que se colocaram como donos do Brasil e da cidade do Rio de Janeiro. O assassinato de Marielle Franco tem um alto impacto simbólico que cancela a vida de uma guerreira admirável, aquela pessoa que queríamos na política, em todos os lugares, como vereadora, como senadora, como deputada, como prefeita e que sonhávamos um dia, seria nossa Presidenta. Seu assassinato é uma prova da abjeção governamental e se insere na política de terror de Estado que atinge a todos. Mas atinge sobretudo o povo da favela, marcado pra morrer em uma economia-política de extermínio que já se tornou natural no Brasil.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Seminário: Karl Marx: 200 anos depois

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Editorial: A caserna mais consequente


 
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Nos últimos dias, o país conheceu alguns apagões. Um de natureza técnica - segundo o ministro das Minas e Energias, Fernando Filho, provocado por falha de um disjuntor - atingiu 13 Estados da federação, notadamente nas regiões Norte e Nordeste. Em sessão no STF, uma troca de entreveros entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso ganhou manchete nas primeiras páginas dos jornais impressos, além de alguns preciosos minutos nos principais noticiosos televisivos. Considerando-se os ritos daquela Corte, pode-se concluir por um comportamento talvez não muito condizente com o seu perfil. Um apagão de equilíbrio e bom senso, por assim dizer. Outras leituras são possíveis, até mesmo aquela que nos afasta das trevas e nos aproxima da luz, informando que um dos interlocutores precisava, de fato, ouvir algumas verdades. Na sessão do dia 23, entrou na pauta a apreciação de um habeas corpus preventivo requerido pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A votação ficou adiada para o dia 04 de abril, concedendo-se uma liminar que impede a prisão do ex-presidente antes do julgamento do habeas corpus.
Em meio a esses apagões, no entanto, ficamos atentos a uma fala do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Como se sabe, não foram poucos os setores da caserna que discordaram da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Motivos não faltam para isso. A discussão, no momento, é o custo dessa intervenção, hoje  calculada pelos interventores em R$ 3,1 bilhões. A quantia, além de alta, tem causado urticárias, uma verdadeira dor de cabeça entre os homens do planejamento, dando a entender que é preciso fazer uma verdadeira ginástica para se conseguir tal verba. De concreto, depreende-se que a intervenção foi uma decisão política, sem alguns respaldos, entre os quais uma abordagem sobre o seu financiamento. Embora seja cedo para se concluir algo acerca dos seus resultados concretos no sentido de arrefecer a onda de violência naquele Estado, uma premissa, a princípio nada alvissareira, é que algumas modalidades de delitos até aumentaram, além de não se verificar queda na taxa de crimes violentos letais intencionais contra a vida, cujo cadáver de Marielle Franco é uma das referências mais emblemáticas. 
A princípio, a Vila Kennedy seria o espaço escolhido para servir de modelo sobre o que a intervenção pretende realizar no Estado, de acordo com seus coordenadores. No dia de ontem, resolveram retirar a presença ostensiva dos militares daquela área, assim como continuar o processo de desmonte das UPPs, com a extinção de duas delas. Todos esses “desencontros” talvez explique o pronunciamento do general Eduardo Villas Bôas, Comandante do Exército, que demonstrou sua preocupação sobre as expectativas e os resultados concretos da intervenção. Ressalte-se aqui a franqueza do general sobre um assunto nevrálgico. Em certo momento de sua fala ele observa que a violência é a consequência de demandas não atendidas da população, uma ponderação das mais sensíveis, uma vez que a violência sistêmica cometida pelo aparelho de Estado, que não supre aquela população das suas condições básicas de exercício de cidadania, de fato, seria o ponto "X" da questão, para muito além de novos efetivos, investimentos em equipamentos, inteligência e coisas do gênero. Aqui enfrentamos uma agenda regressiva, sem nenhum compromisso com a garantia dos direitos individuais e coletivos, essencialmente excludente.  

Em certo sentido, os interventores seguem uma política de desmonte das UPPs, que o Governo do Estado já vinha adotando. O que deve ser combatido nas favelas cariocas, na realidade, é uma espécie de racismo estrutural, que passa ao largo das reflexões, exceto por atores da academia. Recomendaria a leitura da dissertação de mestrado da ativista Marielle Franco, onde é possível observar porque as UPPs acabaram fracassando. O que o país precisa é enfrentar o problema das desigualdades sociais e econômicas, da infame distribuição de renda e de uma exclusão secular de determinados segmentos sociais. Essa questão não será enfrentada com mais fuzis ou  construção de novos presídios. A fala do general Eduardo Villas Bôas sugere que ele entende a dimensão do problema, ao observar que essas demandas reprimidas elevam as estatísticas de violência.  

Charge! Renato Machado via Folha de São Paulo

segunda-feira, 19 de março de 2018

Charge! Duke via O Dia

Editorial: As violências contra Marielle Franco


 
 
 CONTEXTO POLÍTICO
 
Há poucos dias publicamos por aqui um desenho do carturnista Renato Aroeira, onde ele explica para os leitores o tipo de violência do qual foi vítima a vereadora Marielle Franco e o seu motorista, Anderson Gomes. A caricatura é também uma forma do chargista homenageá-la. Como observa Aroeira, a violência atinge a todos nós, com índices talvez nunca registrados no país, um fenômeno que se alastra para muito além das fronteiras do Estado de Sítio(Ops! Rio de Janeiro). A ativista política, no entanto, foi vítima de todas as violências, mas tombou, em especial, vítima de uma violência “planejada”com “método”, “treinamento” e “objetivo”. Há aqui, no caso de Marielle, um razoável entendimento sobre o emprego da violência para solucionar conflitos políticos. Em espaços democráticos - sob a égide do Estado de Direito e, portanto, menos "turvos" - há canais para dirimir tais conflitos. Em Estados de Exceção... 

Não há, até aqui, indícios suficientes para tirarmos alguma conclusão, mas já se sabe, por exemplo, que as balas que a mataram foram subtraídas de lotes negociados para a Policia Federal, muito difíceis de serem rastreados, posto que desviados desde 2006, e identificados com a morte de outras tantas pessoas, sempre associados à crimes de execução. O crime contra a vereadora Marielle Franco foi rigorosamente planejado, com o objetivo de dificultar enormemente a sua elucidação. Um dos possíveis carros utilizados pelos criminosos foi encontrado no Estado de Minas Gerais. Quem acompanhou as investigações em torno da chacina de Osasco, sabe, por exemplo, que a identificação dos cartuchos pouco ajudou na elucidação daquele crime. No caso de Marielle, creio que também não possa ajudar muito, embora a Polícia Federal tenha acionado o seu melhor perito em impressões digitais, com o propósito de identificar alguma pista nas impressões digitais encontradas nos cartuchos. 

Sobre o crime, por enquanto, é o que se tem, além das justas homenagens recebidas pela ex-vereadora em todo o país e também no exterior. Mas, apesar da dor da família e do sentimento dos brasileiros com a sua morte prematura - um dano para o avanço das lutas sociais e da própria democracia no país - Marielle Franco passou a ser vítima de um outro tipo de violência - talvez simbólica, não sou especialista no assunto - através das redes sociais, com o propósito de denegrir a sua imagem. Aliás, denegrir a imagem dos adversários tornou-se recorrente nos país pós-golpe institucional de 2016. Não vou aqui perder tempo com as infâmias dirigidas à ex-vereadora, que chegam ao cúmulo de ligá-la ao Comando Vermelho. O que espanta, neste caso, é que, mais uma vez, como observa o chargista Aroeira, Marielle não é vitima de algum fofoqueiro de turno, mas de agentes diretamente ligados ao aparelho de Estado. Espantoso, não? Todos nós sabemos que a injúria, a calúnia e a difamação integram o arsenal utilizado para “desacreditar” os agentes sociais que se colocam como denunciantes de arbítrios ou falcatruas cometidas pelo poder público, por vezes. em parcerias com agentes privados. Hoje isso tem um nome pomposo: Fakes New, mas, a rigor, trata-se aqui das mesmas campanhas de disseminação do ódio, como um dos componente da engrenagem golpista do golpe institucional de 2016.

O país seria levado a esta situação em razão do ódio disseminado por setores da mídia, movida por um conjunto de interesses escusos, de caráter anti-democrático,e, porque não dizê-lo, anti-petista, já que o inimigo que precisava ser combatido, naquele momento, atendia pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva. A corporificação desse ódio, por consequência, atingiria igualmente os grupos sociais identificados com o petismo; aqueles para os quais as políticas públicas de corte inclusivo da era Lula foram dirigidas e a militância política identificada com essas bandeiras - mesmo que de outro partido - como foi o caso de Marielle Franco. Com Marielle, chegamos àquele cabo de guerra decisivo. Ou a onda autoritária arrefece ou embrutece de uma vez, como o episódio envolvendo o senhor Alfredinho, do Bar Bitbip, "conduzido" a uma delegacia tão somente por prestar uma homenagem a Marielle Franco.  

Michel Zaidan Filho: Síntese da evolução política e cultural de Garanhuns

  
Para os propósitos dessa breve apresentação, iremos sintetizar a evolução político-cultural da Cidade de Garanhuns em cinco períodos – que correspondem grosso modo à própria evolução política do País e particularmente, a evolução das relações entre a União e seus entes subnacionais, em diversas conjunturas críticas da história nacional.



-Primeiro período, das origens até a hecatombe de 1917.


-Segundo período, da hecatombe de 1917 até o golpe do Estado Novo.


-Terceiro período, do golpe do Estado Novo (e a chegada de Agamenon Magalhães ao poder) à redemocratização.


-Quarto período, da redemocratização até o Golpe de 1964.


-Quinto período, da redemocratização até hoje, passando naturalmente pelo fim do regime militar, os prefeitos eleitos nessa época, a luta pela volta do estado de Direito etc.                                                              1





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O que chamamos aqui de primeiro período é aquele que remonta às origens do povoado de Santo Antônio ou a vila de Cimbres, que deu início ao município de Garanhuns. Ou seja, o imenso latifúndio agropastoril que formava então os domínios territoriais de Simoa Gomes, a donatária destas terras. Inicialmente, Garanhuns (ou a vila de Cimbres) fazia parte da imensidão territorial de uma casa de Fidalgos, os Garcia da Torre, que se estabeleceram Penedo, às margens do rio São Francisco, e por doação da Coroa portuguesa, passaram à condição de donatários feudais, cujo domínio se estendia desde as terras da Bahia até a Paraíba. Nesta imensidão territorial é que se recortou o território que viria a ser Garanhuns, a partir do latifúndio de Simoa Gomes. Como região geográfica e climática de transição, essas terras correspondem à economia pastoril e algodoeira do nordeste brasileiro. Assim, o que caracteriza em seus inícios a atividade econômica do lugar é uma pecuária extensiva e culturas de subsistência voltadas para o abastecimento das fazendas e vilarejos circunvizinhos. O que se pode assinalar de culturalmente importante nesse período são as tradições, rituais e cerimônias de seus primeiros habitantes, os indígenas da etnia Cariri, cujo principal traço psicossocial era uma permanente tristeza ou melancolia, que se expressava nas atitudes, nas músicas e danças e rituais. Estes primeiros habitantes da região foram objeto de inúmeras caçadas e perseguições de bandeirantes e aventureiros, entre eles, se sobressaí a figuras de Domingos Jorge Velho, como grande predador dos nossos indígenas locais, depois da campanha movida contra o quilombo de Zumbi dos Palmares. Da parte dos colonos, é de se destacar a influência do Catolicismo patriarcal e familiar, que deixou suas marcas no assistencialismo e na filantropia de Simoa Gomes em relação à pobreza local. A origem mesma do município deve-se a uma ação caridosa dessa donatária rural, depois que essas terras foram expropriadas pelo saque e a escravidão das nações indígenas ali residentes. É de interesse notar que Garanhuns também foi reduto de quilombolas – escravos africanos que fugiam das fazendas e engenhos da redondeza e construíam redutos nas terras da então vila de Cimbres, como é o caso do quilombo do castanhinho (até hoje existente). Neste ponto, é possível reconhecer uma rica e diferenciada herança multicultural, formada pela contribuição dos índios Cariris, em especial da mulher, dos escravos fugitivos e do colonizador português e seus descendentes.                                                                 





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O segundo período dessa evolução vai até o trágico acontecimento chamado a “hecatombe de 1917”, que aliás já mereceu um estudo detalhado, a partir do processo judicial, do historiador garanhuense Mario Márcio de Almeida. Ele coincide com um momento de intensa urbanização do novo município. A “hecatombe” pode ser interpretada como um grande conflito social e político entre senhores de terra (os coronéis da antiga Guarda Nacional) que então mandavam na região e os novos senhores do comércio, dos serviços e atividades urbanas. Embora, muitos desses chefes políticos locais fossem também grandes comerciantes estabelecidos na praça ou núcleo urbano. A luta de famílias – tão comum no interior do Brasil – não deve obscurecer o significado mais profundo desses trágicos acontecimentos. Tratou-se de uma grande ruptura no padrão dominantemente agrário e rural da política local, rumo à hegemonia dos coronéis urbanos, assentados na cidade, grandes exportadores, beneficiadores de produtos agrários ou simplesmente comerciantes. Com a vitória destes últimos, a cidade ganhou um novo impulso urbanístico que coincide com a chegada de muitos imigrantes estrangeiros: holandeses, sírio-libaneses, italianos, franceses etc; com a chegada da estrada de ferro (Great Western) e naturalmente com o estupendo crescimento e apogeu da cafeicultura na região, em razão do clima temperado e do solo fértil. O auge desse período é o ano 1936, com uma multiplicidade de jornais, grupos dramáticos, correntes políticas, teatros, orquestras e uma onda de modernização das atitudes, os comportamentos sociais, a fala, a roupa, o lazer, a ostentação de bens de consumo duráveis etc. (ver o Almanaque de Garanhuns, de 1936, com ricas ilustrações de Ruber Van Der Linden). A figura ímpar desse momento de exuberância social, econômica e cultual da cidade foi o engenheiro e animador cultural Ruber Van Der Linden. Homem dotado de muitas qualidades intelectuais e de viva curiosidade foi ele o autor de inúmeras iniciativas importantes, como o parque ecológico, o grêmio cultural, os almanaques de Garanhuns, os primeiros esboços históricos da cidade e muito mais. Nunca mais experimentaria a nossa cidade um tal desenvolvimento cultural, a par do auge da cafeicultura e da influência modernizadora da infra-estrutura urbana que ela nos legou.




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Este último período se encerra com o Golpe do Estado Novo, em 1937, e a chegada em Pernambuco do “agamenonismo” – o interventor de Getúlio Vargas em nosso estado. Esse acontecimento provoca uma nova ruptura na história da cidade, pela inaudita centralização política trazida pelo interventor e pela rede de apoio dos coronéis interioranos a Agamenon Magalhães, que funda o PSD. É também o período das interventorias municipais, com prefeitos indicados e nomeados em função das alianças locais e estaduais. Curiosamente, a cidade teve a sorte de contar com a ação de homens que foram verdadeiros empreendedores urbanos, embora a vida política e cultural tenha sido abafada pelo clima policial e arbitrário do novo regime. Nomes como Mário Lira, Celso Galvão Euclides Dourado e outros contribuíram muito para o desenvolvimento urbanístico da cidade, com grandes obras públicas, melhoramentos urbanos, novos bairros, parques, logradouros e avenidas.

                                                               




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Essa fase se conclui com a redemocratização, em 1946. Abre-se então uma época marcada pela disputa eleitoral e partidária e uma intensa ideologização da política, como aliás em todo o Brasil. É o período do nacional-desenvolvimentismo, com uma grande mobilização de massas; de estudantes, trabalhadores rurais, operários, profissionais liberais, trabalhadores urbanos e partidos políticos. Garanhuns foi sacudido pela tempestade política da época, com suas lideranças locais tomando posição a favor e contra os partidos nacionais e seus líderes. Aqui, é preciso fazer justiça a dois nomes, o alfaiate Amaro da Costa, corajoso líder comunista, que muito sofreu com as inúmeras prisões, e o deputado José Cardozo, do PTB. Outros renegaram suas antigas ideias e aderiram aos golpistas de 1964, para serem aceitos como pessoas de bem (e de bens) pela comunidade e receberam as benesses dos vários governadores indiretos ou nomeados. Estes dois valorosos políticos acima mencionados pagaram caro pela coerência ideológica e a firmeza de suas posições. Aliás, algumas lideranças sociais e políticas de hoje são originárias dessa época de agitação social, entre elas o ex-vice-prefeito da cidade, Marcio Quirino.                                                          





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Chegamos, assim, ao quinto período dessa síntese histórica, que corresponde à vigência da ditadura civil-militar no Brasil e a um momento de extrema centralização político-administrativa. É a fase do bipartidarismo oficial e ou das sublegendas partidárias – onde não foi possível organizar uma oposição legal. A multiplicidade de correntes ideológicas foi eliminada e substituída por uma camisa de força de dois partidos oficiais. A vida política e cultural da cidade sofreu um enorme esvaziamento em razão da censura, do autoritarismo, da falta de autonomia local, da prisão, do exílio e o absenteísmo de importantes lideranças. Os próprios colégios, a imprensa local, os grêmios estudantis e as igrejas deixaram de ser fontes de animação cultural e política da cidade. A política passou a ser hegemonizada pelos novos coronéis urbanos, grandes comerciantes, latifundiários, exportadores e beneficiadores de produtos agrícolas e donos de grande parte da riqueza gerada na região. O caráter acanhado das lideranças econômicas se refletiu nas limitações culturais do munícipio, até a pouco tempo sem representação estadual ou federal. Forasteiros e aventureiros empolgaram a vida política da cidade, fazendo carreira, primeiro de empreendedores, depois de lideranças políticas. Para isso muito contribuiu, sem dúvida, a influência cosmopolita da formação dada pelas instituições escolares e o conservadorismo das igrejas, produzindo uma emigração de jovens talentos e lideranças em potencial. Este período foi caracterizado pela hegemonia de um partido único em Garanhuns, a Arena; sendo sufocadas outras alternativas de participação. A única exceção foi o rápido e difícil governo de Souto Dourado, ligado ao MDB, advogado, vivendo fora da cidade há muito tempo, que fez uma administração voltada para a cultura, a recuperação urbanística da cidade, a moralidade administrativa e a valorização do serviço público, mas que – infelizmente – não foi compreendido nem valorizado pelos munícipes da região.

                                                                




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Finalmente, chegamos aos dias de hoje. A consideração de um modelo político-cultural adequado para uma cidade como Garanhuns não pode prescindir, primeiro, do processo de esvaziamento econômico da cidade, marcado pela extrema concentração de renda e o monopólio da atividade comercial do município. A acanhada estrutura econômica da cidade (que parece dar sinais de mudança) pesa naturalmente sobre a riqueza ou a pobreza da vida cultural. A opção por transformar a cidade numa estância hidromineral de vocação turística e comercial, com um calendário de eventos musicais anual, financiado pelo governo do estado, no bojo de uma incapacidade fiscal e tributária dos municípios brasileiros, a falta de autonomia administrativa em que vivem grande parte das pequenas e médias cidades, faz de Garanhuns uma região de vida cultural induzida e artificial, ao contrário de outros municípios pernambucanos. É como se a nossa cidade não tivesse uma identidade cultural definida, bem demarcada, a despeito dos inúmeros valores humanos e intelectuais, das inúmeras faculdades, excelentes colégios confessionais, igrejas, clubes etc. A nossa cidade ainda é tributária de uma programação hegemonizada pela capital do estado e outras cidades de porte médio de Pernambuco.







Essa fraqueza pode e deve ser combatida: primeiro por iniciativas da própria sociedade civil e suas organizações, seus intelectuais, seus artistas, seus professores, seus líderes comunitários, religiosos e econômicos. Ou seja, não se deve esperar do governo ou de outros essa valorização da autoestima da cidade. Mas isso só pode ser feito com o fim desse cosmopolitismo estéril, vazio, empobrecedor das elites que dominam a cidade. Este descompasso entre este nefasto papel descivilizador e descomprometido das elites e as nossas potencialidades locais é responsável por uma cultura de alienação e pouco respeito e reconhecimento dos nossos valores. A tarefa política e cultural de consertar tal desequilíbrio é de todos quanto almejam o desenvolvimento urbano integrado local, com um viés distributivo, justo, inclusivo, mais voltado para a recuperação da autoestima dos cidadãos e cidadãs garanhuenses. Há muito que fazer neste terreno. É tarefa das faculdades, das escolas, das igrejas, dos clubes, das organizações não governamentais, dos líderes comunitários, dos partidos políticos, dos artistas e intelectuais, dos animadores culturais, do povo de Garanhuns.
                                             




Historiografia


O primeiro livro escrito sobre a nossa história é o do professor João de Deus, da Universidade Rural de Pernambuco. Traz fotos das índias cariris e outras informações importantes. Mas não é obra de historiador. O segundo e de um diletante chamado Alfredo Leite e tem uma importância documental muito grande. Mas está muito longe de ser uma história da cidade. O primeiro livro nesse gênero é o do historiador Mario Marcio e é sobre a hecatombe de 1917, não tem a abrangência necessária. Uma leitura dos almanaques, organizados por Ruber Van Der Linden é importante. O vídeo feito sobre a hecatombe por Clóvis Manfredini é muito interessante.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

Durval Muniz: Tempos de monstruosidade

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No carnaval, um enredo que se apoiava na famosa história do monstro Frankenstein arrebata o primeiro lugar no desfile das escolas de samba. Em segundo lugar terminou uma escola de samba que trouxe como destaque em seu enredo outro monstro famoso do século XIX, o vampiro Drácula, transmutado em vampiro neoliberalista. O Oscar concede o prêmio de melhor filme para A forma da água, do diretor Guilherme Del Toro, onde uma criatura monstruosa aprisionada em terras sul-americanas é submetido à tortura da curiosidade científica, das disputas e espionagens políticas e do preconceito contra o diferente, o monstruoso. Definitivamente os monstros parecem estar na crista da onda em nosso tempo. O monstruoso parece ser a própria imagem de nosso tempo. Há algo de muito significativo nessa escolha da monstruosidade para metonimizar a nossa época, para resumí-la e dar-lhe uma imagem de conjunto. Os monstros que povoaram o imaginário, as cabeças de um século XIX impactado pelas brutais mudanças sociais, tecnológicas, científicas e morais, trazidas pelo capitalismo, voltam a assombrar o nosso tempo. O que isso tem a nos dizer? Que monstros andam soltos em nossas ruas, em nossas vidas, em nossas sociedades, em nossas formações sociais?
Afinal, o que define o monstruoso? Qual o elemento que define algo ou alguém como monstruoso? O monstro padece de um problema de forma, ele é por definição deformado, ele possui uma forma estranha, diferente, bizarra, distinta daquela que uma dada sociedade e uma dada cultura consideram normal. O monstruoso é uma ruptura com a normalidade da forma, é a irrupção de uma forma estranha, estrangeira, rara. A monstruosidade remete ao disforme, ao que parece violar as normas, os códigos, as regras, os preceitos, as injunções que definem dadas formas como aquelas que seriam desejáveis, esperadas, canônicas, esteticamente perfeitas. Embora o conceito de monstro tenha sido usado inicialmente para nomear as formas corporais, as formas materiais, as formas carnais que se desviavam do que se considerava como sendo a normalidade de um dado ser, do que seria sua forma normal, ele passou a ser usado também, notadamente a partir do século XIX, para nomear dados comportamentos, atitudes, dadas ações e reações humanas. Para nomear indivíduos considerados excessivamente maus, perversos, cruéis, desumanos, atrozes. O monstruoso seria um problema de caráter tanto quanto de caractere ou de característica.
A palavra monstro vem da palavra latina monstrum, que remetia a ideia de um ser portentoso, um ser grandioso e diferente, que seria um presságio, um aviso de algo extraordinário. Derivando da raiz latina monere, o aparecimento do monstruoso era um sinal, uma mensagem, uma advertência de que algo bom ou ruim iria ocorrer. Entre os romanos antigos o monstro tinha um sentido religioso, ele era um sinal dos deuses,  um signo dos desígnios do divino, devendo ser decifrado. Os monstros faziam parte do mundo mitológico e fantástico, eram potências alojadas entre o divino e o terreno, entre a realidade e a fantasia, seres fora do comum, descomunais. Na modernidade esse sentido sagrado do monstro se perdeu. Ele passou a se referir a um erro da natureza, um ser contrário a sua própria natureza, um ser que viola as regras e normas que definiriam as formas naturais. Naturalizado, dessacralizado, ele se torna uma anomalia, um ser que transgride sua própria natureza, sendo visto como qualquer coisa de horrenda, de pavorosa, de feia, de bizarra. O monstruoso remete ao teratológico, ou seja, ao que não obedece a lógica em sua constituição, fora de lógica, o aberrante, o que escapa aos códigos e princípios que definem o que seria a forma normal.
Se o monstruoso é o contrário daquilo ou daquele que possui uma boa forma, talvez possamos partir daí para entendermos o porquê dos monstros estarem de volta, em nossos dias. Desde o século XVI, surgem os primeiros escritos, no Ocidente, que se preocupam com as formas e as formalidades na vida social. Os chamados tratados de civilidade, surgem tanto na Itália, como na França, buscando educar os homens das Cortes, buscando educar os príncipes e nobres para o exercício de suas funções e para a manutenção do poder que vieram a conquistar. Estava-se deixando para trás o que seria a rude sociedade medieval, ainda caracterizada em seu declínio, nos séculos XIV e XV pela predominância da passionalidade, pela predominância da rusticidade, pela expressão exagerada dos sentimentos. Com a centralização do poder, com o surgimento dos Estados absolutistas tratava-se de reprimir a violência privada, tornando-a monopólio do Estado. A Igreja e os novos monarcas investem na curialização dos cavaleiros, ou seja, na subordinação da anárquica vida do nobre guerreiro aos ditames de uma vida regulada e regrada por formas de comportamento cada vez mais ritualizadas. Nas Cortes, os homens e mulheres vão aprender a conter as suas paixões, a construir rostos e gestos adequados a cada situação de sociabilidade e de conflito. As máscaras, que se tornam ornamento onipresente nos rituais da Corte, indiciam a importância que as formalidades, que os rituais, que as formas estilizadas vão ter nessa sociedade. O processo civilizatório, como vai defender o sociólogo alemão Norbert Elias, implica essa repressão dos instintos, esse controle das paixões, essa ritualização da vida social, essa construção de uma certa zona de separação entre cada pessoa, uma certa distância protetora entre cada indivíduo.
A emergência do indivíduo moderno, da forma de ser individual, surge da crescente repressão aos comportamento de rebanho, aos comportamentos corporativos. A vida civilizada exigiria uma educação para a serenidade, a impassibilidade, a contenção, a urbanidade e a civilidade, nascidas de uma boa dose de hipocrisia, de um calculo racional da ação, do cálculo do efeito que sua ação exercerá sobre o outro. Esse processo civilizatório exige, também, um maior controle sobre si mesmo, uma maior vigilância a respeito de seus próprios atos e de suas falas. A figura do autor surge para responsabilizar cada um pelo que diz. Da fala anônima e costumeira passa-se a fala individual, autoral, que pode ser atribuída a um sujeito de direito, acarretando a sua punição em caso de transgressão ou ofensa no que diz. A sociedade aristocrática enfatiza e valoriza o refinamento das formas de vida. A pompa, o ornamento, as vestimentas, os gestos, a forma de se expressar, de caminhar, de comer, de conversar diferenciava um nobre de um homem comum, de um plebeu ou de um burguês. Era fundamental nas sociedade aristocráticas as noções de distinção, de preferência, de precedência, de ordem, que deviam marcar cada momento e cada prática do homem pertencente a nobreza. O ser humano passa a ter como definição o ser que se faz por si mesmo, que se distingue construindo um mundo próprio, o humano se define por sua capacidade de artificio, de ser artificial, artífice de si mesmo e de seu mundo. O homem natural não seria propriamente humano, daí o desprezo devotado aqueles próximos da natureza, como os camponeses.
A sociedade burguesa, essa sociedade em que ainda vivemos, se estruturou como uma reação a essa sociedade aristocrática e de Corte. Já com os filósofos iluministas, do final do século XVIII, ideólogos da nova sociedade que se instala, a crítica à artificialidade da vida da nobreza é a tônica dos discursos. O que antes era visto como inaceitável passa a ser idealizado. Se o homem aristocrático não podia ser estritamente conforme a natureza, ele passa a ser visto como uma espécie de monstruosidade. Drácula, o conde decadente, um morto vivo, vivendo de sugar o sangue dos camponeses, é uma dura imagem que a sociedade burguesa criou para sintetizar o que seria um aristocrata, um nobre. Com seu rosto pálido, com sua máscara de morte, Drácula denuncia o que seria o ser que não obedece as leis da natureza, que não é conforme com ela, um ser do artifício e da artimanha, o ser da nobreza. A burguesia advoga no lugar da artificialidade da vida, sua naturalidade e autenticidade. No mundo burguês somos convocados a ser autênticos, a termos uma identidade capaz de expressar a nossa verdade mais interior, o nosso ser mesmo enquanto humano. Enquanto na sociedade de Corte, tão bem descrita em sua decadência pelo escritor francês Marcel Proust, se desenvolveram sofisticados códigos corporais, de gestos, de signos, de sinais, que visavam tornar a sociedade marcada pela polidez, ou seja, uma sociedade onde cada gesto humano, cada reação humana teria sido objeto de um trabalho de polimento, de aperfeiçoamento, de formatação, de ritualização por uma educação cotidiana e constante, a burguesia, como vai fazer o filósofo francês Jean-Jacques Rosseau, vai apostar na naturalidade, quando não, romanticamente, na volta a um estágio natural do Homem, onde pretensamente ele ainda não teria sido corrompido pela civilização. Se o homem natural era para a nobreza a besta, a fera que de dentro de nós ameaçava a vida em sociedade, a sociedade burguesa aposta na possibilidade da sinceridade, da verdade, da autenticidade de cada um, considerando excessivos os códigos e rituais aristocráticos. Embora, em alguns países, como na Inglaterra, a burguesia tenha se deixado aristocratizar, em países como a Alemanha, a burguesia mostrou-se hostil à cultura de Corte, por ter matriz francesa. Nobert Elias, escrevendo em plena barbárie nazista, vai ver nessa prevalência de uma burguesia rude e pouco polida, pouco civilizada, a tragédia alemã. Em busca da naturalidade, a burguesia solta as feras que existem em nós.
O que dizer da burguesia brasileira, das nossas elites ? Embora tenhamos sido a única monarquia das Américas e tenhamos elites com pretensões aristocráticas, o refinamento e a polidez nunca foram propriamente a marca de nossas classes dirigentes. A presença da escravidão, essa escola de prepotência, crueldade, perversidade, desumanidade, marcou indelevelmente a constituição das consciências e sensibilidades das elites brasileiras. Como muitos analistas da sociedade brasileira já chamaram atenção, desde um Machado de Assis, até um Gilberto Freyre, a escravidão impediu que a vida aristocrática à brasileira tivessem as mesmas formas da vida das Cortes europeias. Embora a Corte transplantada de Portugal tenha tentado preservar os rituais da vida real e da vida cortesã, a vida nos trópicos e, notadamente, a presença das relações escravistas, provocou desvios e promoveu singularidades consideráveis na maneira de ser nobre no Brasil. A burguesia brasileira esteve ligada, desde o início, à atividades escravistas. O tráfico negreiro, com todo o seu cortejo de desumanidades, esteve na origem de muitas fortuns no país. O pouco apreço pela vida do diferente, do preto, do pobre, do indígena, foi aprendido nessa escola de arrogância e de prepotência que foi a casa-grande e o sobrado colonial e imperial.
Desde a infância nossas elites aprenderam formas de dominação que se assentam no desprezo completo pelo outro, pela visão meramente instrumentalizante do outro, o outro como uma coisa, uma propriedade, um objeto, uma mercadoria, da qual se pode dispor ao bel prazer. Desde a infância aprenderam, muitas vezes em sua própria carne, o exercício da violência direta como marca de classe, como marca de ascendência e distinção. Poder chicotear o outro, bater em seu rosto, marcar o seu corpo, seviciá-los sexualmente, matá-los foram as lições básicas servidas pela pedagogia escravista que se estendeu séculos afora, no espancamento das crianças visto como gesto de educação, na procura da menina pobre e imberbe para deflorar, no se achar no direito de surrar seu empregado e trabalhador, no se achar no direito de matar todo aquele que achar menor, diferente, inferior, débil, todo aquele que conteste suas vontades e interesses. Machado de Assis, em muitos de seus personagens das elites brancas, notadamente entre os homens, vai denunciar essa incapacidade do homem das elites brasileiras de enxergar o outro, sua incapacidade de solidariedade e compaixão, sentimentos que, já no século XVIII, foram definidos como básicos para o estabelecimento de uma verdadeira república.
Os inúmeros golpes de força e prepotência que marcam a história da república brasileira nascem dessa incapacidade de nossas elites de enxergarem para além de seu próprio umbigo. Já no século XIX, um Montesquieu dizia que era aceitável que os homens primeiro quisessem atender a seus desejos e interesses, mas alertava que sem compaixão, sem a capacidade de sair de si e ir em direção ao outro, a vida social e política se esgarçava, e o que se teria era uma sociedade marcada, cada vez mais, pela violência, pelo conflito, pela insegurança. Mesmo Adam Smith, um dos teóricos do liberalismo e da centralidade do interesse individual na vida pública, alertava para a necessária existência em paralelo, nos próprios indivíduos, da atenção para o sofrimento e a dor do outro, sem o qual recairíamos na tirania. Os socialistas, não acreditando nessa capacidade dos indivíduos por si mesmos abrirem mão de seu egoísmo, vão defender que o Estado e as leis devem pressionar e sancionar no sentido de que saiamos de nosso egoísmo e levemos em conta o outro. A fraternidade, uma das máximas da Revolução Francesa, pressupõe esse se preocupar com o outro na mesma medida e intensidade que se preocupe consigo mesmo. Abatido o monstro que era o tirano, o que colocava todos os seus desejos acima dos demais, cabia agora construir uma sociedade de irmãos, em que cada um se vê no outro e, por isso, não quer para o outro o que não se quer para si mesmo, ou seja, a empatia com o outro seria um principio fundamental para a vida em sociedade.
Creio que os acontecimentos das últimas semanas, no Brasil e no mundo, diz muito do porquê os monstros voltaram como imagem que simboliza o nosso tempo. A pretexto de criar um mundo autêntico, um mundo onde cada um pudesse ser idêntico a si mesmo, um mundo sem máscaras, um mundo sem fabricação de formas e rituais de convívio, a sociedade liberal e, com maior ênfase, a sociedade neoliberal abriu as portas para a manifestação em público e sem máscaras do nossos desejos e impulsos os mais agressivos. Os monstros que habitam nosso interior, sem o trabalho da polidez, da civilidade, sem o esmero da forma pela educação, se apossam de nossos corpos e mentes e relincham bestialmente nas redes sociais. Centenas de energúmenos comemoram o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, por ela ser diferente, por ela ser lésbica, por ela ser defensora de “bandidos”. A falta de empatia com outro ser humano é total. Uma desembargadora sem apresentar nenhuma evidência ou prova escreve em rede social que ela havia sido eleita pelo Comando Vermelho e teria sido assassinada pela facção rival de Acari. Nessas falas nenhum distanciamento civilizado e racionalizado em torno da dor e do sofrimento do outro, nenhuma solidariedade com o outro que se foi e com aqueles que ficaram. A polidez deu lugar a essa sociedade em que o privado assaltou e tomou conta do público, uma sociedade que se tornou pornográfica. Nenhum pudor em se despir e em mostrar as partes mais intimas em rede nacional ou nas redes sociais. A vida privada é exposta constantemente, sabemos o prato que cada um está comendo naquele instante, onde e com quem cada um está, com quem está fazendo sexo, quando não se disponibiliza o próprio corpo sendo penetrado por alguém.
Assim como Frankenstein (o monstro que só queria ser amado), todos aqueles que são vistos como diferentes podem sofrer as maiores violências simbólicas ou físicas. Monstros acusando os outros de serem monstruosos pelo simples fato de não corresponderem às formas ditas normais ou canônicas. Crimes monstruosos são perpetrados contra homossexuais, travestis, transexuais, a pretexto de eles serem os monstros. Temos um governo monstruoso, que chegou ao poder denunciando o que seria a monstruosidade do petismo, do comunismo, do bolivarianismo, para hoje termos uma horda de vampiros a sugar o sangue da nação e dos trabalhadores brasileiros. A votação do impeachment foi uma sessão de teratologia política, em que aberrações como dedicar o voto favorável ao impeachment a um torturador foi totalmente normal. O candidato que ocupa o segundo lugar nas pesquisas para presidente tem modos e comportamentos que dificilmente seriam considerados humanos numa sociedade da civilidade e da polidez. Ele estaria mais próximo do troglodita do que de um homem que passou por um processo civilizatório. A grosseria, a rudeza, a falta de educação, a arrogância, o vitupério, o xingamento, a calúnia, a prepotência, a incivilidade, são atributos que ele e seus asseclas distribuem à farta em todo lugar aonde vão. A discrição, a impavidez, a sobriedade, a altivez, a elegância, que desde o século XVI passou a definir o que seria um homem nobre de espírito, parecem andar escassas por essas plagas, e em todo o mundo, as performances cruzadas de Vladimir Putin e de Donald Trump, não me deixam mentir.
Vivemos tempos em que a busca da perfeição corporal convive com verdadeiros aleijões subjetivos. Marielle Franco morreu porque denunciava a monstruosidade de uma sociedade que enjeita ao nascer seus filhos, os transforma em monstros e depois os elimina. Ela denunciava a monstruosidade de forças de ordem e segurança que militam na desordem e na insegurança, forças da morte travestidas de forças em defesa da vida. Defensores de uma ordem social injusta e monstruosa, que condena milhões à miséria e produz uma minoria monstruosamente rica e egoísta, incapaz de ver e pensar no outro, só no ouro, como podem não se tornar monstrengos subjetivos? Como defender sob a força das armas a injustiça e a desordem de um sistema promotor da infelicidade e precariedade de milhões e não se tornar monstruosos? Marielle reunia tudo o que essa sociedade e suas elites desprezam e odeiam. Como Frankenstein ela reunia o ser mulher, o ser negra, o ser homossexual, o ser de esquerda, o ser política, o ser de origem humilde, o ser corajosa e altiva na denúncia das monstruosidades cometidas por forças de segurança que só distribuem a insegurança, agindo à base do preconceito e da discriminação. Ela era monstruosa, logo tinha que ser abatida como se abate um animal daninho. E depois de matá-la fisicamente, trata-se de completar o serviço matando-a simbolicamente. Como pode um país se indignar com o crime contra uma pessoa como essa, que devia morrer mesmo? Como é que o mundo se importa com um monstro como esse, tem por ele amor, piedade e solidariedade, como as duas mulheres da limpeza em relação ao monstro supliciado no laboratório, elas também marcadas pelo estigma de classe, mas também de raça (uma delas era negra) e aquele destinado à pessoas com deficiência (uma delas era muda)? Como diz a monstruosa operadora do direito (Deus nos livre desse Direito), isso é coisa da esquerda que quer transforma-la em mártir, ou seja, leia-se nas entrelinhas a afirmação monstruosa: ela deveria mesmo morrer, não é nenhuma surpresa e não se perde nada. Fala de uma mulher (ou de um monstro) sobre outra mulher. Estarrecedor! Os monstros estão soltos nas ruas e eles estão longe de serem apenas pretos, pobres, favelados, vagabundos, homossexuais, lésbicas, transsexuais, eles estão nas coberturas e recebem auxilio-moradia, moram em condomínios fechados e vivem com segurança privada. Aliás, alguns habitam até os tribunais superiores e os palácios de Brasília.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)

sábado, 17 de março de 2018

Quem matou Eduardo, Matheus e Reginaldo?

Carolina Moura, Bruna de Lara, Leandro Demori, Juliana Gonçalves, Yuri Eiras




Os responsáveis por matar Marielle Franco não queriam se livrar de uma vereadora de 38 anos que dedicava seus dias ao expediente político. O desejo dos assassinos era o de silenciar uma ideia. Marielle foi morta à noite, em uma emboscada, sem poder de reação, o modo covarde como se mata nas favelas do Rio de Janeiro e do Brasil, lugares onde as cartas não chegam, a luz falha, a água é suja, as escolas fecham ao som de tiros e o Estado é um tanque de guerra com licença para matar o qual chamam de Caveirão.
Dias antes de ser executada, Marielle Franco denunciou o assassinato de três homens – jovens e de periferia –, parte grande do estereótipo dos corpos que enchem os cemitérios do país. “Foi um recado”, era uma das frases que mais se ouvia entre as pessoas que, ainda estarrecidas, lotaram o Centro do Rio, na quinta-feira, em vigília e protesto. Mas que recado? O que queriam dizer os assassinos de Marielle? A quem eles se dirigiam? “Não ousem mexer nas estruturas”, eles sussurravam.
Não se sabe ainda se a execução de Marielle foi motivada pelos crimes que ela denunciou – dois deles na área do 41º Batalhão de Polícia Militar e seu histórico de terror.
The Intercept Brasil formou um time de quatro jovens jornalistas – Bruna, Carolina, Juliana e Yuri – para contar as histórias de Eduardo, Matheus e Reginaldo. É irrelevante o que a conclusão policial dirá sobre a relação da morte de Marielle com sua pressão pela investigação desses casos. Porque esses assassinatos, tendo policiais como suspeitos, continuam sem solução.
Marielle se foi, mas a pressão para que esses – e todos os outros jovens de periferia – tenham respostas não pode parar. A ideia de que é impossível enfrentar o crime organizado sem usar armas é errada. A ideia de que é impossível ter liberdade nos subúrbios do Brasil é velha e errada. Uma mulher, sozinha, talvez não possa peitar os senhores da guerra. Mas uma multidão pode.

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Ilustração: Pedro Franz
Matheus Melo Castro, 23 anos – morto dia 12 de março
Era um trajeto curto e de rotina. Terminada a reunião da última segunda-feira na Igreja Evangélica Missão da Fé, em Manguinhos, Matheus, auxiliar do pastor, subiu em sua moto – comprada com o salário que ganhava como agente de coleta seletiva – e levou a namorada para casa, no Jacarezinho. As duas comunidades são separadas apenas por uma avenida. Eram cerca de 22h quando, ao voltar para casa, ele cruzou com uma patrulha da Polícia Militar. Vizinhos disseram que os policiais “revistavam menores de idade”. Segundo a família de Matheus, a patrulha não deu ordem de parada. Ele passou pela blitz, mas poucos metros à frente foi atingido por dois tiros, um no braço esquerdo, outro no tórax.
Matheus caiu. Os policiais o observaram à distância como se fosse uma caça abatida. Não prestaram socorro. Ferido mas ainda vivo, ele foi amparado por usuários de crack que frequentam ruas próximas. Confusos, eles decidiram colocar o estranho em um carrinho de mão e sair em disparada pela movimentada Avenida Dom Hélder Câmara até chegar à Unidade de Pronto Atendimento de Manguinhos.
A cena foi vista por motoristas que passavam pela via naquela noite. A notícia se espalhou e, entre amigos e familiares, mais de cem pessoas se amontoaram em frente à UPA para uma vigília. Muitos deles eram do grupo de moças e rapazes que havia se reunido na igreja minutos antes para cantar e rezar. O “refúgio jovem”, como são chamados esses encontros, foi liderado por ele naquela noite. Matheus Melo Castro chegou a ser atendido, mas não resistiu.
“Foi cruel. Ele passou e eles metralharam”, disse uma de suas tias. “O pior é que não socorreram. Quem socorreu foram os ‘crackeiros’ que estavam ali perto e o carregaram para a UPA. Se ele fosse bandido os PMs teriam capturado e feito a segurança no hospital. Mas como era qualquer um, atiraram e foram embora como se fosse ninguém”, desabafou uma prima. Todos têm medo de falar.
Uma desculpa oficial e corriqueira da Polícia em casos como esse, emitida sempre em notas curtas à imprensa e que por regra não dizem nada, é que são mortes colaterais, vítimas azaradas da troca eterna de tiros entre mocinhos e bandidos. Moradores de Manguinhos disseram que no momento da execução de Matheus não havia confronto na comunidade. Horas depois, entretanto, foi possível ouvir disparos.
Familiares garantem que o tiroteio tardio foi uma tentativa de justificar a morte de Matheus como mais uma vítima de bala perdida. Uma cortina de fumaça. A polícia disse que a base da Unidade de Polícia Pacificadora do bairro foi “atacada por criminosos”, por isso o revide. De madrugada, um ônibus foi incendiado na Avenida dos Democráticos, via que dá acesso à comunidade. Tudo ocorreu a poucos metros da Cidade da Polícia, localizada exatamente na Avenida Dom Hélder Câmara, entre Manguinhos e Jacarezinho. O incêndio, assim como as circunstâncias da morte de Matheus, permanecem em uma das tantas “investigações sob sigilo” que adormecem nas delegacias do Rio.
A família se sente ameaçada e, aconselhada por vizinhos, cogita sumir do bairro. Matheus era conhecido da comunidade e não tinha nenhuma ligação com o crime. Uma vítima incômoda com uma família determinada nos calcanhares de seus assassinos: apesar do medo, eles pretendem processar o Governo do Estado e já começaram uma investigação paralela para descobrir quem deu os tiros.
Junto com advogados, querem buscar as câmeras de trânsito do Centro de Operações da Prefeitura para tentar encontrar os últimos minutos de Matheus com vida e seu assassino. O sistema de segurança da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais, localizada na rua, também pode ajudar.
Questionada sobre o estado das investigações, a assessoria da Polícia Civil afirmou às 10h21 da manhã de quinta, via e-mail, que “estão em andamento e, no momento, não há novidades para divulgar sobre o caso.”
A Coordenadoria de Polícia Pacificadora disse que abriu “uma averiguação sumária” para descobrir se os assassinos são policiais de alguma UPP. Por telefone, nos disse que a sindicância interna, sigilosa, teve início no dia seguinte ao crime. Não confirmou se havia, de fato, uma viatura no local em que Matheus foi morto. “Ainda que tivesse, não necessariamente era de UPP. Poderia ser de um batalhão da PM ou da Polícia Civil”, disse, no jogo de empurra-empurra. O procedimento é apenas uma averiguação, não um inquérito. Portanto, não resulta em acusações.
“Mais um homicídio de um jovem pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, twittou a vereadora Marielle Franco, na terça-feira. No dia seguinte, sob hinos de louvor e gritos por justiça, ele foi enterrado no Memorial do Carmo, no Caju, Zona Portuária. Horas depois, Marielle foi assassinada.

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Ilustração: Pedro Franz

Eduardo Ferreira, 39 anos, e Reginaldo Santos Batista, idade desconhecida – mortos dia 5 de março
Moradores ouviram disparos pouco depois do nascer do sol. Naquela primeira segunda-feira de março, assim cedo, todos estranharam. Não parecia haver troca de tiros com traficantes, as bocas de fumo sequer estavam abertas. Depois que os fuzis silenciaram, um pequeno grupo de vizinhos decidiu investigar. Encontraram dois corpos em uma zona de mata rala próxima ao Rio Acari.
O primeiro estava de bruços, bermuda e camisa, os olhos fechados. Os moradores decidiram puxá-lo pelas pernas e resgatá-lo de um leve declive até posicioná-lo de modo que pudesse ser reconhecido. Nessas horas ninguém espera pela perícia, que pode levar horas, para ver se o morto é um conhecido ou um parente. Mais tarde se soube que era Eduardo Ferreira, de 39 anos.
O outro estava alguns metros adiante, em uma descida um pouco mais íngreme. Reginaldo Santos Batista, que não teve a idade descoberta, precisou ser içado pelo grupo. “Aqui desde criança a gente aprende a içar um corpo. Vocês sabem o que é isso? Acho que não, né?”, disse uma das pessoas. A Delegacia de Homicídios só o recolheu por volta das 19h, já noite, com a ficha de identificação: homem negro, forte, de feições marcadas e cabelo raspado.
As circunstâncias das duas mortes ainda são misteriosas. Testemunhas oculares contaram que um grupo de policiais estava escondido na mata da favela e que teria abandonado os corpos antes de desaparecer. No Facebook do 41º, o mais letal da cidade, nada. O batalhão posta diariamente sobre suas ações, mas não há postagens sobre ocorrências no dia 5. Somente nos dias 4 e 6. No twitter da PMERJ também não há registros sobre a Favela do Acari.
Eduardo tinha uma companheira e era morador de Acari desde pequeno. Deixou dois filhos. Sua família – mãe, irmãos e primos – são todos evangélicos e todo mundo é de Acari. Era um trabalhador autônomo, que, dizem os amigos, “estava sempre trocando ideia” com os moradores da região. “Ele era muito na dele. Meio tímido. Lembro que ele falava para eu tomar cuidado pela região. Se preocupava com os moradores”,  disse uma moradora.
Sobre Reginaldo, pouco se sabe. Ninguém reclamou publicamente o corpo.
Questionada, a Polícia alegou que não estava sabendo de operação no momento. Algumas horas depois, mandou uma nota por e-mail na qual dizia que os policiais do 41º BPM estavam em patrulhamento para “coibir o comércio de drogas, roubo de veículos e prender criminosos”. Disse também que tinha prendido um bandido, apelidado de Timbau, que estaria com um rádio transmissor.
Depois daquele dia, durante toda a semana, houve tiroteio todos os dias.
No sábado seguinte, uma moradora estava indo buscar doações perto da região de Piracambu, onde fica a associação de moradores da favela Acari, quando ouviu disparos. Olhou para os lados para ver se tinha algum traficante em confronto ou alguma boca de fumo aberta, mas era cedo e estavam todas fechadas. Os policiais, segundo ela, estavam “atirando a esmo, fora da viatura”. ”Me escondi junto com outra moradora. Olhava para os lados e não entendia porque eles estavam atirando. Não tinha nada. Só morador na rua”, falou. Eram 8h da manhã.
”Quando deu umas 13h, voltei lá no mesmo local e a quantidade de policiais tinha aumentado e eles continuavam atirando. Foi quando dois caveirões da Polícia entraram na favela”, contou. Outros moradores mandaram mensagens de áudios para alertar quem estava pela favela. ”Meu deus, muito tiro aqui. muito tiro”, disse um. Outra, quase chorando, disse: “Gente, eu tô com muito medo. Medo mesmo. Eles estão na frente da minha casa”. “Os caras estão esculachando morador. É muito tiro na casa dos outros. Isso não está certo. Em pleno sábado?”, respondeu outro.
Marielle denunciou a ação da Polícia naquele mesmo sábado. Escreveu no Facebook: “Precisamos gritar para que todos saibam o está acontecendo em Acari nesse momento. O 41° Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro está aterrorizando e violentando moradores de Acari. Nessa semana dois jovens foram mortos e jogados em um valão. Hoje a polícia andou pelas ruas ameaçando os moradores. Acontece desde sempre e com a intervenção ficou ainda pior. Compartilhem essa imagem nas suas linhas do tempo e na capa do perfil!”

(Publicado originalmente no site do Intercept Brasil)