pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : abril 2018
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domingo, 22 de abril de 2018

Durval Muniz: A violência do direito

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O direito já nasce de um gesto de força. Uma lei nasce de um gesto de proibição e regramento. O direito, estatuído como saber no Império Romano, nasceu da dupla necessidade de que a dominação imperial e de que a dominação social, de que as conquistas coloniais romanas e os privilégios do patriciado, fossem perpetuadas e protegidas através de um arcabouço legal. O direito se funda na violência da própria lei, que de saída é um gesto de limitação das liberdades, das vontades, dos desejos, das pretensões, das necessidades de grupos e pessoas. O direito estatui uma ordem, a organiza, a legitima, a defende e busca perpetuá-la. A lei é a permanência no tempo de uma ação inaugural de violência física e simbólica. Os espanhóis após o massacre do povo asteca trataram de ordenar juridicamente sua dominação sobre as terras e os povos conquistados. A violência sanguinária da conquista colonial é sequenciada por sua extensão e permanência legal e jurídica no tempo. O gesto inaugural de apossamento do que viria ser a América, do que julgava ser as Índias, Colombo realizou através de um ritual que seguia a jurisprudência do Império Espanhol, obedecendo uma formalidade legal diante de indígenas embasbacados que, sem nada entender, deveriam ter, segundo o rito jurídico previsto, contestado em ato e naquele momento a tomada de posse de suas terras pelos brancos europeus. Como não o fizeram, juridicamente e legalmente, seguindo o direito do conquistador, suas terras passaram para a posse do soberano espanhol. A lei se funda num gesto de força, nem que seja simbólico, como aqueles que vêm sendo realizados sob os holofotes da mídia nativa por magistrados do nosso Supremo Tribunal Federal que, sem poder legislativo ordinário, estão alterando, ao seu bel prazer, e em nome da defesa e ataque a dadas forças políticas, a própria letra da Constituição Federal. Sob a pele de um discurso empolado e melífluo se esconde uma enorme violência, inclusive contra a própria letra da lei maior que, supostamente, eles estão ali para defender.
Nos últimos tempos, no país, nos damos conta da violência que se faz presente em todo gesto de leitura e interpretação das leis e do direito. Como toda hermenêutica, como todo gesto de interpretação, a hermenêutica jurídica não é um mero assentimento à letra da lei, já em si mesma fruto de um gesto de violência instituinte. Toda leitura, toda tradução é traição, é violação, é violência ao sentido. A pretensão da existência de uma leitura literal da lei é uma ingenuidade. Nunca conseguimos ser plenamente literais, pois ler implica olhar para o que se lê e nosso olhar está longe de ser neutro e desprovido de lentes e filtros ideológicos, políticos, ético, estéticos, religiosos, etc. Nosso olho nada lê, nosso olho apenas forma a imagem do signo, do significante que vai ser submetido à leitura. A leitura é feita por nossa cabeça, por aquilo que temos dentro dela, lemos com os conceitos de que dispomos, com as ideias e categorias que dominamos, com as concepções e prevenções, com as noções e pré-noções, com os preconceitos que formam nossa maneira de ver o mundo. Se a senadora do relho, Ana Amélia, vê Al Jazeera e lê Al Qaeda, não é por causa de sua miopia visual, mas por causa de sua miopia mental, por causa de um olhar ideologicamente torto e deformado. Os malabarismos mentais do voto da ministra Rosa Weber, quando do julgamento do Habeas Corpus em favor do ex-presidente Lula, explicita bem como a interpretação é situacional, contextual e politicamente motivada. A violência contra a Constituição e contra os direitos e garantias fundamentais do paciente (como eufemisticamente ficavam chamando o presidente Lula, para a ele não se referirem, como se com isso apagasse a dimensão política do voto que cada um estava dando ali), que esse e outros votos significaram, desmascara a pretensão de que a letra da lei é obedecida ou prevalece sempre quando se trata do exercício do direito. A letra depende de leitura e a leitura é, sempre, uma violência que se faz a um pretenso sentido original e literal do que está escrito.
Ainda no século XIX, numa crítica à filosofia idealista do direito, expressa na obra de Hegel, Marx já chamara atenção para o caráter de classe do direito. O próprio Nietzsche já observara que o direito se fundamenta na violência do vencedor, ele materializa o golpe de força e de vontade que deu início a uma dominação. O que se pretendeu com a democracia parlamentar foi fazer de amplos setores da sociedade a origem das leis e do direito, tentando retirar a dimensão excludente e violento dos atos de fundação do regramento e ordenamento legal. O fim das monarquias absolutas teve como uma de suas consequências imediatas o fim do monopólio real sobre a produção do direito e da jurisprudência. A partir da ideia de que existiria direitos naturais do Homem, direitos que não poderiam ser violados por qualquer governante ou forma de governo, o jus naturalismo foi fundamental para se fundar o direito burguês e o que veio a se chamar de direitos humanos, que seriam direitos inerentes à condição humana, direitos que cada ser humano teria só pelo fato de ser humano, de pertencer à espécie, direitos que já nasceriam com ele, que não poderiam ser desobedecidos por qualquer legislação, a não ser em casos excepcionais a ser também descritos em lei. A ampliação do acesso ao poder legislativo às várias camadas sociais daria ao direito, em sua origem, uma maior legitimidade, pois as leis não surgiriam de um golpe de força, mas de um consenso, dialeticamente produzido, através dos debates e acordos parlamentares. O direito se tornaria, assim, mais inclusivo e aberto aos reclamos daqueles que não seriam privilegiados.
O problema é que se do ponto de vista legislativo as sociedades burguesas puderam significar, em dadas circunstâncias históricas, uma maior diversidade de interesses e de pontos de vista na origem do regramento legal e jurídico, o mesmo não aconteceu com o chamado poder judiciário. Em todas as sociedades ocidentais, o poder judiciário tende a ser o menos aberto ao controle social, o menos democrático, constituindo verdadeiras castas burocráticas, profissionais e de classe social. Não apenas no Brasil, assistimos as intenções do legislador original ser completamente ignoradas ou deturpadas pelos tribunais e juízes. O conservadorismo, inclusive da formação acadêmica e universitária no campo do direito, o distanciamento que o judiciário mantém em relação a realidade social de seus países, a origem de classe e étnica da maioria de seus membros, tornam as decisões judiciais muito distantes das aspirações mais coletivas. O fenômeno novo, inclusive no Brasil, é um judiciário que parece estar fundamentalmente preocupado com sua imagem midiática, que se deixa claramente fascinar e pressionar pela opinião publicada, mas do que pela opinião pública. A jabuticaba brasileira que é a transmissão ao vivo pela TV dos julgamentos com maior repercussão social, fez de nossos juízes da Suprema Corte atores e atrizes canastrões, vaidosos, verdadeiros acrobatas das palavras difíceis, das citações de efeito, dos votos quilométricos, para, ao final, perpetrarem, muitas vezes, a violência da injustiça e da não observância daquilo que dispõe a Constituição Federal. O fato do STF estar “politizado” não é uma excrescência, não representa um mal funcionamento dele, a própria forma de escolha de seus membros faz desse tribunal o mais politiqueiro da República, pois desde a indicação seus membros se envolvem em desenvoltas negociações, sem não em conchavos políticos. A quase total impunidade dos membros do poder judiciário, uma corporação das mais corporativistas, sua sede crescente de poder, em muitos países do mundo, têm feito desse poder uma ameaça ao próprio funcionamento normal dos regimes democráticos. Munidos da força e da violência da lei, ele é um poder que tende a passar incólome pelo controle e pela crítica social. A própria mídia, tão crítica em relação ao executivo e ao legislativo, se omite na hora de fazer a crítica dos privilégios e do péssimo serviço que o judiciário brasileiro oferece à população, que dele desconfia, mais do que confia.
Se o direito é na origem, muitas vezes, a extensão no tempo de um golpe de força, de uma conquista, de um apossamento, de uma rapina, de uma dominação, o direito exige o uso da violência na sua aplicação. Uma lei estabelecida exige cumprimento e o cumprimento exige a fiscalização, a verificação, a vigilância. Uma lei exige ser cumprida e caso não o seja implica a violência da sanção e da punição. Para a fiscalização e para a repressão daqueles que não obedecem às leis são necessárias a existência das forças de segurança, as forças destinadas a fazer cumprir a legislação que, no Brasil, em muitas ocasiões, agem com extrema violência. Muitas vezes, em nome da observância da lei, as forças de segurança violam as leis, recorrendo à força bruta, à violência sanguinária, em nome da manutenção da ordem legal. É dado ao Estado o direito do uso da violência em nome do combate à violência que possa advir da sociedade civil. Esse direito à violência por parte do Estado é fundamental para a chamada manutenção da ordem, mesmo que ela seja uma ordem injusta e repressiva. A lei não é objeto apenas de obediência, ela abre um campo de disputa e desobediência. A lei não evita a luta social, o conflito social, ela é a cristalização momentânea desses conflitos, ela cristaliza um dado estágio da luta, podendo ser resultado de uma negociação e de um consenso entre as forças em litígio ou podendo ser a materialização de um gesto de força, de uma vitória de uma dada força. A nova legislação trabalhista brasileira é fruto de um claro momento de derrota das classes trabalhadoras em seu embate com o empresariado, que patrocinou o golpe de 2016, para desmontar as conquistas legais que os trabalhadores haviam feito ao longo do século XX, através de inúmeros momentos de luta e mobilização. Sendo uma legislação, que na maioria de seus artigos, é inconstitucional, ela explicita, como muitas outras decisões judiciais e legislativas que violam a Carta de 1988, tomadas nos últimos anos, que a Constituição de 1988, o conjunto de dispositivos legais ali plasmados, são fruto de uma dada conjuntura política, de um dado conjunto de forças em conflito e em aliança, de dadas correlações de forças políticas e ideológicas que deixaram de existir. A Constituição de 1988 vem sendo desrespeitada e violada porque a situação política e social que a produziu não existem mais. O golpe de força que a Carta de 1988 significou, mesmo que essas forças fossem plurais e contraditórias, a ponto de se ter redigido uma Constituição em que o arcabouço jurídico destinado a sustentar um regime de governo parlamentarista terminou por conviver com a definição final de um regime de governo presidencialista, se vê contrarrestado por golpes de forças conservadoras e reacionárias que, através de emendas constitucionais, de legislação ordinária, ou mesmo através de decisões judiciais, vêm tornando muitos direitos previstos naquele documento letra morta. Capítulos inteiros da Constituição de 1988 nunca foram devidamente aplicados por demandarem regulamentação por legislação ordinária, como o capítulo destinado a regulamentar os meios de comunicação no país, já que os lobbies das empresas de jornalismo e comunicação nunca permitiram que fossem regulamentados e aplicados esses dispositivos que significariam a democratização das comunicações no país.
O caso do presidente Lula, todo o processo judicial maculado por irregularidades, inconstitucionalidades, parcialidades e uso excepcional de procedimentos investigativos e de processualística explicita o caráter violento do exercício do direito, de como o direito pode ser um instrumento de violência simbólica, de violência psicológica e, inclusive, como no caso da condução coercitiva imotivada de que foi vítima e da prisão sem que tenham esgotado sua possibilidade de defesa, violência física. Um homem de setenta anos está confinado em uma sala de doze metros quadrados, sendo impedido sistematicamente de receber visitas, por uma juíza que não acha suficiente a violência da prisão, querendo condená-lo à solitária, não prevista em nosso ordenamento jurídico. A jornalista dos atos falhos, não tão falhos assim, profetisa o seu enlouquecimento, deixando claro a que ponto a pretensa observância do direito pode chegar a causar danos irreversíveis a saúde física e mental de um ser humano. É preciso que percamos a inocência e aprendamos que o direito sempre teve lado, o direito sempre esteve ao lado daqueles que lhe parecem direitos, ele sempre foi um instrumento de dominação, exploração e manutenção da ordem, por mais injusta que ela seja. Isso não exclui que as leis e o direito possam ser usados em benefício dos mais débeis, dos mais humildes e necessitados, dos injustiçados, dos explorados, isso dependerá de quem lê e aplica as leis, de quem opera o direito. Daí porque a operação do direito, o exercício da judicatura seja um campo de lutas e disputas. O PT, no poder, se mostrou completamente incapaz de fazer escolhas no campo do judiciário que pudessem favorecer leituras menos violentas e discricionárias do direito e vem pagando um alto preço por isso. O respeito às regras corporativistas da corporação judiciária, a falta de critérios mais detidos para a indicação de magistrados para a Suprema Corte e de promotores para a direção do Ministério Público, fez com que a passagem do PT pelo Executivo fosse incapaz de pelo menos arranhar a lógica familista, de privilégio, de casta, de corporação, de classe dos tribunais e instâncias superiores do judiciário brasileiro.
Como disse em entrevista o jurista Pedro Serrano, Lula, um nordestino, mestiço, que vem da classe operária, considerado um iletrado, vem sendo julgado por juízes sulistas, que se consideram, portanto, brancos, homens de origem social privilegiadas, letrados, que se julgam, portanto, superiores intelectual e moralmente em relação ao retirante-presidente. O fato de que tenha sido esse presidente o melhor presidente que o país já teve, o de maior sucesso nacional e internacionalmente, gera ódio, ressentimento, gera um mal estar nas elites brasileiras representadas por esses juízes, que só conseguem julgar Lula com o fígado e não com a cabeça. Lula nunca teve chance de ter um julgamento justo pois não é para beneficiar e contemplar gente como ele que o direito existe e as leis foram feitas, ao contrário, é contra gente como ele que o direito se exerce e as leis são lidas e executadas. O julgamento de Lula foi feito para ver se dessa vez ele reconhece o seu lugar na sociedade, se dessa vez ele aprende que poder e governo não é para gente da classe operária, para gente da igualha dele. Os almofadinhas que o julgaram tinham que deixar claro, para todo mundo, que exceções como ele devem e tem que ser punidas, para que não se repitam. Quanto mais violenta e discricionária for sua sentença e seu cumprimento de sentença mais ela servirá de exemplo amedrontador para outros que, como ele, queiram trilhar o seu caminho. É preciso que a ordem voltada para servir uma minoria, que não foi feita para atender interesses e vontades de pobres, trabalhadores, negros, minorias de toda tipo, seja restaurada, mesmo que para isso seja preciso usar a lei e o direito para retirar seu direito de disputar, com grande chance de ser reeleito, as eleições de outubro.
Não se está defendendo aqui a ausência de leis ou de direito, eles também são fundamentais para se proteger os mais débeis e os menos afortunados, essas foram conquistas do mundo moderno que não podemos deixar de por elas lutar: os direitos sociais e trabalhistas, o direito das minorias, os direitos humanos. Mas temos que, até para isso, denunciar o caráter violento da lei e do direito, notadamente quando se volta contra os interesses das maiorias e dos menos aquinhoados na vida. Devemos usar a lei e o direito contra a própria lei e o direito que buscam sustentar realidades e ordens sociais e políticas injustas e desiguais. Devemos lutar por mudanças nas formas de se instituir as leis e, principalmente, nas formas de sua aplicação, fiscalização e operação. Se devemos pensar em reformas no poder legislativo para torná-lo mais democrático, menos poroso ao domínio dos lobbies financeiros, empresariais e dos grupos dominantes social e politicamente, se devemos lutar por uma democratização dos meios de comunicação, responsáveis, inclusive, pela fiscalização das instâncias de produção e aplicação das leis, devemos lutar, urgentemente, em todo mundo, por uma mudança profunda nas instituições judiciárias e de segurança, que as tornem mais abertas ao controle social, a transparência de suas ações, que as submetam a órgãos de controle social e não a órgãos de controle internos e corporativos, por novas formas institucionais de ingresso, progressão e composição de suas diferentes instâncias. O Supremo Tribunal Federal, tal como é composto hoje, deve ser extinto e substituído por uma Corte Suprema de perfil profissional e mediante concursos por mérito. Assim como é urgente a extinção das polícias militares e sua substituição por uma polícia civil, fruto de concursos e de formação adequada, que tenha todas as suas atividades autorizadas e acompanhadas pelo judiciário e submetida ao controle de um órgão externo. A lei e o direito são campos de luta, são lugares abertos à negociação e à dissensão. Eles trazem consigo, de forma imanente, a violência, que buscam conter e disciplinar, que buscam evitar e proibir, pelo exercício de uma contraviolência, às vezes, e no caso do Brasil muitas vezes, com o uso explícito e sanguinário da violência. Por isso, devemos buscar formas de exercício do direito e da lei onde essa violência possa ser, ao mesmo tempo, explicitada e controlada, discutida e repelida em sua face sanguinária, discriminatória e exploradora.

Durval Muniz é historiador, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(Artigo publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

Le Monde Diplomatique: Intervenção, violência e políticas de segurança em terra de Marielle



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No Brasil, a estrutura social e de poder está profundamente marcada pelo colonialismo, pelo escravismo e pela segregação. Não é preciso que o assassino de uma parlamentar negra deixe um bilhete escrito expressamente “made by a racist”, para que se justifique falar de racismo como parte integrante da motivação
É típico no Brasil que a questão racial não faça parte da discussão. É comum que quem queira introduzir, em qualquer debate, o recorte racial, a menos que o racismo esteja explícito, seja visto como aquele que “vê racismo em tudo”. Curioso, já que a questão racial sempre marcou o Brasil e a composição da sociedade brasileira. A herança da história colonial-escravagista do Brasil se espalha em toda história de nossa formação social, e não estaria ausente da construção das políticas que aqui são empreendidas. Não seria diferente com as políticas públicas para a segurança. E não seria diferente para pensar a efetividade e os rumos da intervenção federal-militar no Rio de Janeiro.
O que dificulta identificar como políticas de segurança no Brasil sempre foram, e são, construídas com perfis racistas é que, na base, onde está a ponta das ações de repressão e operações ostensivas e os confrontos armados, brancos e negros se misturam. Diferente da segregação racial nos Estados Unidos, ou do apartheid na África do Sul, no Brasil, o corpo de policiais militares, ou de soldados do Exército, recrutados para operações ostensivas de repressão ou controle em territórios pobres e periféricos, são compostos de brancos e, majoritariamente, negros. Na segregação americana, policiais que reprimiam manifestações pelos direitos civis com cães, jatos d’água, cassetetes, socos e pontapés, eram brancos. Policiais e soldados que mantinham negros e negras confinados nos territórios periféricos sul-africanos, como Soweto, eram brancos.
No Brasil, essa imagem é impossível. Essa “mistura” acabou por mascarar um poderosíssimo racismo estrutural, que jogou pardos e pretos aos montes para as frentes de batalha no passado, e para as operações de combate a violência de hoje. A cúpula, de Michel Temer à Walter Braga Netto, é branca. No Brasil, o Exército tornou-se, para a parte mais pobre da população jovem e suas famílias, uma possibilidade de emprego estável. Para muitos pais, ter o filho, saindo da adolescência, sendo aceito pelas Forças Armadas torna-se o primeiro passo para que ele tenha condições melhores que as suas. Ingressar nas Forças Armadas sempre foi visto como um destaque profissional para as famílias dos jovens de favelas e comunidades do subúrbio.

De racismo, defesa e armas
Guardada as devidas proporções, estamos na mesma linha temporal que nos trouxe do período imperial, durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), em que o Exército era a “grande oportunidade” de negros se “livrarem” da condição de escravizados. Negros alforriados sem rumo, e sem perspectiva de um lado. Negros escravizados, com o açoite e a tortura como companhias permanente do outro. A elite rica e branca, que amava o país mas não a ponto de morrer por ele, mas enriquecer explorando nele, entregavam negros escravizados em troca de si mesmos e dos filhos. Não por acaso, o Comando do Exército rejeitou, em 2017, a proposta de criação de uma unidade militar com trajes históricos que pretendia homenagear os soldados negros que lutaram na Guerra do Paraguai. Em outras palavras, na Guerra do Paraguai, negro era para morrer. Nos Estados Unidos ou na África do Sul, o racismo é uma ferida aberta. No Brasil, o racismo é uma gangrena que corrói por baixo do tecido social, do corpo social, e segue destruindo por dentro, até que partes deste corpo sejam amputadas.
Como bem disse Achille Mbembe em seu Políticas da Inimizade, “de um ponto de vista histórico, nem a república de escravos, nem o regime colonial e imperial eram corpos estranhos à democracia”. Não há porque imaginar que a democracia como está sendo conduzida no Brasil seja estranha a própria construção da ideia de democracia e quem dela realmente faz parte. A ideia de segurança, ou seguridade, intrínseca na democracia, vai recorrer permanentemente à disciplina e ao controle, ou quando necessário, à repressão, contra o inimigo que a ameaça. É preciso que haja sempre inimigos que a ameaçam. O racismo no Brasil deu à política de segurança, ao longo da história brasileira, os seus inimigos preferenciais. Diz ainda Mbembe que “está na natureza do racismo a constante tentativa de não se esclerosar”, ou, em outras palavras, o racismo, como um sistema estruturante eficiente, sempre encontrará formas de se renovar, metamorfosear, mimetizar relações equânimes, mas que na realidade concentram e mantêm profundas desigualdades e injustiça.
Se nove em cada dez mortos pela Polícia Militar no Rio de Janeiro são negros ou pardos, isto não está se dá por conta de uma maioria negra na população, mas por uma orientação profundamente racializada para as formas de agir, abordar, prender e matar. Uma intervenção federal séria no Rio de Janeiro, já poderia ter sido feita, assim que estes dados foram divulgados. Se o governo federal não intervêm nas forças de segurança do Estado que mata nove negros, para cada uma pessoa branca, as orientações e prioridades políticas sobre segurança estão mais racializados do que nós imaginamos.

Quem matou Marielle
Aqui jaz Marielle Franco. Negra, mulher, lésbica, mãe, parlamentar. Enquanto segue em torno de mistérios, o assassinato brutal de Marielle Franco, junto com seu motorista, Anderson Gomes, vai expondo simultaneamente, a partir do Rio de Janeiro, nossa brutalidade política e nossa relação perturbadora diante da possibilidade de reconhecer o racismo como um agente presente (e influente). Nossa brutalidade política é a ousadia de assassinar uma parlamentar (do Parlamento da capital do estado) de uma maneira cruel e fulminante. Brutalidade política que torna o jogo político no Rio de Janeiro não apenas competitivo, mas também violento, com profundas relações dissimuladas entre política-polícia-milícia. Brutalidade política nas declarações de ódio e vingativas nas redes sociais contra Marielle, que na verdade é contra um simbolismo maior. De desembargadora à parlamentar-homem-cristão (mas branca, branco, sempre), o ódio a tudo o que Marielle representava foi imediato e inconsequente, espalhando falsas notícias, que mais do que as mentiras do conteúdo nelas contido, diziam mais sobre o que seus divulgadores pensavam e apoiavam.
Nossa relação perturbadora com o racismo está no desconforto causado por aqueles que se indignavam (quando não tentavam diminuir ou ridicularizavam) quando o racismo (bem como o gênero e a sexualidade) eram postos como fatores integrantes das razões do assassinato da vereadora. No Brasil, como dito no início do texto, nossa estrutura social e de poder está profundamente marcada pelo colonialismo, pelo escravismo e pela segregação. Não é preciso que o assassino de uma parlamentar negra deixe um bilhete escrito expressamente “made by a racist”, para que se justifique falar de racismo como parte integrante da motivação. Esta justificativa é histórica.
“Não foi por racismo”, mas Claudia Ferreira era negra. “Não foi por racismo”, mas Amarildo era negro. “Não foi por racismo”, mas o jovem Jeremias Moraes era negro. “Não foi por racismo”, mas Rafael Braga é negro. “Não foi por racismo”, mas os cinco jovens de Costa Barros fuzilados com 111 tiros eram negros. “Não é por racismo”, mas a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil. “Não é por racismo”, mas as mulheres negras são as que mais morrem durante o parto no SUS. “Não foi por racismo”, mas Marielle Franco era negra, e mulher, e lésbica, e cria da periferia. O assassinato da Mariele é o ponto mais extremo da cultura de hostilidade à mulher preta que no nosso arquétipo de linguagem racista foi descrita como “negrinha abusada”. Não deveria ser difícil considerar o racismo como parte da motivação de um assassinato num país em que se mata tantos pretos e pretas.
No contexto da intervenção, o assassinato de Marielle Franco acabou por dinamitar a possibilidade de uma ação que perderia força e atenção depois de suas primeiras semanas. Antes de ter servido como um recado aos movimentos sociais e ativistas pelos direitos humanos, o assassinato da vereadora serviu como uma rajada de frustração em qualquer possível teatro institucional do Estado sobre sua demonstração de controle. Não há controle. E ao perdermos Marielle, também soubemos que não há (e que não pode haver) silêncio. O silêncio e a conformidade deixaram de ser opção.
Discutir a intervenção federal-militar, sem permitir que o recorte racial emerja para nos orientar numa profunda percepção do que estão fazendo com o, e no, Rio de Janeiro, é atenuar uma intervenção que parece só ser pautada pelos números da violência. Não é, e nem pode ser. Se não há um confronto com a realidade em que o racismo estrutural aqui nos jogou, seguimos repetindo os erros de sempre. Aqui, política de segurança pública levada à sério deve ser aquela que reconhece os estragos que o racismo, fruto de nossa longa história colonial-escravagista fez.

*Ronilso Pacheco da Silva é graduando em Teologia na PUC-Rio; membro do Coletivo Nuvem Negra, formado por estudantes negros/as da PUC-Rio; ativista, evangélico, participa também da Campanha pela Liberdade de Rafael Braga Vieira desde o seu surgimento em 2013. É autor do artigo “É hora de racializar o debate sobre o sistema prisional no Brasil”, publicado no livro BR 111: a rota das prisões brasileiras (Le Monde Diplomatique Brasil/Veneta, 2017).

A invencibilidade imaginada de Lula

                                          
Wilson Gomes

A invencibilidade imaginada de Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Arte Andreia Freire / Foto Paulo Pinto, Fotos Públicas)

No Brasil há hoje dois grupos de pessoas convencidas de que se Lula não fosse condenado e preso continuaria a ganhar eleições para sempre. O primeiro, naturalmente, é o dos lulistas, esta espécie de petista mais vinculado à figura de Lula do que propriamente ao Partido dos Trabalhadores. Eles não conseguem – na verdade, nem mesmo podem – abrir mão da convicção de que Lula é o preferido do povo. Parte da sua energia moral provém da certeza de que toda a Odisseia política brasileira recente consiste em uma bem-tramada e renhida perseguição ao ex-presidente, levada a cabo pelas desprezíveis forças das “elites”, que tomaram conta, já sem pudor, das mais influentes instituições do país, além dos canais e instrumentos tradicionais por meio dos quais se forma a opinião pública.
De fato, estes tempos de extrema polarização política viram nascer e prosperar um petismo visceral, alérgico a fatos, autoindulgente, incapaz de autocrítica e profundamente paranoico, para o qual só um conluio de todas as mais sombrias forças políticas, econômicas e mediáticas seriam capazes de abater um gigante como Lula. Mas que só conseguirá este intento se impedir que o nome de Lula esteja na cédula eleitoral.
O segundo grupo é o antipetismo. O antipetismo é um sentimento que nasce basicamente de um pavor que se origina na certeza de que Lula, que condensa toda a malignidade do mundo, exerce um fascínio irresistível sobre as massas. Se o lulista se alimenta do sentimento persecutório de que as forças sombrias das elites estão operando contra Lula e o PT, o antipetista encontra a energia de que precisa para o engajamento cívico e a participação política na paranoia da onipotência eleitoral de Lula. Motiva-lhe a certeza de que Lula precisava ser parado por alguma força externa às eleições, caso contrário a sua dominação sobre corações e mentes do povão continuaria produzindo os votos de que o PT se serve para continuar destruindo o país.
Um amigo me confessou recentemente que está tomando providências para ir embora do Brasil. O argumento definitivo é que não dá mais para viver em um país em que o primeiro colocado nas pesquisas é um ladrão condenado e na prisão. Ele sempre esteve convencido de que Lula ganharia a eleição de 2018, vez que no Brasil as pessoas são muito burras e bem que merecem ser governadas por corruptos e esquerdistas. Ele diz não aguentar mais viver no meio da gente ignorante e estúpida deste país.
Na verdade, ele não suporta mais a ideia de que a maioria das pessoas tenha tido preferências eleitorais divergentes das suas nas últimas quatro eleições presidenciais. Como não pode admitir que os outros tenham razões eleitorais diferentes das suas, e ao mesmo tempo estejam certas, ao meu amigo resta a explicação conveniente de que a maioria diverge dele porque é estúpida ou má. Ou, complementarmente, porque as forças malignas do petismo e do próprio Lula por anos corromperam a alma e embotaram o discernimento das maiorias eleitorais que lhes deram quatro eleições presidenciais.
Sim, vocês dirão, mas a figura do Lula eleitoralmente imbatível não é mais que uma fantasia persecutória da direita antipetista ou idealização imaginária da esquerda lulista. É muito provável que seja assim, mas isto não diminui em nada a sua importância. 75% da política tem a ver com imaginação, meus amigos. E faz já algum tempo que muita gente opera neste país com o fantasma do Lula invencível nas urnas, razão pela qual apressam-se em tomar providências para que isto não aconteça. Dito de outro modo, é a invencibilidade imaginada de Lula a base para que muitos tenham tomado “medidas preventivas”.
E os muitos a que me refiro aqui não é tão somente a arraia miúda do antipetismo, como o meu amigo, que se limita “apenas” a repassar fake news destinadas a “desmascarar” a maldade, a corrupção ou a hipocrisia de Lula e sua turma. Ou que bateu panelas histericamente para “acordar a consciência” dos homens de bem e para provocar os “adoradores de Lula”. Ou, enfim, que vestiu verde e amarelo e se juntou para ir às ruas e praças – as off-line e as digitais -, porque se ninguém fizer alguma coisa “essa escumalha nunca vai deixar o poder”.
Refiro-me sobretudo a pessoas em funções-chave na formação da opinião pública, que assumiram que reduzir a pó a imagem de Lula e do PT não é apenas compatível com a deontologia do jornalismo, mas um dever cívico que deve ser abraçado com entrega e paixão. Para muitos, uma redação que responde às necessidades do povo brasileiro há de ser uma redação que dedica a sua energia e a sua credibilidade a desmascarar Lula e o PT, à quebra a cadeia de encantamento que os ligavam às massas. E que se danem objetividade e imparcialidade quando elas forem incompatíveis com a missão ética que o jornalismo-de-desmascaramento-do-PT se autoconcedeu.
Refiro-me também a autoridades da Justiça que, autoconvencidos da absoluta excepcionalidade do risco de Lula reeleito, não hesitam em arregaçar as mangas e disputar a interpretação dos fatos não apenas para câmeras de televisão e citações de impressos, mas no Twitter, no Facebook e em grupos de WhatsApp, como se fossem garotos de Centro Acadêmico a trollar, insultar e repassar fake news, e não juízes, desembargadores, membros do Ministério Público ou da Suprema Corte da República.
Ou que, não satisfeitos com o ir a campo trocar insultos e pontificar sobre política e caráter, usam o seu próprio ofício para vazar seletivamente depoimentos e gravações, combinar sentenças, tomar açodadamente providências absolutamente customizadas ao caso e por aí a fora, tudo para impedir que os seus pesadelos políticos se tornem realidade. Não há outra explicação, a não ser esta, para o fato de que instituições do Judiciário, do MP, da Polícia Federal e até generais resolvam mandar às favas o recato, a discrição e as prudências que lhes impõe a função republicana quando o assunto é Lula.
Neste país, todo mundo de repente está jogando o jogo político e parece não mais haver quem se restrinja a narrar ou a arbitrar a partida. Juízes jogam, narradores jogam e até o público, que por muito tempo se limitou a assistir à competição, inclusive prestando-lhe muito pouca atenção, desceu em peso para o gramado. Eu tenho certeza de que a fantasia do Lula eleitoralmente invencível desempenha um grande papel neste frenesi de participação política e no sentimento de excepcionalidade e urgência que faz com que as pessoas tenham entrado em uma espécie de surto coletivo, que já dura alguns anos e que cresce aceleradamente em uma espantosa espiral de insanidade. As fantasias, meus amigos, também podem nos enlouquecer.

(Publicado originalmente no site da revista Cult)

Charge! Benett via Folha de São Paulo

Editorial: Quem tem medo da voz dissonante de Michel Zaidan Filho?




Numa tarde de sexta-feira, numa instituição de pesquisa federal sediada aqui em Pernambuco, tivemos a oportunidade de acompanhar uma palestra do professor Antônio Paulo de Resende. Talvez poucos programas se equiparem a tal experiência, uma vez que Paulo faz questão de afastar-se desses clichês tão comuns em palestras de cunho acadêmico. Paulo desconstrói aqueles ambientes áridos, instigando os ouvintes a refletirem sobre o seu cotidiano, sempre consoante a alguma temática em discussão durante as palestras, o que, no final, através da emoção e da sensibilidade, atinge seu objetivo de passar o recado, sem àquelas recorrências enfadonhas, de resultados duvidosos. No final, longe de os ouvintes saírem daquele ambiente preocupados em decorarem datas, períodos, correntes teóricas ou autores - assim como ocorre normalmente em salas de aulas convencionais - eles saem refletindo sobre as suas atitudes, suas interações com o ambiente social e político, o que os tornam em atores proativos, aqueles que, de fato, contribuem para os rumos que a História possa tomar.
 
O momento político que o país atravessa exige de cada um de nós, cidadãos e cidadãs brasileir@s, um posicionamento. Posicionamentos como o do Frei Leonardo Boff, que aguarda a horas uma autorização para visitar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se encontra preso na carceragem da Polícia Federal, no Paraná, condenado  apenas por ilações e suposições, sem nenhuma prova material concreta, procedimentos que já se tornaram recorrentes na sociedade brasileira, a partir do arbítrio jurídico inerente ao golpe institucional de 2016, que depôs uma presidente legitimamente eleita, sem nenhuma razão plausível. Algumas conquistas da democracia brasileira estão irremediavelmente perdidas. A agenda negativa atinge direitos e garantias individuais e coletivas; rasgou a CLT, que era uma espécie de Constituição dos Trabalhadores Brasileiros; tornou-se permissiva em relação à exploração do trabalho em condições sub-humanas; recrudesceu a ação de grileiros no campo, com mortes sucessivas e - e não esclarecidas - de crimes contra lideranças que lutam contra os latifúndios rurais, o desmatamento e o comércio ilegal de madeiras de nossas florestas.  

Como tenho afirmado em editoriais anteriores, o Brasil, por diversas razões, vive um simulacro de democracia. Não há chances de uma democracia consolidar-se com tamanhas desigualdades e ausências de oportunidades para aqueles que ocupam o andar de baixo da pirâmide social. Por incrível que possa parecer, foram nos governos da coalizão petista que mais avançamos na construção de uma democracia no país: reconhecimento do direito de minorias, como comunidades quilombolas e indígenas; acessibilidade da etnia negra aos centros acadêmicos, uma revolução que representou o único indicador onde os negros avançaram nesses últimos 500 anos; a retirada de 36 milhões de brasileiros da extrema pobreza. O resultado é que encarceraram o cara que mais fez pela consolidação da democracia no país.

Não temos a menor dúvida de que os tentáculos autoritários estão se ampliando no país. Há rumores de sabres por todos os quadrantes. Alguns até esquisitos, como uma portaria do Governo do Estado do Maranhão, hoje administrado por um comunista, Flávio Dino, determinando que a Polícia Militar do Estado monitore seus adversários políticos. Num momento como este, isso soa esdrúxulo, sobretudo partindo de um político filiado ao PC do B, eleito na esteira de uma campanha toda voltada a combater a hegemonia de uma oligarquia política que infernizou a vida dos maranhenses por nada menos que cinco décadas. De contrapeso, apoiadores do regime militar instaurado no país com o golpe civil militar de 1964 e o golpe institucional de 2016. No que concerne a esta oligarquia, vale aqui a máxima: uma vez golpistas, sempre golpistas. O PCdoB, aliás, passa por uma profunda decomposição ideológica, mas, sinceramente, não se esperava que chagasse a tanto. A própria corporação militar manifestou seu estranhamento à medida.
 
O golpe institucional de 2016 segue cumprindo suas etapas. Se eles não mantiverem controle sobre o resultado do jogo eleitoral, certamente as eleições presidenciais de 2018 serão abortadas. O clima político está turvo, nublado e abafado, não recomendando sair às ruas sem as devidas precauções. Neste cenário, o "delito de opinião" passa a ser veementemente invocado, com o propósito de calar as vozes dissonantes, ou seja,  aqueles cidadãos e cidadãs que se colocam do lado da defesa dos direitos humanos, do Estado Democrático de Direito, da condução republicana dos negócios públicos, das garantias constitucionais e do equilíbrio na distribuição de renda, o que no Brasil soa como uma grande blasfêmia, motivando as mais vis perseguições de uma elite forjada na naturalização da exploração do trabalho escravo. Trabalho escravo que, aliás, esteve no epicentro do golpe de 2016.
 
É neste contexto político que se entende o processo movido pelo ex-ministro da Educação, Mendonça Filho, contra o professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, Michel Zaidan Filho, no qual pede uma indenização de R$ 10.000,00, supostamente por danos à sua honra de homem público, em razão de um artigo onde o professor "reproduz informações da imprensa" sobre os possíveis apadrinhamentos políticos que o conduziram ao cargo. Depois, afirmar que o senhor Mendonça Filho não tinha o perfil ideal para assumir o cargo de Ministro da Educação não se traduz, digamos assim, necessariamente numa ofensa. Reproduzo aqui um texto, que circula nas redes sociais, onde o professor Michel Zaidan comenta o fato. Assim como o professor Zaidan, nunca li uma única linha de reflexão sobre a educação pública brasileira escrita por este cidadão.
 
"Quanto vale a honra do deputado José Mendonça Filho?
 
 
Estava eu em minha sala de aula, no NIATE/UFPE, quando recebo a honrosa visita de ...uma representante legal para a entrega de uma notificação do ilustre "ex-ministro da Educação", o deputado José Mendonça Filho solicitando através de ação judicial, na vara civil da capital, uma indenização de 10.000,OO, por danos à sua integridade moral de homem público (deputado e ministro da Educação). Fiquei matutando valor da indenização pedida. Quanto vale a honra de um "homem público" no Brasil: 10, 100 ou um milhão de reais?
Sinceramente, 10.000,OO é pouco pela honra de qualquer pessoa (de Belo jardim, de Nova Iorque ou de qualquer lugar. Então fui especular com as notícias sobre a trajetória do homem público belo-jardinense. Na página 10 do Jornal GARRA, na edição de maio de 2016, foi publicada uma lista dos políticos que receberam doação da empresa Odebrecht. No segundo nome da lista, depois do impoluto prefeito do Recife, estava o do deputado Mendoncinha. Quanto teria recebido o parlamentar da empresa corruptora dos políticos brasileiros? - Depois fui ler o Blog de Jamildo do dia 6 de junho de 2016. Lá se diz que o procurador geral da República, Rodrigo Janot afirmava que havia indícios de que Mendonça Filho tinha recebido propina no valor de 100.000.
Fiquei pensando: 10.000,00 é muito pouco em relação a esses valores. Então me indaguei sobre o que teria feito ou dito para justificar esse pedido modesto do ex-ministro da Educação.
Aí, lembrei-me do artigo publicado no jornal brasil 247 sobre a indicação de Mendocinha para o MEC. Diz o jornal eletrônico, em sua edição do dia 19 de maio de 2016: "Dono da SER Educacional, o maior grupo de faculdades privadas do Nordeste, o empresário piauiense Janquiê Diniz bancou a indicação de Mendonça Filho, do Dem, para o Ministério da Educação. De quebra, o jornal esclarece que Janguiê mandou também um funcionário seu, Maurício Romão, para ocupar uma secretaria estratégica de autorização e fiscalização de novos cursos dessas faculdades particulares.
Pronto! Tudo se iluminou por um momento. O que o deputado Mendoncinha que nunca escreveu uma linha sobre educação pública, teria ido fazer no MEC, em troca de ter assinado o "impeachment" da Presidente Dilma? - Ora, a privatização dos FIES? O desmantelamento do Conselho nacional de Educação? O aligeiramento do perfil dos alunos do ensino secundário, acabando com a obrigatoriedade do ensino de História, Sociologia e Artes? Ou ouvindo os conselhos do ator pornô Alexandre Frota sobre a malsinada "escola sem partido"?
Parece que o telhado da casa de Mendoncinha é de um tipo de vidro muito frágil. Disse um antigo professor dele, na Escola Parque, que era um aluno mediano e silencioso que foi se queixar ao pai de professores esquerdistas, por causa de um poema do Brecht. De minha parte, o que eu sei é que Mendoncinha, formado em Administração de Empresas, foi avicultor, deputado e presidente de uma comissão de privatização, no governo do acrimonioso Jarbas Vasconcelos. Nunco o soube pedagogo, educador, professor, autor. A não ser mais um dos políticos do velho PFL que tem a irresistivel inclinação para usar recursos públicos clientelisticamente em época de eleição. E com o MEC, não foi diferente."

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terça-feira, 17 de abril de 2018

Drops político para reflexão: Quem matou Marielle Franco?



José Luiz Gomes

"O caso envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco se encaixa numa dessas situações pouco usuais, com alguns componentes "políticos" que o remete à possibilidade de envolvimento de agentes do Estado, que teriam a obrigação legal de proteger cidadãos e cidadãs. Agentes do Estado ligado ao aparato de Segurança Pública, com ramificações que podem incluir vereadores do braço político das milícias que atuam no Estado, que se dedicam a extorquir comerciantes e trabalhadores das favelas cariocas. Hoje, conforme admite a própria Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - de acordo com a imprensa - essa é a principal linha de investigação em curso. Dois executores profissionais dessas milícias - recentemente assassinados como "queima de arquivo" - passaram a integrar a lista de possíveis suspeitos de terem participado do assassinato da vereadora Marielle Franco. Se os exames das digitais encontrados nas cápsulas coincidiram com as digitais dos mortos, teremos dois defuntos para se pronunciarem, por exemplo, sobre os mandantes desse crime de natureza eminentemente política. A princípio, para alguns setores, uma boa "solução". Se daria uma satisfação à opinião pública e o caso seria encerrado. Até onde se sabe, mortos não falam."

(José Luiz Gomes, cientista político, em editorial publicado aqui no blog)

Durval Muniz: Pouco se lixando para o lixo

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“Manda esse lixo janela abaixo”, dizia alguém que usou um rádio transmissor e interferiu na comunicação do avião que transportava Lula para a sede da Polícia Federal, em Curitiba. O lixo em questão era o próprio ex-presidente, que estava sendo levado preso, apesar de ter sido condenado apenas em segunda instância, quando a Constituição prevê explicitamente que só poderia sê-lo quando o processo percorresse todas as instâncias recursais e transitasse definitivamente em julgado (mas, para ele, a Constituição não vale, segundo afirmou o próprio Supremo Tribunal Federal, que por ela devia zelar, atribuindo-se poder constituinte originário e modificando o que dispõe explicitamente nossa desmoralizada Carta Magna). O lixo que deveria ser atirado fora pela janela de um avião e, portanto, morto (o desejo homicida da pessoa gravada é inequívoco), foi condenado num processo kafkiano, em que tudo o que se tem de provas é uma reportagem de um jornal e depoimentos de co-réus, depois de mantidos presos, preventivamente, durante meses nos calabouços de Curitiba. Lula foi condenado porque um dia pretendeu comprar um apartamento, pagando cotas do empreendimento, declarando no imposto de renda esses pagamentos mas, quando o imóvel ficou pronto e o visitou uma vez, desistiu da compra, passando a cobrar o que pagara de volta. O apartamento que, pretensamente seria propina, continua no nome da construtora e ela o penhora junto à Caixa Econômica Federal, mas tanto a promotoria como o juiz que, de forma irregular, faz tabelinha com a acusação, estão convictos de que o apartamento é de Lula e é fruto de propina em troca de contratos com a Petrobras, o que de resto nunca ficou provado. Até um jornalista conservador e antipetista como Reinaldo Azevêdo, que leu o processo (ao contrário de toda uma camarilha que continua afirmando a culpabilidade do ex-presidente) chegou a conclusão que é insustentável a condenação.
Mas, o que quero discutir nesse artigo, é a frase dita pelo invasor de espaço aéreo (em si mesmo um crime, que poderia causar sérias consequências para a vida de todos que estavam no avião), que relega à condição de lixo um ser humano. Mas o que é ser lixo? Etimologicamente lixo vem do latim lixare, que remete ao ato de desgastar, desbastar, lixar alguma coisa, mas lixo seria, justamente, o que sobra, o que resta dessas operações, as aparas, os resíduos, os restos. Em nossa cultura, o lixo têm conotações muito pejorativas pois se associa àquilo que é jogado fora por ser imprestável, por estar estragado, por estar podre, por ser impróprio para o consumo. Pelo seu próprio aspecto e odor, ao lixo é atribuído ainda sentidos como de algo sujo, fétido, repelente, contaminante, degradado. Dessa origem etimológica da palavra lixo advém, também, a expressão “se lixar para algo ou alguém”. Se o verbo lixar se refere ao ato de polir, de desgastar, de desbastar alguma coisa, o que implica prestar muita atenção naquilo que se está fazendo, em fixar a atenção sobre o material que está sendo lixado, a expressão “pouco se lixar” se refere a falta de atenção, a pouca importância, ao desprezo que se devota a algo ou a alguém. Estar pouco se lixando para algo ou alguém é não dar o menor valor àquilo ou àquele de que se trata. É figuradamente tomar o outro como se fosse lixo, como se fosse algo indigno de atenção, fosse algo sem importância, sem valor e que, portanto, pode ser jogado fora, destinado ao descarte e à destruição.
A frase do invasor de espaço aéreo diz muito do que estamos vivendo na sociedade brasileira, ela é um indício emblemático desses dias que correm. Há setores na sociedade brasileira que consideram que outras pessoas, com opiniões políticas e visões de mundo diferentes das suas, não podem continuar existindo, devem ser jogadas fora, descartadas, eliminadas, mortas. O fascismo tem como uma de suas características a rejeição ao que é diferente e distinto. O fascismo tende a desumanizar aqueles que toma como adversários ou inimigos. A desumanização transforma humanos em animais (ratos, porcos, cães, bestas, pulgas), como fizeram os nazistas, ou em excrementos, restos, sobras, lixo (os homicidas que atentaram contra a vida de Lula no Paraná o chamaram de bosta). Os nazistas, literalmente, transformavam os corpos dos judeus, dos comunistas, dos homossexuais, em resíduos, em cinzas, em restos que deviam ser enterrados e desaparecidos. O fascista é uma pessoa tomada pelo desejo de morte, governada por uma libido assassina (suas fantasias, seus sonhos, até mesmo suas ações visam o gozo com a morte do outro rejeitado). O fascista invasor de espaço aéreo teve um gozo só por pronunciar essas palavras, sentiu seu desejo minimamente satisfeito só por manifestar desejos e ideias que, em outras circunstâncias sociais, não teria coragem de expressar, nem para si mesmo. A atuação fascista e assassina da mídia, dos meios de comunicação, notadamente da Rede Globo (que começa assassinando a verdade, com ela assassinando reputações) incentiva ao assassinato sanguinário dos corpos. Os programas policiais, que vivem de alimentar o gozo fascista pela tortura psicológica e física das pessoas ditas bandidas, espalham pela sociedade brasileira o desejo de desforra e linchamento. Na   hora do almoço ou no final da tarde, milhares de pessoas, no Brasil, sentem prazer em contemplar a humilhação e o escárnio em relação a pessoas humanas, que são constantemente comparadas a animais, feras, bichos. A própria maldade daqueles que são ali espetacularizados espalha-se como um exemplo do que seria o comportamento de pessoas das condições sociais e raciais delas. Só vemos preto e pobre na TV na condição de “bandido”, o que reforça a ideia de que todos são criminosos ou que só os pobres e pretos são desonestos e malvados. As maldades intrínsecas a uma ordem social que gera essas pessoas nunca são mostradas ou discutidas. Se personaliza a maldade como forma de encobrir a origem social do crime e da violência. Se violenta todos os dias pessoas nos meios de comunicação a pretexto de combater a violência. Se glamouriza, se espetaculariza a violência do Estado, através da atuação, muitas vezes desastrada e preconceituosa, dos órgãos de segurança, a pretexto de se combater a violência.
Por que grande parte da elite brasileira e setores expressivos das classes médias não possuem qualquer simpatia ou empatia com a figura de Lula? Por que tanto ódio em relação a um ex-presidente que só os beneficiou, que esteve longe de atacar seus privilégios? Na época em que Lula governou, a burguesia brasileira não parou de ganhar dinheiro, nunca se consumiu tanto, nunca o país viveu uma euforia tão grande. No entanto, a falta de identidade de classe era e é nítida, nunca o consideraram um dos seus, nunca deixaram de achar que ele estava ocupando um lugar indevido. O ódio assassino a Lula se deve menos a ele, mas a tudo que ele simboliza. Quando desejam jogá-lo do avião, quando o consideram um lixo, expressam seu repúdio a pobreza e ao pobre. Lula será sempre marcado por ser aquele que tem origem popular. O motivo que o leva a ser amado por milhões, é o mesmo que o leva a ser odiado por milhares. No Brasil o pobre sempre esteve muito próximo da condição de lixo. Somos um país em que as elites, e a população em geral, assiste passivamente e sem qualquer esboço de solidariedade pessoas viverem jogadas nas ruas, nas praças, embaixo dos viadutos, nas marquises, nas sarjetas. Tendemos a ter medo, a discriminar e a marginalizar a criança que dorme na saída de ar das estações de metrô. Somos o país onde governos estaduais e municipais tratam os consumidores de drogas, os homens e mulheres jogados nas cracolândias, como se fossem incômodos restos humanos, usando da violência policial como saída para um problema que é social e de saúde pública. Desde o início da República que tratamos questões sociais como caso de polícia. Somos um país onde milhares de retirantes das secas, como Lula, morreram perambulando pelas estradas, vítimas da fome e da sede, atirados aos urubus e aos cachorros e não alimentamos por isso nenhum remorso ou vergonha. Atribuídas às secas, à causas naturais, essas milhares de mortes pouco fazem parte de nossa própria história, é como se nunca tivessem existido tais andrajos humanos, que foram despejados como restos mortais numa cova rasa qualquer. Vítimas da incúria governamental e de uma estrutura fundiária e econômica assentada na concentração e no privilégio, esses milhares de retirantes são como o lixo que nossa história produziu e deve ser atirado fora.
Lula é nordestino, filho da região pária da nação. Região de uma elite nababesca, que vive secularmente da exploração da maioria, elite que optou em vários momentos pelo atraso, como fizeram novamente em 2016, desde que não perca seus privilégios. Região privilegiada pelos investimos e programas do governo Lula, reacendendo ódios e preconceitos regionais, notadamente no Sul e Sudeste do país. Ao privilegiar em suas políticas os mais pobres e, entre eles, os nordestinos, Lula teria optado pela escória do país: os preguiçosos, os improdutivos, os incapazes de trabalho intelectual, os sem consciência, os alienados, os burros, os feios, sujos e malvados do país. A classe média e as elites limpinhas, brancas, os homens bons, os gestores, os empreendedores, os inteligentes e conscientes olham com desprezo para essa gente que deveria não existir e existindo deveriam desaparecer, ser atirados fora do país. Lula teria retirado dinheiro daqueles que trabalham e produzem para alimentar vagabundos com o Bolsa Família. Aqueles grupos e aquelas regiões que enriqueceram com a exploração do trabalho barato dos nordestinos, a encarnação do proletário no Brasil, se indignam com a possibilidade que essa gentalha possa andar de avião e cursar a universidade. Lula personifica o nordestino que deu certo no Sul (por isso é tão amado em sua região), mas ao mesmo tempo personifica aquele que veio tomar o lugar de um sulista, que veio ocupar um lugar que não era dele. Se o Nordeste e os nordestinos sempre foram vistos como os indesejados da nação, seu resto, sua sobra, sua escória, porque não jogar todos no lixo ou reservar para eles o lugar de catadores de lixo.
É muito simbólico e revelador que seja o primeiro presidente da República a receber em palácio representantes dos catadores de lixo, o presidente que fazia questão de passar as festas natalinas com os trabalhadores do lixo, que investiu numa política social voltada para os trabalhadores em cooperativas de reciclagem, que venha a ser tratado ele mesmo como se lixo fosse. A campanha midiática de difamação que sofre, encontra guarida com maior facilidade justamente porque, para muita gente, Lula sempre foi sujo, sempre esteve próximo da condição de alguém que cheirava mal, pois era pobre e nordestino, e ainda se envolvia com catadores de lixo. Convencer de que Lula é um sujo corrupto, é um fedorento ladrão não é difícil para gente de narinas levantadas que nunca o engoliu, que sempre achou que ele não era flor que se cheire. A campanha de difamação funciona porque mobiliza os baixos sentimentos, as emoções inconfessáveis, as repulsas que antes não eram expressadas e que ganham, com a autorização midiática e com o anonimato das redes sociais, seu caldo de cultura. No Brasil, sempre se associou pobreza a sujeira, a mal cheiro, a tendências criminosas. Numa casa de classe média a empregada sempre foi a primeira suspeita quando algo some. É difícil, por isso, convencer a muita gente que Lula não é corrupto e ladrão, se os políticos e empresários de outros extratos sociais o são. Como justo o pobretão, o retirante, o nordestino seria honesto? No imaginário nacional, todo político, todo homem público é desonesto, e não têm nem como provar em contrário. A impostura jurídico-midiática construída para afastar Lula da vida pública, para impedir a sua volta, é facilmente credível, porque sua figura possui vários traços que o predispõe a ser o bode expiatório a ser exposto no meio da sala. Um sistema corrompido de alto a baixo, um judiciário atravessado pelo privilégio e pela corrupção, se volta contra um homem que deles se diferencia e atiram sobre ele, exatamente por ser diferente, todo o seu ódio e rejeição. Pouco se lixando para o que venha sofrer o país, sua população e o próprio ex-presidente, um verdadeiro linchamento se realiza, externalizando os desejos de morte e o ódio de classe e o ódio regionalista.
Se Lula é o sem dedo, o deformado no corpo, também deve ser o aleijado de espírito e de caráter. O sapo barbudo deve ser salgado e esmagado como se faz com um animal repelente. As inúmeras referências pejorativas à sua deficiência física mostram o quanto o portador de necessidades especiais no Brasil é desprezado e vítima de preconceitos. Foi justamente em seu governo que ocorreram avanços significativos na inclusão das pessoas com deficiência na educação básica e superior. Mais uma vez, Lula ficava do lado daqueles que são vistos como humanos pela metade, como restos de gente, como lixos humanos. Assim como tem que pagar caro por criar políticas voltadas para a população LGBTT, também lixos que deveriam ser lançados ao mar ou no inferno como pregam todos os dias os nossos representantes de Cristo (que ele não saiba disso). Se Lula só olhou para os de baixo, só olhou para baixo, eis sua maior baixeza e todas as suas baixarias, como não querer ser associado a lixo? O ressentimento das elites e de setores da classe média com ele se deve ao fato de, ao invés de querer ser um deles, de querer deixar de ser o que foi, de renegar suas origens, Lula afirmar que sempre soube de onde veio e quais seus verdadeiros iguais. Lula é um presunçoso que não quer ser um burguês como a maioria que sempre nos governou. Qualquer passo que ele possa ter dado nesse sentido vira uma ameaça e assinte. Comprar apartamento, sítio, ter carro, etc, etc, não era para ele, como ousa comprar essas coisas e ainda honestamente? Só pode ser fruto de roubo. Lula é ladrão dos lugares de privilégio de nossas elites, dos símbolos de ascensão social, usados para marcar diferenças que deveriam ser intransponíveis. Além de roubar esses lugares, que deveriam ser só deles, ainda os considera menor e menos importantes do que aqueles de onde saiu. Lula, duas vezes presidente da República pelo voto popular, aquele que atingiu níveis de popularidade nunca vistos, nunca quis se fingir de empresário, de bacana, de almofadinha, continuou nesse lugar sendo o operário, o metalúrgico, aquele que fala um português estropiado e não fala inglês (mesmo assim foi o presidente que melhor projetou o Brasil no mundo, para desespero de nosso jet set mochileiro de Miami), o homem do povo, o nordestino, o homem de esquerda, ou seja, tudo aquilo que nossas elites aprenderam a desprezar, a menosprezar.
Lula, o comunista, eterno lixo de nossa vida pública, a atrair o ódio de civis e militares. Homem de posições moderadas, um verdadeiro estadista, um cristão convicto, um homem capaz de conviver sem radicalismos com forças políticas as mais distintas, que não levou a cabo transformações mais profundas por causa das alianças com as forças conservadoras do país, é odiado como se fosse um revolucionário descabelado, um terrorista, como alguns próceres da direita querem equiparar todos os militantes de movimentos socais. No Brasil, ao longo de sua história, muitos homens e mulheres por serem de esquerda, por professarem convicções socialistas, anarquistas, comunistas foram abatidos como cães sarnentos, foram torturados, aprisionados, trucidados, desaparecidos, jogados como lixo numa vala comum, se nenhuma identificação como um ser humano. Nesse país, todos os dias, centenas de pessoas são assassinadas como se suas vidas nada valessem. Muitas permanecem por horas atiradas no meio-fio, cobertas por um lençol, como se fossem o lixo, o resto, a sobra que essa sociedade da exploração e da desigualdade joga fora. Nessa sociedade injusta, qualquer brado por justiça pode te levar a ter o mesmo destino de Marielle, não só morta como um traste no meio da rua, mas ainda difamada, acusada de ser a responsável por sua própria morte, pois ela veio debaixo, ela veio do lixo social, portanto, só pode ser lixo também, cuja morte e cujos responsáveis por seu bárbaro trucidamento são jogados para debaixo do tapete, para que os limpinhos possam ser preservados dessa mácula.
Mas, a frase do violador de espaço aéreo, também revela muito sobre nossas elites e nossas classes médias. Ele disse que Lula era um lixo e que por isso devia ser jogado pela janela. Atitude típica da incivilidade de nossas elites: atirar lixo pela janela, atitude que não a diferencia do povão. O atirar o lixo pela janela é um gesto que indicia, também, a completa ausência de sentido de cidadania entre nós. Emporcalhem-se as cidades, entupam-se os bueiros, tornem as vias públicas intransitáveis, atitudes típicas daqueles que não veem na cidade uma construção humana e cidadã, a cidade como um lugar de convívio e respeito ao direito do outro. Jogar o lixo pela janela, não importando com o transeunte que venha passando, indício da barbárie de nossa população. As nossas elites sempre se caracterizaram por ser espaçosas, por terem sido sempre criadas em enormes espaços rurais ou urbanos, a espaciosidade parece ser um traço de mentalidade de nossas classes dominantes. Elas se julgam donas do mundo, todo e qualquer espaço é seu, é feito para seu desfrute. Daí a revolta em ter que dividir espaços com pobres, pretos, índios, mulheres (que agora querem até ser presidente da República, que petulância, só com um impeachment para se resolver isso). O lixo é incômodo justo quando vem ocupar lugares que para ele não é destinado. Faz parte, como apêndice do direito de propriedade, no Brasil, o direito de se colocar uma tabuleta dizendo: “Favor não colocar lixo”. Sem teto, sem terra, por favor Estado, despeje todos para fora daqui, quem sabe para fora do mundo. Sim, em nosso país a expressão que se usa para desalojar pobres de casas e terrenos que não lhe pertencem é despejar, mesmo verbo que usamos para o lixo. Nossas elites, que precisam de um carro enorme para que uma pessoa se desloque dentro e ocupe uma grande área para estacionar, são as mesmas que se comprazem em destinar a empregada doméstica um quarto de 5 metros quadrados. Essa elite espaçosa toma o espaço público como se fosse uma extensão de sua casa, enorme, mas que é pequena para tanto ego.
Não há elite para produzir mais lixo do que a elite brasileira, em todos os sentidos. Em onze anos, entre 2003 e 2014, exatamente o período dos governos do PT, a produção de lixo no país cresceu 29%, acompanhando o crescimento do consumo. Cada habitante no Brasil produz em média 387 quilos de lixo por ano. Mas o lixo de nossas classes médias é de uma riqueza incomparável, muitos miseráveis vivem de chafurdar esse rico lixo. Produzimos lixo como um país de primeiro mundo, mas o descartamos como um do terceiro mundo, daí a poluição e a degradação ambiental. Somos o terceiro maior produtor de lixo do mundo, pois o desperdício de alimentos, por exemplo, é uma marca de nossas classes dominantes. Se Lula colocou como meta de seu governo acabar com a fome, que atingia milhares de pessoas e que depois do golpe de 2016 já voltou a atingir 11 milhões de pessoas que foram excluídas dos programas sociais ou perderam o emprego, nossas elites sempre se caracterizaram pelo desperdício de comida, pelo olho grande e a barriga estufada de comer. Para eles, Lula tem o mesmo valor que os alimentos que atiram fora, que jogam pela janela do carro, todo dia. Lula quis matar a fome dos pobres, que valor isso pode ter, que importância isso pode ter para elites impanzinadas e obesas, como as nossas, adiposas até no pensamento? Eles estão se lixando para os pobres e sua fome, logo estão se lixando para esse presidente que foi sem nunca poder ter sido. Ele agora está no seu lugar, no lugar onde a sociedade burguesa joga todos os seus detritos, os seus restos, os seus lixos: a prisão. Depois de sugar, esmagar, deglutir e moer a todos, joga-se o bagaço no lixão, para que longe da vista de todos, não possa atrapalhar a linda paisagem de lugares exclusivos, nem venham emporcalhar e feder à porta de quem produziu tais resíduos. Lula, em seu tempo, foi usado para benefícios de muitos que hoje o atiram ao lixo (inclusive a quase totalidade dos julgadores que lhe atirou na cadeia, hoje recebem os poupudos salários que percebem, por causa que aquele que hoje é bagulho os escolheu e indicou). Típica atitude de gente que vêm das elites brasileiras em relação aos que vieram de baixo: desprezo, arrogância, desconhecimento. Eles estão mais é se lixando para o que possa ocorrer com esse lixo, quem mandou teimar em ser gente.

Durval Muniz de Albuquerque é historiador e professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

(Publicado originalmente no site Saiba Mais, Agência de Reportagem, aqui reproduzido com autorização do autor)
 

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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Editorial: Marielle Franco: um mês depois do assassinato.

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Na juventude, confesso, gostava de ler bastante sobre temas que envolviam a teoria da conspiração. Nos meus arquivos pessoais, ainda guardo alguns documentos sobre o assunto, notadamente sobre a crise dos mísseis soviéticos instalados em Cuba, assim como documentos sobre a Operação Condor, cujas vivandeiras já andam se sentido à vontade em ameaçar aqueles atores que se colocam do lado da justiça e do Estado Democrático de Direito. Os tempos passaram e nos tornamos mas reticentes a tal teoria. Hoje, no entanto, à medida que o golpe institucional de 2016 avança, com seus tentáculos asfixiando o Estado de Direito, começam a surgir no horizonte alguns cenários  curiosos, como chacinas envolvendo jovens sem nenhuma vinculação a atos criminosos ou delituosos; prisões em massa; "suicídios" suspeitos, como o que ocorreu recentemente com um médico do Estado do Maranhão, acusado de envolvimento com práticas de caráter pouco republicanas na administração pública daquele Estado. Se continuarmos nesse diapasão, não duvido que logo comecem a surgir os "desaparecidos", aqueles cidadãos que saíam de suas casas para as suas atividades cotidianas e não mais voltavam para o aconchego dos seus lares. O jornalista Vladimir Herzog, por exemplo, foi "convidado" a deixar seu gabinete de trabalho para prestar um depoimento. Teria dito aos seus familiares que logo voltaria. Nunca mais voltou. Suicidaram-no.  
 
O caso envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco se encaixa numa dessas situações pouco usuais, com alguns componentes "políticos" que o remete à possibilidade de envolvimento de agentes do Estado, que teriam a obrigação legal de proteger cidadãos e cidadãs. Agentes do Estado ligado ao aparato de Segurança Pública, com ramificações que podem incluir vereadores do braço político das milícias que atual no Estado, que se dedicam a extorquir comerciantes e trabalhadores das favelas cariocas. Hoje, conforme admite a própria Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro - de acordo com a imprensa - essas são as duas linhas de investigações em curso. Dois executores profissionais dessas milícias - recentemente assassinados como "queima de arquivo" - passaram a integrar a lista de possíveis suspeitos de terem participado do assassinato da vereadora Marielle Franco. Se os exames das digitais encontrados nas cápsulas coincidiram com as digitais dos mortos, teremos dois defuntos para se pronunciarem, por exemplo, sobre os mandantes desse crime de natureza eminentemente política. A princípio, para alguns setores, uma boa "solução". Se daria uma satisfação à opinião pública e o caso seria encerrado. Até onde se sabe, mortos não falam.

Um amigo museólogo nos informou que alguns pertences da ex-vereadora Marielle Franco serão expostos no Museu da Maré, localizado na favela da Maré, onde ela nasceu e construiu sua trajetória política. Nada mais justo. Assim como são justas todas as homenagens que a vereadora carioca continua recebendo por todo o país, como uma forma de reconhecimento à sua luta, às suas bandeiras. Desaprovados aqui estão seus detratadores, que deverão enfrentar as barras da justiça, por suas ilações, calúnias e difamações. Numa leitura mais abrangente sobre a justiça no país, certamente ficaremos decepcionados com o número de homicídios devidamente esclarecidos, o que significa, em última análise, um alto índice de impunidade. Aqui em Pernambuco, por exemplo, apenas para ficarmos num caso, o estupro e assassinato de duas adolescentes em Serrambi, litoral sul do Estado, que continua num grande impasse, sem solução. Isso apenas para mencionar os casos que ganham repercussão na imprensa. Todo nosso apoio às mobilizações no sentido de exigir o esclarecimento e as circunstâncias da morte da vereadora Marielle Franco. Mais ainda se esses grupos se mantiveram mobilizados no sentido de que mais assassinatos sejam esclarecidos no país. Esta, aliás, era uma das suas bandeiras. Uma luta que pode estar no raiz das motivações de seu assassinato. 

Michel Zaidan Filho: O fator Lula e o processo eleitoral


 

 
 
Os que torcem, fervorosamente, pela prisão de LULA e o seu impedimento em participar das eleições presidenciais deste ano ora alegam a sua condição de preso ora a legalidade da prisão ora a sua ficha “suja”. Entendo que se trata de uma espécie de “vindita particular”, uma racionalização de um “ódio de classe” contra LULA, o PT e a esquerda de um modo geral. É como se fosse possível utilizar o braço da Justiça para alcançar (e ferir) os nossos adversários. Se fôssemos seguir as lições de Michel Foucault sobre a origem do processo penal, saberíamos que o ordálio, a vingança particular, ou simplesmente a famosa “Lei de talião” estabeleceu o que se chama de justiça retributiva nas relações penais com os condenados. Mas o progresso das leis penais – desde Beccaria – chegou ao “garantismo legal” da nossa época, rejeitando a lei kantiana do “olho pelo olho” e estabelecendo o papel ressocializador do direito penal.

O que assistimos hoje – a um espetáculo digno dos jogos da arena romana – é uma carnificina moral, política e penal. É o abandono por completo das conquistas e avanços da consciência jurídica universal, trocada por um tipo de “terrorismo penal”, onde uma parte da sociedade se compraz, como na luta da arena romana, em torcer pela desgraça alheia, sem considerar sua culpa ou o grau de responsabilidade civil e penal pelos alegados crimes. É uma espécie de “catarse de cabeça para baixo”, uma forma de exorcização dos nossos maus instintos, da nossa vingança, do nosso ódio contra um inimigo público e comum.

Não precisamos ir muito longe à ensaística sobre os massacres e genocídios, para entender (que não justificar) que o ódio é uma patologia social perigosa. Seja contra os negros, as mulheres, os pobres e favelados ou homossexuais e transgeneros, seja contra um partido político, uma ideologia política e seus seguidores. Os frakfurtianos que estudaram bem esse fenômeno, na Alemanha Nazista, chegaram à conclusão que ele resulta de um potencial de autoritarismo latente, alimentado por uma cultura de repressão e de muitas frustrações sociais. Não é à toa que setores das classes médias têm sido usados – pela manipulação da mídia – como “massa de manobra” contra LULA, o PT e a esquerda. É uma maneira dela externar seu complexo social – vingando-se dos mais pobres e da esquerda. Isto não é novo, nem no Brasil nem no mundo. Na Alemanha e na Itália (mas também nos EE.UUs.) essa onda de ressentimento e revolta chocou o ovo da serpente nazista e fascista. No Brasil, uma sucessão de golpes (ainda que estes se apresentem com a fachada de uma modernização conservadora).

É necessário fazer o diagnóstico correto dessa histeria anti-lulista e anti-petista, tanto quanto o crescimento inquietante do voto de direita e do voto religioso. Mas pode ser que tudo isso não passe de uma cortina de fumaça para a execução de uma outra política voltada aos interesses das grandes empresas e da banca. Mas uma vez, o ódio de determinados grupos é utilizado para demonizar a política (e os candidatos) da esquerda e viabilizar outro golpe contra os interesses da população. Como disse um jornalista antenado com os acontecimentos, se LULA participar do processo eleitoral  com chances de ganhar (e estas são muitas) não haverá eleição. Tudo será conduzido por um “petit comitê” para reproduzir e ampliar a política ultra-liberal, anti-popular, anti-nacional que vem sendo posta em prática por este intruso que ora ocupa a cadeira presidencial.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir

                                       
Ivana Bentes                                                                                

Não é neutralizando Lula que o novo vai emergir
Lula nos braços do povo, em São Bernardo do Campo, no dia 7 de abril de 2018 (Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Uma das maiores falácias dos que “preferiram não se posicionar” ao longo desse processo, que começou com um impeachment ilegítimo e culminou ontem na prisão de Lula, é a tese de que o ex-presidente representa “o que tem que desaparecer” para nos liberar das “polarizações”; aquele que precisa “desaparecer” da cena política para liberar o novo. O que tem que desaparecer para que outras causas, pautas e formas da política possam emergir. Mas não é neutralizando Lula que o novo vai emergir.
A miopia desse tipo de argumento é justamente pensar de forma dualista e maniqueísta, como os que acharam em Lula o “bode expiatório” para todos os males da corrupção. Lula tornado signo do mal a ser extirpado, do antipetismo histérico; o mal a ser “neutralizado” dos ponderados, dos equilibrados, dos que querem “acelerar” a emergência do novo.
Para estes – com dilemas e conflitos edipianos -, é preciso matar o pai, o estadista, o rival. Matar o que transbordou as fronteiras. O problema seria o excesso de grandeza de Lula, que projeta sua sombra sobre o novo! No fundo, respiram aliviados com sua prisão. Agora sim podemos “zerar” o game. Sem Lula, os conservadores e as “esquerdas oprimidas” vão florescer. Sem Lula acabam as polarizações!
A estupidez é achar que Lula não é (e não foi) justamente uma das condições de possibilidade do novo que emergiu desse período, de uma democracia em convulsão.
Essa extraordinária jornada que fez o Brasil produzir novos sujeitos do discurso: da emergência da potência das culturas das periferias até os novos feminismos, do empoderamento dos movimentos sociais e culturais clássicos (MTST, MST) até o afrofuturismo, a cultura da diversidade pop e dos lugares de fala, as experiências dos novos bandos e movimentos urbanos vindos do interior do país como o Fora do Eixo, a possibilidade das mídias livres etc.
Há um Lula nessas novas lideranças jovens e negras que surgiram nas favelas, Marielles são parte desse processo e desse efeito-Lula. Não se trata de culto da personalidade, mas de processos históricos complexos e intricados em que Lula é um dos “hubs”, intercessores, ideia, conceito.
Lula e o processo em torno dele – Lula-ideia, Lula-conceito como intercessor e não “personalidade” e nem “messias” – foi e é a condição de possibilidade do novo, e não a sombra que “cala” e impede o devir.
Lula transcendeu o campo das esquerdas faz tempo. Não pertence mais ao PT, não pertence mais a um “partido”. Por isso a luta contra a sua prisão arbitrária e toda a sua jornada de vida já é uma dessas pedras fundamentais que, uma vez jogada, produz ondas cada vez mais amplas. Em um país desencantado, brutalizado, violentado, não podemos nos dar ao luxo (mesquinho) de rifar Lula.
Um fato significativo da sua embaixada provisória no sindicato em São Bernardo foi quando o PCO (Partido da Causa Operária), contrariando a decisão do próprio PT, dos advogados e o desejo do próprio Lula, tentou impedir que ele se entregasse à PF, num acontecimento fora de controle, tenso e que aponta para esse incontrolável da figura e legado de Lula. Lula não pertence mais a ninguém!
A mobilização de São Bernardo também apontava para novas forças: Guilherme Boulos com seus acampados da Ocupação Povo Sem Medo e o movimento dos sem teto como uma outra configuração pós-Lula de grande força. Isso porque há uma população pobre que precisa acreditar, que não pode se dar ao luxo do niilismo ou do desencanto. “Eu perdi a fé, que enfermidade mais terrível”, poderíamos ouvir de setores inteiros neste momento no Brasil.
Essa é a doença que viralizou: a descrença na política, o descrédito, a força tarefa de demolição de um campo que transmutou afetos e libido em ódio. Por isso é preciso acreditar, senão em Lula, pelo menos nos processos que desencadeou. De que folha em branco sairia o novo? Os movimentos mais potentes que emergiram no Brasil desde 2013 – as ocupações urbanas, os secundaristas, o movimento social das culturas (#ocupaMinc), a primavera das mulheres, a juventude negra em insurgência contra seu genocídio, não podem não crer.
A prisão como voo
Depois de 24 horas acompanhando tudo o que se passava pelas mídias livres, redes, por amigos próximos, pela Mídia Ninja, por chats de Telegram e Whatsapp, dava para sentir essa percepção ampliada, generosa, alargada de Lula, e desses processos pelos quais passamos se avolumando em uma velocidade vertiginosa.
Lula já transcendeu as bolhas e as esquerdas. A ficha caindo para artistas, ex-petistas, desencantados, familiares, gente que estava se lixando para tudo! A gente sabe que os processos são complexos, trazem milhares de erros, desvios, equívocos, e todas as críticas têm que ser feitas, mas nada disso neutraliza a grandeza e riqueza desse processo encabeçado por Lula.
A única hora em que realmente chorei sentida foi no momento em que, depois daquele longo cortejo pelas ruas de São Paulo, o minúsculo, frágil, monomotor da PF decolou de Congonhas, levando Lula já preso. Mas até essa imagem era paradoxal. No menor espaço do mundo, aprisionado, constrangido, Lula voava sobre a cidade que lhe deu tudo e que detonou um processo histórico e singular. A prisão já era um voo e agora desencadeará um campanha global, um #LulaLivre que pode ser apropriado e reivindicado por muitas causas e sujeitos.
A tese pernóstica defendida pelo Estadão no seu editorial pós-prisão vai nessa direção de “enterrar” Lula: “O Brasil já não suporta mais ter o seu destino atrelado ao de Lula da Silva. É preciso virar esta triste página da História e voltar os olhos para o futuro.” Mas não existe futuro na nossa frágil democracia que não passe pelo legado, pelos acertos e erros de Lula.
Lula não é a “causa suprema” ou suficiente de tantas transformações urgentes e necessárias, e nem o corpo que precisa ser silenciado, esquartejado, martirizado. Sua história de vida e sua trajetória política fazem parte de um processo que evidentemente e obviamente são muito maiores, mais amplo que um indivíduo. Intercessor é isso. Não tem fetiche, poderia ser outro, mas não foi. Coube a ele estar nesse lugar na história do Brasil, é fato consumado. Intercessor, detonador, com ele e apesar de seus erros.
O entendimento que o próprio Lula tem como “cavalo”, instrumento, processo atravessado por muitas forças em disputa é bastante claro e lúcido. Não se trata de nenhum delírio de onipotência e nem romantização. Pessoas e indivíduos são resultados e efeitos. Temos um efeito-Lula. “Dizer algo em nome próprio é muito curioso, pois não é em absoluto quando nos tomamos por um eu, por uma pessoa ou um sujeito que falamos em nosso nome. Ao contrário, um indivíduo adquire um verdadeiro nome próprio ao cabo do mais severo exercício de despersonalização, quando se abre às multiplicidades que o atravessam de ponta a ponta, às intensidades que o percorrem”, escreveu Deleuze em 1992.
A frase de Lula no seu discurso de despedida em São Bernardo do Campo expressa isso: “Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia. (…) E vocês todos se chamarão Lula”. Eis a grandeza do nome Lula e o que escapa por todos os lados.
O ex-presidente Lula, que tem pedido de habeas corpus julgado nesta quarta (4)
O ex-presidente Lula, que teve pedido de habeas corpus negado nesta quarta (4) (Ricardo Stuckert/ Instituto Lula)
A produção de fatos e as narrativas
A prisão de Lula deu um nó na narrativa midiática em torno da sua “morte simbólica” ao escolher dia e hora para se entregar à PF, mostrando a força do seu campo e disputando o sentido e a forma da sua prisão. Um momento narrativo e cinematográfico quando escolheu se dirigir para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, onde ficou protegido por uma trincheira de corpos amorosos e solidários. Em uma cultura virtualizada isso é um feito. A precedência da presença e dos corpos sob as virtualidades e aos mesmo tempo a mobilização 24 horas dos canais de notícias e redes sociais. O rito sumário da prisão virou uma missa nacional e global com duração e tempo singulares.
Como silenciar um acontecimento estrondoso? A Globo News transmitindo em tempo real, refém de um acontecimento que marcará a história do Brasil (filmando de helicóptero e de teleobjetivas), sem autorização para entrar no Sindicado dos Metalúrgicos onde Lula se abrigou, cortava e baixava o som das transmissões ao vivo do carro de som montado para se ouvir as falas que se revezavam desde a sexta-feira, 6 de abril de 2018, um dia histórico.
Só escutávamos os comentários enviesados, criminalizantes dos que querem construir o sentido do mundo e que têm medo dos protagonistas dos fatos. Os participantes da vigília, ato, protesto, missa, desagravo, resistência em torno de Lula não tiveram voz ao vivo na Globo News. As mídias livres ocuparam e deram voz aos acontecimentos.
Essas são as novas formas da censura, o anti-jornalismo em que o comentarista é o cento dos acontecimentos e onde tudo o que é dito é imediatamente “lido” para se produzir o “sentido”.
Mas hoje, com as redes sociais, as vozes e conteúdos vazam por todos os lados e produzem uma ruidocracia ingovernável. Lula protagonizou um ato/performance de desobediência civil que entrará para a história da resistência do Brasil.
Sem exclusividade e sem acesso, a Globo teve que utilizar o ao vivo da TVT, canal de TV da CUT, enquanto redes como Mídia Ninja e Jornalistas Livres faziam transmissões com exclusividade no front dos acontecimentos, com audiência fora do comum.
Durante toda a cobertura midiática corporativa da prisão de Lula, o desespero dos comentaristas era denunciar a fartura de imagens das equipes de mídia do ex-presidente como “politização” e “fraude” com objetivos eleitorais (“Vejam as câmeras, estão gravando tudo, vejam os fotógrafos, vejam como “encenam”, horrorizados por não terem o controle das imagens). Em momento algum dimensionaram e apontaram a força e simbolismo dos acontecimentos de hoje e a reviravolta simbólica de Lula.
Uns analistas míopes e/ou cegos, quando o roteiro lhes escapa. A questão é que o mundo faz “cinema” e produz narrativas fora do controle das fábricas de fatos. As mídias livres tiveram níveis estratosféricos de audiências e engajamento. Estamos em plena transição para a multidão de mídias que rivalizam com a fábrica fordista midiática.
Lula entendeu tudo! Não está “capitalizando” uma prisão, está narrando sua vida. Seu personagem público e privado é um só. Choram os jornalistas diante da força das imagens, choram os marqueteiros diante do fato-Lula – pois teriam que inventar, simular gente, perfis, personagens com esse carisma, afeto e dimensão! Num mundo sem mística e desencantado, Lula é um real acontecimento que foge da racionalidade marqueteira e das linhas retas. Uma ideia e um conceito difíceis de “aprisionar”.
Diante dessas imagens épicas e comoventes, buscam a foto/imagem de Lula preso como um troféu, mas qualquer imagem depois disso será pequena. No G1 e na Globo News ouvimos o som de um helicóptero e o silêncio. Um olho vazio de câmera de vigilância e comentários que enchem linguiça: o vazio de sentido e o “atirador” posicionado para acertar o alvo/imagem. Mas “a foto da prisão de Lula” não aconteceu.
Desobediência civil
“Se entrega Corisco! Eu não me entrego não! Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão, não me entrego a tenente, nem mesmo a capitão, só me entrego na morte, de parabelo na mão”. Essa canção/cordel que marca a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, mostra o quanto a desobediência civil está arraigada no imaginário popular brasileiro, para quem o inimigo não é nem as esquerdas, nem os conservadores, mas o próprio Estado.
A desobediência civil, o ato que Lula protagonizou na sua Canudos provisória, é a percepção de que o Estado, a lei e a ordem produzem injustiça. Daí a necessidade de resistir, atrasar, acenar com uma trincheira humana em São Bernardo do Campo, que passou de resistência e radicalismos iniciais para a forma de uma missa, liturgia em homenagem à memória de sua mulher, dona Marisa Letícia, no mesmo espaço. Momento histórico no ABC que viu nascer Lula e que reuniu lideranças políticas, movimentos, lideranças religiosas e sociedade civil num ato real e simbólico de resistência.
O antipetismo tem uma só fala: Lula deve desaparecer
Não precisa ser petista para entender que hoje o antipetismo histérico encobre os discursos de ódio contra grupos inteiros, encobre o ódio de classe, encobre os discursos racistas e machistas contra as minorias. O antipetismo construído e alimentado durante as últimas décadas está produzindo monstruosidades muito maiores do que quaisquer erros cometidos nas gestões dos presidentes Lula e Dilma. A frágil democracia brasileira rifada e amesquinhada para destruir um partido e suas lideranças.
O que acontece quando um inimigo da grandeza de Lula é neutralizado e se decreta sua morte? Já estamos no pós-lulismo – o demônio, o inimigo exorcizado. Veremos, agora, o vazio de projetos e propostas, e a dificuldade de se mobilizar afetos e crenças no reencantamento da política.
Lula se pensa já como mito, como póstumo, como história e como futuro com uma consciência aguda dos processos e da vida como construção. Queriam um mártir? Um preso político? Já têm. Desde o ato em defesa de Lula no Circo Voador, no Rio de Janeiro, ele já anunciava e encarnava esse lugar de Lula-Multidão. Lula é muitos, enfatizou na sua fala poética e política:
“Se me prenderem e eles não me deixarem andar, eu andarei pelas pernas de vocês. Se eles não me deixarem falar, eu falarei pela boca de vocês. Se meu coração parar de bater, baterá pelo coração de vocês. Não é de mim que eles têm que ter medo, eles têm que ter medo de vocês.”
Não se muda a história com lágrimas, nem com teorias, mas com lutas e corpos. A prisão de Lula também foi comemorada por muitos em todo o Brasil. Num primeiro momento, o que vimos foi a liberação dos piores instintos de ressentimento e ódio: salgar a terra, esquartejar, tripudiar dos vencidos.
Oscar Maroni comemora a prisão de Lula distribuindo cerveja grátis para três mil pessoas (Reprodução)
Senha para liberar a barbárie
A fotografia do altar erguido ao juiz Sérgio Moro e a ministra Carmem Lúcia em uma casa de prostituição, com o dono de uma boate de luxo mostrando a genitália desnuda de uma das suas contratadas enquanto lhe tapa a boca, chama atenção por sua constelação de signos.
Vestido de preso/torturador/irmão metralha, Oscar Maroni, o dono da boate Bahamas Club, comemora a prisão de Lula distribuindo cerveja grátis para três mil pessoas, cumprindo uma promessa alardeada pelas redes como as do MBL. O que diz a imagem, que evoca tanto a iconografia da prisão de Abu Ghraib quanto uma cena de Salò ou os 120 dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini – ou ainda cenas de tortura da deep web -, é exatamente essa libido diante da sujeição do outro: voltamos ao comando!
Podemos infringir nosso poder aos corpos: das mulheres, das minorias, podemos comandar o espetáculo politicamente incorreto, porque vencemos. Como nos estupros pós-guerra, como nas cenas de torturas da ditadura militar. Poder, sexualidade e assujeitamento. Uma multidão de homens brancos que cultua Bolsonaros, armas e assujeitementos de todo tipo. Eu gozo com o teu sofrimento, eis a trip regressivo-vingativa travestida de “justiça”, moralidade e combate à corrupção em que estamos.
Como sublinha Friedrich Nietzsche, toda reivindicação por justiça traz junto de si um desejo primário de vingança, mas essas duas coisas não se confundem, ou não deveriam se confundir. É o que distingue a civilização da barbárie. Poder separar nossos piores instintos de uma justiça construtiva e pedagógica. Ao amalgamar justiça e vingança, o que vimos no Brasil, no impeachment e golpe jurídico midiático contra Dilma Rousseff, na Operação Lava Jato e no fetiche por prender Lula, foi essa assimetria que transformou um impulso e processos decisivos por justiça e contra a corrupção em uma senha que libera o devir fascista, o ressentimento social e a vingança que só deseja a morte do outro, do inimigo social, outro gênero, outra cor da pele, outras crenças.
Teríamos que nos empenhar em produzir dispositivos que separem justiça de vingança. Um processo profundo de reencantamento na potência das lutas e disputas dos imaginários.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)