pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : janeiro 2019
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terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O risco à civilização e o surgimento do Homo stupidus stupidus

                                        
Além da lei
                                                                                                                                                                 

O risco à civilização e o surgimento do Homo stupidus stupidus                                                                             
O Homo stupidus é o modelo de consumidor ideal, acrítico e domesticado (Arte: Andreia Freire/Revista CULT)

Guerras, catástrofes e crises são cada vez mais necessárias ao capitalismo. A capacidade de produzir, acumular e circular valores a partir da desgraça e do infortúnio explica, em muito, o sucesso de um modelo que muitos acreditavam estar fadado a desaparecer a partir de suas contradições. O ato de destruir, para em seguida reconstruir, torna-se natural e, ao mesmo tempo, pode ser tido como fundamental à manutenção de uma estrutura em que até a dor e o sofrimento acabam transformados em mercadorias.
Não por acaso, hoje, vários retrocessos são percebidos em todo o mundo (não se pode, porém, descartar que o Brasil ocupe uma posição de destaque na dinâmica mundial como um laboratório em que se testa a mistura entre conservadorismo, ultra-autoritarismo e neoliberalismo). Voltar para evitar o fim, repetir e reconstruir para lucrar a qualquer custo, isso em um espiral infinito.
Para compensar o caos social, produzidos em razão da adoção de medidas neoliberais, os detentores do poder econômico estimulam promessas e discursos que satisfazem um imaginário que projeta o retorno a um passado idealizado de segurança (um passado que, na realidade, nunca existiu e que constitui o que Zygmunt Bauman chamou de retrotopia). Um passado que pode ser identificado com a ditadura empresarial-militar brasileira instaurada em 1964, transformada em mais uma mercadoria que promete segurança contra os inimigos, ainda que imaginários (como o comunismo em 1964 e, novamente, em 2018).
Retrocessos, como o retorno de práticas inquisitoriais e a substituição da política pela religião, ou mesmo o abandono tanto do projeto da modernidade (sintetizado nos valores “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”) quanto dos limites democráticos (e o principal desses limites era a necessidade de respeitar os direitos e garantias fundamentais), tornam-se oportunidades de negócios cada vez mais lucrativos.
No grande supermercado da pós-democracia, nessa imagem do Deus-Mercado que revela a agonia de uma civilização, são encontrados (e vendidos) antídotos para o fundamentalismo religioso ao lado de produtos para fanáticos religiosos, armas ao lado de bíblias, feminismos domesticados, marxismos conformistas, obras de religiosos “cristãos” que defendem a tortura e a violência ou de “intelectuais” que ainda contestam o heliocentrismo e a teoria da relatividade.
Para Marx, as forças produtivas (meios de produção, força de trabalho, modo de trabalho etc.), que se desenvolveriam continuamente, tenderiam a entrar em contradição com as relações de produção dominante (propriedade e dominação), o que acabaria por provocar mudanças nas relações de produção e, em dado momento, o fim do capitalismo. Não contava o velho Marx com o fato de que a mudança acabaria por se dar no campo das forças produtivas, em especial na dimensão humana da equação. O trabalhador tornou-se cada vez mais dispensável, mas a principal mudança, fruto de uma racionalidade que transforma tudo em mercadorias e busca o lucro ilimitado, foi a transformação do sujeito potencialmente transformador em um completo idiota.
Trata-se de um movimento que ameaça os pilares da civilização e que tende a levar ao progressivo desaparecimento do Homo sapiens sapiens e ao colapso civilizatório, com o concomitante surgimento de uma nova espécie a que Vittorino Andreoli, por simetria, sugere chamar de Homo stupidus stupidus.
A hipótese que gostaria de levantar aqui é simples: para a manutenção do capitalismo é necessário que as pessoas pensem cada vez menos. O empobrecimento da linguagem, a dessimbolização e a correlata transformação de tudo e todos em objetos negociáveis são fenômenos que funcionam como verdadeira condição de possibilidade para naturalizar diversas opressões (classe, gênero, raça, plasticidade, etc.), conviver com as guerras e outras formas de destruição planejadas no interesse de grandes corporações, aceitar mortes evitáveis, remédios caríssimos e prisões desnecessárias (daqueles que não interessam ao projeto neoliberal), enquanto lucros obscenos passam a justificar a pobreza extrema.
Não faltam “causas” para a emergência do Homo stupidus, desde a produção da indústria cultural até os algoritmos, passando por próteses de pensamento (basta pensar na importância da televisão na formação cultural brasileira) e instituições como as igrejas (que aderiram tanto à teologia da prosperidade quanto a uma visão teológica empobrecida da luta entre o bem e o mal), criou-se uma espécie de racionalidade que condiciona e pressiona à conformidade, naturaliza o empobrecimento da linguagem e leva à crença de que a simplificação do pensamento é uma dádiva e não a maldição que está levando à agonia da civilização.
Aqui, peço licença ao leitor para um breve esclarecimento: conheço a advertência feita por Robert Musil de que quem se aventura a escrever sobre temas como a “estupidez” e a “idiotice” corre o risco de ser interpretado como presunçoso ou até mesmo passar como portador de um distúrbio cognitivo similar ao daqueles sobre os quais escreve. De fato, existem exemplos de perfeitos idiotas que escreveram sobre a figura do“idiota” (livros, importante dizer, que tiveram ampla aceitação entre idiotas).
Porém, a estupidez e a idiotice, em especial diante da emergência do Homo stupidus stupidus, são fenômenos que devem ser levados a sério e precisam ser objeto de reflexão e estudo aprofundado.
Não são poucos os exemplos históricos de idiotas que foram ignorados até produzirem muitos danos à civilização. Muitas pessoas que inspiravam risos, em pouco tempo, nos fizeram chorar. Alguns chegaram a ser eleitos para cargos importantes, outros passaram em concursos público nos quais a reflexão e o pensamento crítico não se faziam necessários: todos exerceram poder… de forma idiota e com consequências trágicas. Há, portanto, de se considerar a idiotice como um importante fator político, isso porque, diante do processo de idiotização da população, ela assegura uma significativa base demográfica e eleitoral.
Feita a pausa, vale recorrer à etimologia. Idiota é uma palavra que tem origem no grego antigo para designar um “cidadão privado”, ou seja, alguém que se apartasse da vida pública, um indivíduo incapaz de entender a importância da comunidade e de agir de acordo com o “comum”. A palavra “estúpido”, por sua vez, tem origem no latim stupidus que significa a pessoa sem ação, inerte, incapacitado. A racionalidade neoliberal deseja indivíduos apartados da vida pública e inertes para que não prejudiquem os negócios e a acumulação tendencialmente ilimitada de capital. O Homo stupidus não só é mais facilmente explorado como também é o modelo de consumidor ideal, acrítico e domesticado.
No mundo do Homo stupidus stupidus, o egoísmo é percebido como virtude enquanto o “comum” acabou demonizado. Há uma regressão que pode ser percebida nas interações sociais, na dificuldade de argumentação, na capacidade de apreender e seguir normas éticas e jurídicas. Mas, não é só. Tem-se o declínio da verdade e o desaparecimento da objetividade, ou melhor, a perda de importância dos fatos, da ciência e da reflexão em um mundo em que, ao lado das fake news,  ganham prestígio a ciência falsa (por exemplo, os negacionistas das mudanças climáticas e da eficácia das vacinas), a história falsa (no Brasil, temos os negacionistas da ditadura instaurada a partir de 1964) e até perfis falsos nas redes sociais que ganham “likes” igualmente falsos que se somam aos “likes” dos idiotas.
Se o Homo sapiens sapiens, que surgiu há mais de trezentos mil anos na África, se caracteriza pela linguagem, pelo raciocínio abstrato, pela introspecção e pela resolução de problemas complexos, o Homo stupidus stupidus pode ser identificado por seu pensamento extremamente simplificado, estereotipado (com a repetição de chavões e slogans), pelo uso de uma linguagem empobrecida e pela incapacidade de reflexão e raciocínios complexos. Enquanto o Homo sapiens busca a verdade, inclusive sobre si mesmo, uma vez que tem por características a autoconsciência, o desejo de saber e a racionalidade, o Homo stupidus contenta-se com aquilo que confirma as certezas a que previamente aderiu. O que hoje se chama “pós-verdade” é a verdade do Homo stupidus.
Porém, vale lembrar com Carlo M. Cipolla, que uma pessoa estúpida é capaz de causar danos a outras pessoas ou grupos de pessoas sem auferir qualquer vantagem para si mesmo (podendo, inclusive, suportar perdas em razão de sua ação). O Homo stupidus acredita estar livre de coações externas e de restrições impostas por terceiros. Ele foi levado a acreditar e a agir como um empresário-de-si, cujo sucesso econômico (o único que ele reconhece) depende apenas de seus próprios méritos (incapaz de perceber o sujeito que se encontra ao lado como um eventual aliado na construção ou manutenção de algo em comum, trata as demais pessoas como concorrentes ou inimigos). Não percebe que, em razão da racionalidade neoliberal, acaba mais explorado (e, agora, se trata de uma auto-exploração que se sustenta na ignorância e leva à depressão e a outras doenças psíquicas) do que era o antigo proletário, que pelo menos tinha a possibilidade de adquirir consciência de classe e de sua exploração. Essa capacidade de refletir sobre a sua condição, que faz do homem sapiens, é indispensável à construção de um mundo melhor em que os valores da liberdade, da igualdade e, principalmente, da fraternidade voltem a importar no projeto normativo da sociedade.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Michel Zaidan Filho: Religião e Sociedade.


 
 
 
Existe uma disciplina da área da Lingüística chamada "arqueologia literária", cujo objetivo é fazer um estudo comparado do texto das escrituras sagradas, no hebraico, aramaico e latim. A ideia é, através da comparação, estabelecer a autoria, a autenticidade e o sentido das narrativas bíblicas. Faz parte do que se convencionou chamar de ciências hermenêuticas. Há várias formas de interpretação desses textos. Temos uma hermenêutica liberal, uma ortodoxa e uma terceira que faz uma revalorização do profetismo como fonte de uma reflexão teológica. Isto porque se encontra justamente nos profetas do velho testamento os germes, as sementes do protesto social, da indignação humana contra todas as formas de injustiça social. É da voz (e da pregação) de Isaías, Amós, João Batista e outros) que os neo-ortodoxos extraem hoje o material de sua exegese dos textos bíblicos. A interpretação ortodoxa das escrituras é a mais conservadora, mais fundamentalista e alheia aos problemas da vida profana. É esse ramo da exegese bíblica que mantém mais afinidades com o Judaísmo, entendendo-o como o irmão mais velho do Cristianismo.
A interpretação ortodoxa ignora ou subestima toda a complexidade hermenêutica do estudo e da compreensão desses textos e tende a uma leitura literal, sem atentar para o ato de que o livro sagrado do Judaísmo e do Cristianismo é um compósito de várias narrativas,de autores diferentes, épocas diferentes e que contém histórias extraordinárias, que se não forem lidas como parábolas ou alegorias edificantes, podem se tornar fonte de credulidade ou ignorância.
A reinterpretação dos textos vestutestamentários foi feita de inúmeras formas e com objetivos bem diferentes. A mais problemática, com certeza, é aquela feita por ramos ou denominações da Igreja Reformada, como por exemplo: o movimento pentecostal e neo pentecostal (que, aliás, não se reivindicam do legado de Cristo ou do Cristianismo), em sua origem anglo-saxã. Não é segredo para ninguém que o primeiro a fazer isso foi Martinho Lutero, ao negar a importância da intermediação da Igreja romana na interpretação dos evangelhos e ressaltar o livre exame das escrituras por cada fiel ou crente. No entanto, quem iria extrair todas as consequências dessa nova exegese seriam os evangélicos norte-americanos e a sua ênfase no papel do indivíduo e suas ações na salvação da alma. Enquanto os cristãos romanos e ortodoxos se ativeram à ética das convicções, os evangélicos passaram direto para a ética das consequências, afirmando que o crente se salva pelas obras e pelo resultado prático de suas ações, independentemente do contexto social. E a manifestação da graça divina estaria nos sinais de prosperidade material do crente. Quanto mais rico,mais próspero e abonado, mais abençoado por Deus. Surgia aí uma nova moral, a moral puritana do trabalho. E uma nova teologia, a teologia da prosperidade. Naturalmente que o pano de fundo de uma tal teologia era a sociedade norte-americana (antes do fim do sonho americano), o chamado "American Way Life".
A transposição dessa teologia da prosperidade para o Brasil enfrentou, inicialmente, certas dificuldades em razão da forte e prolongada hegemonia da Igreja católica romana e a sua doutrina do "usto preço" bem como o seu despreza pelo acúmulo de bens materiais. Mas a crise do catolicismo e a proliferação dos cultos evangélicos, sobretudo nas comunidades pobres e desassistidas da periferia, esse discurso caiu como um a luva no desespero e na orfandade religiosa das classes mais pobres. Marx se referia à religião, em sua época, como o "ópio do povo", e Freud, como uma espécie de neurose ou infantilismo nas pessoas piedosas. Hoje, é preciso atualizar o sentido dessa crítica. O discurso do enriquecimento fácil e o acesso ilimitado aos bens de consumo duráveis sugeridos pela "teologia da prosperidade" ofertado pelas igrejas pentecostais e neo-pentecostais tornou-se uma forma de alienação política e econômica muito grave, transformando-se num imenso obstáculo para a pregação socialista e republicana do Brasil.
 
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.