Marcos A. R. Peixoto
(Arte Revista CULT)
“O meu mestre feiticeiroUm dia quis se ausentar.
Seus espíritos tomei
E fiquei em seu lugar.
Vi suas magias
Vou fazer igual.
Farei maravilhas
Com força mental!”O Aprendiz de Feiticeiro, Goethe
“Abracadabra, sinsalabim, a violência desaparecerá porque eu quero assim! Plim!”
Se de fato não foram, poderiam ter sido estas as primeiras palavras do ministro Moro (doravante, MM) à frente do superministério do governo de extrema-direita recém eleito e que optou por integrar.
Influenciado (e ora, vejam: quase disse “deformado”) por anos de magistratura e catapultado ao Executivo (para breve passagem, segundo dizem) por força de um trampolim de ouro chamado “Lava-Jato”, acostumou-se MM ao longo daquele tempo a, cada vez mais, acreditar que suas palavras eram capazes de formar (deformar?) a verdade. Se cabe aos juízes dizerem a verdade (afinal, proferem veredictos – do latim veredictum: “verdadeiramente dito”), a verdade (ora bolas…) pode passar a ser o que dizem os juízes e ponto final. Por que não?
Assim “influenciado”, aportou MM no Executivo piamente acreditando que suas palavras (agora não mais contidas em decisões ou sentenças, mas em decretos e anteprojetos de leis e de emendas à Constituição) serão suficientes para formar a verdade e, como num passe de mágica, a verdade se subjugará às suas palavras, tal como ocorria enquanto membro do Judiciário. Voluntarismo elevado à enésima potência – o poder (além de outras coisas) inebria e vicia.
Momentaneamente transformado em ministro no Executivo (já que, segundo dizem, sua verdadeira intenção seria assumir como ministro, sim, mas no Supremo), MM trouxe consigo, sob sua falsa premissa de que “o que dirá, será”, algumas fórmulas mágicas que começou a proferir aqui e ali com o intuito de enfeitiçar incautos, como se fossem fake news agora empoderadas.
A primeira das fórmulas mágicas veio através do decreto de flexibilização da posse de armas de fogo. Plim!
Contrariando centenas de pesquisas abalizadas em torno do mundo (não, o mundo não é plano) que demonstram, com a necessária seriedade, que armas em mãos de civis somente aumentam a letalidade da violência – violência que está aí e que, com o decreto, somente será municiada –, MM apostou nas palavras populistas de seu presidente (vitimado pela violência) de um lado, e de outro na prática do Grande Irmão do Norte (que MM idolatra) para trazer ao Brasil uma fórmula que, sendo promessa (dívida?) de campanha, só provocou até hoje, naquele país, grandes morticínios de inocentes, isto ao mesmo passo em que inexiste um único dado concreto no sentido de que, de algum modo, colabore a flexibilização da posse de armas de fogo para a paz social, senão para uma falsa sensação de segurança comumente quebrada ao som de tiros e à vista de tragédias.
Em seguida, MM trouxe à lume um (depois cindido em três) anteprojeto de lei anticrime em relação ao qual alguns incautos ainda nutriam um fio de esperança no sentido de que, em consonância aos princípios constitucionais vigentes, poderia ser produtivo em favor da por todos almejada segurança pública. Mas assim não foi.
Ao contrário e como era de todo previsível da parte de quem não nutre maiores afetos pelo texto da Constituição (como tantas e tantas vezes já demonstrou), o que MM pariu a partir de suas “influências” foi mais uma profusão de fórmulas mágicas ora inconstitucionais, ora fortemente violadoras de secular evolução da dogmática penal, ora inócuas, ora grave e preocupantemente potencializadoras da violência que pretende combater.
Segurança pública não é (ou ao menos não deveria ser) campo de atuação ou experimentação para neófitos ou, pior, ignorantes – este um primeiro e basilar ponto que, de todo esquecido ao longo de anos, tem nos lançado cada vez mais fundo numa espiral de violência da qual (literalmente) a cada dia que passa se torna mais difícil sair. Segurança pública não é tampouco (ou não deveria ser) campo para a atuação de demagogos que somente enxergam a curto prazo, ou têm em mira exclusivamente a próxima eleição ou, no máximo, o próximo cargo para nomeação.
Apesar disto, em nosso país a segurança pública se tornou, dentro da “melhor” tradição brasileira, tema para papo de botequim, em que cada um tem sua própria opinião, seu achismo, sua fórmula mágica. E se todos as têm, por que não as teria MM, não é mesmo?
Eis que sem maiores consultas a especialistas (pasmem: juízes, pelo simples fato de serem juízes, não são especialistas em segurança pública, matéria sequer cobrada em concursos públicos de ingresso na carreira) ou mínimos debates democráticos e plurais, num passe de mágica MM apresenta seu(s) anteprojeto(s) de lei(s) anticrime: plim! Um anticlímax, já que praticamente nenhum dispositivo proposto tem (por falar em mágica) o condão de gerar quiçá 1% de diminuição nos índices de violência – pelo contrário!
Inúmeros artigos de doutores em segurança pública, direito e processo penal, criminologia, sociologia, história, já foram e ainda serão escritos em torno das diversas propostas apresentadas. Contudo, bastante em resumo, o que se pretende é mais do mesmo que há décadas só vem assolando o país e o afundando em um grau cada vez maior de violência, apostando tanto o Executivo quanto o Legislativo federal todas as suas fichas no direito penal como panaceia, se esquecendo do ditado de Paracelso, médico e físico do século 16: “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”. Para prosseguir na analogia médica, por vezes insistem em aplicar ao paciente meros analgésicos enquanto se necessita de antibióticos; por vezes se tem aumentado a dose do mesmo remédio que já se provou ineficaz e tem agravado a doença. Como disse Einstein, “não há maior sinal de loucura do que fazer uma coisa repetidamente e esperar a cada vez um resultado diferente”.
A ampliação do instrumental punitivista, seja na esfera penal ou processual penal, é parte do problema e não da solução. E o pior cego não é aquele que não quer enxergar, é o que finge não enxergar: anos e anos dessa política nada mais fizeram que ampliar a violência ao mesmo passo em que ampliou exponencialmente o encarceramento, não sendo tão difícil perceber a interrelação dos dois fatores por qualquer um que minimamente conheça os efeitos deletérios do cárcere, principalmente em sua estreita vinculação com organizações criminosas na medida em que provocam, de um lado, o aprofundamento na criminalidade para aqueles que ingressam no sistema penitenciário quiçá pela primeira vez através das dívidas que lá são geradas e que serão cobradas quando em liberdade, de outro a busca incessante daquelas organizações, em razão das inúmeras prisões de seus agentes, por novos corpos a serem submetidos às graves, danosas e brutais exigências da vida criminosa, tudo num círculo vicioso que se retroalimenta inclusive (talvez sobretudo) por meio do agravamento de penas e da flexibilização/facilitação da punição, sempre erigidas em detrimento de garantias fundamentais ora convenientemente esquecidas, ora flexibilizadas em reinterpretações que as deformam e por vezes as recriam em normas frontalmente opostas à original – lembremos, afinal, que para alguns a verdade é aquilo que o juiz diz.
Variados são os temerários exemplos contidos no anteprojeto originário da varinha de MM, contudo tomemos como mero exemplo a barganha proposta, segundo a qual através de acordo (como se, com a Espada de Dâmocles sobre sua cabeça, ali houvesse para o investigado livre vontade, pressuposto à validade de qualquer avença) o Ministério Público e o indiciado poderão convencionar uma pena a ser, logo em seguida e sem mais, homologada, imposta e cumprida, tudo num verdadeiro vapt-vupt penal, alegria dos eficientistas, quiçá (como querem alguns) já em audiência de custódia, verdadeira perversão de um instituto erigido por convenções internacionais como garantia do preso e não como facilitação à punição.
Como se não bastasse a barganha ferir de morte os princípios constitucionais da inafastabilidade do efetivo controle jurisdicional, da garantia ao duplo grau de jurisdição, do contraditório, da ampla defesa e, sob tal ótica pressuposta, do devido processo legal (por outras palavras: o devido processo legal sob parâmetros constitucionais pressupõe o contraditório e a ampla defesa, logo, inexistindo estes não existe aquele), mesmo o Grande Irmão do Norte idolatrado por MM não só atualmente revê a prática (geradora, lá, de um dantesco hiperencarceramento de cidadãos jovens, pobres e negros assolados, como aqui, por uma sociedade consumista, narcisista e racista – e em matéria de dantesco hiperencarceramento já temos nossos próprios meios, não precisamos importar outros), como a instituiu no passado com base em pressupostos absolutamente diversos e inexistentes seja em nosso ordenamento penal e processual penal (aqui não há os julgamentos complexos, longos e custosos por Grandes ou Pequenos Júris para todo e qualquer delito), seja na própria filosofia que o rege (bem distante da concepção contratualista comum ao direito norte-americano).
Portanto, tal importação num passe de mágica, a par de engendrar um Frankenstein jurídico ao pretender implantar à fórceps no corpo legal um membro que não lhe pertence e fatalmente será combatido pelos anticorpos constitucionais (mais uma vez paráfrases médicas para um sistema doente), somente potencializará o encarceramento, contribuindo mais uma vez para o fortalecimento do círculo vicioso já acima referido e, assim, para a ampliação e aprofundamento da violência que, por mais incrível e surpreendente que possa a alguns parecer, não será subjugada pelas “verdades” insustentáveis ditas por MM – em um mundo real, alheio a sentenças e decisões, a verdade fática não pode ser subjugada por meras palavras, ainda que venham a se tornar leis.
No filme Fantasia, magnífico, lançado em 1940 pela Disney, Mickey Mouse (e vejam só: outro MM!) – tudo ao som do poema sinfônico “O aprendiz de feiticeiro”, de Paul Dukas, baseado em poema homônimo de Goethe – na ausência de seu mestre, resolve fazer experiências com aquilo que não domina minimamente: usando mágica com um determinado propósito (fazer esfregões e baldes com água trabalharem por ele), rapidamente vê tal propósito fugir ao controle e colocar o estúdio de seu mestre em grave risco, até que este ressurge e o corrige, evitando o pior.
Infelizmente, na vida real não há mestres feiticeiros que no último instante evitam o mal maior. Infelizmente, na vida real, pessoas que não dominam totalmente seus misteres, ainda que com as melhores intenções, produzem grandes maus e em larga escala.
Assim são os anteprojetos de leis anticrime do ministro Moro.
Marcos A. R. Peixoto é juiz de Direito e membro da Associação Juízes para a Democracia
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)