pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : março 2019
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quarta-feira, 20 de março de 2019

A história da filosofia e as obras escritas por mulheres: uma nota metodológica

                                          
Nastassja Pugliese
                                                                                

A história da filosofia e as obras escritas por mulheres: uma nota metodológica                                                                             
Hipátia de Alexandria, Marie de Gournay, Mary Astell e Kristina Wasa: pensadoras pouco lembradas pela academia (Arte: Revista CULT)

Hipátia de Alexandria, Marie de Gournay, Christine de Pizan, Margaret Cavendish, Kristina Wasa, Anne Conway, Damaris Cudworth, Mary Astell, Émile du Châtelet, Mary Wollstonecraft. Mesmo com a ampliação dos debates na comunidade filosófica brasileira sobre a ausência de autoras mulheres nas obras canônicas da história da filosofia, ainda é muito provável que um aluno de graduação termine seu curso sem ter ouvido falar sobre nenhuma delas. É possível, ainda, que um aluno de pós-graduação não tenha participado ou ouvido falar bem de pesquisa alguma sobre elas. Também não é impossível que professores universitários que trabalham com história da filosofia não tenham lido obras produzidas por mulheres filósofas. E, sejamos realistas, há um grande desinteresse por parte destes últimos em investigar sobre obras não-canônicas escritas por “autores menores”. É comum que os professores pesquisadores descartem de antemão a relevância destas obras por não terem eles mesmos sido expostos a elas ao longo da carreira (afinal, se não estão no cânone, é porque suas obras não são tão importantes assim).
Por isso, na pesquisa sobre as obras filosóficas clássicas escritas por mulheres, se impõe a reflexão sobre as condições materiais, sociais e políticas do processo que se inicia no fazer filosófico e se concretiza na entrada das obras para a história. A exigência dessa reflexão parte também da observação da fragilidade do tema no presente contexto de ensino e pesquisa de filosofia no Brasil, evidenciada pelas parcas investigações sobre o tema, no pouco número de traduções das obras para o Português, na ausência de literatura secundária e das poucas conferências sobre suas contribuições. Entre outros motivos, penso que este estado de coisas se deve a uma falta de clareza metodológica em relação às razões para se motivar o estudo e, por conseguinte, incluir as obras das mulheres nas agendas de pesquisa.
Na maior parte das vezes, as razões para a ausência de protagonismo feminino na história da filosofia e nos debates filosóficos são rápida e facilmente encontradas fora da filosofia: a dificuldade de acesso das mulheres às esferas institucionais das atividades intelectuais, a falta de autonomia dentro do contexto privado e a ausência de cidadania plena no ambiente público. Questões relativas às possibilidades de publicação de suas obras também influenciavam o reconhecimento público de suas ideias: quando mulheres conseguiam publicar seus escritos, ou a autoria de suas ideias era disputada e atribuída a homens de seus círculos intelectuais, ou a obra era classificada apressadamente como escrito anônimo. Algumas delas, entretanto, participaram ativamente dos círculos intelectuais de suas épocas, tiveram suas obras intensamente debatidas por grandes figuras da época, mas não aparecem nas antologias e enciclopédias da história da filosofia.
Ainda que consideremos a arbitrariedade destas razões externas à filosofia na falta de reconhecimento da produção intelectual feminina no decorrer da história da filosofia, o apelo a estas condições históricas não se mostra suficiente para motivar o estudo de suas obras. Isto porque o cânone define e é definido por questões e obras habitualmente trabalhadas. Assim, há uma inércia na pesquisa filosófica que faz não ser interessante modificar o cânone, principalmente se essa mudança vier apenas de critérios exteriores à reflexão filosófica.
Pesquisadoras que movimentam, hoje, as discussões e a produção filosófica sobre mulheres e cânone na história da filosofia, criando grupos de pesquisa, realizando traduções, estudando suas biografias e obras, se dedicam também a discutir questões de metodologia da pesquisa em história da filosofia. Um marco importante no final do século XX foi a publicação do número especial da revista Hypatia em 1989, com o tema History of women in philosophy. Mas o trabalho de resgate foi realizado principalmente por Marjorie Nicholson, Mary Ellen Waithe, Eileen O’Neill. Este fato é importante porque a pesquisa metodológica contribui para sedimentar a discussão e para estabelecê-la desde dentro da filosofia, a partir do questionamento de seus próprios critérios.
Gostaria principalmente de chamar atenção para o trabalho metodológico de Lisa Shapiro. Em seu artigo de 2005, “Some thoughts on the place of women in early modern philosophy”, ela argumenta que a disputa narrativa que se encontra no processo de estabelecimento da história canônica da filosofia ocorre entorno de dois grandes eixos de discussão: o dos critérios externos e o dos critérios internos às obras filosóficas. Os critérios externos são aqueles que se baseiam em fatores que relacionam o texto com as suas condições de surgimento, ou seu contexto histórico. Shapiro critica a tomada dos critérios externos como único parâmetro de inclusão das obras escritas por mulheres no cânone.
Seu argumento é a favor de uma articulação da história a partir da compreensão da função do cânone como roteiro ou enredo de uma narrativa protagonizada por perguntas. Ao invés de se privilegiar certos autores ou obras, parte-se do princípio de que são as perguntas que determinam os autores a serem estudados. Dependendo das perguntas feitas, constrói-se um roteiro a partir dos autores que trabalharam determinadas questões. Ao privilegiar as perguntas, o direcionamento da pesquisa se dá de modo interno às obras filosóficas, pois as perguntas não são anteriores a elas, mas concomitantes. Não podemos cair no erro de achar que a pergunta torna o cânone irrelevante. O que o privilégio da pergunta implica é em um direcionamento da seleção de obras e de relação entre as teses apresentadas nas obras. Ela funciona como princípio norteador da pesquisa, a partir do qual as obras se tornam relevantes frente a um certo tema. A pergunta direciona o objeto de estudo – nas palavras de Shapiro, “muda sutilmente as questões filosóficas tomadas como centrais e permite que um maior número de figuras se tornem centrais”.
Esta nota metodológica é, portanto, um convite a pensarmos quais mudanças nas perguntas filosóficas que fazemos podem nos ajudar a questionar a homogeneidade do cânone, facilitando assim o ressurgimento de figuras forçadamente ignoradas e auxiliando em seu reconhecimento.


NASTASSJA PUGLIESE é professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica no Departamento de Filosofia da UFRJ, foi pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de São Paulo junto ao Grupo de Estudos Espinosanos e é membro do corpo editorial dos Cadernos Espinosanos.
 
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

                                                                                                    

sábado, 9 de março de 2019

Stanley Kubrick, o cineasta das obras-primas

                                        

    Luiz Zanin Oricchio 
                                                                                                                                                                 

Stanley Kubrick, o cineasta das obras-primas

Kubrick foi um cultor da forma, sempre pensada em função do tema a tratar (Foto: Deutsches Filminstitut & Filmmuseum/Divulgação)

Quando Stanley Kubrick morreu, em 1999, um jornalista escreveu que agora não mais poderia viver à espera do próximo filme do cineasta, e que com isso sua vida se empobrecera – e muito. De fato, Kubrick, nascido em 26 de julho de 1928, em Nova York, é um dos poucos cineastas (eu diria mais, um dos poucos artistas) contemporâneos capazes de causar esse tipo de impressão, de que seu desaparecimento implica uma limitação às nossas expectativas estéticas e mesmo em nossa compreensão do mundo. E que outra coisa dizer de um diretor que legou peças de antologia como 2001: Uma odisseia no espaço, Lolita, Laranja mecânica, Doutor Fantástico, O iluminado, entre outros filmes?
Podemos fazer jus a Kubrick analisando sua carreira filme a filme, ou tomando-a em seu conjunto. Vendo-se cada peça de maneira isolada se constata uma grande concentração de obras-primas em uma única filmografia. A análise geral manda dizer que o nível de qualidade raramente cai, porque, provavelmente, o cineasta tinha, como poucos, amplo domínio sobre as diferentes etapas do fazer cinematográfico. E não por acaso. Em um dos seus primeiros filmes, o curta-metragem Fear and desire (1953), história de quatro soldados perdidos entre as linhas inimigas, Kubrick foi produtor, diretor, roteirista, fotógrafo e montador. Foi um fracasso comercial, mas muito instrutivo do ponto de vista técnico.
Já seu magnífico noir O grande golpe (1956), história de um assalto em um hipódromo, tornou-se grande sucesso de público, e também de crítica. Bastante influenciado por Robert Aldrich e Max Ophuls, Kubrick trabalha visualmente com longos planos-sequência nesse caso de um assalto fracasso estrelado por Sterling Hayden (que curiosamente está em O segredo das jóias, de John Huston, sobre tema semelhante). Rever esse filme sempre serve para comprovar como Kubrick foi eclético. Dominando a forma, pôde se exercitar com igual competência em gêneros diferentes. E, por isso mesmo, suas obras-primas estão divididas em uma série de gêneros distintos – noir, ficção científica, filme de época, guerra, romance, thriller etc. Conclusão: quando se trata de um grande artista, no fundo não é o gênero que conta. O gênero apenas se presta para o exercício de um ponto de vista, uma visão de mundo e um estilo pessoal.
Será assim no antimilitarista Glória feita de sangue (1957) e também no filme-histórico em que retorna à Roma Antiga, Spartacus (1960). No primeiro, aborda um episódio vergonhoso da Primeira Guerra Mundial, que fez o filme ficar proibido na França durante muito tempo. Usa uma fotografia notável, que torna o conjunto das imagens parecido a uma obra de fato rodada na época em que os fatos acontecem. E que fatos! Uma missão inútil, que termina em massacre e ainda custa o fuzilamento dos que se recusam à carnificina. É uma denúncia do absurdo da guerra que tem de ser citada ao lado de clássicos como A grande ilusão, de Jean Renoir. A cena final, com a moça alemã cantando num cabaré de franceses, é de cortar o coração.
Spartacus, cujo roteiro se deve a dois “vermelhos” da época do macarthismo, Howard Fast e Dalton Trumbo, fala da revolta dos escravos contra os senhores de Roma, numa clara alusão política. Além disso, o filme tem um tratamento cru, nada convencional, e destoante da maneira como a Roma antiga era retratada então, em melodramas cristãos moralizantes.
Um marco na carreira de Kubrick será Lolita (1962), adaptado da obra polêmica de Vladimir Nabokov. Como se sabe, o cineasta teve de enfrentar resistências da indústria para adaptar essa obra que mexe em tema tabu – a pedofilia. No romance, Lolita é uma menina mesmo. No filme, aparece mais próxima da idade adulta, na figura da adolescente vivida por Sue Lyon. Mesmo assim, a Lolita de Kubrick não deixou de provocar reações. E, mais uma vez, essas se devem tanto ao tema como à maneira como Kubrick coloca a câmera e arma o plano. Por exemplo, a primeira vez que o personagem de Humbert ­Humbert (James Mason) vê a sua Lolita é de uma sensualidade inesquecível, qualquer que seja a idade da garota em questão.
Em Doutor Fantástico (1964), Kubrick voltará ao tema da guerra, já abordado em Glória feita de sangue e ao qual retornará mais adiante em Nascido para matar (1987). Mas, no contexto da Guerra Fria, usará de uma fina ironia para melhor discutir o absurdo da situação em que a política parece refém de militares alucinados. Com Peter Sellers fazendo diversos papéis (inclusive o dr. Strangelove, do título original), Kubrick irá examinar como o militarismo e a luta entre as então duas superpotências, estava à beira de mandar o mundo à breca, o que de fato quase aconteceu durante a chamada “crise dos mísseis” em Cuba, tendo como antagonistas o presidente John Kennedy e o premiê soviético Nikita Krushev.
2001: Uma odisseia no espaço (1968) não se preocupa tanto com a corrida espacial, outra face da guerra fria entre as superpotências, mas explora outros pontos inerentes ao desenvolvimento tecnológico acelerado: a relação entre homem e máquina (o caso do computador Hal), ainda incipiente, e a eterna busca humana pelas origens. O que faz dessa adaptação da obra de Arthur C. Clarke uma ficção científica em tom metafísico e um dos filmes de visual mais impactante da história do cinema.
Em seu filme seguinte, Laranja mecânica (1971), Kubrick trata de outra das distopias possíveis, associada ao futuro, desta vez não se referindo a máquinas que saem do controle, mas aos próprios seres humanos, incapazes de dominar seus instintos. Agora é a violência sem controle, tal como conhecemos hoje nas grandes cidades e, por paradoxo, as formas de combatê-la, por um tipo de “tratamento psicológico” radical, conhecido nos laboratórios como condicionamento aversivo. Mas é também a plasticidade e a força das imagens que impressionam aqui, com sua aceleração e desaceleração de cenas de tortura e de estupro. O filme foi proibido no Brasil durante a ditadura militar.
Barry Lindon (1975) talvez seja o Kubrick menos amado – e há razões para isso. Seu retrato de um escocês que usava a hipocrisia britânica como arma social foi chamado pela crítica Pauline Kael de “bloco de gelo”. Uma narrativa em off antecipatória e a longa descrição em imagens dos ambientes tornam monótona essa adaptação de W. M. Thacheray para a maior parte dos espectadores. Nesse sentido, parece ser um filme que se limita à descrição do grand monde europeu, sem entrar no campo analítico.
Com O iluminado (1980), adaptado da obra de Stephen King, Kubrick faz um clássico do suspense. Antológica é a interpretação de Jack Nicholson como o escritor perturbado pela solidão do Hotel Overlook, isolado no inverno pela neve, e que passa a ameaçar a própria família. Nesse filme, o steadycam, dispositivo que permite produzir o efeito de câmera na mão, mas sem oscilações, é usado de maneira intensiva. Permite algumas filmagens de arrepiar através dos imensos corredores do hotel, quando algumas figuras do passado parecem sempre prestes a surgir de cada canto oculto.
Em Nascido para matar (1987), Kubrick, depois de Coppola, Cimino e Oliver Stone, volta-se para o Vietnã, essa ferida narcísica norte-americana. Essa adaptação do romance enxuto de Gustav Hasford, The short-timers, contém cenas que talvez tenham servido de inspiração para José Padilha em Tropa de elite, com o treinamento sadomasoquista dos militares. É, ainda uma vez, o retorno de Kubrick ao absurdo da guerra, mas enfraquecido em sua segunda parte, que se utiliza de imagens clássicas e pouco surpreendentes, fato inusitado em cineasta do nível de Kubrick. A originalidade está em mostrar o exército não como fábrica de máquinas de matar, mas “máquinas de deixar-se matar”, colocando a ênfase no lado sacrificial da atividade militar.
Stanley Kubrick no set de Barry Lindon (1975) (Foto: Divulgação)
De olhos bem fechados (1999) é o título da adaptação de Pequeno romance de sonho, de Arthur Schnitzler. É a despedida de Kubrick, que morreu depois de ter feito a primeira versão da montagem. Interpretado pelo então casal na vida real Tom Cruise e Nicole Kidman, mostra como a simples confissão de um devaneio, uma insinuação fantasiosa de adultério, pode levar o marido a uma espécie de descentramento mental. Kubrick capta bem o espírito do romance deste contemporâneo de Freud e lhe dá a estrutura de um sonho – aspecto que não foi bem compreendido por parte da crítica, muito comprometida com a estética naturalista dominante. O ponto de vista é o da fantasia do personagem de Cruise e esta não necessariamente tem a ver com a realidade objetiva. Talvez seja, dos filmes de Kubrick, o menos compreendido, o que é uma pena.
Sua obra, relativamente sintética, marcou profundamente a cultura cinematográfica moderna, dos anos 1950 em diante. Sem trabalhar, como outros autores, na ruptura mais radical da linguagem cinematográfica, Kubrick foi um cultor da forma, sempre longamente pensada em função do tema a tratar. Talvez por esse motivo, haja sempre nele um impulso em limitar a extensão da emoção, como se temesse o melodrama dominante em Hollywood. Por isso, não raro, seus filmes apresentam recorte um tanto cerebral, o que não chega a ser um defeito. Pelo menos para quem não considera o cérebro um órgão inferior ao coração.

Luiz Zanin Oricchio é jornalista, crítico de cinema de O Estado de S.Paulo
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

As origens operárias e socialistas do Dia Internacional da Mulher

                                        

    Cintia Frencia e Daniel Gaido 
                                                                                                                                                                 

As origens operárias e socialistas do Dia Internacional da Mulher

FacebookTwitterEmailPinterestAddThisRecorte do cartaz "Viva o Dia Internacional das Trabalhadoras", de 1926 (Arte Revista Cult)

Em 1894, Clara Zetkin escreveu na revista das mulheres socialdemocratas um artigo polêmico contra as feministas alemãs, intitulado “Separação contundente” (“Reinliche Scheidung”), no qual argumentou que “o feminismo burguês e o movimento de mulheres proletárias são movimentos sociais fundamentalmente diferentes”. Segundo Zetkin, as feministas burguesas aspiravam conseguir reformas a favor do sexo feminino no marco da sociedade capitalista, através de uma luta entre os sexos e em contraste com os homens de sua própria classe, enquanto as trabalhadoras se esforçavam através de uma luta de classe contra classe, manifesto de uma luta conjunta com os homens de sua classe, para eliminar a sociedade capitalista. Tendo como base tais princípios, Zetkin criou o movimento das trabalhadoras na Alemanha, que chegou a reunir 174.754 membros em 1914, ano em que a circulação de seu jornal A igualdade (Die Gleichheit) alcançou o número de 124.000 exemplares.
Esta fortaleza ideológica e organizativa transformou o movimento de trabalhadores socialdemocratas alemães na coluna vertebral da Primeira Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, em 1907, em Stuttgart, cidade de residência de Zetkin, e de onde se editava A igualdade. Em sua resolução final, tal conferência proclamou como sua principal demanda “o direito ao sufrágio universal da mulher para as mulheres adultas, sem limitação alguma no que se refere à propriedade, ao pagamento de impostos, ao grau de educação ou a qualquer outra condição que exclua aos membros da classe operária do exercício deste direito”, aclarando que “o movimento de mulheres socialistas tem como bandeira sua luta, não em aliança com as feministas burguesas, mas em associação com os partidos socialistas”.
Proclamação
O Dia Internacional da Mulher foi proclamado pela Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, celebrada em Copenhague, em 1910. O convite à mesma já deixava claro seu caráter de classe: “Convidamos urgentemente a todos os partidos socialistas e organizações de mulheres socialistas, assim como a todas as organizações de trabalhadoras baseadas no principio da luta de classes a enviar suas delegadas, ou inclusive seus delegados, a esta conferência”.
O informe sobre as delegadas estadunidenses mencionava que o dia 28 de fevereiro de 1909 “deu lugar, pela primeira vez, para o Dia da Mulher”, um evento que despertou a atenção de nossos inimigos”. A delegada alemã Luise Zietz, seguindo o exemplo das socialistas norte-americanas, propôs então a criação de um “Dia Internacional da Mulher”, data que fosse celebrada anualmente. Sua proposta foi apoiada por sua companheira Clara Zetkin e por mais cem delegadas procedentes de dezessete países. A resolução adotada sobre esta questão postulou: “De acordo com as organizações políticas e sindicais, que lutam pela consciência de classe do proletário de seus respectivos países, as mulheres socialistas de todas as nacionalidades devem organizar um Dia da Mulher (Frauentag) especial, no qual, acima de tudo, a propaganda do sufrágio feminino é um compromisso a ser promovido. Esta demanda obrigatoriamente deve ser vinculada a qualquer outra demanda da mulher, segundo a concepção socialista”.
Assim, a “introdução do sufrágio feminino” foi colocada na resolução de Copenhagen pelas mulheres socialistas no contexto da legislação protetora das trabalhadoras, da assistência social para mulheres e filhos, da igualdade de trato das mães solteiras, da provisão de creches e jardins de infância, da provisão de alimentação gratuita e educação de qualidade nas instituições escolares e da solidariedade internacional. Sob esse panorama, ficou claro que nas suas origens, o Dia Internacional da Mulher era o dia da mulher trabalhadora, que tinha como objetivo imediato o sufrágio universal feminino, mas só como meio para um outro fim: o triunfo do socialismo.
Celebração
No entanto, o primeiro Dia Internacional da Mulher não foi celebrado em 8 de março, mas sim em 19 de março de 1911. A data foi eleita para também lembrar a Revolução de 1848 em Berlim, já que o dia anterior, 18 de março, estava dedicado para a homenagem dos “caídos de março”.
Com a frase de protesto “Sufrágio feminino já”, mais de um milhão de mulheres saíram às ruas da Alemanha pedindo a igualdade social e política. “Nosso dia de março”, reivindicava o chamado publicado no jornal A igualdade: “Companheiras, mulheres e meninas trabalhadoras, 19 de março é o vosso dia. É o vosso direito. Detrás de vossas demandas, está a Socialdemocracia, todos os trabalhadores organizados sindicalmente. As mulheres socialistas de todos os países são solidárias com vossa luta. 19 de março deve ser vosso dia de glória”.
O panfleto para participar dos atos do Dia da Mulher, encabeçado com a demanda “Sufrágio feminino já”, foi impresso e distribuído em uma edição de dois milhões e meio de cópias. Ante a iminente guerra mundial, o Dia Internacional da Mulher foi posto pelas socialistas desde o princípio sob o signo da luta contra o militarismo imperialista e pela preservação da paz. Neste dia, só na Alemanha, além de um milhão de mulheres organizadas do SPD (Partido Socialdemocrata) e dos sindicatos, muitas foram as mulheres não organizadas que fizeram parte dos eventos e manifestações. E não menos importante que o caráter massivo e internacional das manifestações que tiveram lugar durante o Dia Internacional da Mulher, foi o fato de que este evento esteve acompanhado de Assembleias Populares sobre Políticas Públicas de trabalhadoras (se contabilizaram 42 assembleias somente em Berlim), nas quais a “livre discussão” era a principal condição que exigia as trabalhadoras.
A professora, jornalista e política marxista Clara Zetkin (Foto: Coleção George Grantham Bain/ Livraria do Congresso de Washington)

8 de Março
Além da Alemanha, o Dia da Mulher se celebrou, em 1911, ainda que em dias diferentes, nos Estados Unidos, Suíça, Dinamarca e Áustria. Até a Primeira Guerra Mundial se somaram França, Holanda, Suécia, Rússia e também Boêmia. Na Alemanha, o segundo Dia Internacional da Mulher foi comemorado no dia 12 de maio de 1912.
A prática de celebrar o Dia Internacional da Mulher em 8 de março só passou a fazer parte do calendário a partir de 1914, quando um famoso cartaz “Dia da Mulher / 8 de março de 1914 – Sufrágio Feminino Já” – no qual uma mulher vestida de preto agita uma bandeira vermelha – se configurou no primeiro cartaz que conecta as mulheres com esta data. Na Alemanha, a peça não pode ser colada ou fixada em lugar algum, nem distribuída publicamente, devido à proibição da polícia. Ainda assim, transformou-se em um emblema, uma ação de massa contra a guerra imperialista, instalada três meses mais tarde.
A instauração do dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher teve como função homenagear um dos eventos mais importantes na história, a Revolução Russa de Fevereiro de 1917 – o 23 de fevereiro no calendário juliano equivale ao 8 de março no calendário gregoriano. Em tal ocasião, as trabalhadoras russas tiveram um papel de vanguarda fundamental contra a oposição de todos os partidos, incluindo aos bolcheviques, quando transformaram à manifestação do Dia Internacional da Mulher numa greve geral que acabou por levantar todos os trabalhadores de Petrogrado e deu início à Revolução Russa.
Uma nova era
Com o anúncio do início da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914, foi anunciada também uma nova era no desenvolvimento do movimento internacional das mulheres socialistas. Toda a Segunda Internacional – e, portanto também, a Internacional de Mulheres Socialistas – se dividiu em seus componentes nacionais. Devido à política de paz social adotada pelo SPD e pela Comissão Geral de Sindicatos Alemães, afiliada a ele, as manifestações críticas já não eram tão bem-vindas. O Dia Internacional da Mulher acabou por ser proibido na Alemanha pelas autoridades oficiais, e os eventos, que só puderam acontecer de maneira ilegal, tiveram inúmeras represálias da parte do governo e da polícia. Meses depois, a princípios de novembro, Clara Zetkin redigiu um chamamento intitulado “Às mulheres socialistas de todos os países”, no qual se pronunciou decididamente contra a guerra e pelas ações ampliadas de paz, e ainda no marco desta oposição à barbárie imperialista, celebrou-se no ano seguinte, em abril de 1915, a terceira e última Conferência de Mulheres Socialistas, em Berna, na qual foi proclamado o princípio internacionalista “guerra a guerra”.
Abandono e resgate
Após o colapso do segundo Império Alemão e a conformação de conselhos (räte) de operários e soldados em todas as partes da Alemanha, em novembro de 1918, a burguesia fez um giro de 180 graus em sua política e resolveu abraçar os princípios da democracia, antes abandonados em favor de uma aliança com a monarquia. Em razão disso, outorgou o direito ao sufrágio para as mulheres, contrapondo a assembleia constituinte reunida em Weimar e o parlamento aos soviets de delegações operárias. Tal política de contrarrevolução democrática foi levada adiante pelo dirigente sociodemocrata Friedrich Ebert, primeiro presidente da República de Weimar, a quem o historiador Carl Schorske chamou de “o Stalin da revolução alemã”. Tal manobra fez que a demanda do sufrágio universal feminino, adotada pelo movimento operário revolucionário com um caráter transicional em direção ao socialismo, fosse transformada em uma barreira para a revolução pela burocracia partidária e sindical do próprio PSD.
Dado que o Dia Internacional da Mulher era uma tradição que tinha origem na ala esquerda do movimento das mulheres proletárias, a direção do Partido Socialdemocrático da Alemanha decidiu que deixaria de celebrar a data de 8 de março, com o argumento de que já se havia conquistado o objetivo da criação deste dia, com a introdução do voto feminino. Nesta briga de foices, o Partido Comunista, pelo contrário, adotou o Dia Internacional da Mulher sob a consigna de “Todo o poder aos conselhos! Todo o poder para o socialismo!”.
Apenas em junho de 1921, com a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Comunistas, presidida por Clara Zetkin, em Moscou, que o futuro do Dia Internacional da Mulher pode ser decidido: este se manteria em todo o mundo no dia 8 de março. As celebrações do Dia Internacional da Mulher foram instituídas com regularidade desde então em muitos países, uma tradição que continua até o dia de hoje.

Cintia Frencia é professora da Universidade de Córdoba
Daniel Gaido é professor de História Contemporânea na Universidade Nacional de Córdoba
TRADUÇÃO Ellen Maria Vasconcellos
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

terça-feira, 5 de março de 2019

Le Monde Diplomatique: Perguntas sem respostas: A guerra no Iraque e a possível guerra na Venezuela

Até hoje não se comprovou os motivos divulgados para justificar a guerra no Iraque. Isto é, não existia armas de destruição em massa, nem ligação com a Al-Qaeda.
A Guerra no Iraque, iniciada em 2003, foi precedida por uma intensa campanha midiática mundial. Os principais argumentos foram: 1) Saddam Hussein era um ditador que oprimia seu povo; 2) possuía armas de destruição em massa; 3) apoiava a Al-quaeda. Assim, o objetivo declarado do governo de Georg W. Bush para desencadear a guerra foi bastante convincente: “levar a democracia, a liberdade e a paz para o povo iraquiano, livrando-o do seu ditador”. Segundo a BBC[1], estima-se que 654.965 pessoas morreram no conflito em decorrência da generosidade e altruísmo do governo estadunidense. O massacre dos povos curdos e sunitas no Iraque movimentou a indústria armamentista dos EUA, principal financiadora da campanha eleitoral do então presidente, Bush. Foram $801,9 bilhões de dólares movimentados com a guerra. O Iraque foi destruído e continua até hoje em guerra civil. Um raro governo laico no mundo árabe e praticamente sem analfabetos foi destruído pelas armas em função de dois motivos principais: 1) disputa pelo controle do mercado mundial de petróleo; 2) movimentação da indústria armamentista. Ambos possuem lobby espetacular nos EUA e no mundo, subordinando seus governos aos seus interesses. Por fim, até hoje não se comprovou os motivos divulgados para justificar a guerra. Isto é, não existia armas de destruição em massa, nem ligação com a Al-Qaeda. Sem dúvida, Saddam era um ditador e ficou no poder entre 1979 e 2003, mas ditadores assim existem vários pelo mundo. Por que só essa ditadura incomodava? Vale a pena matar tanta gente e destruir um país inteiro para retirar um “ditador”?
A Guerra da Venezuela com a possível intervenção dos EUA e aliados tem alguns elementos muito parecidos com a do Iraque: 1) Donald Trump, tal como G. Bush, é um representante direto do lobby da indústria armamentista e das empresas de petróleo; 2) A Venezuela é um dos maiores produtores de petróleo do mundo, tal como o Iraque; 3) o governo de Chávez ao reestatizar a PDVSA (Petróleos de Venezuela) retirou o controle das empresas americanas dos hidrocarbonetos do país, diminuindo seus exorbitantes lucros. Os EUA também não tinham ingerência nas empresas petrolíferas do Iraque antes de ganhar o combate; 4) a crise da economia capitalista mundial e em particular dos EUA necessita de uma guerra para movimentar suas indústrias armamentistas, aumentando emprego e o lucro de seus donos. Não importa que essas vantagens sejam conquistadas em cima de milhões de cadáveres.
A Venezuela passa por uma profunda crise econômica fruto da brutal queda do preço do petróleo no mercado mundial que é dominado pelos governantes dos EUA e pela sangrenta ditadura da Arábia Saudita (aliada de primeira hora de Washington). Os governantes econômicos e políticos dos EUA desencadeiam um profundo boicote à economia venezuelana, decidindo não pagar pelo petróleo “comprado”. Além disso, internamente, todos os capitalistas na Venezuela fazem tudo o possível para boicotar a economia. A inflação está em patamares absurdos e existem pessoas sem emprego e em situação de miserabilidade. Neste contexto, o governo dos EUA, do Brasil e da Colômbia resolveram levar “ajuda humanitária” para os venezuelanos.
É necessário fazermos um simples exercício filosófico e estabelecermos algumas perguntas não respondidas, que devem começar assim: 1) existe algum outro país no mundo com milhares de miseráveis, necessitando de ajuda humanitária?; 2) com números enormes de desempregados?; 3) com repressão policial sobre seus opositores?
A população da Venezuela é de aproximadamente 31 milhões de pessoas e em torno de 48% da população vive atualmente em situação de pobreza, aproximadamente 16 milhões de pessoas.[2]
Só para ajudar a refrescar nossa memória. No Brasil, no último censo do IBGE em 2016, 52,7 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza.[3] Destes, 14,8 milhões viviam em plena miséria.[4] Em 2018, aproximadamente 27,7 milhões de brasileiros estavam desempregados,[5] sem contar os subempregados, com trabalho precário etc.
Como resultado desses dados com base no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) realizada pela ONU, em 2018, a Venezuela ficou exatamente na frente do Brasil em 78º lugar e ainda ficou 12 posições na frente da Colômbia.[6] Isto é, na média nacional vive-se melhor na Venezuela do que no Brasil e na Colômbia. A pergunta não respondida é simples: como países com maior número de pessoas mais pobres e miseráveis se propõem a enviar “ajuda humanitária” para um país onde a população vive nas mesmas condições ou mesmo melhor? Sobre a vida na Colômbia, os brasileiros sabem pouco. Mas convido-os a pensar se aqui no Brasil existem pessoas com necessidades e passíveis de receberem “ajuda humanitária” do governo federal? As perguntas sem respostas prosseguem:
1) os medicamentos e produtos de primeira necessidade levados pelo governo brasileiro para distribuição na Venezuela existem em abundância nos hospitais públicos do nosso país?
2) os alimentos distribuídos na fronteira seriam bem-vindos para 14,8 milhões de brasileiros que vivem em plena miséria hoje?
3) existe algum outro país no mundo que também precisaria de ajuda humanitária, ou a Venezuela é o único país nessa condição?
4) se existem outros países em situação de miséria, por que os EUA e seus aliados não se mobilizam para levar “ajuda humanitária” para os bilhões de habitantes da terra que vivem na miséria atualmente?
5) existem governos ditatoriais pelo resto do mundo que precisariam ser criticados pela grande mídia ou a Venezuela está nesse cenário sozinha?
6) Nicolás Maduro foi eleito pela maioria dos votantes na Venezuela; depois a maioria dos votantes votou na oposição para as eleições do Congresso. A pergunta não respondida é: por que a grande mídia diz que a eleição do Maduro foi fraudulenta, mas não questiona a vitória eleitoral da oposição para o parlamento? Por que o grupo do Maduro fraudaria uma eleição e não fraudaria outra?
7) as manifestações pró-Maduro levam milhares de simpatizantes às ruas da Venezuela.[7] Por que a grande mídia mundial não publiciza essas manifestações e só mostra as da oposição, que normalmente levam menos pessoas às ruas?
8) por que para a grande mídia mundial os manifestantes mascarados na Venezuela que enfrentam as forças policias são tidos como heróis, enquanto os manifestantes mascarados no Brasil, na Colômbia e nos EUA são tidos como vândalos e antidemocráticos?

No último mês ocorreu a tragédia de Brumadinho, a tempestade no Rio de Janeiro e a tragédia no Clube do Flamengo com mortes de adolescentes. Nada disso foi resolvido até hoje. Sem dúvida são crises/tragédias sociais, mas não assistimos o governo levar ajuda humanitária com alimentação, proposta de moradia etc. Há uma crise profunda nos hospitais públicos brasileiros superlotados e carecendo de leitos, medicamentos, macas e até seringas. Enquanto o Brasil não resolver seus próprios problemas, oferecer uma “ajuda humanitária” não tem qualquer fundamento no real. Se os governantes brasileiros, estadunidenses e colombianos quisessem realmente ajudar os miseráveis da Venezuela teriam que seguir outro caminho que não o de confrontação com o seu governo eleito. O governo venezuelano, depois do boicote da sua economia pelo governo dos EUA, criou os Comitês locais de abastecimento e produção (CLAP) que distribuem toneladas de comida toda semana para a população mais pobre. 68% da população recebe o referido apoio.[8]
Por fim, nem toda “ajuda humanitária” tem o objetivo que seus hipócritas defensores apresentam. Pelo controle do petróleo e para movimentar a indústria armamentista vale tudo, inclusive matar milhões de inocentes. Estamos diante de um grande e inusitado paradoxo: uma “ajuda humanitária” que na verdade almeja a guerra.
*Wallace de Moraes é Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ. É autor do livro “Governados por Quem? Diferentes plutocracias nas histórias políticas de Brasil e Venezuela” Kindle, Amazon. (2018).
[1]Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/12/111215_eua_iraque_numeros_fn, acessado em 24 de fevereiro de 2019.
[2] Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2018/11/30/pesquisa-aponta-que-48-da-populacao-da-venezuela-vive-em-condicao-de-pobreza.htm, acessado em 24 de fevereiro de 2019.
[3] De acordo com o critério adotado pelo Banco Mundial, que considera pobre quem ganha menos do que US$ 5,5 por dia nos países em desenvolvimento. Esse valor equivale a uma renda domiciliar per capita de mais ou menos R$ 350,00 por mês, ao considerar a conversão pela paridade de poder de compra em agosto de 2018. Fonte: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18825-um-quarto-da-populacao-vive-com-menos-de-r-387-por-mes.html, acessado em 29 de agosto de 2018.
[4] Dados de 2017. Fonte: https://www.valor.com.br/brasil/5446455/pobreza-extrema-aumenta-11-e-atinge-148-milhoes-de-pessoas, acessado em 29 de agosto de 2018.
[5] Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-277-milhoes-de-pessoas-diz-ibge.shtml, acessado em 29 de agosto de 2018.
[6] IDH – pesquisa realizada pela ONU que inclui todos os países do mundo e afere três principais questões: alfabetização; expectativa de vida; e renda da população. https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2018/09/14/idh-2018-brasil-ocupa-a-79-posicao-veja-a-lista-completa.htm
[7] Ver discurso de Maduro para milhares de apoiadores em 23 de fevereiro de 2019. https://videos.telesurtv.net/video/766158/nicolas-maduro-el-golpe-de-estado-ha-fracasado/

[8] Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2018/11/30/pesquisa-aponta-que-48-da-populacao-da-venezuela-vive-em-condicao-de-pobreza.htm, acessado em 29 de agosto de 2018.


segunda-feira, 4 de março de 2019

Crônica: Doenças do mundo

 
 
 
 
 
José Luiz Gomes
 
 
 
Fazia algum tempo que não ia ao Mercado de São José, localizada no bairro do mesmo nome, no coração do Recife. Neste sábado, no entanto, depois de uma nova releitura do Menino de Engenho, do escritor paraibano José Lins do Rego, não contive a ansiedade de conhecer de perto algumas plantas medicinais abundantemente citadas no romance. Quem sabe, talvez apenas um pretexto para saborear aqueles pratos deliciosos da culinária pernambucana, que ali são servidos aos visitantes, como o sarapatel, a buchada, a galinha caipira à cabidela, entre outras iguarias.
 
No texto de Zé Lins ha várias plantas indicadas para o tratamento de doenças do mundo ou doenças venéreas. Neto do coronel Zé Paulino - cuja família possuía 19 engenhos na época do apogeu da economia da cana-de-açúcar na região, Carlinhos, ainda assim, não deve ter alcançado os tratamentos medicinais mais atualizados contra a doença. Era submetido aos tratamentos caseiros, derivados da experiência popular. O moleque Ricardo, que contraiu a moléstia na mesma época, ficou entrevado numa rede, tomando garrafadas de barbatimão com cachaça. A dele foi pior, uma gonorréia de cabresto - como se dizia - do tipo mais grave.
 
Carlinhos contraiu a doença aos doze anos de idade, depois de passar as manhãs, tardes e noites socado na casa de Zefa Cajá, apenas com ligeiros intervalos para as refeições. Cabrito dos bons, foi iniciado logo cedo nas coisas mundanas. Como todos sabem, o Mercado de São José era o reduto do folclorista e estudioso da cultura popular, Liedo Maranhão, que ganhou uma estátua em sua homenagem, numa pracinha local. Liedo escreveu vários livros sobre a cultura popular, alguns deles hoje raros, tratando dos mais diversos assuntos, como a linguagem dos camelôs, a cura pelas ervas medicinais, a literatura de cordel. Em sua passagem pelo Recife, o cineasta Orson Welles foi ciceroneado pelo folclorista pernambucano, que mostrou ao diretor de Cidadão Kane, os nossos "inferninhos".

Veneza, Agamben

                                          
Cláudio Oliveira (arquivo)
                                                                                                                                                                 

Veneza, Agamben                 


Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

Estou em Veneza, onde vim encontrar Agamben. Tínhamos várias coisas para tratar. Semana passada não consegui publicar a coluna em função de vários trabalhos que tinha que realizar aqui. Como já o vi três vezes desde que cheguei, pensei em escrever algo sobre essa estadia de três semanas e sobre nosso reencontro, mas decidi fazer outra coisa: como Veneza e Agamben são de certo modo, para mim, uma coisa só (sempre vim a Veneza para encontrá-lo), decidi contar um pouco da minha primeira visita à cidade para visitá-lo, em 2007. Lembrei-me de ter escrito e publicado a história neste blog. O que vocês lerão a seguir são textos extraídos daí. Eles têm um frescor e uma inocência que me agradam, passados já quase dez anos, e por isso não os modifiquei. Seguem como foram publicados na época. Em 2007, eu ainda não era tradutor do Agamben e nem sonhava que viria a dirigir a série Filô Agamben da Autêntica. Mas a história que conto nesses textos, da minha busca por um ensaio inédito de Agamben sobre Lacan (da qual já falei anteriormente num artigo publicado na Folha de S.Paulo) parece ter chegado finalmente a seu fim. Falarei sobre isso, talvez, na próxima coluna. Adianto que foi um final feliz.
Dormir e acordar em Venezaescrito sexta-feira à noite, 27/07/2007
Estou agora no quarto do hotel. A janela do quarto dá para um lindo jardim interno, com o solo coberto de seixos. Ha casarões vizinhos, com lindas janelas e paredes de tijolo muito antigas que também dão para o jardim. Esta noite dormirei em Veneza. É quase um pecado dormir em Veneza. Mas é preciso dormir. Amanhã, acordarei em Veneza.
Café da manhã em Venezaescrito na manhã de sábado, 28/07/2007
Acordo em Veneza. O hotel é realmente muito bom, o café da manha é farto e ótimo. Ao entrar no salão de chá, uma senhora italiana muito distinta e muito enérgica, me pergunta: “Un cappuccino, signore?” Estou viciado nos cappuccini italianos. Após o café, vou fumar um cigarro no jardim externo do hotel. É um lindo jardim. Veneza é muito silenciosa. Nada do barulho do tráfego de Firenze. Há enormes poltronas em frente ao jardim, onde se pode sentar confortavelmente e onde escrevo essas linhas. No centro do jardim há uma bela fonte com uma escultura de algum deus marinho cercado de peixes monstruosos. Em torno da fonte há algumas mesas cobertas onde alguns hóspedes tomam seu café da manha. É bom estar aqui.
Não encontrando Agambenescrito no sábado, 28/07/2007
Depois de ter andado muito e de ter conhecido a Scuola Grande di San Rocco (onde pude ver muitos Tintorettos, inclusive sua impressionante “Crucificação”) e a Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari (onde pude ver “A madona e o menino” de Bellini), estou agora num café em frente à Chiesa di S. Paolo. Comi um spaghetti ai frutti di mare que tinha mais frutti di mare que spaghetti. Fui também até a rua de Agamben que, creio, não está na cidade. Em Veneza não há nomes de ruas e o endereço é apenas um número. No caso de Agamben, 2366. Foi muito difícil encontrá-lo. É bem escondido. Fica numa rua em que podem passar apenas duas pessoas ao mesmo tempo, muito estreita. Acho que agora a tarde vou à Bienal, que fica em um lugar chamado I Giardini. Há uma estacão de Vaporetto lá.
Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

O primeiro encontro com Giorgio escrito no trem, de Veneza para Firenze, domingo, 29/07/2007
Aconteceram tantas coisas de ontem para hoje que não sei de quantas páginas precisarei para contá-las. Após voltar da Bienal, mas antes de ir para o Hotel, passei num ponto de internet para ver meus e-mails (três Euros por vinte minutos!). Quando abro minha caixa de mensagens, há uma mensagem do Agamben dizendo apenas: “Caro Cláudio, chiamami”, e me dá em seguida o número do seu telefone. Eu já não tinha mais esperanças de encontrá-lo. Tinha até deixado uma mensagem escrita em sua caixa de correio, dizendo que tinha estado em Veneza. Mas apenas para dizer que tinha estado ali. Não tive coragem de tocar a campainha. Se mesmo no Rio ninguém aparece sem antes telefonar, imaginem aqui na Itália, e na casa do Agamben. Bem, saí do cyber café correndo. Fui para o hotel e quando chego lá a recepcionista me diz que me tinha telefonado um senhor chamado Giorgio, que tinha deixado o número do seu telefone. Corro pro quarto, ligo para o número, chama, chama, ninguém atende. Tento outra vez. Uma terceira vez. Nada. Desisto. Cansado, vou tomar banho e penso: “Ele já deve ter saído”. Afinal, já são 19:30, embora ainda haja sol lá fora. Penso: “Quem sabe amanhã?” Mas antes de entrar no banho, o telefone do quarto toca. Atendo: “Pronto!” E alguém me diz do outro lado da linha: “Cláudio, sono Giorgio”. Conversamos em italiano. Ele briga comigo por eu ter deixado uma mensagem na caixa de correio dele e não ter tocado a campainha. Porque ele estava em casa naquele momento. Eu me desculpo. Marcamos de jantar num café próximo a Rialto. Mas é preciso que eu parta imediatamente porque em Veneza tudo fecha muito cedo. Não estou muito seguro das indicações que ele me deu ao telefone, porque falava em italiano e muito rápido, mas parto mesmo assim. Ao menos sei onde é Rialto. Não o encontro imediatamente. Houve alguma confusão entre “sinistra” e “destra”, porque eu vinha do outro lado do Grande Canal, já que peguei o Vaporetto, mas ele imaginava que eu viria a pé, e que, portanto, já estaria do lado de cá do Grande Canal, em S. Polo. Fico uma meia hora procurando-o entre os vários cafés à beira do Canal e não o encontro. Ele não me tinha dado nenhum nome para o Café, apenas a indicação de uma piazza em frente a uma igreja com um grande relógio. Começo a ficar triste. Fico imaginando que ele me esperaria, depois jantaria, e seguiria finalmente para casa, pensando: “Que brasileiro estúpido!” Até que tenho a genial ideia de seguir para a direita da ponte. E lá está ele, sentado num café, numa piazza, com dois estudantes, um dinamarquês e uma menina, mezzo belga, mezzo italiana.
Agamben e Andreas na casa do filósofo, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

O primeiro encontro com Giorgio, continuação
Ele me recebe muito bem, com alegria. Briga comigo de novo por eu não ter tocado a campainha e me convida para sentar. Fala com a menina que serve a mesa para me trazer uma lasanha de peixe e uma taça do mesmo vinha branco que eles estavam tomando. Ele está muito alegre e jovial, bronzeado do sol do verão de Veneza. Conversamos um pouco, todos (o outro rapaz é estudante de Filosofia, estuda Hobbes, a garota estuda crítica de arte, ambos são alunos de Giorgio). Giorgio me convida para ir almoçar na casa dele, no dia seguinte, domingo. Deverá estar lá, também, seu tradutor alemão, que vem para tentar esclarecer suas ultimas dúvidas antes de mandar publicar sua tradução de O reino e a glória. Continuamos a conversar e quando eu termino de comer minha sobremesa, já que eles já tinham acabado de jantar há muito tempo, ele pede a conta, que insiste em pagar sozinho. Percebo, não sei bem por quê, que ele quer se livrar dos dois estudantes. Diz a eles, então, que nós vamos caminhar um pouco por Veneza. À noite, Veneza, mesmo no verão, fica praticamente vazia e pode-se caminhar por toda a cidade tranquilamente. Como o comércio e os restaurantes fecham muito cedo (no máximo às 22 horas, mas às 21h não aceitam mais nenhum pedido), os turistas vão dormir e só reaparecem no dia seguinte. Então a cidade se torna de novo a mesma que vem sendo há séculos, talvez a mais bela do mundo. Mesmo em minha primeira noite em Veneza, antes de ter encontrado Giorgio, caminhei sozinho pelas ruas e pontes da cidade até bem tarde da noite, e só voltei para o hotel após meia-noite. Mas na noite de ontem era sábado, e havia ainda, aqui e ali, alguns bares abertos. Giorgio me leva primeiro ao mercado de peixe, pelo qual eu já tinha passado durante o dia, mas que, àquela hora, estava deserto. Seguimos andando e no céu, de repente, surgindo entre os pallazzi de Veneza, vem até nós uma enorme lua cheia, muito amarelada. Belíssima. Ficamos um tempo admirando o luar de Veneza e seguimos. Lembro, então, a Giorgio que Henry James tinha escrito alguns de seus romances e contos em Veneza. Ele me diz que tinha acabado de ler uns dez livros de Henry James, um após o outro. Conversamos algum tempo sobre o autor, andando pelas ruas de Veneza, e eu confesso a ele que Henry James sempre foi um dos meus escritores preferidos. Ele concorda comigo que, numa estória em que os personagens agem sem saber ao certo o que está acontecendo, Henry James introduz esse narrador que vê tudo (o que ninguém vê) e que, ainda assim, não conta tudo (o que vê). Ele dá ao leitor o crédito de saber que não é preciso contar tudo. O leitor (ele acredita, ele espera) certamente sabe o que “falta” contar, que, de fato, “não falta”. Contá-lo seria obsceno, indelicado, indiscreto. Um exagero, uma perda de medida. Não é preciso contar. Não se deve contar. Seguimos caminhando por Veneza e eis que reencontramos o jovem casal de estudantes sentados numa mesa no terraço de um bar. Fugimos deles, mas acabamos reencontrado-os. Eles propõem que a gente se sente, mas percebo que Giorgio está indeciso quanto a ficar ou não. Ele me pergunta o que prefiro fazer. Digo que nós podemos ficar, sem problemas, que eu preciso apenas comprar cigarros. Ele então diz aonde fica exatamente a unica piazza em que àquela hora se poderia comprar cigarros em Veneza. Na Itália, só se pode comprar cigarros em tabacarias, que fecham às oito da noite (!). Mas a partir das nove horas algumas tabacarias deixam disponíveis máquinas automáticas em que se pode comprar cigarros por toda a noite. Mas entre as oito e as nove da noite, portanto, durante uma hora, ninguém pode comprar cigarros em Veneza. Giorgio me diz que me acompanhará até a piazza onde há uma dessas máquinas. Eu digo que não é preciso, que, se ele me explicar como posso chegar ate lá, eu posso ir sozinho. Mas ele insiste. Despede-se de novo do casal e diz que, de repente, volta mais tarde. O casal diz que outros estudantes estão a caminho. E de fato, assim que saímos para a tal piazza, poucas ruas depois, encontramos um grupo de estudantes que, ao ver Giorgio, o saúdam com entusiasmo. Ele me apresenta rapidamente a todos (são seus alunos) e diz que o casal estava no bar esperando por eles. Nós nos despedimos todos com o já clássico “ci vediamo” que é a tradução perfeita do famoso carioca “a gente se vê, a gente se fala” (acho que o ensaio de Francisco Bosco vale não só para os cariocas, mas também para os venezianos). Depois que o grupo de alunos se vai, eu pergunto a Giorgio se ele de fato não preferiria ficar com eles, já que me pareciam todos muito simpáticos. “Sim”, ele diz, “são muito simpáticos, mas os vejo sempre, quase todos os dias”. Toda essa conversa durante o passeio se dá em italiano. Ele diz que eu estou falando muito bem e que o meu sotaque (“l’accento”) está muito bom. Eu fico orgulhosíssimo, mas não aceito o elogio, pois ainda acho o meu italiano muito macarrônico. Após comprar meu cigarro, ele propõe que a gente vá na direção do canal da Giudeca, a beira do qual eu tinha jantado na noite anterior. Ele me diz que gosta muito dessa margem do canal, onde é mais fresco. Não havia mais quase ninguém nos cafés à beira do canal, quando chegamos. Mas conseguimos ainda que um garçom nos servisse uma bebida. Eu pedi uma birra e ele, alguma bebida desconhecida por mim, uma espécie de refrigerante em lata italiano, que, segundo ele, é o seu “o de sempre” naquele café. Ficamos ali, na noite enluarada de Veneza, conversando até meia-noite, quando decidimos que deveríamos partir, já que, no dia seguinte, eu devia ir à sua casa para almoçar com ele e com seu tradutor alemão. Ele cozinharia para nós. Combinamos que eu chegaria entre meio dia e um da tarde.
Agamben em sua casa, em Veneza, 2007 (Foto: Cláudio Oliveira)

Pegar o Vaporetto pela última vezainda no trem, voltando de Veneza para Firenze, domingo, 29/07/2007
Aproveito que estou bem perto da Praça de São Marcos e, antes de almoçar com Giorgio, olho pela última vez Veneza. Atravesso a piazza, onde há uma enorme fila para entrar no duomo e sigo para a estação S. Marco do Vaporetto. Penso que sera ótimo andar pela última vez de vaporetto no Grande Canal. E de fato, andar pelo Grande Canal é uma experiência da qual a gente nunca se cansa.
Na casa de Agamben, com Heidegger e Lacanescrito em Paris, na Biblioteca do Centre Georges Pompidou, terça, 01/08/2007
Pego o Vaporetto em S. Marco e desço na estação S. Toma, a mais próxima da casa de Agamben. Ele mora num palazzo de apenas dois apartamentos: o segundo e o terceiro andares destinam-se apenas ao apartamento do Agamben. Toco a campainha e ele me recebe alegremente. Está na cozinha preparando o almoço: segundo ele, uma receita que aprendeu recentemente, em Lisboa, quando esteve lá para falar. É um risoto com legumes e um peixe de cujo nome não me lembro. Agamben cozinha muito bem. Quando chego, já está lá o seu tradutor alemão, Andreas, um “jovem” de 44 anos que já esteve no Brasil por duas semanas (Rio, Salvador, Brasília). Andreas é muito simpático e gentil. Fala com Agamben em inglês, pois apesar de ser seu tradutor, fala muito mal o italiano. Agamben, por sua vez, também não fala muito bem alemão (segundo Andreas). É um encontro engraçado, pois ambos são leitores, até tradutores da língua um do outro, mas não falantes, ou falantes precários. Então decidimos que falaremos todos em francês, depois de minha tentativa de manter a conversa em italiano. Converso um pouco com Giorgio na cozinha, enquanto aproveito para tirar algumas fotos dele cozinhando. Ele percebe, diz para eu parar, mas não me impede de fazê-lo. Tirei algumas fotos durante o almoço (não muitas, porque também fico envergonhado), mas não sei se ficaram boas, ainda não as revelei. Acho que ele não me recrimina pelo que estou fazendo, pois ele mesmo possui, na sala de estar, emolduradas e penduradas na parece, duas fotos do Seminário de Thor, onde aparece num grupo, ao lado de Heidegger (ele tinha 24 anos quando participou do primeiro, no qual estavam presentes apenas seis pessoas!). Sobre a mesa da sala há um livro de François Fédier com fotos de Heidegger, no qual há, entre outras, uma foto de Giorgio, muito jovem, sentado ao lado do filósofo, que Andreas me mostra. Heidegger, já bem velhinho, e Agamben, um menino, muito novo. Em outra parede da sala, há outras duas fotos emolduradas e penduradas. São fotos que Heidegger enviou a Agamben logo após o primeiro encontro em Le Thor, na França. Como o fundo do quadro também é de vidro, pode-se ler a letra de Heidegger e entender com facilidade o que ele escreveu (ele agradece os votos de feliz ano novo que Agamben tinha enviado em uma carta anterior, entre outras coisas). A primeira foto é da cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Alemanha, completamente coberta de neve. A segunda, um foto da região de Messkirch, onde Heidegger nasceu. Ao ver todas essas fotos e mensagens fico muito emocionado. Sinto como se estivesse repetindo o gesto de Agamben de ir procurar Heidegger. Há ainda outra surpresa no apartamento. Quando o encontrei, na noite anterior, para jantar, disse a Agamben que tinha vindo a Veneza com uma missão: conseguir o texto que ele tinha escrito sobre Lacan e apresentado no colóquio “Lacan avec les philosophes”, realizado em Paris, em 1990. Quando a reunião dos trabalhos apresentados no encontro foi publicada, os organizadores da publicação colocaram a seguinte nota na abertura da edição: “O Sr. Giorgio Agamben não enviou seu texto para publicação”. Essa foi uma informação da qual eu soube desde que comecei a ler Agamben, e ficava sempre imaginando como seria um texto de Agamben sobre Lacan. O único motivo, segundo ele, para não ter enviado seu texto, foi que ele se encontrava, como se encontra até hoje, escrito à mão. Agamben não escreve diretamente no computador nunca. Quando ele esteve no Rio, em 2005, disse a ele que viria a Veneza pegar o texto. E aqui estava eu. Na noite anterior, lembrei-lhe da minha missão. Para minha surpresa, ao chegar em seu apartamento, no dia seguinte, ele já tinha encontrado o manuscrito. Dou uma olhada rápida no texto, escrito em francês, bastante legível. Ele me pergunta se eu consigo ler. Digo que sim, mas que certamente, encontraria passagens ilegíveis. Combinamos que ele me enviaria uma cópia do texto pelo correio, para que eu o traduzirei e o publicasse no Brasil. Será que existe algum editora no Rio interessada em publicar um texto mundialmente inédito de Agamben sobre Lacan?
Cláudio Oliveira e Agamben na casa do filósofo, em Veneza (Foto: Andreas Hiepko)
Cláudio Oliveira e Agamben na casa do filósofo, em Veneza, 2007 (Foto: Andreas Hiepko)

O ghetto de Veneza, Andreas e as dedicatórias de Agamben
Após sair da casa de Agamben, sigo com Andreas para caminhar no ghetto de Veneza (tenho ainda umas duas horas e meia antes de pegar o trem para Firenze). Segundo Giorgio, o primeiro ghetto do mundo é o de Veneza. Andreas deve ficar ainda uns quatro dias na cidade para trabalhar com Giorgio na tradução alemã de O reino e a glória. Aproveitei para pedir a Agamben um autógrafo na minha edição, comprada em Veneza. Ele escreve: “A Cláudio, de Giorgio carioca”. Depois me pergunta se tenho a edição italiana de A potência do pensamento, uma grande coletânea também publicada em 2007. Digo que não e ele me diz que acredita ter ainda um exemplar, que me dará de presente (já tinha me dado a edição brasileira de Profanações, da qual tinha em casa alguns exemplares). EU digo que não, mas ele insiste e escreve na dedicatória: “A Cláudio, com a recordação veneziana do amigo ex-carioca Giorgio”. Digo a ele que não deve escrever nunca “ex-carioca”, mas sempre “carioca”. Ele ri. Eu e Andreas nos demos muito bem. Seguimos para a piazza principal do ghetto, onde há mais de uma sinagoga e onde se pode ver muitos judeus ashkenazi andando pela rua. É realmente um lado muito bonito de Veneza. Andreas faz um doutorado em filologia que, segundo ele, não termina nunca, pois não possui bolsa e está sempre trabalhando em traduções para sobreviver. Tem um interesse fecundo por Agamben, pela relação entre filologia, tradução e filosofia. É uma cara muito legal. Tentaremos ir visitar um ao outro. Despeço-me dele e sigo para a estação para pegar meu trem.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Por uma nova crítica das desigualdades sociais

                                          
Roberto Dutra Torres Junior
                                                                                                                                                                 

Por uma nova crítica das desigualdades sociais

 
A sociedade é uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem (Foto: Markus Spiske)

Em conversa informal sobre igualdade e desigualdade no Brasil, um amigo meu foi confrontado com o problema do racismo estrutural. Em algum momento deu uma lacrada “protoliberal”: “A sociedade é racista, mas que sociedade? É preciso saber se as pessoas são racistas. Eu sou a sociedade”. A primeira e mais óbvia associação é com a recusa ideológica em enxergar desigualdades estruturais. Mas acredito que há mais a ser considerado nesta sentença, pois ela faz alusão a um dos maiores problemas do discurso progressista de crítica a desigualdade social: perceber as estruturas de desigualdade como característica totalizante da sociedade. A sociedade não produz apenas desigualdade, não produz apenas racismo e não produz apenas sexismo. Ela também produz os ideais de igualdade pelos quais medimos e criticamos todas estas e outras estruturas de desigualdades.
O discurso progressista acredita que a sociedade possui estruturas de desigualdade que definem a identidade da sociedade: o que ela é e o que ela não é. Neste sentido, a sociedade pode ser definida como sendo de classes, patriarcal e racista. As estruturas de desigualdade definem a sociedade. Para não ser de classes, sexista e racista, a sociedade teria que ser completamente outra. A identificação da sociedade com a desigualdade obriga a pensar em uma unidade estrutural para a desigualdade, mesmo que estas sejam plurais. Assim, o discurso progressista fala, no singular e não no plural, da estrutura de classes, do racismo estrutural e do patriarcado. Esta unidade estrutural é tratada, quase sempre, como traço do estado nacional, reproduzindo-se um “nacionalismo metodológico” insustentável na sociologia. O discurso progressista sobre as desigualdades sofre de um “deficit sociológico” que o impede de ver as possibilidades de transformar as estruturas de desigualdade, uma vez que não apreende as estruturas e decisões estruturais plurais e concretas que determinam as chances de vida das pessoas.
A crítica à desigualdade é reduzida à forma geral e inconsequente de crítica da sociedade, o que coloca para o crítico o paradoxo da crítica externa: quem critica a desigualdade está na sociedade ou fora dela? E a igualdade, está fora ou dentro da sociedade? A sentença de que a sociedade não pode ser racista, mas pessoas sim, não é apenas reprodução da “fala protoliberal” de que a sociedade não existe. É observação de que a crítica da desigualdade estrutural dos progressistas carece de autocrítica. Essa autocrítica passa por questionar as premissas acima.
A sociedade não é uma unidade estrutural, mas uma pluralidade de sistemas nos quais diferentes formas de desigualdade emergem, se reproduzem e se transformam. Desigualdades econômicas, políticas, jurídicas, educacionais, afetivas não seguem a mesma estrutura, embora se influenciem mutuamente. Por isso, classe, raça e gênero podem produzir desigualdades muito distintas em cada uma destas esferas. A redução das desigualdades de gênero na educação e sua maior perenidade no mercado de trabalho evidenciam isso. A crítica à desigualdade não deve ter como foco uma estrutura unitária. A crítica deve ser concreta e plural: quais formas de desigualdade de classe, raça e gênero determinam as chances de vida das pessoas em que sistemas sociais? A sociedade tem muitos racismos, muitos sexismos e muitas formas de desigualdade de classe.
A sociedade não é definida pela desigualdade, pois ela também inclui, como parte da vida social, não só a crítica à desigualdade, mas também estruturas de igualdade como a cidadania social etc. A crítica só é possível porque se apoia em normas e valores de igualdade vigentes na sociedade em que vivemos. Uma sociedade não machista, não racista e sem classes não seria inteiramente outra. A sociedade é mundial e possui um conjunto contraditório de possibilidades de evolução.
A sentença “protoliberal” de que a sociedade não é racista tem parte de razão, pois a sociedade é também antirracista, sobretudo porque vivemos numa única e mesma sociedade mundial. Não pode ser definida unicamente como racista.
Mas o que o “protoliberal” nos ajuda mesmo a ver é o problema do endereço da crítica às desigualdades: organizações, pessoas, grupos formalmente visíveis podem ser endereçados, responsabilizados por desigualdades ilegítimas, pois decidem sobre estruturas sociais, mas a sociedade, como unidade que abarca tudo que é social, da desigualdade à igualdade, não é alcançável, não tem endereço e sua crítica é tão charmosa quanto conceitualmente errada e politicamente inútil. A única crítica social com sentido real é aquela devotada a decisões e estruturas reais de organizações, que é o contexto responsável por alocar a maior parte dos recursos importantes nas desigualdades, como renda, poder e conhecimento.
A crítica e o lugar de fala
O conceito de “lugar de fala” foi banalizado pela política identitária que hoje domina o discurso progressista sobre as desigualdades sociais. Seu uso atual é predominantemente moral, e isto destrói seu potencial de servir a um discurso mais reflexivo (mais consciente de seus alcances e limites) sobre a desigualdade e suas consequências: as diferentes formas de sofrimento e humilhação de pobres, negros e mulheres. O objetivo dos identitários é demarcar posições de superioridade moral com base em um “campeonato de sofrimento”, no qual somente as “vítimas autênticas” da desigualdade e de suas consequências ganham o direito de falar e discursar sobre o problema.
Isto é uma prática moral, pois sua lógica é justamente construir julgamentos totalizantes sobre pessoas e grupos de pessoas, o que sempre resulta em repetição do binômio bom/mau. Não é uma prática política, pois a lógica da política é construir decisões coletivas, mesmo que seja necessário a ajuda de pessoas moralmente questionáveis. E também não é uma prática de esclarecimento científico crítico da sociedade, pois a diferença moral entre bons e maus, entre oprimidos e opressores, é insuficiente, para não dizer que atrapalha, o entendimento do mundo e por isso mesmo o melhoramento do mundo. Os identitários transformaram o conceito de “lugar de fala” em um mesmo e único “lugar de fala puritano”, que visa catequizar os moralmente inferiores, e não construir uma decisão coletiva (política) ou visão esclarecedora capaz de ajudar na política (ciência).
No entanto, julgo ser possível recuperar o conceito de “lugar de fala”, e justamente para explicitar quais os alcances e limites desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades. Proponho substituir o uso moral da ideia de “lugar de fala” por uma noção sociológica de “lugar de fala”: em vez de ser (moralmente) definido como a posição de superioridade moral de quem sofre de forma “original e autêntica” as consequências das desigualdades sociais, defini-lo como posição parcial de observação, com alances e limites, em determinado sistema social.
Nesta proposição, o elemento moral é relativizado pelo elemento cognitivo: o que define os limites e alcances de um “lugar de fala” são a relevância e as chances comunicativas de quem fala em um determinado sistema social. Na política, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros políticos, do público e dos setores politicamente envolvidos e organizados, das falas proferidas, das posições tomadas, das agendas de políticas públicas adotadas, formuladas e implementadas. Na ciência, o “lugar de fala” é definido pela relevância e repercussão na ação de outros cientistas de sentenças de verdade e falsidade sobre os fenômenos. Nesta visão sociológica, não é apenas quem profere a fala, ou seja, o indivíduo ou grupo isolado, que define o “lugar de fala” de quem quer que seja, mas também, e prioritariamente, o modo como a fala ou discurso são entendidos, aceitos ou recusados. O “lugar de fala” é co-produzido, como ensina a sociologia, pelo receptor. O “lugar de fala” é um “endereço social”, uma construção comunicativa e social fixada não apenas pela relevância pretendida pelo falante, mas também e sobretudo pela relevância atribuída pelos ouvintes.
Para explicitar o “lugar de fala” desta crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades, especialmente o discurso identitário, retomo a distinção que Weber traçou entre as vocações do político e do cientista. Existe uma tradição de sociologia crítica que acredita que o cientista social possui posição privilegiada para a crítica social, como se a ciência fosse, no mundo moderno, herdeira da religião na produção de uma visão de mundo válida para todos os domínios da sociedade. Ignora que a ciência não tem o condão de dirigir a política, como nenhum outro sistema da sociedade, com exceção da própria ciência. Por isso, é uma tradição de sociologia crítica arrogante e ingênua: não quer saber das condições de aceitabilidade e repercussão de seus discursos críticos em outras esferas, como a política, acreditando que a recusa e a não repercussão são frutos da “ignorância”, da “tolice”, enfim, da falta de adesão ao que seria o centro cognitivo do mundo.
Na crítica às desigualdades, esta tradição sempre confunde crítica científica com crítica política, e recorre ao insulto moral dos dissidentes para evitar ver que a crítica política das desigualdades não é um reflexo da crítica científica. Esta tradição ignora, portanto, a lição clássica de Weber sobre a diferenciação das esferas e das vocações da ciência e da política. Não há como explicitar corretamente o “lugar de fala” da crítica ao discurso progressista sobre as desigualdades sem romper com esta tradição arrogante e ingênua: Não espero que a ciência possa dirigir ou reorientar o discurso, e muito menos a prática, dos progressistas sobre qualquer coisa, mas apenas que ela possa disponibilizar uma alternativa, cuja realização depende dos envolvidos com a política, cabendo ao crítico da ciência apenas refletir ou antecipar as condições que tornam mais provável esta realização.
O discurso dominante entre os progressistas sobre a desigualdade foi influenciado pela sociologia do unitarismo estrutural, que orienta a descrição e a crítica das desigualdades por uma noção unitária e totalizadora de estrutura social: a estrutura de classes, a divisão étnico-racial, o patriarcado. A crítica que proponho a este discurso parte de uma outra sociologia, baseada na diferenciação da sociedade em subsistemas e no pluralismo efetivo das estruturas de desigualdade. Nesta sociologia, o sentido da crítica da desigualdade é definido em cada sistema social. Isto significa, por exemplo, que uma crítica acadêmica sobre as desigualdades de gênero não orienta diretamente a desconstrução ou a mudança das estruturas de desigualdade entre homens e mulher na educação ou na economia: somente uma crítica educacional e uma crítica econômica são capazes disto. Por quê? Porque a mudança estrutural só é possível com disponibilização de alternativas reais em cada sistema social, com a oferta de soluções alternativas para os problemas – como a seleção social na educação e na economia – que antes só se resolviam com a estrutura vigente de desigualdade.
Desta forma, a crítica progressista das desigualdades precisa ser não apenas plural – situar-se em um sistema social específico –, mas também concreta, ou seja, envolvida com a imaginação de alternativas reais de mudança estrutural, o que exige um foco privilegiado na dimensão das organizações que regulam os modelos institucionais instituídos e reproduzidos nas esferas mais importantes da sociedade como a economia, a política, o direito e a educação. Do “lugar de fala” da ciência, que não decide nada sobre nenhum tipo de estrutura social relevante para a coletividade, a questão é: como criar descrições, discursos críticos sobre a desigualdade, plurais e concretos, que possam não apenas inspirar novas semânticas na política, mas também serem úteis na prática decisória sobre desigualdade nas mais diferentes esferas da sociedade.
O rebaixamento das expectativas
A crise do discurso progressista sobre as desigualdades reside no rebaixamento das expectativas de mudança estrutural que assola a esquerda no mundo inteiro. O modelo social-democrata europeu, fruto de críticas sociais concretas a desigualdades capazes de dirigir mudanças estruturais de largo alcance na política, na economia, no direito e na educação, perdeu seu ímpeto transformador. Para criar dignidade para todos, os sociais-democratas do final do século XIX e início do XX sabiam que precisavam reinventar a infraestrutura organizacional e institucional dos mais importantes subsistemas da sociedade, e isto se refletiu em programas robustos de transformação estrutural, que afetaram não apenas a distribuição de bens e recursos sociais, mas também e prioritariamente a sua própria produção.
Hoje, a social-democracia é um fetiche destituído de ímpeto transformador, e significa apenas a “humanização” de um mundo social tomado como inevitável. O máximo que se deseja é a distribuição marginal de bens e recursos, não mais a transformação estrutural. Neste ambiente de expectativas rebaixadas, a “crítica da sociedade”, totalizadora e sem aderência aos problemas reais de cada sistema social, fica reduzida um discurso de denúncia de processos sociais, sem nenhuma contribuição sobre as alternativas reais, “as possibilidades objetivas”, como diria Alberto Guerreiro Ramos. Comparemos a crítica de um Darcy Ribeiro, desde sempre composta por um elemento programático que desnuda e explora possibilidades de transformação social, mesmo denunciando as mais brutais formais de desigualdade e opressão, com a crítica de um Jessé Souza, desde sempre destituída de qualquer elemento programático, exceto alusões despolitizadas sobre o nível de “aprendizado moral” do “modelo social-democrata europeu”.
A contribuição científica para renovar a crítica progressista das desigualdades deve se concentrar na desconstrução dos discursos que naturalizam as desigualdade em cada sistema social, mas não apenas em forma de denúncia inconsequente, como se faz na “crítica da sociedade”, mas sobretudo na forma de um discurso programático humilde, reflexivo e consequente, ou seja, que reflita sobre as condições de sua utilização na política, buscando pensar não apenas políticas de redistribuição e reconhecimento identitário, mas sobretudo políticas capazes de transformar a infraestrutura organizacional e institucional da economia, da política, do direito e da educação, pois somente este tipo de transformação estrutural pode garantir redistribuição e reconhecimento para maiorias e minorias.
A crítica das desigualdades precisa se reaproximar da análise de políticas públicas enquanto instrumento de transformação estrutural e justiça social, que cria capacidade não só de redistribuir, mas também de reorganizar a produção da riqueza social e a ação coletiva. Sem isso, a redistribuição igualitária das chances de vida vai sempre encontrar limites enormes. A análise e a imaginação institucional de políticas públicas podem ser um momento de aprendizado humilde do cientista social crítico, pois aí ele é obrigado a disciplinar suas denúncias dos problemas com a necessidade prática de encontrar ou criar soluções para eles. Não deve servir para castrar o ímpeto transformador e rebaixar ainda mais as expectativas, mas sim para dar efetividade e consequência às aspirações progressistas de transformar o mundo para o engrandecimento da mulher e do homem comum.

ROBERTO DUTRA TORRES JUNIOR é ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)