Renan Quinalha :
Primeira Marcha do Orgulho Gay, em Nova York, um ano após Stonewall (Foto: Leonard Fink/Arquivo da História Nacional do Centro Comunitário LGBT)
Stonewall Inn era um singelo bar frequentado pela população LGBT+, localizado
no bairro nova-iorquino de Green2wich Village. O público mais cativo do
bar eram os setores mais marginalizados da sociedade: travestis, gays
afeminados, lésbicas masculinas, michês, drags, pessoas em situação de
rua, enfim, LGBT+ pobres, negras e latinas que pertenciam a um
“submundo” e que, por isso, não gozavam de reconhecimento como cidadãs.
Um bar destinado a esse público e que era um dos únicos lugares disponíveis para LGBT+
que queriam dançar e curtir só poderia existir no interior de um gueto
culturalmente arejado de uma grande metrópole. Mas isso só era possível
em tensão constante com as forças de segurança pública. Não à toa,
Stonewall Inn era controlado, desde 1966, por máfias que subornavam as
autoridades policiais para manter o funcionamento da casa, que nem
sequer tinha licença para comercializar bebidas alcoólicas, além de
outras irregularidades. Periodicamente, policiais passavam no bar para
receber suas propinas, mas também aproveitavam para dar batidas de modo a
humilhar, identificar, chantagear, prender e extorquir os
frequentadores. A corrupção e a violência eram, assim, parte do
cotidiano da experiência LGBT+ nos poucos lugares de sociabilidade
existentes.
Mas algo começou a mudar no dia 28 de junho de 1969. Já
era madrugada quando a polícia apareceu e começou a abordar, de forma
agressiva, as mais de 200 pessoas que ali estavam curtindo a noite.
Algum desajuste ocorrera no acordo entre polícia e máfia. Os agentes
policiais começaram a revistar, já separando aqueles que seriam detidos e
os que seriam soltos, como sempre faziam. Também começaram a apreender
as bebidas alcoólicas. Mas os poucos policiais e viaturas não eram
suficientes para a prisão de tanta gente. Foi preciso esperar a chegada
de reforço e foi nesse contexto que eclodiu uma revolta espontânea e
violenta por parte das pessoas LGBT+.
Diversas são as memórias e as diferenças
nas narrativas de como se deu esse acontecimento histórico. Fala-se em
quem deu o primeiro grito contra um policial, quem jogou a primeira
pedra na viatura, quem liderou a rebelião. Apesar das diferenças, todos
os relatos convergem, contudo, para a descrição de um motim que começa a
se formar sem planejamento prévio, por meio de combinação de pequenas
desobediências individuais tais como pessoas se negando a entregar
documentos, não se deixando algemar e nem ficando em fila conforme o
comando das autoridades. As LGBT+ que foram liberadas não foram embora,
mas permaneceram na frente do bar acompanhando as discussões e tensões. A
polícia tentou impor suas ordens e as pessoas resistiram e começaram a
jogar latas, garrafas e pedras contra a polícia. Alguns dos oficiais
ficaram protegidos dentro do bar. A população atirava também dinheiro
aos gritos de “policiais corruptos”. O reforço demorou a chegar e a
temperatura aumentou nas horas seguintes, com o envolvimento das pessoas
que estavam na rua e que começaram a se dirigir para a frente do
Stonewall, inflando a aglomeração de gente.
A humilhação, desta vez, fora imposta à polícia pelo “gay power”
que emergira naquele episódio. A rebelião do primeiro dia só terminou
com a dispersão no começo do amanhecer por uma tropa especial da
segurança pública que foi chamada para resolver a insólita situação. Nos
dias seguintes, a repercussão nos jornais e nos panfletos distribuídos
pela comunidade vão provocando novas revoltas que seguirão desafiando a
repressão estatal. Os conflitos tomavam as ruas de modo que não podiam
mais ser escondidos. As pessoas LGBT+ expressavam seu orgulho e já não queriam mais voltar aos guetos e armários nas noites seguintes.
Essa breve descrição tenta dar conta do
clima efusivo e esperançoso que marcou os levantes de Stonewall. Mas um
olhar mais cuidadoso para a história revela que não foi essa a primeira
vez que a população LGBT+ irrompeu na cena pública reivindicando
direitos e combatendo a violência policial. Há registros de confrontos
em bares na Costa Oeste dos Estados Unidos na década de 1960,
destacando-se, por exemplo, a experiência da revolta da Compton’s
Cafeteria em São Francisco, ainda em 1966.
Mesmo não sendo um acontecimento inédito ou exclusivo,
algumas razões ajudam a compreender a singularidade que caracterizou
Stonewall. Primeiro, Nova York já era uma das cidades mais cosmopolitas
do mundo naquele momento. Ao funcionar como epicentro econômico do
capitalismo norte-americano, ela também se tornou um lócus privilegiado
de desigualdades sociais e um refúgio para milhares de pessoas LGBT+ que
migravam em busca do anonimato da vida em uma grande cidade. A mistura
de “desajustados” de diferentes raças e classes sociais presentes em
Stonewall era um ponto de partida propício para uma revolta coletiva.
Segundo, as lutas por liberdade sexual e igualdade de
gênero fermentadas durante as décadas de 1950 e 1960 sedimentaram as
condições para a emergência de novas perspectivas sobre o corpo, o
desejo e a sexualidade. Além disso, foi fundamental nesse processo de
questionamento de valores tradicionais a contracultura hippie, as lutas pelos direitos civis de mulheres e negros, as mobilizações contra a Guerra do Vietnã e a geração beat.
Terceiro, a afirmação de uma identidade
homossexual coletiva e igualitária, resumida na palavra “gay”, que não
se hierarquizava mais tão centralmente pelos papéis de gênero, permitiu a
criação de laços de solidariedade e a formação de uma subcultura mais
adensada.
Quarto, os Estados Unidos contavam, em grande parte dos
seus estados, com legislações discriminatórias e de criminalização das
homossexualidades, tendo havido uma campanha de perseguição contra a
população LGBT+ durante o macarthismo, que ficaria conhecida como
Lavender Scare, na qual quase cinco mil homossexuais teriam sido
cassados dos cargos públicos civis e militares entre 1947 e 1950. Isso
despertou resistências importantes na aglutinação dessa identidade gay
em busca de mudanças legais e maior aceitação.
Além dessas condições, Stonewall deixou
legados notáveis. Apesar de não inaugurar o ativismo LGBT+ nos Estados
Unidos, as revoltas marcam um ponto de inflexão, mudando o estilo de
militância. Acusava-se a Mattachine Society, organização homófila
fundada em 1950, de ser bem-comportada e assimilacionista, por pregar
para uma postura mais tradicional e descolada de outras agendas.
Stonewall inauguraria, ao menos na visão de seus protagonistas, uma
militância mais combativa e orgulhosa. Não bastava lutar pela
tolerância, era preciso mudar as estruturas da própria sociedade que
estigmatizava as pessoas LGBT+.
Antes de Stonewall, diante da injúria e
da vergonha na sociedade patriarcal e heteronormativa, a saída era
construir uma imagem socialmente respeitável de homossexual, batalhando
por uma integração à normalidade para conseguir acessar as migalhas de
alguns direitos. Depois dessa revolta histórica, o melhor jeito de lidar
com o preconceito era o embate, a denúncia e a não conformidade. Desse
modo, houve um deslocamento no estilo de ativismo, com o orgulho
funcionando como vetor ideológico principal de um modo eroticamente
subversivo de ser.
Tanto que, depois de Stonewall e graças a
ele, serão fundados grupos que pela primeira vez estamparão
orgulhosamente a expressão “gay” nos seus nomes: o Frente de Libertação
Gay, que remete às frentes de libertação anticoloniais, e o Aliança de
Ativistas Gays. Além disso, nas maiores cidades americanas – depois
exportadas para todo o mundo – começarão a ser realizadas, já em 1970 e
anualmente, as Paradas do Orgulho LGBT+ e que expressam, justamente, o
espírito de Stonewall: ocupar as ruas e romper com a invisibilidade
imposta pelo gueto e pela violência.
No entanto, deve-se frisar que Stonewall tornou-se o “mito
fundador” do movimento LGBT+ global também pelo imperialismo cultural
norte-americano. James N. Green, em seu artigo,
aponta como havia experiências de organização de pessoas LGBT+ em
estilo muito semelhante àquele produzido por Stonewall já em 1967 na
Argentina e, poucos anos depois, também no México. Enquanto países
latino-americanos estavam construindo seus próprios referenciais de
“stonewalls”, o Brasil vivia o período mais agudo da repressão
ditatorial a partir de 1968, atrasando a emergência do movimento LGBT+ entre nós.
Por sua vez, Symmy Larrat chama atenção para os apagamentos e invisibilizações de outras letras
da sigla LGBT+ nas disputas de memória em torno de Stonewall, lembrando
como travestis foram fundamentais naquele acontecimento histórico,
entre eles Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera. Symmy também nos lembra
como a continuidade da violência policial ainda é uma constante na vida
de LGBT+ pobres nas áreas periféricas das cidades brasileiras, mesmo
passados 50 anos desde o marco de Stonewall.
Desse modo, mais do que comemorar, o objetivo deste
especial é trazer uma leitura crítica e contextualizada de Stonewall,
feita desde a realidade brasileira e considerando as dificuldades
presentes na atual conjuntura, marcada pelo crescimento da LGBTfobia em
ato e em discurso. Conhecer a história de lutas da comunidade LGBT+ é
não somente um modo de aprendizado para pensarmos táticas e estratégias,
mas também uma maneira de nos inspirar para estar à altura dos desafios
do presente.
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)