pub-5238575981085443 CONTEXTO POLÍTICO. : junho 2019
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sexta-feira, 28 de junho de 2019

O mito fundador de Stonewall

  Renan Quinalha :


O mito fundador de Stonewall

Primeira Marcha do Orgulho Gay, em Nova York, um ano após Stonewall (Foto: Leonard Fink/Arquivo da História Nacional do Centro Comunitário LGBT)

Stonewall Inn era um singelo bar frequentado pela população LGBT+, localizado no bairro nova-iorquino de Green2wich Village. O público mais cativo do bar eram os setores mais marginalizados da sociedade: travestis, gays afeminados, lésbicas masculinas, michês, drags, pessoas em situação de rua, enfim, LGBT+ pobres, negras e latinas que pertenciam a um “submundo” e que, por isso, não gozavam de reconhecimento como cidadãs.
Um bar destinado a esse público e que era um dos únicos lugares disponíveis para LGBT+ que queriam dançar e curtir só poderia existir no interior de um gueto culturalmente arejado de uma grande metrópole. Mas isso só era possível em tensão constante com as forças de segurança pública. Não à toa, Stonewall Inn era controlado, desde 1966, por máfias que subornavam as autoridades policiais para manter o funcionamento da casa, que nem sequer tinha licença para comercializar bebidas alcoólicas, além de outras irregularidades. Periodicamente, policiais passavam no bar para receber suas propinas, mas também aproveitavam para dar batidas de modo a humilhar, identificar, chantagear, prender e extorquir os frequentadores. A corrupção e a violência eram, assim, parte do cotidiano da experiência LGBT+ nos poucos lugares de sociabilidade existentes.
Mas algo começou a mudar no dia 28 de junho de 1969. Já era madrugada quando a polícia apareceu e começou a abordar, de forma agressiva, as mais de 200 pessoas que ali estavam curtindo a noite. Algum desajuste ocorrera no acordo entre polícia e máfia. Os agentes policiais começaram a revistar, já separando aqueles que seriam detidos e os que seriam soltos, como sempre faziam. Também começaram a apreender as bebidas alcoólicas. Mas os poucos policiais e viaturas não eram suficientes para a prisão de tanta gente. Foi preciso esperar a chegada de reforço e foi nesse contexto que eclodiu uma revolta espontânea e violenta por parte das pessoas LGBT+.
Diversas são as memórias e as diferenças nas narrativas de como se deu esse acontecimento histórico. Fala-se em quem deu o primeiro grito contra um policial, quem jogou a primeira pedra na viatura, quem liderou a rebelião. Apesar das diferenças, todos os relatos convergem, contudo, para a descrição de um motim que começa a se formar sem planejamento prévio, por meio de combinação de pequenas desobediências individuais tais como pessoas se negando a entregar documentos, não se deixando algemar e nem ficando em fila conforme o comando das autoridades. As LGBT+ que foram liberadas não foram embora, mas permaneceram na frente do bar acompanhando as discussões e tensões. A polícia tentou impor suas ordens e as pessoas resistiram e começaram a jogar latas, garrafas e pedras contra a polícia. Alguns dos oficiais ficaram protegidos dentro do bar. A população atirava também dinheiro aos gritos de “policiais corruptos”. O reforço demorou a chegar e a temperatura aumentou nas horas seguintes, com o envolvimento das pessoas que estavam na rua e que começaram a se dirigir para a frente do Stonewall, inflando a aglomeração de gente.
A humilhação, desta vez, fora imposta à polícia pelo “gay power” que emergira naquele episódio. A rebelião do primeiro dia só terminou com a dispersão no começo do amanhecer por uma tropa especial da segurança pública que foi chamada para resolver a insólita situação. Nos dias seguintes, a repercussão nos jornais e nos panfletos distribuídos pela comunidade vão provocando novas revoltas que seguirão desafiando a repressão estatal. Os conflitos tomavam as ruas de modo que não podiam mais ser escondidos. As pessoas LGBT+ expressavam seu orgulho e já não queriam mais voltar aos guetos e armários nas noites seguintes.
Essa breve descrição tenta dar conta do clima efusivo e esperançoso que marcou os levantes de Stonewall. Mas um olhar mais cuidadoso para a história revela que não foi essa a primeira vez que a população LGBT+ irrompeu na cena pública reivindicando direitos e combatendo a violência policial. Há registros de confrontos em bares na Costa Oeste dos Estados Unidos na década de 1960, destacando-se, por exemplo, a experiência da revolta da Compton’s Cafeteria em São Francisco, ainda em 1966.
Mesmo não sendo um acontecimento inédito ou exclusivo, algumas razões ajudam a compreender a singularidade que caracterizou Stonewall. Primeiro, Nova York já era uma das cidades mais cosmopolitas do mundo naquele momento. Ao funcionar como epicentro econômico do capitalismo norte-americano, ela também se tornou um lócus privilegiado de desigualdades sociais e um refúgio para milhares de pessoas LGBT+ que migravam em busca do anonimato da vida em uma grande cidade. A mistura de “desajustados” de diferentes raças e classes sociais presentes em Stonewall era um ponto de partida propício para uma revolta coletiva.
Segundo, as lutas por liberdade sexual e igualdade de gênero fermentadas durante as décadas de 1950 e 1960 sedimentaram as condições para a emergência de novas perspectivas sobre o corpo, o desejo e a sexualidade. Além disso, foi fundamental nesse processo de questionamento de valores tradicionais a contracultura hippie, as lutas pelos direitos civis de mulheres e negros, as mobilizações contra a Guerra do Vietnã e a geração beat.
Terceiro, a afirmação de uma identidade homossexual coletiva e igualitária, resumida na palavra “gay”, que não se hierarquizava mais tão centralmente pelos papéis de gênero, permitiu a criação de laços de solidariedade e a formação de uma subcultura mais adensada.
Quarto, os Estados Unidos contavam, em grande parte dos seus estados, com legislações discriminatórias e de criminalização das homossexualidades, tendo havido uma campanha de perseguição contra a população LGBT+ durante o macarthismo, que ficaria conhecida como Lavender Scare, na qual quase cinco mil homossexuais teriam sido cassados dos cargos públicos civis e militares entre 1947 e 1950. Isso despertou resistências importantes na aglutinação dessa identidade gay em busca de mudanças legais e maior aceitação.
Além dessas condições, Stonewall deixou legados notáveis. Apesar de não inaugurar o ativismo LGBT+ nos Estados Unidos, as revoltas marcam um ponto de inflexão, mudando o estilo de militância. Acusava-se a Mattachine Society, organização homófila fundada em 1950, de ser bem-comportada e assimilacionista, por pregar para uma postura mais tradicional e descolada de outras agendas. Stonewall inauguraria, ao menos na visão de seus protagonistas, uma militância mais combativa e orgulhosa. Não bastava lutar pela tolerância, era preciso mudar as estruturas da própria sociedade que estigmatizava as pessoas LGBT+.
Antes de Stonewall, diante da injúria e da vergonha na sociedade patriarcal e heteronormativa, a saída era construir uma imagem socialmente respeitável de homossexual, batalhando por uma integração à normalidade para conseguir acessar as migalhas de alguns direitos. Depois dessa revolta histórica, o melhor jeito de lidar com o preconceito era o embate, a denúncia e a não conformidade. Desse modo, houve um deslocamento no estilo de ativismo, com o orgulho funcionando como vetor ideológico principal de um modo eroticamente subversivo de ser.
Tanto que, depois de Stonewall e graças a ele, serão fundados grupos que pela primeira vez estamparão orgulhosamente a expressão “gay” nos seus nomes: o Frente de Libertação Gay, que remete às frentes de libertação anticoloniais, e o Aliança de Ativistas Gays. Além disso, nas maiores cidades americanas –  depois exportadas para todo o mundo – começarão a ser realizadas, já em 1970 e anualmente, as Paradas do Orgulho LGBT+ e que expressam, justamente, o espírito de Stonewall: ocupar as ruas e romper com a invisibilidade imposta pelo gueto e pela violência.
No entanto, deve-se frisar que Stonewall tornou-se o “mito fundador” do movimento LGBT+ global também pelo imperialismo cultural norte-americano. James N. Green, em seu artigo, aponta como havia experiências de organização de pessoas LGBT+ em estilo muito semelhante àquele produzido por Stonewall já em 1967 na Argentina e, poucos anos depois, também no México. Enquanto países latino-americanos estavam construindo seus próprios referenciais de “stonewalls”, o Brasil vivia o período mais agudo da repressão ditatorial a partir de 1968, atrasando a emergência do movimento LGBT+ entre nós.
Por sua vez, Symmy Larrat chama atenção para os apagamentos e invisibilizações de outras letras da sigla LGBT+ nas disputas de memória em torno de Stonewall, lembrando como travestis foram fundamentais naquele acontecimento histórico, entre eles Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera. Symmy também nos lembra como a continuidade da violência policial ainda é uma constante na vida de LGBT+ pobres nas áreas periféricas das cidades brasileiras, mesmo passados 50 anos desde o marco de Stonewall.
Desse modo, mais do que comemorar, o objetivo deste especial é trazer uma leitura crítica e contextualizada de Stonewall, feita desde a realidade brasileira e considerando as dificuldades presentes na atual conjuntura, marcada pelo crescimento da LGBTfobia em ato e em discurso. Conhecer a história de lutas da comunidade LGBT+ é não somente um modo de aprendizado para pensarmos táticas e estratégias, mas também uma maneira de nos inspirar para estar à altura dos desafios do presente.

(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

A crítica de Guimarães Rosa

  Sílvio Holanda

A crítica de Guimarães Rosa
Benedito Nunes em seu escritório-biblioteca “abarrotado de livros” (Fotos: Patrick Pardini)

Apoiado em um sentido humanístico de ampla formação acadêmica, aberto e de contornos fluidos, o ensaísmo de Benedito Nunes contribuiu para a elucidação crítica de nomes importantes da cultura brasileira, como Farias Brito, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Oswald de Andrade etc. Em relação a Guimarães Rosa, o professor paraense também trouxe uma interpretação original, cujos contornos se desenham entre a dimensão imagético-poética e o nível conceitual das especulações filosóficas, planos esses articulados por uma constante interpelação da própria linguagem, à luz de pensadores como Heidegger e Sartre.
A produção bibliográfica nunesiana conta com aproximadamente vinte e seis artigos e cinco capítulos de livros. Os textos publicados em jornais e revistas datam do período que vai de 1957 a 2007, perfazendo cinco décadas de uma produção ensaística relevante para os estudos rosianos no Brasil e no exterior. Publicados em revistas brasileiras e estrangeiras ou nos mais importantes suplementos literários nacionais, tais textos abordam, sob diversas perspectivas, temas como a tradução, o menino, o amor, a viagem etc., com base no estudo interpretativo de diversas obras rosianas, como Sagarana, Grande sertão: veredas, Corpo de baile, Tutaméia, entre outras.  
Sintetizar tais textos, cuja dimensão material supera, em muito, o artigo dos nossos dias, levando em consideração sua base teórico-crítica, é uma tarefa que aqui não é possível, contudo salientemos suas linhas de força, centradas em temas fundamentais como a concepção erótica da vida e as relações entre poesia e filosofia. No ensaio “O amor na obra de Guimarães Rosa” (1964), republicado em O dorso do tigre, considerando as obras Grande sertão: veredas, Corpo de baile e Primeiras estórias, o crítico postularia a tese da centralidade do amor, no que diz respeito à cosmovisão rosiana: “O tema do amor ocupa, na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa, uma posição privilegiada. Em Grande sertão: veredas, onde aparece entrelaçado com o problema da existência do Demônio e da natureza do Mal, atinge extrema complexidade e envolve diversos aspectos que compõem toda uma ideia erótica da vida”.
As três espécies de amor existentes na obra rosiana poderiam ser representadas por Otacília (o enlevo), Diadorim (a dúbia paixão pelo amigo) e Nhorinhá (a volúpia). Embora os tipos de amor sejam qualitativamente diversos, ocorre uma interpenetração entre eles. Sem recorrer à interpretação alegorizante dos trabalhos de Heloisa Araujo, o professor paraense buscará mostrar que a temati­zação do amor, na obra rosiana, remonta ao platonismo, porém numa perspectiva mística heterodoxa, “que se harmoniza com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que expri­me, em linguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor divino, do erótico em místico”.
A visão erótica da vida, em Guimarães Rosa, assim, segundo Benedito Nunes, permitiria a aproximação entre o profano e o sagrado. Assim, de Nhorinhá a Otacília, há uma como uma ascensão, partindo da explosão erótica de Nhorinhá à imagem angelical de Otacília, objeto ideal, à semelhança do mundo inteligível de Platão. Dessa forma, o platonismo está subjacente a essa ideia de amor, uma vez que se pode falar numa espécie de conversão do carnal em espiritual.
Grande parte dos trabalhos lançados inicialmente em periódicos foi republicada em livros organizados pelo autor ou por outrem: O dorso do tigre (1969 e 1976), Teoria da Literatura em suas fontes (2. ed., 1983), Seminário de ficção mineira II (1983), O livro do seminário (1983), Guimarães Rosa (1991), Crivo de papel (1998), Veredas no sertão rosiano (2007). Como se trata de livros muito conhecidos e debatidos pela crítica especializada, propõe-se uma breve referência ao primeiro texto rosiano escrito por professor Benedito Nunes em 1957: “Primeira notícia sobre Grande sertão: veredas”, estampado no Jornal do Brasil de 10 de fevereiro de 1957.
O artigo de 1957, lido em confronto com a tradição crítica que se formou em torno de Guimarães Rosa na última década, põe em foco o vínculo entre Guimarães Rosa e Mário de Andrade. Além disso, discutem-se a linguagem, o processo narrativo, o problema do gênero, entre outros aspectos.
O texto rosiano apresenta-nos em uma “nar­ração inteiriça” e oscila, abandonando-se a língua culta, entre dialeto regio­nal e criação arbitrária. A inovação introduzida pelo autor mineiro se justifica esteticamente pela “necessidade irrecorrível, exigida pela natureza do próprio romance, cuja tra­ma, situações e personagens demandavam forma especial de tratamento”.
No que diz respeito à técnica narrativa, Benedito Nunes apoia-se no conceito de discurso livre para explicar a autonomia do narrador em relação ao romancista. “Ele não é, entretanto, o narrador controlado pelo romancista que, em geral, quando adota este recurso de fa­zer com que o personagem exponha os acontecimentos ou as próprias ideias, não desaparece atrás de sua criação e com ela não se confunde. Mas, nesse romance, o autor quis se enredar num problema dificílimo de técnica. Como permitir que Riobaldo falasse, num discurso livre, ele mesmo contando a sua história, sem desfigurar-se a condição humana do sertanejo, inculto, mas extremamente sensível, ligado ao mundo pelo constante pelejar, com um código moral diferente do nosso, sem dúvida e, ainda, com seu linguajar próprio, limitado, regio­nal?”.
A relação entre Mário de Andrade e Guimarães Rosa – depois retomada por Mary Daniel e outros intérpretes – é um dos eixos do artigo de 1957. O linguajar do sertão se transforma em linguagem artística, em estilo, resolvendo o problema do regionalismo, debatido desde a recepção crítica primeira de Sagarana. “Sob esse aspecto, o processo de Guimarães Rosa não é novo. Mário de Andrade em Macunaíma fez, guardadas as proporções, o mesmo, for­jando uma língua que reuniu várias moda­lidades linguísticas existentes no país; en­trosou os termos de origem indígena aos de origem africana, alterou a sintaxe, deu vi­gor literário às expressões familiares e de gíria”.
Assim, relacionando, de modo original, a linguagem ao tema, às situações e aos personagens, fazendo daquela “instrumento psicológico”, cuja intensidade garante a unidade da obra e o seu “poder expressivo que confina com a poesia”.
Não se limitando a uma gesta do sertão, Grande sertão: veredas ultrapassa o âmbito regional, pois, no drama do sertanejo ou do jagunço, “irrompem os grandes problemas humanos – seja a luta do homem contra natureza que o estimula e o abate ao mesmo tempo, seja o ímpeto do jagunço que se põe em armas para defender uma causa indefinível, adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu espírito do que pela necessidade de viver e de realizar o seu destino”.
Antecipando tanto leituras sociológicas quanto esotéricas da obra-prima rosiana, Benedito Nunes postula uma interpretação “espiritual” da terra e do povo que nela vive. Os fatores mesológicos, sociais e históricos, na mesma linha do conceito de reversibilidade de Antonio Candido, tomam a forma de um problema mais amplo (o Diabo existe ou não? O que leva o homem à crueldade e à violência?). Ademais, o crítico refere à presença, no texto, de “expressões acordes com a tradição do misticismo – tanto no oriente como no ocidente”. Entre essas, cite-se: “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas e as coisas não são de verdade”.
Em consonância com a crítica estilística então vigente, o estudioso aponta a saturação de elementos pitorescos na linguagem de Grande sertão: veredas, a fim de defender um estilo afim do poético, dada a sua peculiar configuração rítmica, algo que Oswaldino Marques já fizera para a obra até então publicada por Guimarães Rosa: “Mas quase sempre o estilo é extremamente poético. A prosa tem ritmo: é célere ou lenta conforme a situação exige. […] Mas raras são as mudanças do léxico e da sintaxe que não correspondam a uma contorsão necessária, para dilatar o poder expressivo da linguagem. […] Mas devido mesmo à comunicação emotiva que se estabe­lece, participamos de seus problemas, de suas lutas, alegrias e aflições”.
Ao lado das deficiências, entre elas o abuso de desarticulações sintáticas, contrações e elipses, o crítico salienta, no “livro tumultuoso e imenso”, episódios hoje consagrados pela crítica brasileira e estrangeira: o amor de Riobaldo por Diadorim, a morte dos cavalos assassinados pelos cangaceiros, o encontro da tropa de jagunços com os catrumanos, as lembranças tumultuosas de Riobaldo, os últimos combates entre os dois bandos que dividiam o domínio dos “gerais” e a descoberta de que Dia­dorim é mulher.
Como se viu, o artigo de 1957, lançado nas páginas do Jornal do Brasil, onde já atuava Mário Faustino, embora datado e ligado a circunstâncias diversas, insere-se na tradição crítica rosiana, tanto pelas vias que abriu, como a aproximação com Mário de Andrade, quanto pela retomada de perspectivas já em consolidação, como a via da crítica estilística de um Oswaldino Marques e de um Cavalcanti Proença. A esse primeiro trabalho, viria somar-se um conjunto de textos que, malgrado a modéstia do crítico paraense, mudaram, definitivamente, a leitura crítica do maior romancista brasileiro do século 20.

Sílvio Holanda é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e professor associado do Instituto de Letras e Comunicação da UFPa

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Publisher: Democracy in vertigo

 
 
 Resultado de imagem para democracia em vertigem
 

I just watched the documentary by Petra Costa, Democracy in Vertigo, recently released by Netflix. There are already four documentaries produced addressing the 2016 coup in Brazil: The Process (Maria Augusta Ramos), Excellencies (Douglas Duarte), The Wall (Lula Buarque) and Democracy in Vertigo (Petra Costa). I have not had the opportunity to watch the others yet. Petra's documentary has received a lot of praise and even a possible nomination for an Oscar for the documentaries category. I analyze the documentary by Petra Costa as a political scientist, refraining from making other considerations, certainly more pertinent to the people of the cinematographic field, which is not our beach.


Our lens is the lens of Political Science. In this aspect, the documentary does not bring great news, except for the blatant scenes of savagery produced by the intensification of the political moods of those dark days, with reflections to this day. A sharpening, indeed, intensely stimulated, when it should be restrained, in the name of a civilized coexistence. We refer here to the chain of successive events that culminated in the coup of 2016, identifying the political actors who participated in these tessituras, such as the international financial banking, consorted with sectors of the political and economic elite, aligned with segments of the media and the judiciary. As Petra Costa notes, we are a republic of families. One day they get tired and take power. This "tiredness" or indisposition of our elite with the rules of the democratic game, Petra Costa, is in fact a constant. The country lives of authoritarian upheavals, with few moments of tranquility and democratic normalcy. It is a democracy bound to be unbound.


I recorded here an interview granted by an American jurist who, well before the recent leak of the audios of The Intercept Brazil, already pointed out the clamorous flaws in the process that condemned the former president Lula to the prison. The failures in the conduct of the process that has condemned Lula, as his defense has pointed out, are blatant since then. What the website brings again is the fabric of the frame of this plot, consubstantiating what impartial lawyers had already denounced. Incidentally, at the end of the speech, the jurist concludes that the greatest guarantee of a fair trial for a defendant is an impartial judge. In a country with a minimum of democratic normality and legal order, the evil would have been avoided since the illegal staples and the subsequent leakage of them, an affront to the Constitution.


A renowned jurist from Pernambuco, after watching the documentary, was impressed by the suffering of President Dilma Rousseff. In fact, yes. She cries a lot when she remembers the fear of the torture sessions she was subjected to, the cancer that she has overcome, and the death of our democracy. After the presidential elections, with Dilma Rousseff's victory, her executioners had already decided that she would not rule. Leaks from The Intercept Brazil site - the material is said to be robust - help us understand the coup sewing, the interests at stake, and its main architects. As the journalist Luis Nasiff observed, the republic fell along with the plane that drove former Federal Supreme Court Justice Teori Zavascki, who was determined to prevent excesses.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Crônica: Um muçulmano nos terreiros do Recife



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     José Luiz Gomes


    Ao seu biógrafo oficial, Edson Nery da Fonseca, Gilberto Freyre confidenciou algo curioso: chegou a concluir o livro Jazigos & Covas Rasas, aquele que completaria a tetralogia de sua obra, abordando como os habitantes da Casa Grande e da Senzala deixam o plano terrestre. Ao viajar ao exterior, deixou o livro envolto num pano vermelho e, ao voltar, não mais o encontrou. Apenas o prefácio da obra teria sido localizado. Trata-se, certamente, de uma perda irreparável não apenas para o sociólogo, sua família, mas para a cultura do país, que foi privada do acesso à análise do tema, produzida por um dos mais importantes intérpretes do país. 

    Este prólogo, leitores, é para chamar a atenção sobre um acervo recentemente doado à Fundação Joaquim Nabuco pela esposa do antropólogo Waldemar Valente. Waldemar Valente, ao lado de René Ribeiro, Mauro Motta e o próprio Gilberto Freyre formavam uma espécie de núcleo duro do então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, depois Fundação Joaquim Nabuco. À época do então IJNPS, a despeito de enormes dificuldades, pesquisas importantíssimas foram realizadas, colocando a Instituição, nas palavras do próprio Gilberto, como uma instituição de excelência nos trópicos, numa perspectiva principalmente européia. Apesar dos tempos de estudos de Gilberto Freyre nos Estados Unidos, a Instituição nunca conseguiu ampliar seu capital simbólico naquele país. 

    Numa entrevista, Waldemar Valente fala daqueles tempos, relatando alguns fatos importantes de sua passagem pelo Instituto. Chama a atenção, por exemplo, entre outras tantas coisas, uma pesquisa realizada por ele sobre os terreiros do Recife e região metropolitana, num total, à época, salvo melhor juízo, de 4.500 terreiros dedicados aos cultos de matriz africana. Possivelmente um levantamento realizado entre as décadas de 40 e 60 do século passado, quando esses cultos foram bastante perseguidos na província, notadamente pelo Estado Novo. Mais ainda, um possível vídeo gravado por ele de um desses ritos, com o pai de santo em transe, vestido com uma indumentária muçulmana, falando línguas estranhas, como diriam os evangélicos. Algo inusitado. 

    Quando, recentemente, numa viagem a Salvador, no contexto de uma pesquisa inserida nos Programas Institucionais, relatamos o fato aos pesquisadores do CEAO, Centro de Estudos Afro-Orientais, eles ficaram curiosíssimos, pois são raríssimas as referências sobre a presença dos escravos muçulmanos naquele Estado. Essas referências foram completamente dizimados depois da Revolta dos Malês. O respeitado pesquisador João José Reis, por exemplo, levanta dúvidas até mesmo em torno da existência de Luísa Mahin, que supostamente liderou a revolta e depois refugiou-se na região do Recôncavo Baiano, precisamente na cidade de Cachoeira, tendo seu nome também associado à fundação da Irmandade da Boa Morte. João José Reis não encontrou nenhum documento que comprove a sua existência. Há de se perguntar: Seria mais uma dessas lendas? À exemplo da escrava Anastácia?

    Difícil saber se este tal vídeo encontra-se entre o acervo recentemente doado pela família de Waldemar Valente à Instituição. Se estiver, reputo-o já como numa dessas preciosidades que vem se juntar ao pré-sal de acervos da Fundação Joaquim Nabuco, numa expressão feliz de uma de suas servidoras.



Editorial: Democracia em Vertigem

sábado, 22 de junho de 2019

Direita, esquerda e a incompetência política contemporânea

  Roberto Dutra

Direita, esquerda e a incompetência política contemporânea
(Foto: Harold Edgerton / Divulgação)

As semânticas políticas contemporâneas, à esquerda e à direita, aprofundam o uso daquilo que Armin Nassehi (no livro Die letzte Stunde der Wahrheit. Kritik der komplexitätsvergessenen Vernunft) chamou de “razão que esquece a complexidade” (komplexitätsvergessene Vernunft). Esta “razão” consiste basicamente na crença de que a sociedade possui um ponto central a partir do qual se pode conduzir e controlar a mudança social, oscilando entre a moral, a política, o direito ou a educação, mas nunca considerando a complexa situação de concorrência e incongruência simultânea entre estas esferas diferenciadas.
Tradicionalmente, cética de que a política pudesse realizar este papel, a direita via este ponto central de condução na reforma e na seleção moral de pessoas, no cultivo das virtudes, enquanto a esquerda tomava exatamente a política como o centro de condução e controle das mudanças na sociedade e em suas esferas. Frustradas com suas respectivas apostas, direita e esquerda tendem a inflacionar suas expectativas sobre a educação, como se esta pudesse direcionar a mudança das estruturas da ação social por meio da formação e da integração moral e cultural dos indivíduos e da sociedade. A dificuldade é entender e falar da mudança como algo que ocorre no plural, de modo simultâneo e não integrado em diferentes esferas da sociedade, sem um centro que conduza os diferentes processos de transformação, embora seja necessário para a política a produção de narrativas unificadoras. Não se trata de abrir mão destas narrativas, mas de entender que elas não resolvem todos os problemas da política e da arte de governar.
Em seu novo livro sobre o assunto (Gab es 1968?), Nassehi avança a tese de que 1968 se tornou uma “fonte de narrativas simplificadoras” sobre a transformação social, nutrindo uma moralização duradoura e amplificada da política e tornando a nova direita (nacionalista) e nova esquerda (identitária) cada vez mais parecidas em sua forma de fazer política: ambas tendem a propor a transformação da sociedade a partir da promoção das boas intenções, da pureza de princípios e da condenação ou conversão dos moralmente indesejáveis como âncora para a ação coletiva. Esta fusão semântico-discursiva entre moral e política aprofunda a “razão que esquece a complexidade”, pois, enquanto a sociedade se torna mais complexa e mais difícil de ser transformada a partir de um único ponto de condução, mais se cultiva a fixação por “histórias simples” do “bem” contra o “mal”.
Um dos sintomas mais fortes deste aprofundamento da “razão que esquece a complexidade” é o desprezo crescente pela “técnica” tanto na nova direita como na nova esquerda. Na direita, basta observar o “governo” Bolsonaro (um aborto, um feto que não nasceu e já parece morto) para perceber como a crença na fusão entre política e moral (“guerra cultural” contra a esquerda) leva a se desconsiderar a complexidade de uma sociedade diferenciada em esferas e lógicas que reagem a todo esforço de transformação externa pela moral e/ou pela política. Para ação prática, o maior problema é que isto implica em não perceber que os setores de políticas públicas precisam levar em conta a “tecnologia social”, ou seja, o modo como intervenções produzem efeitos pretendidos e não pretendidos, de acordo com as lógicas diferenciadas da economia, da educação, da segurança.
A ideologia neoliberal de Paulo Guedes não é exceção que confirma a regra. É a regra: não se trata, como é vendido pelo banqueiro e seus seguidores, de uma visão “técnica” da economia, comprometida em considerar a complexidade interna deste subsistema da sociedade, mas sim de mais uma “história simples”, igualmente moralista (como sabemos desde Reagan e Thatcher), sobre como gerar riqueza e prosperidade. A crença de Guedes de que as virtudes do livre mercado vão resolver os problemas da economia é tão subcomplexa como a crença de que o estado pode conduzir este subsistema. Guedes e os neoliberais não tem nada a ver com ciência econômica. Geram vergonha em liberais como Andre Lara Resende e Monica de Bolle, atentos à complexidade real do mundo econômico.
Na esquerda, o desprezo pela “técnica” se dá, por exemplo, na hiperinflação do discurso de que “tudo é política”, especialmente como escapismo para a abstinência econômica que tomou conta com a “virada pós-estruturalista” que ensinou que tudo é poder. Falta um discurso econômico capaz de levar em conta a complexidade e a autonomia operativa da economia, com relações de causalidade, expectativas e processos construídos internamente que ressignificam e redirecionam as tentativas de intervenção pela política.
Em vez de estudar e levar em conta os desafios e os meios mais efetivos para que a intervenção estatal não seja neutralizada, mas sim potencializada pela economia, a esquerda se fixa no bordão do “tudo é poder” e joga a culpa do fracasso na ganância dos empresários, oscilando entre moral e política, sem passar pela inteligência. Ora, a ganância dos empresários, assim como desejo de poder dos políticos, são as razões sociais criadas pela sociedade complexa com suas esferas diferenciadas, com suas lógicas autônomas e simultâneas, e quando estas razões são desconsideradas, qualquer esforço de mudança social torna-se cego e inconsequente.
Não se trata de defender o “livre mercado” e desaconselhar a intervenção do Estado, mas sim de entender que a intervenção do Estado precisa levar em conta que a lógica e os motivos próprios da ação econômica são um fato da realidade, e que o sistema econômico vai observar e interferir na interferência do estado, com uma resultando que pode fazer os efeitos não pretendidos predominar sobre os pretendidos. A construção e a reconstrução das estruturais sociais da economia não podem ser diretamente conduzidas pelo estado, mas podem ser induzidas ou irritadas por ele. A impossibilidade de condução direta resulta da diferenciação de “tecnologias sociais”, entre as quais está a formação de relações mais ou menos seguras entre “causas” e “efeitos” específicos da lógica econômica.
A “razão que esquece a complexidade” prefere ignorar tudo isso e apostar na justificação moral de seu próprio fracasso: o que explica o fracasso das boas intenções são os “corruptos”, para a direita, e os “gananciosos e opressores”, para a esquerda. Que se tratam de “histórias simples” é fácil de ver na mudança dos personagens, mas nunca da estrutura narrativa: num momento é a “elite de rapina”, noutro o “lixo branco”; num os “corruptos”, noutro os “comunistas”.
Quando mais a política ignora a “complexidade” e a “técnica”, mais ela se torna incapaz de entregar o que promete. A necessidade de simplificar o discurso no momento eleitoral não pode significar a necessidade de simplificar o discurso sempre. Na construção e implementação das políticas públicas ignorar a “complexidade” e as “tecnologias sociais” é ignorar as condições de sucesso e fracasso das ações do estado, é praticamente amputar a política para entregar resultados (output) e assim se legitimar na sociedade (input). A aceleração e a fragmentação da esfera pública que orienta a ação política e governamental, com oscilações quase diárias entre as “histórias simples” relevantes para a opinião pública, tendem a aprofundar ainda mais a “razão que esquece da complexidade”: a necessidade de “lacrar” todo dia torna ainda mais difícil a busca de alternativas institucionais e organizacionais capazes de viabilizar mudanças sociais em uma sociedade complexa, ou seja, de “tecnologias sociais” adequadas. Atentar para a complexidade e a técnica como elementos indispensáveis para a mudança social não é defender governos fracos. Não se trata de ser contra as mudanças produzidas a partir da política, mas sim de entender sua complexidade. É defender, de modo consequente e realista, governos fortes e capazes de produzir mudanças, pois o que temos hoje, com o uso da “razão que esquece a complexidade” dominando a política, é um desaprendizado da arte de governar, compensada pelo cultivo da arte de contar “histórias simples” (lacrar) e atribuir a destruição do final feliz à maldade do outro lado.
As reflexões de Nassehi sobre a “razão que esquece a complexidade” na política alemã chegam a conclusões parecidas com as de Mark Lilla (O progressista de ontem e o do amanhã) sobre a política identitária nos Estados Unidos. A moralização excessiva da política, que Lilla identifica e critica na política progressista de viés identitário, torna a esquerda incompetente politicamente, tanto para ganhar legitimidade e formar maiorias, como para administrar o estado. A política identitária tende a reduzir a conduta política a discursos concorrentes de grupos com suas moralidades sectárias e “histórias simples” sobre como transformar a realidade – a mesma aposta na conversão ou reconversão moral e no ativismo inconsequente que Nassehi identifica na geração de 1968, com seus segmentos pró e contra, mas compartilhando o mesmo quadro de referência hiper-simplificador da realidade e de suas possibilidades de transformação. No momento político recente, as “histórias simples” da direita parecem ter mais sucesso que as da esquerda. Mas a disputa entre elas tende a agravar a incompetência, partilhada não tão secretamente por ambas, de governar e entregar resultados. A amplificação das disputas morais, ao substituir as habilidades de abertura ao outro, à realidade empírica e à dimensão “tecnológica” da vida social, cria o que Lilla chama de “pseudo-política”. Pseudo, aqui, não porque seja de esquerda ou de direita, mas sim porque é incapaz de realizar a função específica da política, seja com programas de direita ou de esquerda: produzir decisões coletivamente vinculantes para formar maiorias e para produzir e implementar transformações como resultado da ação do estado na sociedade.
A ingovernabilidade e o colapso da função política só interessam a quem deseja a manutenção do status quo, ainda que seja em rumo à catástrofe civilizatória, e à neutralização das decisões coletivas e das maiorias sociais e políticas no rumo da história. Só interessa à direita, não à esquerda.
O que é ser de esquerda? Dominar a arte de governar em um mundo complexo ou “contar histórias simples” que só servem para marcar uma identidade política cheia de moral e vazia de programa e inteligência?
Roberto Dutra é doutor em sociologia pela Humboldt Universitaet zu Berlin/Alemanha e professor associado da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)

Charge! Folha de São Paulo

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quinta-feira, 20 de junho de 2019

Michel Zaidan Filho: A fragilidade da criatura humana


 

Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, descreveu um comportamento patológico chamado de “narcisismo primário”. Todos nós, quando pequenos, temos uma boa dose de narcisismo nas nossas atitudes. O duro e lento exercício de descentramento do “eu”, ou seja, não se achar o centro do universo, leva muito tempo. É uma etapa psicológica semelhante a do assassinato psicanalítico da figura paterna. A maioria, contudo, se liberta desse comportamento, e aprende a duras penas que não é o umbigo do universo, mas um grão de poeira ou uma cabeça de alfinete, num vasto mundo que pouco se interessa pelas nossas fantasias de onipotência. Ocorre que um grupo de pessoas não consegue jamais superar esse “narcisismo”, e continuam, vida afora, a se acharem o centro de todas as atenções. Estão inseridas nesse grupo certas personalidades do meio jurídico que têm vida pública ou visibilidade pública através dos meios de comunicação ou por ocuparem cargos públicos.

São parecidas àquelas notabilidades de aldeia, onde que tem pedigree familiar ou estudou fora do país, realçam o seu brilho, como uma gota de água no deserto. O velho Sergio Buarque de Holanda já tinha se referido ao caráter retórico, vistoso, ligado à afirmação da personalidade da pessoa, de nossa formação ibérica, portuguesa. Segundo ele, daríamos mais valor à afetação, ao teatro, do que ao conteúdo do que falamos. Interessaria mais a impressão e o modo do que dizemos/fazemos do que a mensagem propriamente dita.

Nosso estado (ia dizer capitania hereditária), se ufana da sua longevidade histórica e suas raízes coloniais e imperiais. Pernambuco vive desses fantasmas antigos que sempre voltam ou são invocados para impressionar os vivos. Aqui, dizia o conde da Boa vista, quem não é Cavalcanti é cavalgado. Pelo visto, as coisas ainda caminham nesse passo. Os Cavalcantis permaneceram, com o seu brilho, sua tradição retórica e sua vaidade. São como os “narcisistas primários” de Freud, fazem de tudo (bom e ruim) para chamar a atenção. Trocam de lado na política, apoiam candidatos fascistas e autoritários, desqualificam as comissões onde pontificam e usam – como podem – os meios de comunicação para se expressarem como “prima donas” num teatro burlesco e regional. Um arremedo de esfera pública dominado por um punhado de famílias tradicionais e ricas torna-se o palco, por excelência, dessas personalidades performáticos, onde o meio é a mensagem. Ou seja, onde não há mensagem.

Rebentos da oligarquia ou associados a ela, por relações familiares, acham que têm direito natural a tudo: cargos, influencias, posições de prestigio etc. Quando são contrariados, fazem da frustração pessoal uma questão política e assumem posições polêmicas e controversas. É o seu jeito de manifestarem sua revolta pela contrariedade de seus desejos de onipotência infinita. Foi o que ocorreu com o episódio das últimas eleições presidenciais no Brasil. Pessoas de conhecida notabilidade local e regional, tomaram o lado do candidato fascistóide, não por identificação ideológica ou política, mas pela vaidade ferida, por terem sido “esquecidas” pelo governo petista para cargos, comissões ou simples consultores. Acharam-se ofendidos, preteridos, quiçá perseguidos pelo governo de turno. Lamentavelmente, esse tipo de gente pensa que tudo o que acontece no universo tem a ver consigo, para o bem ou para o mal. Se são lembrados e contemplados, ótimo. É merecimento natural. Se são esquecidos, é crime de lesa-vaidade. E aí vem a retaliação na forma de ”ser do contra”, de remar contra a corrente, independentemente de seu conteúdo ideológico, ético ou político.

É preciso considerar esse tipo de comportamento como uma patologia séria e perigosa; se fosse possível criar um reino imaginário, um castelo de cartas, um refúgio qualquer (como a religião) e colocar essas pessoas aí dentro, seria uma terapia social de muita valia. Causaria menos danos à sociedade e a si mesmo. Infelizmente, essas criaturas andam por aí pousando de sumidade jurídica, esperteza político-ideológica, quando não de corregedores morais da nação. Muito triste tudo isso.

Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Crônica: As paixões de Joaquim Nabuco

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Cláudio Willer, o memorioso

  Wilson Alves-Bezerra 

Claudio Willer, o memorioso
O poeta e ensaísta Claudio Willer (Foto: Reprodução)

Em que idade um escritor deve escrever suas memórias? O dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues iniciou as suas precocemente, em 1967, aos 54 anos de idade, nas páginas do Diário da Manhã. Depois recolheu-as em livro, sob o título A menina sem estrela. Eladio Linacero, personagem literário do uruguaio Juan Carlos Onetti do romance El Pozo (1939), achava que o momento era antes: “Isto que escrevo são minhas memórias. Porque um homem tem que escrever a história de sua vida ao chegar aos quarenta anos, ainda mais se lhe aconteceram coisas interessantes. Li isso não sei onde.” O argentino Ricardo Piglia queria para suas memórias um eterno presente, de modo que optou prematuramente por escrever um diário de escritor: iniciou-o aos 17 anos e adiou a publicação até os 75 anos, quando rearticulou-o transformando seu eu pessoal em um de seus personagens; assim nasceram os três volumes de Os diários de Emilio Renzi.
O poeta e ensaísta brasileiro Claudio Willer, aos 78 anos acaba de publicar suas memórias, que seguem uma quarta via: velar o caráter memorialístico da obra – Dias ácidos, noites lisérgicas (Córrego) – com um despretensioso subtítulo: crônicas. Tampouco são suas primeiras memórias: também precocemente, há duas décadas, escreveu Volta (Iluminuras, 1996), livro que além de ser um ensaio sobre surrealismo, contava muito de suas experiências pessoais nos anos 60 e 70 e era ainda a história singular da circulação de um livro de nome circular, e da memória de um poeta – Augusto Peixoto – sobre a Terra. Dias ácidos, no entanto, é sobretudo memorialístico. São quinze textos, alguns recentes, outros recolhidos de cadernos antigos e há ainda os reaproveitados de entrevistas ou pesquisas não publicadas, agora reescritos, como o longo texto que descreve suas experiências lisérgicas e que dá título ao volume.
É um livro relativamente curto, mas não por isso menos intenso. O poeta passa como um raio sobre vários acontecimentos pessoais, sem se preocupar em torná-los grandiosos. Assim, de passagem, na página 134, ficamos sabendo que foi o livro de estreia de Willer, Anotações para um apocalipse (Massao Ohno, 1964), que inspirou o romancista Roberto Freire a criar o personagem “Claudio, poeta surrealista” de seu romance de estreia, Cleo e Daniel (Brasiliense, 1965). Na página 127 sabemos também que o poeta, ainda aluno de psicologia na USP, fora aluno de Durval Marcondes, um dos importantes difusores da psicanálise freudiana em São Paulo, trazida à universidade pelas mãos de Franco da Rocha, seu professor. Mas esses são dados laterais, o livro é outra coisa.
Dias ácidos, noites lisérgicas se constrói em uma curiosa contraposição entre a leveza da crônica e a força de tempos e cenários idos – sobretudo de São Paulo – que os textos evocam. Claudio Willer não busca o ordenamento cronológico: quase todos os textos têm data, e são de diferentes épocas, entre os anos 60 e a atualidade. O poeta busca não um monumento para si mesmo, mas um mosaico distorcido, uma imagem fugidia, tal qual o espelho do antigo bar Persona, no Bixiga, criado pelo artista plástico Roberto Campadello. Nele, há “no porão, espelhos reversíveis e lanternas, conforme se iluminava, você se enxergava, via quem estivesse do outro lado ou fundia as imagens, podia ser um ou outro.” Não é um livro sobre Claudio, é um livro sobre ele e seus leitores.
O texto de abertura, “A voz” se constrói a partir leitmotiv “Baudelaire”, dito pela boca de um gringo magricela, no Maranhão, em 1964, um lugar anterior ao culto à cor local, onde comia-se filé à parmegiana e não frutos do mar, lugar “não existente. O exótico para além do exótico: desconhecia-se”. O que fazia Claudio lá? Não sabemos. Mas vemos uma outra São Luís pelos olhos do jovem poeta. Sabemos de suas incursões, dos lugares por ele frequentados, mas tal qual nos espelhos do Persona, falta uma parte, uma imagem coesa de fundo, falta o poeta afirmando: “eu sou isso”. O principal, no entanto, não falta: suas leituras de Baudelaire e dos baudelaireanos Rimbaud, Desnos, Bataille, Lautréamont.
Complete a história quem quiser, parece dizer o autor, que passa adiante, retrocedendo a 1959, com “A festa e o homofóbico”, uma saborosa crônica sobre a repressão à sexualidade, com a lembrança de um rapaz da Associação Cristã de Moços, Milton, um homofóbico contumaz que de repente se libera numa festinha na casa do poeta, no bairro do Brooklin, em São Paulo, fazendo em público um ménage com dois outros rapazes. Os nomes? Não sabemos e não importa.
Páginas adiante, lemos “Muradas”, texto resgatado de um caderno, com data de março de 1967: nele, Claudio aclimata Proust, ao evocar uma mítica banana split do bar Muradas – da rua Martins Fontes, no centro de São Paulo – consumido depois de sessões de maconha, música e álcool com os amigos. Já então o jovem de 27 anos queixava-se do desaparecimento da iguaria, do advento anódino dos sorvetes de máquina da rua Augusta. Para os leitores de 2019, um mundo desaparecido comentando outro mundo desaparecido, mas também uma experiência familiar de perda na paisagem sempre movente da cidade, a cidade que não cessa de se transformar.
O texto seguinte “Dias ácidos, noites lisérgicas” é a narração de memórias a partir de paraísos artificiais, desde os anos sessenta até a atualidade, texto poderoso que termina em tom menor ao evocar as quebradas da zona sul de São Paulo, nas fronteiras da cidade em expansão rumo à periferia.
Ao fim do livro, o leitor vacila: não sabe se leu um livro de memórias de um poeta, ou se leu um livro das memórias de uma cidade, ou ainda, se leu memórias inventadas suas ou memórias da literatura de outros. Pois Dias ácidos, noite lisérgicas é tudo isso ao mesmo, e ainda mais: é o relato de experiências lisérgicas, sexuais, afetivas de um homem cujas memórias se inscrevem no corpo da cidade, sua cidade – um ente vivo que se metamorfoseia enquanto ele a rememora.
Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)