The Libraries Are Aprecciated, Jacob Lawrence, 1960 (Foto: Reprodução/Philadelphia Musem of Art)
Mesmo tendo que ser muito cuidadosos com a “cultura do linchamento” e do “cancelamento”, há questões muito importantes no debate suscitado por uma figura respeitada como Lilia Schwarcz em relação ao direito de qualquer um de nós analisarmos criticamente a produção cultural contemporânea para além e independentemente do nosso “lugar de fala”. No caso, a produção é o álbum visual Black is king, de Beyoncé.
Hoje, as controvérsias em torno da noção de “lugar de fala” e das “pautas identitárias” atualizam e repetem as reações hostis contra as cotas raciais reproduzidas por intelectuais brancos, utilizando argumentações muito semelhantes.
O célebre e criticado “Manifesto contra as cotas raciais”, publicado em maio de 2006, tinha como título: “Todos têm direitos iguais na República Democrática”. Endossado por artistas e intelectuais reconhecidos como Lilia Schwarcz – que, em 2019 publicou em seu Facebook um pedido de desculpas pela adesão ao documento -, o abaixo-assinado invocava o “direito universal” para se contrapor à política de cotas proposta pelo Estado brasileiro: “A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos ‘raciais’ estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância”.
O manifesto cristalizou uma argumentação falaciosa de que as cotas raciais “iriam introduzir o racismo no Brasil”. Diante da eficácia da política de cotas raciais nas universidades, tornada uma das mais transformadoras políticas de combate à desigualdade e ao racismo do Estado brasileiro, o documento é hoje considerado um equívoco por muitos que o assinaram. Um equívoco que se repete quando intelectuais brancos acusam os movimentos identitários de produzirem, por meio do debate público e da noção de “lugar de fala”, discursos supostamente radicalizados e irreconciliáveis, responsáveis por “acabar com a empatia”, por criar “polarizações e antagonismos” entre negros e brancos ou ainda por “calar” o debate. A inversão é problemática.
O que os brancos escandalizados não percebem é que sem um desequilíbrio estrutural no poder discursivo não teríamos uma “cota de fala” ainda limitada para os muitos e para os não-brancos, pois naturalizamos o homem branco como o sujeito do suposto saber e do suposto falar. Nós, os brancos, falamos e calamos, e se existe um “lugar de cala”, ele esteve explicitado e/ou invisível nesses séculos de grupos silenciados.
O que está em jogo nos movimentos identitários, no “lugar de fala” tal como nas cotas raciais, é o poder de modular privilégios (mesmo que de maneira ínfima ou simbólica). É essa “desvantagem” temporária no discurso que enfurece os brancos e que faz com que apelem, como no caso das cotas, para um direito universal abstrato que sempre tivemos: o de falar para todos no espaço público.
O comentariado
“Eu posso falar de tudo”. Sim, sempre pudemos, mesmo quando havia ou há pessoas mais habilitadas e com repertório para tal. Nós sempre estivemos nesse lugar central de fala e parece bem doloroso sair dele. Por séculos e décadas os intelectuais brancos se viram como intelectuais públicos e universais, autorizados a falar sobre tudo enquanto acumulam capital simbólico e real.
Os especialistas consultados, os colunistas, os donos de opiniões, foram durante séculos e décadas nós, os brancos, a despeito de existirem centenas de outros sujeitos sociais, acadêmicos, científicos (negros, mulheres, minorias) com as mesmas habilidades que nós, ou melhores. Falar sempre foi um lugar de poder. Opinar, analisar, publicar constitui capital simbólico e real passível inclusive de monetização. Quanto mais eu falo e me exponho, inclusive falando gratuitamente, mais tenho possibilidade que alguém me veja e me pague adiante.
O declínio desse intelectual público já vinha se dando com a ascensão da cultura digital e do comentariado: da massa que opina, publica, critica, dos intelectuais do Youtube, do Instagram, dos influenciadores e formadores de opinião do Twitter. Eles já colocavam em xeque a reserva de mercado de inteligência, opinião e análise do intelectual clássico, provocando uma redistribuição de capital simbólico.
Sim, o comentariado também produziu comportamento de manada, enxameamentos para o bem e para o mal, linchamentos, cancelamentos, destruição de reputações, desinformação global e fake news, um efeito colateral da cultura digital massiva imprevisível. Mas produz também outra desordem estrutural que possibilita uma nova partilha do sensível.
A emergência do comentariado e do cognitariado, essa nova força do capitalismo cognitivo, foi só a primeira ferida narcísica e abalo sísmico nos ambientes acadêmicos e entre os formadores de opinião e especialistas.
Beyoncé, influenciadores e os novos intelectuais
A noção política de “lugar de fala” e as pautas identitárias provocam uma nova partilha do sensível ao desnaturalizar e ao desnudar o privilégio branco de “falar sobre tudo” e “falar pelos outros” como sujeito universal de direitos e discursos.
O “lugar de fala” desequilibra as relações de poder que tem o homem branco universal como centro, daí provoca tanto escândalo e revolta. A primeira função do lugar de fala é se desalienar do lugar de onde falamos para entender as hierarquias, desigualdades e assimetrias que o nosso discurso produz, nega ou reproduz.
Então vamos combinar que a controvérsia em torno da análise de Lilia Schwarcz sobre o álbum visual de uma artista negra mainstream, Beyoncé, não é simplesmente o fato dela não ter gostado da linguagem da Disney ou de ter visto uma África clichê, ou ainda a “glamourização da negritude” com o uso de estampas de oncinha.
“Lugar de fala” é o que limita e expõe as perspectivas, justamente. Schwarcz viu clichês onde analistas e intelectuais negros e brancos viram um afrofuturismo potente, um ativismo mainstream, um imaginário colonial ressignificado e uma África mítica que performa a negritude na centralidade de um espetáculo suntuoso.
Da mesma forma que, no Carnaval, moradores de favelas se vestem de reis e rainhas, se cobrem de ouro, ou os remanescentes dos quilombos brasileiros festejam com as congadas a coroação de rainhas negras em cortejos majestosos, Beyoncé se apropria e “hackeia” a cultura colonial pop, remixando-a com infinitas tradições de matriz africana. Realezas tribais, outros reis e rainhas negras, outra nobreza popular, outras “monarquias” e reinados.
A questão, pois, dessa controvérsia está longe de se reduzir à análise propriamente dita: uma questão de linguagem, de gosto, de desinformação, se contém ou não racismo. A questão é que o intelectual branco não fala mais para seus pares com códigos cifrados e cumplicidade, fala para um comentariado que o desconhece (e desconhece a sua “reputação” e capital simbólico acumulado ou intocável); fala para os fãs fervorosos de Beyoncé, fala para movimentos ultrassofisticados que conceituaram o afrofuturismo, fala para outra intelectualidade negra que disputa a “reserva de mercado” do discurso acadêmico para brancos e que, sim, pode exigir outra partilha do sensível e dos discursos em que ser branco não seja mais uma vantagem discursiva. Nós, os brancos, e Beyoncé, falamos para intelectuais e ativistas que disputam narrativas.
O intelectual branco universal
Por isso pode soar tão “fora do lugar” a comoção de brancos com as críticas recebidas por Lilia Schwarcz, vindas de todos esses novos lugares e também dos movimentos negros e de intelectuais negros.
Caros amigos brancos, parem de se defender! É inútil repetir que todos têm “direitos iguais” de fazer crítica cultural sobre quaisquer objetos da cultura, e que uma intelectual branca não pode ser cerceada no seu direito, pois não é disso que se trata. Somos solidárias a Lilia e repudiamos as expressões ofensivas e violentas de alguns comentários, discursos de ódio que vão da extrema-direita ao campo das esquerdas. Mas é só isso: debate público com novos sujeitos do discurso e novos sujeitos políticos que analisam as limitações da brancocracia. Falar de “cancelamento” no caso de Lilia Schwarcz me parece um exagero de brancos. O “cancelamento” é uma estratégia que conforme a modulação pode ir de um honesto e necessário debate público até o seu extremo, que é o linchamento e destruição de reputações.
Qual o risco de “cancelamento” sofre uma intelectual branca, bem sucedida, autora prestigiada de livros acadêmicos e coordenadora de coleções que versam justamente sobre o antirracismo? Coleções e mercado editorial que só foram possíveis pela nova partilha do sensível e da luta dos movimentos antirracistas?
Lilia está longe de ser “cancelada” e seria deplorável se o fosse, já que soube muito bem se desculpar e aceitar as limitações discursivas apontadas. Não precisa de mais defensores brancos indignados reafirmado nossos direitos universais e nossa liberdade de expressão.
Intelectuais negros inventam linguagens
Quem são as novas e novos intelectuais negros e negras? Figuras como a filósofa Djamila Ribeiro popularizaram justamente a noção de “lugar de fala” e outros conceitos acadêmicos decisivos para esse debate. Autoras como Sueli Carneiro conceituaram o feminismo negro no Brasil. Conceição Evaristo traz para a academia e para a literatura a noção de “escrevivências” para contar, a partir de uma vivência e singularidade, uma história coletiva. Exatamente tudo que a tradição universitária nega como escrita científica ou acadêmica: conceitos e noções forjados em meio a lutas e não em território seguro e distanciado.
As intelectuais negras são frequentemente “reduzidas” ao discurso “militante” ou ativista, porque são sujeitos que, ao falar de si ou narrar uma trajetória, falam dos outros. Com uma escrita coletivizada de si, trazem uma real contribuição ao ensaísmo. Um encanto que ensina a nós, brancos acadêmicos universais, a nos narrar assumindo a nossa branquidade, branquitude ou brancocracia.
Pois sim, a minha trajetória de mulher branca, nascida em família de classe média periférica de Parintins, Amazonas, crescida em Rio Branco, Acre, com pais comerciantes que migraram em busca de melhores condições de vida, e minha vinda para o Rio de Janeiro, me proporcionaram uma trajetória de vida e construção de reputação – sem sobrenome, família ou status prévio no Rio – só possível pela minha entrada em uma universidade pública e gratuita, e pelo fato de ser branca. Me identifico com os “novos ricos” do capital simbólico por ter construído meu quinhão vinda das periferias do Brasil para os centros, e sabendo que ser branca me deu incontáveis privilégios, inclusive esse de ocupar um espaço de escrita.
A revolta de intelectuais brancos contra o “cancelamento” de Lilia Schwarcz diz também do “lugar de cala” secular exercido silenciosamente pelos brancos enquanto foi conveniente, da invisibilidade social e acadêmica de intelectuais negros, mulheres e outros. Não é mais e não somos nós que estamos sendo calados. Estamos em meio a uma emergência e “o lugar de fala” recentemente conquistado e performado pelos negros no Brasil é uma ferramenta, um conceito, um instrumento de luta para se celebrar.
Ativismo mainstream
O problema na análise de Schwartcz sobre o álbum visual de Beyoncé é também o de certa intelectualidade branca. Existe uma dificuldade dos intelectuais e das esquerdas entenderem os ativismos mainstream que vêm atravessados por estratégias de marketing, marca, e que produzem efeitos extraordinários em termos de comportamento. É preciso entender o papel da cultura pop nas disputas conceituais e de comportamento.
As mulheres e atrizes e atores brancos e negros usaram Hollywood, a moda, o glamour e a grana para o combate ao machismo no movimento Me Too de forma extraordinária. Beyoncé usa uma estética pop, glamorosa e de apropriação do luxo para o ativismo mainstream negro. O luxo (afrofuturismo suntuoso) não combina com a estética negra ativista?
Para além da questão do lugar de fala – “intelectual branco ou branca dando lições aos movimentos negros e outros” –, hoje as falas acadêmicas são passíveis de serem refutadas ou refinadas no espaço público em diálogo com não intelectuais. Não havia esse espaço. Nós falávamos sozinhos ou entre pares. Então, antes de tudo, celebremos a inclusão conceitual dos não universitários e ativistas no debate público brasileiro.
O direito de ser “neutro”, científico e argumentar criticamente sobre tudo continua, caros amigos e amigas brancas. Mas apenas a “autoridade” intelectual ou o capital conceitual não bastam e não impedem mais que outros sujeitos do discurso digam de forma bem explícita: seus conceitos, suas análises “desinteressadas”, sua argumentação crítica e ilustrada, seu Foucault finíssimo, seu Deleuze sofisticado, seu (completem com todos os nomes maravilhosos que amamos tanto) não servem para a minha luta.
E pasmem, tenho sim visto a intelectualidade branca desqualificar os movimentos identitários ou reduzi-los a um “essencialismo” simplório com bases nos filósofos da diferença. Exatamente como antropólogos e antropólogas prestigiadas da UFRJ e de outras universidades usaram seu capital científico e acadêmico para se posicionarem contra as cotas raciais, desqualificando uma política pública urgente porque ela supostamente revertia e utilizava o conceito de “raças” para beneficiar um grupo.
Disseram os antropólogos no “Manifesto contra as cotas raciais” que “a invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades”.
Conceitos não estão “acima” das lutas, e as lutas forjam, revertem, ressignificam, se apropriam de conceitos, como diz meu filósofo branco preferido, Gilles Deleuze, ou serão caixas de ferramentas ou ficarão em um céu de ideias fixas. E aqui uso e cito os intelectuais brancos que me formaram (Deleuze, Foucault, Negri etc.) sabendo que ao serem relidos ou criticados, não estão sendo “cancelados”, mas ampliados, potencializados por intelectuais negros como Achille Mbembe, por um pensador trans como Paul B. Preciado ou deixados de lado por outra tradição intelectual que prefere partir de outras matrizes conceituais mais enegrecidas.
Bem vindos ao início do fim da “reserva de mercado da inteligência” para nós, os intelectuais universitários brancos “acima” das urgências do presente. Elas sempre existiram, mas muitos de nós preferimos produzir papers destinados a pontuar nosso Currículo Lattes ou a dialogar em congressos de pares, espaços tão gentilmente mudos. Estivemos falando sozinhos durante séculos ou para “os mesmos”, por isso não fomos mais refutados e questionados.
Celebremos a ruidocracia e o embate conceitual, de valores, celebremos! Precisamos tanto de conceitos e análises gourmets, quanto de mais filmes de Beyoncé.
Ivana Bentes é pesquisadora do Programa de Pós Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)