Nem a Ciência pode nos salvar da barbárie
ultraliberal. Sobreviver como espécie exigirá uma “reencarnação
coletiva” no mundo pós-pandemia: novas formas de viver, pensar e
organizar a Economia. É isso, ou nostalgia masoquista
Publicado 27/04/2020 às 20:20 - Atualizado 27/04/2020 às 20:58
Por Manuel Castells| Tradução: Simone Paz | Imagem: Alessandro Gottardo
Nunca imaginamos isso. Ninguém imaginou. E ainda parece um pesadelo
do qual vamos acordar ao amanhecer. É claro que, algum dia, vai acabar.
Quanto mais nos ajudarmos entre todos, mais cedo vai acabar. E isso
inclui todos aqueles que tiram proveito da tragédia em prol de seus
interesses. Deixemos de lado nossas diferenças, já já acertaremos as
contas.
Nunca tínhamos enfrentado uma ameaça do tipo, nem sequer com a gripe
de 1918, porque, hoje em dia, a globalização e a trama de economias,
culturas e pessoas têm uma repercussão em tempo real para qualquer
barbaridade cometida em qualquer canto do planeta, como aconteceu com os
mercados de espécies selvagens. Humanos predadores, se protejam de
vocês mesmos. Nem nossos extraordinários avanços científicos e
tecnológicos conseguem nos salvar da nossa imensa estupidez. Por isso,
se sobrevivermos, não voltaremos ao mesmo. E, se voltarmos, a pandemia
vai retornar, a mesma ou outras, até que ocorra um reset daquilo que éramos.
Só existe futuro se pensarmos numa reencarnação coletiva da nossa
espécie. Isso não tem nada a ver com o mofado debate ideológico entre
capitalismo e socialismo, porque até o socialismo real e palpável também
já teve sua vez. Falamos em mudança de paradigmas. E algo do tipo está
acontecendo. Por exemplo, essa pandemia deve deixar claro que a saúde,
incluindo a higiene pública e a saúde preventiva, é nossa infraestrutura
de vida. E que não vamos poder viver apoiados de forma permanente no
heroísmo de profissionais da saúde, que adoecem dia após dia por falta
de equipamentos de proteção.
+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS
sustenta que o pós-capitalismo é possível. Queremos sugerir
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Teremos de investir, com prioridade, na saúde pública, porque a
particular serve para aquele que serve — e, em situações de emergência,
deve ser absorvida pela pública. Esse investimento é quantitativo e
qualitativo, em termos de materiais, aparelhos hospitalares, atenção
primária, educação à população, pesquisa, remuneração dos sanitaristas e
formação de médicos, enfermeiros e profissionais da saúde, de modo
geral, com faculdades e escolas melhor preparadas para acolher um grande
leque de vocações para o serviço
Fica evidente, agora, para além do sistema de saúde, a necessária
prioridade do setor público na organização da economia e da sociedade. E
não se trata de estatizar, porque cada fórmula de defesa do interesse
público deve se adaptar às características de cada sociedade. Da mesma
forma que a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial exigiram romper
com o fundamentalismo do mercado para proteger os direitos sociais e a
vida, de modo geral, mas conservando o dinamismo do mercado para tudo o
que é útil. Da mesma forma, torna-se necessário revitalizar o setor
público e reformá-lo, livrando-o da burocracia e da politicagem.
Por exemplo, pudemos constatar a hipocrisia social e institucional no
âmbito do respeito aos idosos, que são abandonados em situações
extremamente precárias quando as famílias não conseguem mais tomar conta
deles. Em parte, pela privatização das casas de repouso, o que
demonstra que a lógica de ambição não combina com cuidados que são caros
em funcionários e equipamentos. Mas, também, nas casas de repouso
públicas, pois os cortes orçamentários e a negligência de muitas
instituições acabaram abandonando nossos idosos à sua própria sorte,
como vimos no altíssimo número de mortes registradas nesses autênticos
campos de extermínio, durante a pandemia. Somente uma grande intervenção
— não somente em gastos, mas em gestão — pode evitar que isso ocorra
novamente.
A pergunta imediata é: como pagar. É evidente que com novos impostos e
com um aumento da produtividade. Não temos outra opção. Mas isso não
quer dizer mais impostos para as pessoas, e sim, obter recursos
lá onde se concentra o 75% da riqueza mundial, isto é, dos mercados
financeiros globais e as grandes multinacionais que evadem impostos
legalmente, precisamente, graças à sua mobilidade fiscal e administração
da papelada jurídica. Aplicando, também, o aumento da produtividade,
que envolve recursos humanos, isto é, setor público; ciência (de novo,
setor público); infraestrutura tecnológica (parcerias público-privadas);
e a transformação empresarial por meio da aplicação de novos
conhecimentos e tecnologia na gestão das empresas. Além disso, deve-se
adentrar o complexo território da produtividade e eficiência do setor
produtivo, desde a administração, até a educação.
Porém, o maior reset, é aquele que está acontecendo em
nossas cabeças e vidas. É termos percebido a fragilidade de tudo o que
acreditávamos garantido, da importância dos afetos, do recurso da
solidariedade, da importância do abraço — e que ninguém vai nos tirar,
porque mais vale morrer abraçados do que viver atemorizados. É sentir
que o desperdício consumista no qual gastamos erroneamente nossos
recursos não é necessário, pois não precisamos mais do que uns comes e
bebes com os amigos na varanda. Sabiam que as escandalosas
transferências multimilionárias do mundo do futebol acabaram? E não por
isso os Messi do mundo vão parar de jogar, porque o futebol corre pelas
veias deles.
O reset necessário é um portal para uma nova forma de vida,
outra cultura, outra economia. É bom que o valorizemos, pois a
alternativa a ele é a nostalgia masoquista de um mundo que se foi para
não voltar. A vida segue, mas outra vida. Depende de nós torná-la
maravilhosa.
Entrega de cestas básicas em São Sebastião, DF (Foto: Acacio Pinheiro/Agência Brasília)
Se a jornada de trabalho é a medida da troca entre capital e
trabalho, o salário era o preço das horas compradas ao trabalhador, mas,
historicamente, no desenvolvimento da legislação social, foi sendo
cercado de proteção especial, para ficar menos sujeito às vontades do
patrão e aos ventos do negócio. Assim como se conquistou, a duras lutas,
a limitação da jornada, intervalos, descansos semanais, a proteção do
trabalhador incorporou várias medidas relativas à remuneração, como
salário mínimo nacional, piso salarial por categoria, equiparação
salarial por cargo e função, multas para atraso, irredutibilidade,
impenhorabilidade etc.
Já vem de alguns anos a pressão para vulnerabilizar o salário,
permitindo que se torne tão precário quanto têm-se tornado outros
aspectos do contrato de trabalho, mas, neste momento de crise aguda, a
sanha para avançar sobre os salários tem sido persistente e, em grande
medida, vencedora.
Quando o governo falou em auxílio de R$ 200 para trabalhadores
informais, a primeira e triste constatação que me veio à mente é de que
essa proposta escancarava que essa figura do “empreendedor”, do “patrão
de si mesmo”, era alguém para quem o salário mínimo não valia. Num gesto
apenas, cuja natureza não se altera quando o valor passa para R$ 600,
nossos governantes reconheceram que, para o trabalhador informal e/ou
“empreendedor”, todo mês começa do zero. Ou pior: abaixo do zero. E, se
chegar aos patamares dos assalariados, dos trabalhadores “com carteira
assinada”, é por sorte ou “meritocracia”. É a situação de dezenas de
milhões de brasileiros: luta diária por sobrevivência, ganhar de dia o
que comer à noite, e isso explica, em parte, o apoio de grande parte da
população ao relaxamento da quarentena.
De outro lado, noutro gesto ainda mais violento, o governo acenou até
mesmo com a suspensão do contrato de trabalho sem salários, mas teve
que voltar atrás. Pegou mal, digamos. Mas, depois de muitas idas e
vindas, conseguiu passar a atual MP 936, que autoriza a redução em até
70% dos salários, com compensação proporcional pelo seguro-desemprego.
Na prática, os trabalhadores formais vão receber, no período, um pouco
mais da metade dos seus rendimentos mensais.
É cada vez mais comum ouvir pessoas próximas dizendo que terão cortes
de salários, mesmo em empresas que não passam por qualquer tipo de
crise, empresas que ganham muito dinheiro há muitas gerações e continuam
tendo seus contratos mantidos neste momento. Ou seja, soma-se à crise
(geral) um oportunismo (específico) para reduzir salários que já vinham
sendo achatados há bastante tempo.
Tenho certeza de que muitas empresas passam por grandes dificuldades
neste momento, mas, a meu ver, demissões e cortes de salários deveriam
ser colocados como a última fronteira, obrigando nossos criativos
economistas a encontrarem soluções que salvassem as empresas e os
empregos, sem sacrificar nenhum centavo destes.
Como já escrevi noutra oportunidade, essa redução dos salários
formais é ainda mais terrível num momento em que o salário é apenas uma
parte da renda de grande parte das famílias, ou seja, a parte que
poderia dar alguma sustentação enquanto a renda informal mingua. É algo
muito grave a ser enfrentado neste momento (mas sei que é quase
impossível enfrentar, seja na esfera pessoal ou politicamente), mas
muito grave também como horizonte para os trabalhadores assalariados e
para o papel que o salário representa nas famílias e na sociedade como
um todo.
Penso mesmo que um dos piores filhotes que essa pandemia pode deixar
aqui, para o mundo do trabalho, é a naturalização de cortes e reduções
de salário – algo com que o capital sempre sonhou e agora tem boas
chances de implantar e perpetuar.
Tem horas em que achamos que todas as instituições detestam Bolsonaro,
mas é importante notar como, na maior parte do seu projeto de
destruição de direitos sociais (encabeçado pelo ministro Paulo Guedes),
as instituições – o Congresso e o STF, notadamente – continuam aliadas
do bolsonarismo. Portanto, não basta Bolsonaro cair, com a ameaça que
ele representa à democracia, mas tem que ser varrido junto com todos os
ataques à justiça social que seu governo realiza e outros tantos para os
quais um governo ocupado com tantas crises internas é conveniente. Se
ele cair e essas medidas ficarem, teremos uma democracia formal
igualmente capenga, em que se pode até ter voz, mas ninguém grita.
Porque a barriga está vazia. Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.
Há
alguns meses atrás - em meio à pandemia autoritária que atingia o
continente americano - com base num artigo do jurista Rubens Casara, originalmente
publicado na revista Cult - publicamos aqui pelo blog uma série de
artigos tratando das ditaduras de um novo tipo instauradas no continente,
inclusive abordando, em profundidade, o caso brasileiro. O artigo de Casara estava baseado num livro
recente, do filósofo francês Michel Onfrey. Neste livro, Onfrey realizava uma
excepcional apropriação das teses de George Oswell, no livro 1984, onde o
autor inglês, num exercício premonitório, lança as bases sobre as características que norteariam os regimes ditatoriais no futuro.
Diferentes, talvez mais sutis, baseadas em
outros métodos, mas não menos danosas seriam essas ditaduras de um novo tipo. O que ocorreu é que, durante os
anos, as tecnologias que desenvolveram os dispositivos de controle
social foram sensivelmente aprimoradas, de alguma forma facilitando a
vida dos estados ditatoriais e seus asseclas de turno. As teses
defendidas por George Oswell foram brilhantemente dissecadas por Onfrey e
comentadas por Casara e por este editor aqui no blog. Essas teses foram cotejadas com a realidade
observada no país e publicadas, com exemplos esclarecedores. Agora,
diante da pandemia do coronavírus, vários projeções tem sido feitas
acerca de como ficará o mundo depois dessa pandemia.
Os Estados que
estão realizando o percurso da escalada autoritária - que traz no seu
bojo um componente ultraliberal na condução da política econômica -
mudariam sua conduta no que concerne ao atendimento das demandas dos
desamparados pela crise de saúde pública? Como ficaria, por exemplo, o mundo do
trabalho? O antropólogo David Graeber teria razão ao se referir aos
"trabalhos de merda", numa referência aos home office, que estão mudando
substantivamente as relações de trabalho? Neste contexto, quem, de fato, seriam os "trabalhadores essenciais"? Aqueles que reuniram condições de ficar em casa ou aqueles que tiveram que se expor ao vírus, por trabalharem em serviços essenciais, como os profissionais de saúde, os entregadores de mercadoria através de empresas de aplicativos? O ensino online poderia
substituir definitivamente o ensino presencial, mesmo diante do grande déficit de pessoas sem acesso à internet e considerando-se o fato de não ser possível fazer download de merenda, uma vez que, no Brasil, até uma programa de férias - ou quarentena - torna-se extremamente complicada, uma vez que contingentes significativos de estudantes comem nas escolas?
Já ando recebendo em
casa e-mails pedindo minha opinião sobre o assunto, numa perspectiva até
certo ponto tendenciosa. Algo em torno de 50 milhões de brasileiros
estão cadastrados naquilo que os especialistas denominam de "uberizacão". São trabalhadores informais, que atuam através das empresas por aplicativos - como Uber Ifood - sensivelmente desprotegidos. Agora, diante
da crise do coronavírus - que nos obrigou a ficar em casa - esses
profissionais passaram a ter uma importância capital. Serão tratados da
mesma forma depois da crise do coronavírus? Ou o capital - que passou por uma refrega neste período - faria algum aceno para este tipo de trabalho?
A partir de agora, em série,
esse debate terá um espaço aqui no blog Contexto Político e no seu
canal no YouTube, criado recentemente, com o objetivo de
ampliar essas discussões para um público maior. Participem com suas
ideias, seus comentários, inscrevam-se no canal, deixem suas impressões e
críticas. É uma forma de aprimorarmos nosso trabalho, principalmente nessa fase de reaprendizagem e reinvenção. Um grande abraço do editor.
Se na filosofia termo representa a busca
incorpórea por sujeito universal, na pandemia define os descartáveis —
corpos negros e pobres, na maioria. Para-choques da imunidade alheia,
camuflam aqueles que o Estado crê vitais: os ultraliberais
Publicado 23/04/2020 às 12:26 - Atualizado 23/04/2020 às 12:33
Assim
como a pandemia, de supetão, surgem os essenciais. Surgem aqueles
que não podem mudar sua forma de trabalhar, devido a sua condição
de essencial. O que nos conduz a algumas perguntas: quem são os
essenciais? São essenciais para o que, efetivamente? Quem diz o que
é ou não essencial? À primeira vista, no senso comum, estas
questões suscitam respostas rápidas e simples: são os
trabalhadores da saúde, transporte, segurança e alimentação, sem
os quais nossa sociedade não sobrevive. E então chegamos à questão
central: quem o termo “nossa” denota, quem ele inclui e
exclui, e que sociedade é esta, que necessita sobreviver?
Para
tentar responder a todas essas questões, o ensaio a seguir foi
dividido em duas partes. Na primeira, faço uma breve digressão na
história da filosofia para abordar o conceito de essência, dando
uma pincelada na tradição filosófica antiga via Platão, e na
moderna via Descartes e Kant. Nesta primeira etapa, busco apresentar
como a modernidade vinculou a ideia de essência à criação de um
sujeito universal, fruto não só de uma virada epistemológica
atribuída à filosofia da época, mas principalmente de eventos
paradigmáticos do período: escravidão, colonialismo, caça às
bruxas, nascimento do capitalismo. O objetivo é transparecer como
esse sujeito universal vai se constituindo através do exato oposto
pelo qual se presume, ou seja, não na base da inclusão
(universalidade), mas da exclusão, culminando na ideia de um ser
incorpóreo, em contraposição a corporalidade do outro. Na segunda
parte, agora já cientes do caminho trilhado pelo conceito de
essência ao longo da modernidade, vamos contrastá-la com a ideia de
essência atribuída aos intitulados trabalhadores essenciais, usando
este gancho para pensarmos mais a fundo as dinâmicas do capitalismo
neoliberal em tempos de pandemia. 1
– O que é essencial na história da filosofia ocidental, acerca do
conceito de essência, para nossa discussão sobre os trabalhadores
essenciais.
O
conceito de essência foi a pedra angular do pensamento ocidental por
muito séculos. Para Platão, a essência era a verdade e se
encontrava no mundo das ideias, conquanto o mundo material, o mundo
do sensível – este mundo aqui da
covid – é o mundo das aparências, do que é falso, acidental e
particular. Logo, Platão traça uma divisão ontológica, ou seja, o
ser está no mundo das ideias, não no mundo das aparências. Assim,
cria uma hierarquia de valor. O homem se distingue por sua capacidade
de pensar, e o máximo uso do pensar é aquele que, através da razão
e da articulação racional, busca atingir as ideias – inatas,
essenciais, matriz de toda realidade. Importante ressaltar que o
mundo das ideias é transcendental, só conseguimos nos aproximar
dele pelo uso da razão, e que as ideias tem um caráter universal,
ou seja, tem validade ontológica para tudo e para todos,
independente do contexto social, político ou econômico,
independente do tempo histórico, seja passado, presente ou futuro. A
ideia é a fonte da realidade, e como essência é imutável,
a-histórica e atemporal.
+ Em meio à crise civilizatória e à ameaça da extrema-direita, OUTRAS PALAVRAS
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Da
Grécia Antiga de Platão vamos dar um salto ao início da era
moderna com Descartes – “penso, logo existo”. O ponto de
partida para garantir a existência é o pensar. Descartes opera um
corte com esse pensar, e separa o corpo da mente, espírito da
matéria. Não se faz necessário indicar que aqui se realiza uma
distinção valorativa. A essência, adivinhem, é a realidade do
espírito: incorpórea, imaterial. A
filosofia moderna tem como característica a mudança do enfoque, de
um prisma ontológico (estudo do ser, do que é) para uma perspectiva
epistemológica (como posso saber o que é, sem antes entender como
posso conhecer o que é). Kant, por exemplo, com a Crítica
da Razão Pura, busca demonstrar as
condições de possibilidade para o conhecimento. Como posso afirmar
que alguma coisa é, sem questionar minhas faculdades cognitivas que
condicionam a forma como enxergo, interpreto e tenho experiências no
mundo? No final das contas, Kant diz que nunca conheceremos a coisa
em si, ou seja, o que ela realmente é em sua pura constituição
objetiva, sua essência, mas apenas conheceremos o fenômeno
subjetivo de sua apreensão, aquilo que é primeiro capturado por
nossa consciência, por nossas faculdades que condicionam a forma com
a qual apreendemos a realidade. Kant parece indicar, portanto, que
não conseguimos elucubrar sobre a essência, já que não temos
acesso a coisa em si.
Aqui
chegamos ao ponto nerval da filosofia moderna: a dicotomia entre
sujeito e objeto, base das análises epistemológicas do período.
Para assegurar a existência, para discernir entre o que posso
conhecer do que não posso, entre o que é essencial e o que é
contingente, entre o que vale a pena pesquisar e o que não vale,
cria-se um sujeito, dotado de um aparato racional inato que capacita
e condiciona sua apreensão da realidade. Este sujeito, a grosso
modo, é o que podemos chamar de essencial na filosofia moderna, pois
é ele quem carrega, agora, as características da essência que na
filosofia Antiga estavam instituídas ao mundo das ideias: imaterial,
racional, inato e incorpóreo. Este sujeito, dotado da razão como
seu mais nobre instrumento, é o responsável por balizar toda forma
de conhecimento, responsável por legitimar o que é digno de estudo
do que não merece sequer citação em nota de rodapé. Este sujeito
é universal, no que diz respeito ao seu alcance e ao seu estatuto.
Nada escapa ao seu julgamento (e quando escapa, é porque foi
previamente julgada como escapável), assim como suas características
são universais, ou seja, dizem respeito a todos os sujeitos.
Por
aí seguimos, até chegarmos às formas de pensar que vão
combater esta ideia de essência ao inverter a pirâmide dos valores,
colocando no topo, então, o material, o sensível, o contingente. E
daí prosseguimos até a morte da metafísica, a morte da história,
a morte do homem, atribuídas ao pensamento pós-estrutural,
pós-moderno, pós-todas-essas-mortes-que-de-mortas-não-tem-nada.
Neste resumo belicoso e injusto, o que busco enfatizar é a carreira
do essencial na formatação de nossa subjetividade, e de como este
conceito está arraigado a formas de pensar a essência como algo
abstrato, racional, imaterial e, principalmente, incorpóreo. Dando
mais um salto olímpico, o essencial, no fim das contas, parece ser
aquilo que não possui corpo. Vamos nos deter um pouco sobre isso.
A
ideia de essencial, na sua trajetória moderna, como vimos acima,
sempre esteve acompanhada da ideia de um sujeito universal, e aqui
vamos explorar melhor esta ideia. A modernidade não é apenas o
local da virada epistemológica da filosofia. A modernidade é também
o período da colonização, do tráfico de escravos, do nascimento
do capitalismo, do estado moderno, da ciência moderna, e da
imbricação de tudo isso na constituição do tal sujeito universal
moderno. Este sujeito opera uma bifurcação no modo de pensar, e
trabalha suas especulações filosóficas, científicas e políticas
criando dualismos que, até hoje, vigoram. Este sujeito investiga a
realidade na base dos dualismos mente e corpo, natureza e cultura,
homem e animal, dentre tantos outros. É na forma com que concebe
estes dualismos, em sua maneira de delimitar o que cada um dos termos
destes binômios significam, que este sujeito segrega e exclui,
apresentando-se como portador de algumas características –
raciais, sexuais e de classe – e totalmente obstruído do que se
presume – um sujeito imbuído de universalidade. O sujeito
universal se constitui na base da exclusão, é o que vão apontar
diversos pensadores pós-estruturais (Deleuze, Derrida, Butler, etc).
Ao delimitar, por exemplo, o que distingue o homem do animal, usa
como fronteira a capacidade de pensar, de chegar à essência através
da articulação racional. Durante quase toda modernidade (ou porque
não, durante toda ela) negrxs e mulheres foram zoofilizados, ou
seja, tornados animais, destituídos da capacidade de pensar. O
negro, no momento de sua criação como sujeito racial na escravidão
moderna (teoria preconizada por Mbembe na Crítica
da Razão Negra)
é associado a besta de carga, sempre pronto ao trabalho braçal
exaustivo, como qualquer animal domesticado, e totalmente despido de
qualquer tipo de capacidade intelectual. Na
caça às bruxas é a vez da mulher ser animalizada ao ser subtraída
do aparato racional. Portanto, o tal sujeito universal é, na
realidade, um conjunto de características que compõem o sujeito
colonizador: branco, europeu, homem, heterossexual, imperialista.
Este
sujeito universal, tido como o único tipo de sujeito possível,
naturaliza tanto as suas características como as características do
outro – de raça, gênero, sexo, etc – as invisibilizando e as
tornando visível da maneira que melhor lhe convém, e assim chega
até a construir um Jesus Cristo branco e europeu, feito a sua imagem
e semelhança, fazendo com que todos acreditem na realidade deste
Jesus ficcional. Sendo o único sujeito possível, já que o único
dotado de um aparato racional capaz de discernir o essencial do
contingente, o único capaz de pensar, a figura do homem per
se, este sujeito europeu e
eurocêntrico interage o tempo todo com a incorporalidade, já que os
que possuem corpo são os outros, aqueles que não são capazes de
pensar, nem de agir com moralidade, aqueles que são humanos apenas
em sua morfologia antropocêntrica, pois são animais em sua
essência. Incorporal, pois sujeito da razão, do transcendental, do
abstrato e universal, ou seja: espírito, não matéria; mente, não
corpo. Enquanto as mulheres e os negros são hipersexualizados,
transformados em puro corpo, objetificados e destituídos de
capacidade para o raciocínio intelectual, o branco é seu oposto, ou
seja, é mente, inteligência, razão, sujeito.
2-
O que é essencial, nesta discussão acerca dos trabalhadores
essenciais, em tempos de pandemia?
Chegamos
então a covid-19.
Quem são, mesmo, os essenciais? São eles os incorpóreos, ou são
eles os corpos mais vulneráveis, mais marcados pelas cicatrizes
sempre abertas e reabertas de raça, sexo e classe? Na luta à
pandemia, fica exposta uma fratura ética global: enquanto uns podem
ficar em casa trabalhando, outros precisam ir à rua trabalhar. Deste
ponto de vista, ficar confinado em casa, em trabalho remoto, é um
luxo reservado a poucos. A grande maioria está confinada sem
emprego, ou na rua, exposta. Com a exceção dos médicos e de outras
poucas categorias profissionais – pois são a exceção que confirma
a regra – a maior parte dos corpos são corpos negros e pobres. O que
nos faz deduzir que talvez não sejam de fato essenciais, mas
descartáveis. Não é coincidência o fato da primeira vítima fatal
de coronavírus no Rio de Janeiro ter sido uma empregada doméstica,
que contraiu a doença através do contato com sua patroa, moradora
da zona sul carioca, recém-chegada da Itália. Estes corpos sempre
foram sacrificados para sustentar a “nossa” sociedade. Digo
corpos, e não seres, pois nesta lógica eles não possuem direito a
ontologia alguma, são totalmente destituídos de humanidade, seres
que não o são, e quando o são é apenas e na medida em que estão
incluídos na roda mortal que faz girar a nossa sociedade ao serem
excluídos, quando não assassinados.
O
trabalho digital, home-office, nos ajuda a pensar esta imaterialidade
pressuposta e desejada pelo sujeito universal. A economia do
conhecimento, o trabalho digital, sempre foi a realização par
excellence da lógica do sacrifício.
Para eu comprar no meu iFood, sacrifico o informal que vai de bike
do restaurante a minha casa. Quem é
o essencial, mesmo? Nesse delírio funesto característico da
sociedade capitalista, o mais importante é me digitalizar, me perder
no mundo dos algoritmos e códigos binários, pois assim escapo ao
destino de ter um corpo, e com ele todas suas possibilidades de
marcação social e política – um
corpo explorável, vulnerável, torturável, matável
– que ignoro e deixo passar despercebido ao concluir meu pedido no
app. Os assim chamados “essenciais” – agora entre aspas, pois é
só comprimido entre elas que não invisibilizamos o masoquismo e a
hipocrisia do termo em seu uso atual – não têm nada de digital, só
participam da economia do conhecimento como precarizados,
terceirizados, informalizados – a realidade dos essenciais é
analógica, de carne e osso, e eles são servidos, nus e crus, para o
banquete sacrificial do neoliberalismo.
Com
a realidade inescapável do vírus,
aumento minha imunidade sacrificando a vulnerabilidade do outro. Com
a onipresença do vírus, defendo meu corpo (que agora existe mais do
que nunca) usando como para-choque o corpo do outro (que na verdade,
nunca exerceu outra funcionalidade).
A
digitalização, a abstração, a imaterialidade, sempre foram as
palavras de ordem na sociedade capitalista neoliberal, sonho e
delírio de um sujeito particular que almeja o poder universal.
Afinal, quem controla os fluxos de capital, se não os “oligopólios
generalizados”, conceito criado por Samir Amin para agrupar todos
aqueles que controlam as cadeias de valor e produção, as redes de
investimento, seguradoras, previdências e bancos? Os poucos grupos
que dividem, compartilham e controlam todas estas instituições. A
financeirização sempre se fez por abstrata, usando a economia real
concreta como escudo para então controlá-la. Operando por meio de
números, códigos, algoritmos, equações e diagramáticas, a
finanaceirização é o reino da abstração neoliberal, não
possuindo lastro físico, dependendo apenas da ganância especulativa
de seus investidores, livre para se autovalorizar até o infinito.
Como dizia Gilles Deleuze, existem duas “formas-dinheiro”:
aquela que usamos no dia-a-dia, como valor de troca, compra e venda,
e aquela forma-dinheiro que é capital, ou seja, que tem poder
político, que dita o que vai ser produzido, que controla as
produções, que cria o valor em si – a financeirização por
excelência, mas não só.
Fica
evidente, portanto, que os essenciais são os capitalistas,
co-propietários destes oligopólios, os que possuem dinheiro como
capital, os mesmos que sucateiam o sistema de saúde, a
aposentadoria, educação, e insaciáveis, vão sucatear cada vez
mais os serviços sociais para assim conseguirem acumular ainda mais,
numa aliança obscena com o Estado. Dívida pública, dívida
privada, dívida de vida: na sociedade capitalista neoliberal cuja
lógica é sacrificial, todos nós devemos nossa vida a eles. Quando
nos impõem goela abaixo reformas neoliberais, por exemplo, a reforma
da previdência, o que se destaca nela é exatamente a lógica do
sacrifício, proclamada aos quatro ventos: vai ser difícil para
todos, mas a reforma é necessária e inescapável, um remédio
amargo, sem dúvida, mas que é preciso tomar – em nome da
economia. É preciso se sacrificar agora para colher os frutos no
futuro. Como todo ritual sacrificial é composto por aqueles que são
autorizados a realizar o ritual (sacrificadores), e aqueles que são
sacrificados, faz-se preponderante distinguir quem é quem no atual
cenário.
Se
enganam aqueles que acreditam que o vírus tem um poder a
priori para mudar o mundo, para
mudar nossas consciências, atitudes, enfim. Se enganam, pois se
esquecem de uma característica fundacional do capitalismo: seu poder
de transformar uma ameaça em uma oportunidade, um inimigo em um
complacente. Quantas vezes a sociedade capitalista não enfrentou uma
crise e saiu dela ainda mais forte?
O
capital, que só almeja o lucro, é um comando, uma direção, uma
ordem. O capital dita as regras, e os Estados colocam as regras em
jogo, por meio de suas leis, políticas econômicas, políticas
sociais. É o que Deleuze e Guattari chamam de axiomática do capital
no Anti-Édipo. O Estado
é um modo de realização do capital, um meio para tornar material a
abstração da autovalorização do capital. É o Estado
quem racializa, quem generifica, quem realiza a divisão social do
trabalho, para assim fazer funcionar a lógica do lucro. Portanto,
quando o estado te confina em casa, ele está salvando vidas? Essa
não parece ser uma boa questão, por omitir mais do que expor.
Quando ele te confina, bem ou mal, está tentando manter viva a
lógica do capital, assim como os verdadeiros essenciais. Manter vivo
o “nosso” sistema.
Outra
lição que podemos tirar da axiomática do capital é a de que não
há economia sem política. O conceito de Deleuze e Guattari salienta
que não há mudança econômica, não há direito dos trabalhadores,
não há estado de bem-estar social, se não houver luta. Toda
conquista vem dos esforços para conquistá-la. A axiomática é
exatamente a máquina social capitalista que apropria as vitórias –
sejam elas da classe trabalhadora, dos oprimidos, subalternos –
transformando-as em axiomas, ou seja, realizando a transmutação de
poderosas possibilidades revolucionárias em novas engrenagens que
alimentarão o sistema. Todo progresso que alcançamos nas lutas de
classe, gênero, sexo e raça, todas as vitórias, de uma forma ou
outra, estão abertas a cooptação pelo capital. Esse é um dos
mecanismos pelo qual mantém-se vivo. E não será diferente no mundo
pós-covid. Acredito que toda forma de avanço, em direção a uma
sociedade mais justa e igualitária, é autojustificada pela melhora
nas condições de vida daqueles que batalharam pelo avanço. Mas nem
por isso o capitalismo se torna mais fraco, ou mais próximo de sua
derrocada. O vírus, portanto, nada nos garante. Desemprego em massa,
um sistema de saúde precário que não atende as necessidades do
surto, as bolsas de valores despencando, um número inaceitável de
mortes por dia – não há previsão possível sobre o futuro do
capitalismo a partir do que fica exposto na pandemia, há apenas mais
um diagnóstico do que já está óbvio: chegamos a esse ponto por
conta das ações políticas que nos conduziram até aqui.
O
que busco salientar, portanto, é que não esqueçamos do poder de
ressurreição do capital, essa verdadeira fênix pós-apocalíptica,
que quanto mais se prevê sua morte, mais em chamas fica. Mas,
principalmente, não nos esqueçamos dos “essenciais”, que são
assim chamados por manterem a roda do sistema capitalista girando e
servindo aos essenciais de fato. Se o essencial é incorpóreo,
portanto, livre em sua essência para se mover e manipular o que
melhor lhe aprouver, o “essencial” está fadado ao peso
incomensurável de seu corpo, afundando em terra movediça, “livre”
– apenas e a cada dia mais – de seus direitos trabalhistas e
humanos. Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade:OutrosQuinhentos
No belíssimo filme “Rapsódia de Agosto”, onde os
sobreviventes da bomba (americana) jogada em Hiroshima e Nagasaki, no final da
segunda grande guerra mundial, cultuam seus antepassados mortos e desaparecidos
na hecatombe nuclear e marcam o encontro
com eles, num momento vindouro, é um traço forte da cultura nipônica de
louvar a ancestralidade, como fonte de respeito e admiração. Sentimento claro
presente no marcante filme “A balada de Naraiama”, onde o
sacrifício para salvar a comunidade recai voluntariamente nos mais velhos. Este tributo aos mais velhos
é uma característica das culturas orientais e contrasta vivamente com o culto
ao novo e a novidade das sociedades ocidentais, onde os idosos são concebidos
como fardos insuportáveis a serem custeados
pela Previdência Social.
Estas observações
vêm a propósito dessa fúria assassina contra os mais velhos, no atual governo
do Brasil, que, aliás, se arrogou no direito de decidir soberanamente que deve
viver e quem morrer, em consequência da pandemia do Coronavírus 19. O direito à
senectude é fruto do amadurecimento da consciência social da humanidade.
Resulta da criação de um micro código
chamado “Estatuto do idoso”, não é favor, privilégio, esmola ou outorga de
nenhum governante. Significa um aumento do patamar da dignidade humana, num
país como o nosso. As mudanças drásticas no financiamento da saúde, da
assistência social e da previdência pública, iniciadas no governo Temer (com a
aprovação da malfadada PEC da morte) expressaram claramente um retrocesso ou
uma triste mudança de prioridade da administração pública no Brasil. Os cortes
no orçamento da seguridade social se refletem de imediato na qualidade de vida
(ou sobrevida) da população mais idosa, ou que necessita de cuidados especiais.
De uma época de grande avanço nas políticas de ação afirmativa, destinadas a
amparar coletivos vulneráveis, passamos rapidamente a uma política darwinista
da “sobrevivência dos mais aptos”, através de uma seleção que não tem nada de
natural, mas de política e social.
O objetivo da
atual política econômica é claramente
sacrificar a vida dos mais frágeis e dependentes – em meio a uma grande crise
sanitária e social- em favor dos
interesses da banca, do mercado, das empresas, dos patrões. É como se a
pandemia do Coronavírus 19 viesse sabotar o plano adredemente preparado de
destruir as conquistas sociais da Constituição de 1988, em benéfico do capital
e da especulação financeira internacional. Depois da reforma trabalhista e da
reforma da previdência pública, parecia que o atual governo ia mesmo entregar
aos seus patrocinadores a mercadoria que
vendeu, na campanha eleitoral: a desregulamentação completa da economia
brasileira. Mas foi atropelado pela pandemia mundial, provocando um crescimento
negativo de 5% do PIB, um exército de 14 milhões de desempregados, um rombo
fiscal nas contas públicas que vai além do 125 bilhões de reais. Grande
frustração para o gerente do capitalismo internacional. O que fazer para
cumprir as promessas de campanha!
É com o sangue
da população mais velha e dos setores mais frágeis da população brasileira que
o governo que pagar a conta. Aquilo que já foi chamado de “população
excedente”, sem fins ou utilidade econômica. Peso morto no orçamento público da
nação. Gente que já não tem mais lugar no mundo (econômico, do capitalismo).
Para os gestores da economia, ela deve ser eliminada. E nada como os efeitos
mórbidos e letais de uma pandemia para realizar essa tarefa. É só corta o
investimento no combate ao vírus, reduzir o gasto com leitos hospitalares,
pessoal da área da saúde, e instar os idosos a irem para rua. Curioso o interesse
do Ministério da Defesa pelo número de covas disponíveis nos cemitérios
públicos. Fazem a complementação da visão dos evangélicos de que a praga ocorre
por um desígnio divino. Se as orações não evitarem as mortes, cuidemos de
enterrar as vítimas em covas rasas, ou valas comuns. Se fosse à Índia,
cremavam-se os cadáveres e se jogava as cinzas no rio Ganges. Aqui, acumulam-se corpos nos hospitais ou
se guardam em contêineres refrigerados.
Uns cuidam da alma pecaminosa dos condenados. Outros, dos corpos putrefatos.
Uma combinação macabra e tanto.
Não nos assustemos
muito. Só os que manifestam vocação para golpista ou ditador se arrogam o
direito de decidir soberanamente que deve viver ou deve morrer. E a massa
bolsonarista brada:” Cesar, os que vão morrer, te saúdam!"
Michel Zaidan Filho é filósofo, historiador, cientista político, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia - NEEPD-UFPE
Com este vídeo, iniciamos um projeto de consolidação de mais um espaço do blog via abertura de um canal no Youtube, espaço que se propõe a complementar, com os nossos comentários, as matérias aqui divulgadas, proporcionando um outro momento de diálogo com os nossos leitores. Neste primeiro vídeo, a partir de um artigo de Anne Mathieu - originalmente publicado pelo jornal Le Monde Diplomatique - onde a autora discute a trajetória acadêmica e política do filósofo francês, identificando as teses com as quais ele acabou se indispondo com grupos de ultra-direita, conservadores e até mesmo colegas da academia francesa, chamo a atenção para a questão das responsabilidades históricas coletivas, momento que o autor de As Palavras critica a sociedade francesa, por sua parcimônia em relação à guerra de libertação da Argélia. Ele que era um anti-colonialista convicto. Leiam, comentem, inscrevam-se, assinem o canal, deixem suas impressões. Como disse antes, trata-se de mais um espaço de construção de um diálogo, num momento crítico de nossa sociedade, onde o afeto e a solidariedade parecem perder a batalha contra o egoísmo e a indiferença. A crise política, econômica e de saúde pública que ora enfrentamos, nos sugerem uma boa reflexão sobre o tema das responsabilidades históricas coletivas. Como chegamos a isso? O próximo vídeo, a partir da resenha de um artigo sobre a trajetória acadêmica do sociólogo Ricardo Antunes, da UNICAMP, aborda a questão das mudanças substantivas do mundo do trabalho nesses tempos de pandemia. Num momento de uma grave crise de saúde pública, o vírus pegou milhões de trabalhadores brasileiros literalmente desprotegidos, o que potencializou o problema da exclusão produtiva. Um forte abraço do editor.
Em 19 de abril de 1980, o enterro de Jean-Paul
Sartre mobilizou uma multidão, como o de Victor Hugo, pouco menos de cem
anos antes. Com a morte de Sartre, uma época de engajamentos e de
recusa da etiqueta burguesa parece ter terminado. O exibicionismo
midiático e o encastelamento universitário hoje em dia caracterizam os
dois polos do mundo intelectual, ambos distantes do modelo sartriano
Existe um “paradoxo Sartre”. Aquele que simboliza “o
intelectual total, presente em todas as frentes do pensamento (filósofo,
crítico, romancista, teatrólogo)”,1 mal encontra um lugar
póstumo, digno desse nome, em seu país. O paradoxo é acentuado pela
disseminação cada vez mais intensa do pensamento e dos escritos
sartrianos no estrangeiro. É que a França se ilumina agora com as
lanternas do conformismo consensual ao que os (pseudo)debates
televisivos e radiofônicos nem sequer chegam a dar a ilusão de um sopro
desestabilizador. O medíocre e o convencional ficavam bem longe daquele
que nunca deixou, após a Segunda Guerra Mundial, de fustigá-los, de se
lançar ao combate, de assumir riscos. Uma certa intelligentsia recusa a Sartre seu status de representante do intelectual engajado “à francesa”. Única obra a conseguir unanimidade: As palavras (1961).
Sobram elogios sobre “a obra-prima do escritor”, o que não é por acaso:
essa autobiografia na qual ele narra sua infância e juventude não
perturba ninguém. O pensamento único de direita, assim como o de
esquerda, soube identificar a obra que lhe permitia poupar
unilateralmente o intelectual e, ao mesmo tempo, relegá-lo à “loja de
acessórios” datados, ultrapassados.2
Ultrapassados e gastos até a medula do erro. Pois, como tantas vezes nos recordam, Sartre estaria errado o tempo todo3
– a menos que essa acusação não se volte contra os acusadores. Façamos
nossas as palavras revigorantes de Guy Hocquenghem alguns anos depois da
morte do autor de Caminhos da liberdade: “Almas avaras e
pobres, puritanas e teoristas, vocês quiseram cem vezes matar Sartre.
Mas, quanto mais o renegam, mais o reanimam. Quanto mais o empurram,
mais ele os abraça, mais os leva consigo na morte. O verdadeiro Sartre
escapa ao túmulo do respeito renegado e da traição onde vocês quiseram
encerrá-lo”.4
Desde sua morte em 1980, pouca coisa foi poupada àquele que muitos
temeriam enfrentar enquanto vivo. Sartre seria um filósofo que falou mal
da literatura… As carteiras dos estudantes pulularam durante muito
tempo com essas piadas de mau gosto – e chegaram até as salas de aula
dos universitários, disfarçadas de legitimidade científica. Justamente
em literatura é que Sartre continua pouco estudado. Mas convém reler seu
primeiro romance, A náusea (1938), sua coletânea de contos, O muro (1939), sua trilogia injustamente ignorada e subestimada, Os caminhos da liberdade (1945-1949).
Belos textos, variados estilística e narrativamente, que “falam” a todo
mundo, afetando para sempre a formação intelectual e pessoal: marca das
obras-primas. Seu teatro? Também ele diverso, inventivo e… atual. Além
de Entre quatro paredes (1944) e As mãos sujas (1948), suas peças mais conhecidas e mais montadas até hoje, a força de denúncia de Nekrassov (1955) e Sequestrados de Altona (1959)
continua intacta: no caso da primeira, a da mistificação da informação e
do aliciamento; no caso da segunda, a do fim e dos meios em períodos
violentos da história.
Há também, é claro, seus textos políticos. Pois é aí que está o problema: Sartre incomoda porque está “inserido”. Ele disse em Os tempos modernos (1945):
“O escritor está inserido em sua época: toda palavra repercute. Todo
silêncio também. Considero Flaubert e Goncourt responsáveis pela
repressão que se seguiu à Comuna porque não escreveram uma linha para
impedi-la. Não era da conta deles, dirão vocês. Mas o processo de Calas
era da conta de Voltaire? A condenação de Dreyfus era da conta de Zola? A
administração do Congo era da conta de Gide? Cada um desses autores, em
uma circunstância particular de sua vida, levou em consideração sua
responsabilidade de escritor”.5
Companheiro do Partido Comunista
A guerra estimularia o engajamento de Sartre. Mobilizado em setembro
de 1939 e aprisionado em junho de 1940, foi transferido para um stalag (campo de prisioneiros) em Trèves. Ali conheceu a camaradagem, a fraternidade; escreveu e encenou uma peça de Natal, Bariona ou o Filho do Trovão.
Libertado em março de 1941 fazendo-se passar por civil, Sartre voltou a
Paris decidido a agir. Fundou com Maurice Merleau-Ponty o grupo efêmero
“Socialismo e Liberdade”, imaginando organizar um movimento de
resistência com a ajuda de André Gide e André Malraux, na zona livre.
Sua peça As moscas fala em resistência na Paris ocupada. Em 1943-1944, colaborou nas Lettres Françaises, órgão do Comitê Nacional dos Escritores fundado na clandestinidade por Jacques Decour e Jean Paulhan.6
Mas isso foi tudo: Sartre não seria nem Georges Politzer nem Claude
Bourdet. Antes da Segunda Guerra Mundial, o que impressiona é a ausência
de qualquer horizonte político. Diga o que disser Simone de Beauvoir e
malgrado a novela O muro, ele permaneceu distanciado do que acontecia na Espanha.7
Quando lemos sua correspondência com Simone, o “Castor”, ficamos
estupefatos ao notar a primeira menção política apenas em julho de 1938,
dois meses antes de Munique. Além disso, os dois não sabiam muita coisa
da Frente Popular. Esse distanciamento político no entreguerras o levou
durante a vida inteira a caminhar lado a lado com o fantasma de Nizan,
seu amigo de juventude que, ele sim, se engajara totalmente desde o fim
dos anos 1920.
Sartre entrou em fevereiro de 1948 para o comitê diretor do
Rassemblement Démocratique Révolutionnaire (RDR) [União Democrática
Revolucionária], cujo projeto havia sido elaborado anteriormente por
jornalistas e intelectuais de esquerda e extrema esquerda, entre os
quais David Rousset. O RDR morreu com a saída de Sartre (outubro de
1949); e esse foi seu único engajamento em um partido político. De
meados de 1952 ao fim de 1956, ele flertou com o Partido Comunista
Francês (PCF), amplamente motivado pela repressão policial e judicial de
que este era então objeto, mas que se insurgira violentamente contra
ele até então. Com efeito, o presidente da União dos Escritores
Soviéticos o havia chamado em 1948 de “hiena datilógrafa”. Sartre rompeu
com o partido em novembro de 1956, quando a URSS esmagou o motim
húngaro. Como seria sempre o caso, seu ímpeto jornalístico se impregnou
da temática e do léxico dos companheiros que escolheu. São assim os
textos publicados no France-U.R.S.S. em 1955, que não devem
nada à fraseologia dos comunistas ortodoxos. Não obstante, os artigos
sartrianos desse período oferecem uma reflexão sempre atual sobre a
mistificação dos dirigentes e da imprensa: “Todos os nossos leitores
sabem que consideramos nefasta a política do governo e que desprezamos
os homens que a inspiram; mas nossa tarefa consiste em demonstrar isso
sem descanso. Somente demonstrando é que podemos esperar servir.
Insistiremos: se é proibido chamar Bidault de criminoso, nós o
chamaremos de grande culpado; se nos recusarem o direito de falar sobre o
sangue que ele tem nas mãos, falaremos das escamas que ele tem nos
olhos. Mera questão de terminologia”.8
Os últimos meses de flerte com o PCF coincidiram com a luta de Sartre contra a Guerra da Argélia. Essa foi sua grande batalha.9
E aqui está o que alguns nunca perdoarão: seu anticolonialismo
visceral, a insistência de seu discurso em colocar os franceses face a
face com suas responsabilidades históricas, intelectuais e morais.
“Falsa candura, fuga, má-fé, solidão, mutismo, cumplicidade recusada e
por fim aceita, eis o que chamávamos, em 1945, de responsabilidade
coletiva. Na época não aceitávamos que a população alemã fingisse ter
ignorado os campos de concentração. ‘Ora, vamos’, dizíamos. ‘Eles sabiam
de tudo!’ Tínhamos razão, eles sabiam de tudo, e somente hoje podemos
entender isso, pois nós também sabíamos. […] Ousaremos ainda
condená-los? Ousaremos ainda nos absolver?”10
Alguns, frequentemente os mesmos, não aceitam também sua amizade com o
psiquiatra e ensaísta martinicano Frantz Fanon, então quase no
ostracismo, e do qual prefaciou Os condenados da terra (1961),
ensaio que serviu de farol para o terceiro-mundismo. No prefácio, ele
vilipendia a mentira de uma nação orgulhosa que é apenas a sombra de si
mesma: “Quanta conversa fiada! Liberdade, igualdade, fraternidade, amor,
honra, pátria, que sei eu? Isso não nos impediu ao mesmo tempo de
proferir discursos racistas: negro sujo, judeu sujo, rato sujo”.11
O radicalismo da subversão de Sartre se medeia à luz do ódio que
inspirava aos donos de lojas literárias e jornalísticas. Ninguém se
insurgiu assim nem sequer contra Céline, salvo por certa crítica que
admirava seu estilo. Pois, se não era antissemita, Sartre cometeu o
grande erro de confraternizar com aqueles que se revoltavam contra o
opressor francês. As calúnias se multiplicavam. Um desses valentões de
salão não temeu o ridículo ao acusar Sartre de “tentativa de assassinato
contra Camus”. Tudo isso, bem entendido, tendo por pano de fundo a
Guerra da Argélia e o elogio de Camus como “o filósofo que nunca se
enganou”.12 Em nome da complexidade da situação pessoal, justificava-se a posição equivocada do autor de O estrangeiro
perante os desafios do momento histórico. Desdenhava-se o combate
corajoso… e perigoso. A casa de Sartre foi alvo de um atentado com
explosivo plástico cometido pela extrema direita – em nome do direito
dos povos de disporem de si mesmos. As mídias não deixaram de zombar de
Sartre discursando em Billancourt sobre um tonel, na época de sua
camaradagem, em 1970, com os maoistas da esquerda proletária.
Há alguns meses, no Figaro, Jacques Julliard, membro da
Academia Francesa e encarnação perfeita do intelectual oficial,
institucional e consensual, emitiu seu veredicto sobre Sartre: “Mau
romancista, dramaturgo tedioso, filósofo prolixo, mas sem originalidade,
eis aí um amante da liberdade que sempre adulou todas as ditaduras, uma
grande alma que justificou todos os massacres desde que fossem
inspirados pelo socialismo […]. É um impostor de boa-fé que reservou sua
severidade, e às vezes seu ódio, aos regimes liberais e que viu na
ostentação da má consciência do escritor um álibi para sua tranquilidade
intelectual. Até hoje, foi só nessa área que ele aliciou discípulos”.13 Mas, com os diabos, por que tanta dimensão humana?
Para empreender “uma defesa política de Sartre”14, o
melhor é considerar sua obra “inserida”, avaliar nela tanto os erros, os
exageros e as fraquezas quanto o brio, a pertinência e a atualidade.
Atualidade? Se esse modelo do intelectual engajado saiu de moda, não há
motivo nenhum para regozijo. Em 1983, três anos após a morte de Sartre,
Pierre Bourdieu explicou que “as condições conjunturais, mas também
estruturais, que […] tornavam possível [o intelectual por excelência]
estão hoje desaparecendo: as pressões da burocracia de Estado e as
seduções tanto da imprensa quanto do mercado de bens culturais, unidos
para reduzir a autonomia do campo intelectual e de suas instituições
próprias de reprodução e consagração, ameaçam o que havia, sem dúvida,
de mais raro e mais precioso no modelo sartriano do intelectual e que
mais contrariava de fato as disposições ‘burguesas’: a recusa dos
poderes e privilégios mundanos (o Prêmio Nobel, por exemplo) e a
afirmação do poder e do privilégio propriamente intelectuais de dizer
‘não’ a todos os poderes temporais”15.
A recusa de Sartre a que assistimos é o inverso da lógica da
homenagem. Má consciência dos intelectuais televisivos ou apadrinhados,
ele nos lembra (e a eles) que um intelectual se torna digno desse nome
por seu pensamento, sua atuação, sua obra, sua determinação, nunca por
suas aparições nas mídias ou por seus amigos poderosos. Aos praticantes
do pensamento pronto, sempre a repetir que os tempos mudaram, que as
lutas e as reivindicações só são admissíveis dentro de limites
estreitos, pode-se replicar que nenhuma mudança pelo bem comum ocorreu
quando se sussurrou “sim”, mas quando se bradou “não”. No início da luta
há sempre a recusa. Os intelectuais e jornalistas que rejeitaram Sartre
sabem disso muito bem, embora seus discursos digam o contrário.
Deformar e cobrir de opróbrio a palavra sartriana é sufocar a liberdade
de nos opormos à pressão das convenções e dos poderes. É induzir-nos a
crer que todas as palavras se equivalem e contribuir para degradá-las
num momento em que a responsabilidade do intelectual consiste às vezes
em recorrer, conforme dizia o próprio Sartre, a “revólveres carregados”.
*Anne Mathieu é mestre de conferência em Literatura e Jornalismo da Universidade de Lorraine, França, e diretora da revista Aden.
(Texto publicado originalmente no site do Le Monde Diplomatique Brasil)
1 Pierre Bourdieu, “Sartre, l’invention de l’intellectuel total” [Sartre, a invenção do intelectual total], Libération, 31 mar. 1983; reeditado em Agone, n.26-27, 2002.
2 Cf. Dossier Sartre, Europe, Paris, out. 2013.
3 Cf. Claude Imbert, “Sartre, la passion de l’erreur” [Sartre, a paixão do erro], Le Point, 14 jan. 2000.
4 Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui sont passés du col Mao au Rotary [Carta aberta àqueles que não usaram colarinho Mao no Rotary] (1986), Agone, Marselha, 2003.
5 Jean-Paul Sartre, “Présentation des Temps Modernes” [Apresentação de Os tempos modernos], Les Temps Modernes, 1º out. 1945 (reeditado em Situations II, Gallimard, Paris, 1948).
6 Cf. Michel Contat e Michel Rybalka, Les Écrits de Sartre [Os escritos de Sartre], Gallimard, 1970; cf. também Annie Cohen-Solal, Sartre, Gallimard, 1985.
7 Cf. Anne Mathieu, “Jean-Paul Sartre et l’Espagne: du ‘Mur’ à la préface au Procès de Burgos” [Jean-Paul Sartre e a Espanha: de O muro ao prefácio do Processo de Burgos], Roman 20-50, jun. 2007.
Primeiro dia de comércio fechado na cidade do Rio de Janeiro, em março (Foto: Agência Brasil)
Vejo muitos amigos preocupados, com razão, diante do apoio que Bolsonaro
ainda tem em parte significativa da população, não apenas porque
pesquisas atuais indicam algo na casa dos 30%, mas também pelo eco que
suas “ideias” ainda têm em redes sociais, parte da imprensa, grupos
religiosos, alguns políticos.
Entre o primeiro e o segundo turno de 2018, o fosso que se abriu entre quem dizia #elenão
e quem fazia arminhas com os dedos não apenas me parecia ser
definitivo, como sempre me pareceu que devia mesmo ser, porque a defesa
de Bolsonaro, ao menos pelos seus mais entusiasmados seguidores, com
camisetas e berros, revelava uma postura inconciliável com qualquer
patamar de civilidade, humanismo, tolerância, convivência, qualquer uma
dessas palavras e posturas que eles odeiam.
Boa parte desse cordão que se formou em torno de Bolsonaro, numa
observação empírica aqui pelas minha bandas, é formado por
ex-malufistas, gente que achava que os tucanos eram “muito de esquerda” e
sentiam falta de um representante “verdadeiramente de direita”,
querendo dizer, com isso, que precisávamos de um “líder” capaz de mandar
a polícia matar “bandido”; acabar com “privilégios” de trabalhadores,
sindicalistas, políticos, servidores públicos etc.; defender “a família”
e seus valores tradicionais contra a “balbúrdia” dos “comunistas”
(desculpem o abuso das aspas, mas eles nunca usam essas palavras num
sentido minimamente preciso).
A meu ver, não há vírus no mundo que os faça mudar de posição. Com
tudo que acontece neste momento, com a morte batendo à porta de todo
mundo, o que mais temem é que “a esquerda” aproveite para voltar ao
poder – e “a esquerda” inclui a Globo, o PSDB de Doria, Rodrigo Maia,
os ministros do STF e todo mundo que, por qualquer razão, diga que
Bolsonaro não tem condições de ocupar aquela cadeira. É uma insanidade,
uma obsessão, uma paranoia, e Bolsonaro sabe tirar proveito disso. Para
essa turma, até mesmo a cruzada da cloroquina contra o comunismo faz
sentido – e, infelizmente, acho que continuará assim.
Não é com eles, portanto, que devemos gastar nossa energia – tão
escassa, tão necessária – neste momento. A principal preocupação é de
luta por sobrevivência, em três sentidos pelo menos: o primeiro é sobreviver ao coronavírus;
o segundo é sobreviver à radicalização da crise econômica precipitada
pela pandemia; e o terceiro é sobreviver politicamente ao bolsonarismo,
o que pode unir todos aqueles que, no amplo espectro das posições
políticas democráticas, têm razões para se situar contra um governo que é
a ameaça das ameaças, um governo que aposta na morte, na desigualdade,
na ignorância e no autoritarismo.
É verdade que, para nosso pesadelo, Bolsonaro teve 57.797.847 votos
em 2018. Mas devemos lembrar que, do outro lado do ringue, somando os
votos de Haddad (47.040.906), brancos, nulos e abstenções, estavam
89.507.308 eleitores. Isso não é nada mecânico, eu sei, mas temos boas
razões para acreditar que, de lá para cá, nenhum desses 89.507.308
passou para o outro lado, assim como, diante do desempenho bisonho do
governo em tantos setores, podemos crer que parte daqueles 57.797.847 já
engrossa as fileiras do lado de cá.
Os bolsonaristas e seus robôs gritam muito (a começar pelo próprio
Jair, em rede nacional), então parece que eles estão por todos os lados e
são maioria, mas não são. O enfrentamento da pandemia, neste momento,
deve unir politicamente a maioria que se opõe às medidas de morte que
Bolsonaro defende e, daqui em diante, servir como um marco na luta por
direitos sociais num sentido amplo, com base no que a Constituição garante, como eixo principal para a reconstrução da vida neste país.
Os últimos anos foram de muitas derrotas, não apenas nas urnas.
Assistimos ao desfile de múltiplas ofensas escancaradas a direitos
conquistados duramente por gerações e gerações, que vão dos instrumentos
democráticos fundamentais à proteção social dos trabalhadores, passando
pelo SUS, pela Previdência e Assistência Sociais, pelas universidades
públicas, por tudo que mais importa à maioria da população, como se
tornou ainda mais evidente neste momento de pandemia, em que Estados em
todo o mundo, para socorrer a população mais atingida pela
“modernização” neoliberal, são obrigados a ressuscitar (sim!)
instrumentos bem conhecidos dentro do que, até pouco tempo, chamávamos
de Estado de Bem-Estar Social.
Por uma dessas ironias da História, os governos responsáveis por
essas medidas, não apenas no Brasil, são aqueles que haviam sido eleitos
para dar o golpe final nas estruturas da forma estatal distributiva e
intervencionista. São presidentes, ministros e parlamentares
ultraliberais que estão agora na encruzilhada, tendo que abrir para a
população, em parte, cofres que, de outra maneira, não se destinariam a
despesas tão estranhas aos propósitos do “Estado mínimo”, como o
financiamento de pesquisas e o socorro direto dos trabalhadores
informais e pequenas empresas, entre outras medidas que devem trazer
muito desgosto pessoal a figuras como Paulo Guedes.
Foi um vírus, enfim, que nos trouxe até aqui. Os poderosos de sempre,
no Brasil e no mundo, já perceberam que as cartas estão todas na mesa e
não perdem tempo para forjar, nessas condições, os instrumentos que
possam garantir ainda mais poder a eles daqui em diante. Em termos
políticos nacionais, nem todos esses poderosos são representados por
Bolsonaro, mas já perceberam que podem se aproveitar da incompetência e
truculência do governo para saírem mais fortes.
Contra eles, quero crer que somos 89.507.308 “eleitores” e podemos
ser muitos mais, agora que, do outro lado, temos um adversário que cada
vez mais se revela inimigo. Mas aí também está um problema: nossa força
não pode ser medida apenas na urna, que está longe se pensarmos nas
urgências que a pandemia agudizou, e, além disso, na eleição esse número
provavelmente vai se quebrar.
Insisto nesses números, entretanto, para lembrar que essa força
existe e que devemos pensar numa forma de organizá-la desde já, porque o
inimigo não faz quarentena. Esse momento excepcional de ressuscitação
do “Estado máximo”, capaz de prover sobrevivência à população, à
pesquisa científica, ao pequeno empresariado etc., e também de forçar
grandes empresas a manter empregos e salários, se depender da
mentalidade ultraliberal, não tenhamos dúvida de que será apenas o
“canto do cisne” de tudo que se opõe aos interesses das elites e do
grande capital.
É hora, portanto, de mostrar como essas medidas “emergenciais” podem e
devem ser permanentes (como a “renda básica de cidadania”, há tanto
tempo defendida por Eduardo Suplicy, ou o “salário mínimo” para o trabalhador uberizado),
atravessando essa fase de pandemia para, num futuro próximo, servir de
base para reivindicações mais amplas da população. É só uma brasa, mas
pode pegar fogo. Tarso de Melo (1976) é escritor e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. Autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros livros.