segunda-feira, 9 de novembro de 2020
Camus, amor e vertigem
Muito já se disse que Albert Camus – sempre envergando capa de gabardine e com cigarro pendente dos lábios – compunha uma persona semelhante a Humphrey Bogart. Mas o que pouco se sabe é que o escritor protagonizou uma cena digna de Casablanca, filme de 1942 em que o ator norte-americano vive uma história de amor cujo início se dá em Paris ao som dos canhões nazistas.
Em 6 de junho de 1944, no mesmo dia em que os Aliados desembarcavam na Normandia, deflagrando a ofensiva final contra os exércitos de ocupação alemães, Camus começava, também em Paris, um relacionamento amoroso com a atriz espanhola Maria Casarès que duraria até sua morte.
Há no episódio outras ressonâncias, embora desencontradas, do longa-metragem de Michael Curtiz. Editor do jornal clandestino Combat, Camus participava ativamente da Resistência – assim como o marido de Ilsa Lund, a personagem de Ingrid Bergman por quem se apaixona o cínico Rick, interpretado por Bogart.
E a própria Maria Casarès tinha envolvimento familiar com o movimento anti-fascista. Seu pai, Santiago Casares Quiroga, foi um dos últimos chefes de governo da turbulenta Segunda República espanhola. Em sua breve gestão (maio a julho de 1936), eclodiu a sublevação militar que deu início à Guerra Civil, levando o general Franco ao poder e a Espanha a mais de 40 anos de ditadura.
De origem catalã por parte de mãe, Camus projetou sobre Casarès a profunda identificação que sempre teve com a Espanha. Seu primeiro texto autoral foi a peça Revolta nas Astúrias, criação coletiva baseada na revolução operária de 1934, em Oviedo. E o teatro camusiano voltaria à Espanha com Estado de sítio, peça ambientada em Cádiz num passado impreciso, mas que remete aos autos sacramentais de Calderón de la Barca. Contraponto ao romance A peste, que Camus publicara em 1947, Estado de sítio também lança mão do contexto imaginário da cidade assolada por uma epidemia como alegoria da opressão.
Detalhe importante: a peça estreou em 1948, quando a intelectualidade francesa se dividia ante as denúncias dos crimes de Stálin, prenunciando a ruptura entre Sartre (pró-comunista) e Camus (anti-totalitarista), que se daria após a publicação de O homem revoltado (1951), seu ensaio sobre a divinização da história e a justificação da violência pelas utopias revolucionárias, entre elas a utopia hegeliano-marxista que dera origem aos gulags soviéticos. Entretanto, é a Espanha – então governada pela extrema-direita – que fornece o cenário para Estado de sítio, da mesma maneira que A peste (ambientada em Orã, na sua Argélia natal), era uma evidente metáfora da Europa sob o nazismo.
Peça, romance e ensaio, portanto, cobrem todo o espectro político na obra desse escritor mais fiel à concretude de suas percepções, ao ethos de suas origens mediterrâneas, do que às abstrações ideológicas. E, nesse sentido, a espanhola Maria Casarès será seu duplo nas fases subsequentes de sua trajetória.
Esse enredo passional pode ser conhecido na intimidade com a publicação de Correspondência: 1944–1959, que a editora Record lança em 2020. Com 1.300 páginas na edição original da NRF/Gallimard, o volume reúne cartas trocadas pelos dois amantes, com texto estabelecido por Béatrice Vaillant e prefácio de Catherine Camus, filha do escritor.
Nesse prefácio, Catherine conta como ambos se conheceram no dia 19 de março de 1944, na casa de Michel e Zette Leiris durante leitura dramática de O desejo agarrado pelo rabo, de Pablo Picasso. O encontro foi celebrizado por fotografia de Brassaï em que aparecem, além do pintor espanhol e do anfitrião, Camus (responsável pela mise en scène), Sartre, Simone de Beauvoir, o psicanalista Jacques Lacan e o poeta Pierre Reverdy.
Entre outros convivas, também está presente uma atriz de 22 anos, descrita por Olivier Todd (biógrafo de Camus) como “magnífica, além dos cânones clássicos, olhos rasgados, queixo voluntarioso, voz rouca”. Pouco depois, Maria Casarès é convidada pelo diretor Marcel Herrand para integrar o elenco de O mal-entendido e descobre que o autor da peça é o mesmo jovem de “rosto altaneiro sem insolência”, com “ar de indiferença displicente”, cuja presença a impressionara na casa dos Leiris.
Tornam-se amantes no Dia D, o dia do desembarque na Normandia. O último verão da guerra (que acabaria no ano seguinte) nada tem de idílico. Camus vê colegas de Combat serem deportados e, embora não integre diretamente as ações do grupo (do qual o jornal que edita é porta-voz), chega a participar de operações clandestinas, tendo a anti-franquista Casarès a seu lado.
Desde 1940, Camus era casado com Francine Faure, que permanecera na Argélia durante a Ocupação. Com a libertação do território francês, ela pôde enfim reencontrar o marido. Diante das circunstâncias, Camus e Casarès se separam – mas voltam a se cruzar no Boulevard Saint-Germain em 1948, no dia 6 de junho, exatos quatro anos após o início do relacionamento.
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940
Camus e Casarès em Paris, no final da década de 1940 (©Collection Catherine et Jean Camus)
Correspondência traduz tais intermitências. Em 1944, apenas cartas enviadas por Camus a Casarès. Durante o período de separação, silêncio quebrado somente pela mensagem de condolências que ele envia à atriz pela morte de sua mãe, em 1946. E, a partir de 1948, cartas trocadas regularmente pelos amantes.
Na última, de 30 de dezembro de 1959, Camus anuncia seu breve retorno a Paris, partindo da casa de Lourmarin (Provença) onde se instalara com a família após receber o Nobel de literatura de 1957. O encontro não acontecerá. Em 4 de janeiro de 1960, Camus – que planejara ir de trem – viaja de carona no carro do amigo Michel Gallimard, da família de seus editores. No trajeto, o Facel Vega de Michel se estraçalha contra um plátano. Camus morre na hora. Entre os destroços, estavam os manuscritos do romance O primeiro homem, que só seria publicado em 1994.
É arriscado situar o livro – póstumo e inacabado – na obra de Camus. Basta lembrar de A morte feliz, romance de juventude também publicado postumamente, mas que ele abandonou, conservando apenas (e com pequena variação de grafia) o nome do protagonista Mersault, que reapareceria como Meursault em O estrangeiro.
Por um lado, é certo que O primeiro homem sofreria modificações até tomar forma final. Por outro, sente-se a escrita de um autor seguro, apesar de algumas repetições e discretas incongruências (mudança de foco narrativo no meio de um período; troca do nome de um personagem) que soam como atos falhos a revelar como o enredo é calcado em sua biografia, com episódios como a morte do pai na Primeira Guerra, a infância pobre em Argel ou a paixão pelo futebol.
De todo modo, O primeiro homem, na forma que restou (incluindo as anotações fragmentárias ao final), associa dois elementos que correspondem aos últimos dos três ciclos que Camus esboçou para sua obra: uma antropologia do homem mediterrâneo e o tema mais geral do amor.
Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148
Camus e Maria Casarès em 1948, Paris, rua de Vaugirard, 148 (©Collection Catherine Camus)
“Eu tinha um plano preciso quando comecei minha obra”, diz Camus em Estocolmo, por ocasião do Nobel. “De início, queria exprimir a negação. Sob três formas. Romanesca: foi assim com O estrangeiro. Dramática: Calígula, O mal-entendido. Ideológica: O mito de Sísifo. Eu previa o aspecto positivo também sob três formas. Romanesca: A peste. Dramática: Estado de sítio e Os justos. Ideológica: O homem revoltado. E já entrevia uma terceira camada, em torno do tema do amor.”
E, numa anotação de seus Carnets, ele associa a cada um desses ciclos uma entidade mítica: Sísifo para o absurdo, Prometeu para a revolta e Nêmesis para o amor. Se a tarefa absurda de Sísifo fora esquadrinhada no ensaio que leva seu nome, e se em O homem revoltado é fácil entrever a ambiguidade do gesto prometeico de roubar o fogo dos deuses (que pode tanto emancipar os homens como reproduzir, no plano secular, a injustiça divina), a figura vingativa de Nêmesis adquire, na leitura camusiana, duplo sentido.
É ao mesmo tempo a deusa que “vigia o equilíbrio” (punindo quem o quebra, como Camus afirmara no capítulo “O pensamento do meio-dia”, de O homem revoltado), mas também figura feminina, deusa-mãe, promessa de reconciliação dos contrários.
As referências míticas de Camus nunca redundam (com exceção de Estado de sítio, com sua retórica de auto sacramental) numa escrita simbólica, como ocorre em Kafka, no plano ficcional, ou Nietzsche, no filosófico – dois autores admirados por ele. Aplica-se a sua obra o que ele mesmo celebrou em Melville: “o símbolo sai da realidade, a imagem nasce da percepção”, nunca se apartando “nem da carne, nem da natureza”; Camus, como o autor de Moby Dick, “construiu seus símbolos sobre o concreto, e não sobre a matéria do sonho”.
Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, alpes franceses, em 1956
Camus em Mont-Roch, nos arredores de Chamonix, em 1956 (©Collection Catherine et Jean Camus)
Assim, ao recriar mitos, Camus faria da figura de Dom Juan uma das expressões cotidianas do homem absurdo, ou seja, aquele que exaure as possibilidades de uma vida assombrada pela vertigem da finitude – e que revelará sua face perversa, subjugadora, no sombrio Clamence de A queda.
O próprio Camus se lançou, em sua vida amorosa, numa desesperada corrida contra essa vertigem. Paralelamente à paixão por Maria Casarès, manteve romances com a norte-americana Patricia Blake (que conhecera em Nova York), a atriz Catherine Sellers (de origem argelina como ele) e a desenhista dinamarquesa Mi (Mette Ivers).
Mas, em consonância com as antinomias que percorrem sua obra (hedonismo individual e cumplicidade coletiva; núpcias inocentes com a natureza e culpa pela danação de dar curso à história), o donjuanismo absurdo – insinuado nas referências a outras mulheres em suas cartas a Casarès – deveria dar lugar a um amor sob o signo de Nêmesis. Um amor que, como o ethos mediterrâneo celebrado em O primeiro homem (no qual as “divindades do sol, do mar e da miséria” eram um contraveneno para as crenças na vida futura ou nas promessas da história), equilibrasse exaltação e sobriedade, nudez e esquecimento.
Se a terceira fase da obra de Camus não chegou a se realizar, Maria Casarès permaneceu como expressão vital dessa fidelidade singular (tão singular quanto o acordo entre o homem e sua existência que ele sentia sob o sol da Argélia) em meio à “indiferença pelo futuro e a paixão de esgotar tudo o que é dado” (O mito de Sísifo). Talvez por isso, entre tantos amores, Camus se referisse a ela como “A Única”.
MANUEL DA COSTA PINTO é jornalista e crítico literário, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Usp e autor de Albert Camus: um elogio do ensaio (Ateliê)
(Publicado originalmente no site da Revista Cult)
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